No início do primeiro século da Era Cristã, o então recém-instituído Império Romano parecia estar levando adiante com sucesso a conquista da Germânia, que, ao que tudo indicava, seguiria o mesmo caminho de muitas outras nações da Europa, Oriente Médio e norte da África: o de tornar-se mais uma província romana. Nas batalhas de Arbalo e do rio Lúpia, ambas em 11 a. C., o general romano Nero Cláudio Druso, enteado do imperador Augusto, havia obtido vitórias importantes sobre diversas tribos germânicas, as quais, desde então, polarizavam-se entre as que aceitavam o domínio de Roma e as que não o aceitavam – o que também era uma parte normal do processo de conquista. De todo modo, e muito graças a essas vitórias, a região do vale do Reno passou os vinte anos seguintes em relativa tranquilidade, experimentando um intenso desenvolvimento. Novas fortificações militares iam sendo construídas, e, em volta delas, surgiam vilas planejadas, mais limpas e seguras que os aldeamentos nativos. Boas estradas e pontes sólidas facilitavam a circulação de pessoas e mercadorias. Pela primeira vez, aquelas plagas até então selvagens ganhavam ares de civilização, e muitos dos nativos se adaptavam à nova realidade, passando a ganhar seu sustento graças às oportunidades que a presença dos romanos havia trazido, nos ramos do comércio e da indústria. Artesanias de diversos tipos, tabernas e pequenos comércios prosperavam como nunca, já que agora tinham como fregueses os soldados e os funcionários do Império Romano, que tinham salários regulares (!), o que, salvo algum imprevisto, significava dinheiro para gastar todos os meses – algo que, para os germânicos pobres, parecia coisa de outro mundo. Com isso, o padrão de vida médio da população da região sofreu uma melhora significativa, de modo que, apesar dos impostos que agora precisavam pagar a Roma, muitos não estavam descontentes. Em suma, no ano 9 d. C., a fase inicial e violenta da conquista parecia ter sido superada; daí em diante, ela se consolidaria na base da integração e da aculturação. Era o que parecia.
(A propósito: Druso, depois de sua morte, ganhou do senado de Roma o título de "Germânico", em homenagem a suas vitórias na Germânia. O título foi incorporado a seu nome, que passou a ser Nero Cláudio Druso Germânico, e foi herdado por seus filhos. O mais velho deles levou o mesmo nome que o pai e foi praticamente uma segunda edição dele, pois também se tornou um general de renome e praticou façanhas notáveis na Germânia; o mais jovem, Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, foi imperador de 41 a 54, com o nome de Cláudio.)
Da integração de que falávamos há pouco fazia parte, entre outras coisas, o costume de aceitar o alistamento de nativos no exército; eles serviriam nas auxiliae (tropas auxiliares) como cavalarianos, arqueiros, ou como infantaria leve, dotando a máquina de guerra romana com alcance e mobilidade, coisas que não eram o forte das legiões. Depois de arremessar os dois ou três dardos (pila, plural de pilum) que levavam, os legionários tinham que passar ao combate corpo a corpo; tampouco podiam mover-se muito depressa com suas pesadas armaduras e escudos. Por isso as auxiliae eram necessárias, embora, verdade seja dita, geralmente não gozassem de muito prestígio: os legionários regulares tendiam a olhar os soldados auxiliares com certo desprezo, já que, afinal, eram "bárbaros", que só ganhariam a cidadania romana – e, por consequência, o direito de ficar em pé de igualdade com eles – ao final de seu tempo de serviço, se vivessem até lá, é claro. Porém, também era tendência que esse preconceito fosse abrandando ao longo do tempo, pois, como a cidadania era extensiva aos descendentes, os filhos de soldados auxiliares podiam ser legionários, e essas novas gerações (ao menos, era o que se esperava) veriam os auxiliares com outros olhos.
