quinta-feira, novembro 21, 2019

A Hora do Vampiro

Havia uma igreja em ruínas no caminho, um antigo centro de reuniões metodistas, que erguia seus destroços na extremidade de um gramado estragado pelas geadas e cheio de elevações, e quando alguém passava por suas janelas vazias e sem sentido, os passos soavam muito alto, e o que quer que se estivesse assobiando morria nos lábios, e podia-se pensar em como aquilo devia ser lá dentro – os bancos tombados, os hinários apodrecidos, o altar desmoronado, onde hoje só os camundongos guardavam o domingo, e ficava-se pensando, o que poderia haver ali além dos camundongos – que loucos, que monstros. Talvez estivessem olhando para a pessoa com seus olhos amarelos, de répteis. E talvez não bastasse espiar, uma noite; talvez uma noite qualquer aquela porta rachada, mal pendurada, se abriria repentinamente e o que se veria ali levaria à loucura, com um só olhar.

Não se poderia explicar isso à nossa mãe ou pai, que eram criaturas da luz. Assim como não se podia explicar-lhes que, aos três anos, o cobertor sobressalente ao pé do berço transformava-se numa coleção de serpentes que ficavam olhando para a gente com olhos planos e sem pálpebras. Nenhuma criança jamais vence esses medos, pensou ele. Se um receio não pode ser formulado, não pode ser vencido. E os medos trancados em cérebros pequeninos são grandes demais para passarem pelo orifício da boca. Mais cedo ou mais tarde, a gente encontrava alguém com quem caminhar por todas as casas de reunião desertas que se tem de passar entre a infância sorridente e a senilidade ranzinza. Até aquela noite. Até aquela noite, em que ele via que nenhum dos velhos receios fora vencido – apenas guardados em seus caixões pequeninos, de criança, com uma rosa silvestre espetada em cima.

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No post a respeito de Ao Cair da Noite, eu já havia dado breves pinceladas sobre o início da carreira de Stephen King, assinalando que, como muitos escritores de todos os gêneros, ele começou pelos contos, mais rápidos de escrever e mais fáceis de vender, somente passando aos romances quando já estava com o nome consolidado, com leitores fiéis e um currículo que obrigaria qualquer editor a, no mínimo, dar-lhe atenção. Carrie (1974) foi como que um trabalho de transição – um romance, mas relativamente curto, com menos de 200 páginas, como se o autor ainda estivesse se ajustando a escrever narrativas mais longas. Assim, podemos dizer que 'Salem's Lot (1975) foi seu primeiro romance "padrão": foi com ele que King deslanchou como romancista.

Quanto ao título nacional, bem… O exemplar que tenho, e cuja capa estou reproduzindo aqui, é da edição de 1991 da Nova Cultural, um livro barato vendido em bancas de jornal – o único tipo de livro que eu, adolescente, tinha condições de adquirir, e mesmo isso, só muito ocasionalmente; a maior parte do que eu lia na época era emprestado da biblioteca pública. O que eu ia dizer, entretanto, era que, como costuma acontecer com essas edições baratas, essa foi publicada mediante licença da editora que havia publicado o livro antes e que detinha os direitos da tradução, no caso a Record. Isso significa que a primeira edição brasileira de 'Salem's Lot saiu, provavelmente, alguns anos antes, portanto em meados dos anos 80, em plena febre dos filmes A Hora. Quem é macaco velho em matéria de cinema fantástico sabe do que estou falando; para os mais jovens, explico: durante boa parte daquela década mágica, existiu (no Brasil) uma convenção de que filme de terror, para fazer sucesso, tinha que ter o título começando com A Hora. Creio que isso tenha começado com A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), que inaugurou o que seria uma das franquias mais lucrativas do gênero, mas sobre a qual confesso que sei muito pouco. No ano seguinte surgiu A Hora do Espanto (Fright Night), de Tom Holland, por sinal um ótimo filme de vampiro. Depois que ambos os filmes foram sucessos de bilheteria no país, as distribuidoras nacionais passaram a rebatizar uma infinidade de produções de variados temas e qualidade ainda mais variada como A Hora disso e A Hora daquilo: tivemos A Hora dos Mortos-vivos, A Hora das Criaturas, A Hora da Zona Morta, A Hora do Lobisomem (os dois últimos baseados em livros de Stephen King), entre muitos outros. E o modismo, que surgiu no cinema, acabou respingando na literatura, o que valeu a 'Salem's Lot o pífio título pelo qual ficou conhecido no Brasil. A capa desta edição, apresentando uma espécie de Drácula genérico, também não ajuda, mas, felizmente, eu já conhecia um pouco de King na época (tinha lido Zona Morta e Sombras da Noite), e por isso não permiti que o título nem a capa me detivessem. E, com título ruim ou não, A Hora do Vampiro é um vigoroso exemplo de Stephen King no melhor de suas capacidades.