Esse status mais baixo de que padeciam os soldados das auxiliae tinha exceções. Uma delas foi Ermin, ou Irmin (nome que os romanos latinizavam para Armínio, e que evoluiu para Hermann no alemão moderno), filho de Segímero, um dos líderes da tribo germânica dos Cherusci ('queruscos'). Ainda durante a fase inicial da tentativa de conquista da Germânia, o general e mais tarde imperador Tibério (irmão de Nero Cláudio Druso) tentara convencer Segímero a se aliar ao Império, e, para demonstrar benevolência, tomou Armínio, ainda menino, sob sua proteção, e o enviou para ser educado em Roma. Armínio retornou à Germânia por volta do ano 2, com cerca de 18 anos de idade, tendo ganho a cidadania romana (um caso excepcional, devido a suas origens aristocráticas e ao papel-chave que esperava-se que tivesse na política Roma/Germânia durante os próximos anos) e a patente de tribuno militar. Sua missão consistiria em liderar a cavalaria formada por seus compatriotas, apoiando as legiões em qualquer luta que fosse necessário travar contra as tribos que ainda não reconheciam a soberania de Roma. Públio Quintílio Varo, que ocupou o cargo de governador da Germânia no ano 6, repetidamente demonstrou estima pessoal pelo jovem oficial, e gostava de citá-lo como exemplo de bárbaro que se adaptara com sucesso ao modo de vida romano. Mal sabia Varo que Armínio, no íntimo, nunca havia sido sincero em sua aliança com Roma: em segredo, ele imaginava maneiras de unificar as tribos germânicas divididas por rivalidades para, aproveitando-se da confiança que os romanos agora depositavam nele, orquestrar uma insurreição que os expulsasse para sempre das terras ancestrais de seu povo.
(Tudo até aqui é histórico; de agora em diante, passo a comentar o romance Águias em Guerra, no qual o escritor queniano Ben Kane recria a história da batalha da Floresta de Teutoburgo, cujo desfecho frustrou em definitivo os planos romanos de conquista para a maior parte do território germânico.)
A narrativa do livro acompanha dois homens: um germano, Armínio, e um romano, o veterano centurião primus pilus Lúcio Comênio Tulo. Lembrando: o primus pilus (latim para 'primeira lança', às vezes traduzido como primeiro-centurião) era o comandante da primeira centúria de uma coorte, e tinha, na prática, uma patente mais alta que a dos outros centuriões, sendo responsável pela coorte toda (seis centúrias formavam uma coorte, e dez coortes formavam uma legião). Tulo é um homem enrijecido por muitas batalhas nas diferentes províncias onde já serviu, e está numa altura da vida em que a ideia de reformar-se vai assumindo contornos mais concretos. Com 40 e poucos anos, passou os últimos 25 no exército – ou seja, já poderia estar reformado, mas optou por prorrogar seu tempo de serviço, provavelmente por não conseguir imaginar-se vivendo como civil. Agora, no entanto, até seu vigor físico já não é o mesmo de outros tempos, e ele considera que pode ser uma boa ideia ir descansar, deixando as lides militares para oficiais mais jovens e ambiciosos.
O que Tulo não esperava era ser agraciado com a missão de servir de ama-seca para um desses jovens oficiais. O tribuno Lúcio Túbero acaba de chegar de Roma, tem 17 anos e está empolgado com seu primeiro comando militar. Ansioso por mostrar seu valor em combate, ele não recebe bem a notícia de que sua primeira missão será uma patrulha de rotina pela margem leste do Reno, na qual as probabilidades de ocorrer alguma luta são quase nulas: as tribos da região são aliadas de Roma, e aquelas que permanecem hostis estão, em princípio, bem distantes. Essas patrulhas, além de servirem para exercitar os soldados em longas marchas, tinham uma função eminentemente ostensiva: a visão de tropas romanas em movimento era considerada salutar mesmo para as tribos nativas já pacificadas, pois as inspirava a pagar seus impostos sem resmungar e desestimulava qualquer ideia infeliz que pudesse andar revolvendo nas cabeças dos menos satisfeitos. Nenhum incidente é esperado durante os vários dias que esse deslocamento deverá durar, mas há um fio de esperança para Túbero: nos últimos tempos, germanos Tencteri, cuja tribo ainda não aceita o domínio romano, têm feito incursões à região do rio para roubar gado de outras tribos, e há alguma chance de que a patrulha tope com um desses bandos de ladrões. Naturalmente que, embora Túbero tenha a patente mais alta, Tulo é quem de fato comanda a operação – mas o centurião percebe logo que deve ser sutil e diplomático: Túbero é afoito e arrogante. O consolo de Tulo reside no fato de que muitos tribunos que começaram desse jeito amadureceram e acabaram por tornar-se bons oficiais… O que não muda a antipatia instantânea que ele logo sente pelo moleque.
O que Tulo não esperava era ser agraciado com a missão de servir de ama-seca para um desses jovens oficiais. O tribuno Lúcio Túbero acaba de chegar de Roma, tem 17 anos e está empolgado com seu primeiro comando militar. Ansioso por mostrar seu valor em combate, ele não recebe bem a notícia de que sua primeira missão será uma patrulha de rotina pela margem leste do Reno, na qual as probabilidades de ocorrer alguma luta são quase nulas: as tribos da região são aliadas de Roma, e aquelas que permanecem hostis estão, em princípio, bem distantes. Essas patrulhas, além de servirem para exercitar os soldados em longas marchas, tinham uma função eminentemente ostensiva: a visão de tropas romanas em movimento era considerada salutar mesmo para as tribos nativas já pacificadas, pois as inspirava a pagar seus impostos sem resmungar e desestimulava qualquer ideia infeliz que pudesse andar revolvendo nas cabeças dos menos satisfeitos. Nenhum incidente é esperado durante os vários dias que esse deslocamento deverá durar, mas há um fio de esperança para Túbero: nos últimos tempos, germanos Tencteri, cuja tribo ainda não aceita o domínio romano, têm feito incursões à região do rio para roubar gado de outras tribos, e há alguma chance de que a patrulha tope com um desses bandos de ladrões. Naturalmente que, embora Túbero tenha a patente mais alta, Tulo é quem de fato comanda a operação – mas o centurião percebe logo que deve ser sutil e diplomático: Túbero é afoito e arrogante. O consolo de Tulo reside no fato de que muitos tribunos que começaram desse jeito amadureceram e acabaram por tornar-se bons oficiais… O que não muda a antipatia instantânea que ele logo sente pelo moleque.
Só para esclarecer aos que não estiverem familiarizados com a hierarquia do exército romano, os tribunos militares eram os oficiais diretamente subordinados a um legado, que era o comandante de uma legião (um general podia comandar diversas legiões). Cada tribuno tinha sob suas ordens vários centuriões e, teoricamente, cerca de mil legionários, embora, na prática, fossem quase sempre menos, pois era raro que uma centúria tivesse exatamente cem homens. A questão delicada aí é que o posto de tribuno era muitas vezes ocupado por jovens oriundos das famílias patrícias (isto é, aquelas de berço nobre e normalmente ricas), formados numa academia, mas sem qualquer experiência militar real, que estavam dando seus primeiros passos no cursus honorum (detalhes aqui). Enfim, Túbero é um exemplar típico. Colocar um rapazola inexperiente numa posição de comando era uma concessão política, mas ninguém era louco de não tomar precauções para evitar que isso acabasse em desastre: os tribunos sempre tinham junto de si centuriões experientes para auxiliá-los e aconselhá-los, e, na maioria das vezes, eram espertos o suficiente para ouvir o que eles diziam. Havia um mecanismo que visava garantir isso: ao mesmo tempo em que estavam sob as ordens do tribuno, os centuriões tinham o poder de avaliá-lo. Se os relatórios que eles encaminhassem ao legado ou ao general em comando fossem continuamente desfavoráveis, o tribuno podia perder seu posto – o que seria um grande problema para sua carreira futura. Esse sistema, de modo geral, era eficiente, embora, é claro, não fosse à prova de influências e "amizades". E, como também é claro, era impossível evitar que alguns desastres efetivamente acontecessem.
Um deles tem lugar durante a patrulha pela margem leste: Túbero, acompanhado de alguns outros oficiais montados, decide explorar o caminho à frente das tropas e acaba topando com alguns guerreiros germanos que vêm conduzindo uma boiada. Assumindo logo que se trate dos ladrões Tencteri e sem falar a língua dos germanos, que tampouco falam latim, o tribuno arma uma confusão que resulta na morte de vários homens – que não são Tencteri coisa nenhuma, e sim da tribo local dos Usipeti, há muito aliados a Roma. A única maneira de evitar que a justa indignação do restante da tribo degenere numa revolta seria que o governador Varo fizesse um pedido formal de desculpas e aplicasse a Túbero uma punição exemplar… Mas o governador não se atreve a tanto, já que o rapaz é filho de um homem importante de Roma, amigo do próprio imperador. Armínio, que já antes disso vinha fazendo contatos com o objetivo de articular uma rebelião, habilmente tira proveito do ressentimento gerado pelo incidente para estimular um ânimo de rebeldia inclusive entre as tribos que até aí estavam do lado dos romanos. Tudo de forma discreta, até que chegue o momento certo para "virar a mesa". Desnecessário dizer que convencer as tribos germânicas de que tinham um inimigo comum – no caso, Roma – era o único meio factível de conseguir que cooperassem entre si, pois, sob condições normais, as relações de umas com as outras variavam da desconfiança à inimizade mortal.
Águias em Guerra é uma leitura empolgante! A recriação histórica parece perfeita aos olhos de alguém com um conhecimento bastante razoável sobre a época (modéstia à parte, esse sou eu – risos); Kane tomou umas poucas liberdades, as quais ele esclarece na nota ao final do livro. Além disso, há uma atmosfera de tensão ininterrupta, pois o autor consegue fazer o leitor sentir a enormidade do que está se preparando para acontecer. Armínio, ardiloso, esforça-se por parecer o oficial perfeito aos olhos do governador Varo: eficiente, solícito… Um pouco eficiente e solícito demais para o gosto de Tulo, que, apesar de manter relações cordiais com o germano, conserva, durante todo o tempo, uma certa reserva a respeito dele. Por mais de uma vez o centurião tenta expor sua desconfiança ao governador, mas este sempre o repreende duramente por "ousar" pôr em dúvida a lealdade de Armínio, a quem ele considera não só um fidelíssimo aliado de Roma, como seu amigo pessoal – uma opinião que Armínio trata de reforçar, repetidamente visitando o governador para longas conversas regadas a vinho e convidando-o para caçadas. Varo, apesar de também já haver exercido comandos militares, é essencialmente um político; Tulo, por outro lado, é um soldado até o último fio de cabelo, e a intuição que tantas vezes salvou sua vida (e as de seus homens) no campo de batalha, parece alertá-lo a manter um pé atrás em relação a Armínio. Enfim, se Tulo, e não Varo, fosse o governador da Germânia naqueles dias, é possível que os alemães de hoje falassem uma língua neolatina… Certo, Tulo é um personagem fictício, mas é provável que houvesse diversos homens parecidos com ele à volta do Varo histórico, e, se tivessem conseguido que ele os ouvisse, a História poderia ter tomado outro rumo. O pior é que vários indícios do que ia acontecer chegaram ao conhecimento de Varo, que os ignorou porque confiava cegamente em Armínio. E, se pensarmos bem, não havia como não vazarem informações: para conseguir a adesão de uma tribo a sua causa, Armínio precisava expor seu plano, que então era discutido entre os chefes e todos os guerreiros – e todos sabemos que um segredo que é confiado a muita gente nunca permanece secreto por muito tempo. O desastre poderia ter sido evitado se o governador tivesse sido mais esperto, o que tornou o caso todo ainda mais difícil de descer pela goela dos romanos.
Voltando ao livro, o momento que Armínio esperou durante tantos anos finalmente chega no outono do ano 9, quando a Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, lideradas por Varo em pessoa, estão retornando de seu acampamento próximo à vila de Porta Westfalica para suas bases permanentes na cidade de Vetera (a atual Xanten), onde deverão passar o inverno – e onde o relativo sedentarismo imposto pelas condições do tempo durante a estação fria será um descanso mais do que bem-vindo para os soldados, depois de uma primavera e verão de marchas exaustivas e algumas lutas. Acontece que, durante a marcha, Armínio procura Varo com a notícia (falsa) de uma sublevação entre os Angrivari, uma tribo cujo território fica relativamente próximo dali. Garantindo ao governador que ele e seus cavaleiros conhecem bem os caminhos da região e sabem exatamente por onde o exército deve marchar para chegar ao local o mais depressa possível, Armínio consegue que as legiões se metam numa trilha estreita e tortuosa, por dentro da floresta de Teutoburgo, na atual Baixa Saxônia, Alemanha. Na floresta, as três legiões, totalizando cerca de 14 mil homens, seriam emboscadas por uma confederação de tribos germânicas com cerca de 20 mil. Em circunstâncias normais, esse grau de inferioridade numérica nem chegaria a preocupar as legiões romanas, acostumadas a enfrentar – e derrotar – inimigos duas, três vezes mais numerosos que elas, mas desorganizados e pouco disciplinados. O problema foi o local onde o ataque ocorreu: para poderem transitar por aquela trilha estreita, as legiões tinham sido obrigadas a se afunilar até estarem marchando quase em fila indiana; isso, mais a densa mata que as rodeava, tornou impossível aos soldados entrarem em formação com a rapidez necessária ao serem atacados de surpresa por inimigos que, ao contrário deles, estavam acostumados com a floresta e com o terreno acidentado e lamacento. Os germânicos emergiam das sombras da floresta, faziam ataques-relâmpago e tornavam a desaparecer, para, pouco mais tarde, repetirem a manobra, e assim sucessivamente, causando baixas e minando o moral dos soldados. Ou seja, tudo correu conforme os planos de Armínio, que desde o início pretendia colocar as legiões no terreno mais desfavorável possível para elas, onde seus homens pudessem atacar sem precisar enfrentar os romanos em combate direto, pois ele sabia que, se o fizessem, eles perderiam. De cada legião não restou mais que um punhado de sobreviventes, e, ainda pior que isso, suas águias caíram nas mãos dos bárbaros. O episódio entraria para a história romana com o nome de Clades Variana (o 'Desastre de Varo'). Conta-se que, ao saber do acontecido, o imperador Augusto, então já um homem idoso, chorou, e que durante meses teve pesadelos, dos quais acordava gritando: "Vare, legiones redde!" ('Varo, devolva minhas legiões!')
Um dos muitos méritos de Águias em Guerra é que o autor não cai no simplismo tolo de eleger um lado como o "bem" e o outro como o "mal": alguns romanos podem ser arrogantes e prepotentes, mas também há os que são justos; os germânicos anseiam por recuperar sua liberdade (mesmo que seja para voltarem a viver como selvagens, lutando idiotamente uns contra os outros sem qualquer motivo real), e ninguém pode culpá-los por isso, mas também cometem atos bárbaros e brutais. Como eu disse, a indignação dos Usipeti ante os assassinatos perpetrados por Túbero é mais do que justa – mas não se pode dizer o mesmo da retaliação que praticam, saqueando várias vilas (habitadas por germanos como eles), assassinando e estuprando, até serem detidos, e por quem? Pelos romanos… Enfim, nesta história as coisas são bem mais complicadas que um mero confronto entre o bem e o mal: são mais parecidas com a realidade. Seguindo o mesmo espírito, as descrições das batalhas pouco têm de glorioso: são assustadoras e, não raro, repugnantes, como uma batalha de verdade. Também é uma realização notável do autor o fato de conseguir que o leitor experimente uma sensação de suspense enquanto acompanha os eventos, apesar de já saber qual será o resultado; isso é alcançado principalmente porque, a partir de certo momento, o fato de que a causa romana na Germânia está perdida é aceito por todos, e, daí em diante, o núcleo da história não é mais esse. Em face dessa realidade, cada personagem tem a reação que lhe cai melhor: Armínio e seus germanos comemoram, Varo suicida-se, Tulo se esforça de forma heroica para tirar dali com vida o maior número possível de seus homens – e a atitude deste último assegura-nos uma linha de ação eletrizante para seguirmos com a respiração suspensa até o final do livro.
Kane menciona que a ala ('asa', nome dado a uma unidade de cavalaria) que Armínio comanda é vinculada à Décima Sétima Legião, enquanto a coorte sob as ordens de Tulo pertence à Décima Oitava, mas tem o cuidado de só designar essas legiões pelos números, nada dizendo sobre seus nomes ou seus emblemas, e por uma razão muito boa: essas informações são desconhecidas. As duas, junto com a Décima Nona, tiveram um fim que foi considerado ignominioso, e, por isso, os cronistas da época e os das gerações seguintes parecem ter achado que quanto menos falassem sobre elas, melhor. Houve, mais tarde, uma série de expedições punitivas sob o comando do já citado Germânico, filho de Druso e sobrinho de Tibério, e as águias foram recuperadas, restaurando, ao menos em parte, o orgulho ultrajado de Roma, mas, mesmo assim, os números 17, 18 e 19 nunca voltaram a ser atribuídos a nenhuma outra legião. Também não houve reconquista definitiva dos territórios perdidos como resultado do Desastre de Varo; com isso, o Reno permaneceu como fronteira, e a Germânia romana limitou-se, daí em diante, a um pequeno território a oeste desse rio, incluindo partes das atuais Holanda e Bélgica, além da região alemã da Renânia, e tendo como principais cidades Maguntiacum (pronuncie Maguncíacum), hoje Mainz, e Augusta Treverorum, hoje Trier, onde ainda pode ser vista a imponente Porta Nigra ('Porta Negra'), edificação defensiva romana do século III.
Apesar da vitória obtida contra o exército mais poderoso do mundo, as ambições de Armínio de unir os germanos numa nação (da qual ele se faria rei) fracassaram por completo. As tribos só permaneceram lado a lado durante o tempo necessário para derrotar os romanos, retomando depois o seu costume ancestral de disputas territoriais, pilhagem mútua e guerras fratricidas; os primeiros progressos mais duradouros na direção de uma unificação da Germânia só seriam alcançados oito séculos depois, pelo franco Carlos Magno. Ainda assim, Armínio era um dos vultos históricos mais prezados pelos integrantes dos movimentos intelectuais e artísticos alemães que ganharam força a partir do fim do século XVIII, como o Sturm und Drang ('Tempestade e Ímpeto') e outros que o sucederam, todos marcados por um forte sentimento nacionalista, e que formariam o substrato cultural e filosófico para o surgimento do movimento Völkisch, que, por sua vez, teria como principal desdobramento a ascensão do nazismo. Entretanto, mesmo na Alemanha atual, Armínio possui status de herói, não obstante o fato de a vitória que o imortalizou ter sido alcançada por meio da mentira e da traição; talvez o pensamento por trás disso seja que invasores não merecem lealdade.
Ben Kane é uma amostra de quanta coisa interessante se publica mundo afora e não chega às estantes das livrarias brasileiras; felizmente, a editora portuguesa Top Seller decidiu investir nele, e o resultado foi esta edição de alta qualidade. Para os olhos cansados de um leitor acostumado a se horrorizar com os absurdos gramáticos que pipocam das páginas dos livros ambientados na Antiguidade publicados no Brasil, o maior mérito consiste em algo que, para os portugueses, é normal: como eles comumente já usam o pronome tu no dia a dia, também sabem como conjugar os verbos nessa pessoa, uma "arte" que, aqui no Brasil, perdeu-se completamente; sendo assim, não têm necessidade de ficar tentando recriar nenhuma "linguagem de época", o que as edições brasileiras fazem, quase sempre, de forma tão tosca e artificial. Há sutilezas que só quem já leu muitos livros em português europeu (ou estudou essa variante da língua) percebe: o você também é empregado, mas, em Portugal, esse é um tratamento um pouco mais formal, usado com indivíduos com quem não se tem maior proximidade; nós, brasileiros, nunca nos damos conta disso, mas você é uma contração de vossa mercê, que era um tratamento bastante cerimonioso. Entre os dois, existiu a forma de transição vosmecê. E, é claro, há uma série de palavras e expressões que, para nós, não são usuais (por exemplo, não se diz que alguém levou uma surra, e sim que "tomou uma tareia"), mas nada que uma rápida pesquisa na internet não resolva, e ampliar o vocabulário é sempre bom. Sem contar que quem, como eu, cresceu lendo livros de aventuras importados de Portugal, já sente carinho por esse linguajar pitoresco, que embalou tantos momentos empolgantes de nossas vidas de leitores. O texto do livro está quase perfeito; curiosamente, por alguma razão que não imagino, "romanos" ora é escrito com letra maiúscula, ora minúscula, mas, fora isso, não encontrei mais que três ou quatro pequenos erros de digitação. Um detalhe na sinopse da contracapa entrega que, pelo visto, em Portugal, assim como aqui, esses textos "periféricos" costumam ser preparados por pessoas diferentes das responsáveis pelo livro propriamente dito, e que, muitas vezes, não entendem muito do assunto: a sinopse fala em "ano 9 a. C.", em vez de 9 d. C., como se lê no miolo do livro e é o correto. Mesmo com a diferença brutal de nível cultural médio que existe entre brasileiros e portugueses, parece que lá, como aqui, também há essa tendência ingênua de pensar que, se o assunto é a Antiguidade, então todas as datas precisam ser obrigatoriamente a. C. Mas não é uma falha banal como essa que vai pôr a perder a excelência do livro, em todos os sentidos.
Por fim, para quem, como eu, gosta de metal, deixo duas dicas de "trilhas sonoras" perfeitas para dar ainda mais sabor à leitura de Águias em Guerra. Ambas são da banda canadense Ex Deo, e uma, chamada Teutoburg (Ambush of Varus), como o título já entrega, é diretamente inspirada no episódio. Essa é do segundo álbum dos caras, Caligvla, lançado em 2012. A outra é Legio XIII, do primeiro álbum, Romulus, de 2009; essa não tem relação direta com a batalha da Floresta de Teutoburgo, mas, pelo menos para mim, embala perfeitamente qualquer história cheia de ação protagonizada por legionários romanos, especialmente seu solo de guitarra, um dos mais empolgantes que já ouvi.
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