'Salem's Lot é uma contração de Jerusalem's Lot, nome da pequena cidade do Maine que serve de cenário à história. É bem claro que se trata da mesma cidade que aparece no conto A Saideira, presente na coletânea Sombras da Noite, mas fica-se em dúvida se será também a mesma de outro conto da mesma coletânea, intitulado Jerusalem's Lot. No livro de que estamos tratando, não há qualquer menção à amaldiçoada família Boone, ao livro profano De Vermis Mysteriis ou à sinistra mansão de Chapelwaite. Em vez dela, há outra mansão com reputação de assombrada, a Casa Marsten, cujo proprietário, então o homem mais rico de Lot e região, assassinou a esposa e logo em seguida suicidou-se, isso em 1939, décadas antes dos eventos narrados no livro, que se ambienta na mesma época em que foi publicado, meados dos anos 70. Benjamin Mears, escritor de certa fama, que morou na cidade durante parte de sua infância, decide passar uma temporada lá enquanto escreve um novo romance. Cerca de um ano antes, a fatídica Casa Marsten foi comprada, de forma sigilosa, por uma dupla de forasteiros que também adquiriram o prédio de uma lavanderia há muito fechada; sua intenção declarada é a de fixar residência na velha mansão e transformar a antiga lavanderia numa loja de móveis finos e antiguidades. Parece que os preparativos necessários foram demorados, pois, coincidência ou não, o homem que diz chamar-se Richard Straker e se apresenta como um dos sócios-proprietários da loja reaparece em Lot praticamente ao mesmo tempo em que Ben Mears chega. Straker, homem de aparência distinta, fala culta, modos misteriosos e calma imperturbável, diz a todos que seu sócio, Kurt Barlow, está em viagem de negócios, adquirindo itens para a loja, e só deverá aparecer na cidade dali a semanas.

Como foi dito, Ben está escrevendo um novo livro, que, diferente dos anteriores, terá uma pegada sobrenatural (olha a metalinguagem!), e, nas raras ocasiões em que consente em comentar algo sobre seu trabalho, confessa que parte da inspiração para ele veio da Casa Marsten e de experiências que teve quando garoto, ali em Jerusalem's Lot. Na biblioteca pública local, ele faz extensas pesquisas em jornais antigos, e, além das informações que procurava, acaba descobrindo algo inesperado e que pode ter implicações macabras: parece que desaparecimentos periódicos de crianças foram registrados em Lot sempre coincidindo com épocas em que a Casa estava habitada – e isso volta a acontecer agora. Os irmãos Glick, Danny, de 12 anos, e Ralphie, de nove, são surpreendidos por "alguma coisa" enquanto percorrem uma trilha na mata à noite; Ralphie desaparece e Danny volta para casa num estado de confusão mental, incapaz de dizer o que aconteceu ou que fim levou seu irmão. Poucos dias mais tarde, o garoto mais velho morre de algo diagnosticado como anemia perniciosa, embora nada em seu histórico médico sugerisse esse quadro ou qualquer tendência para ele. Todos sabemos que anemia significa, em linguagem médica, uma quantidade insuficiente de glóbulos vermelhos no sangue, geralmente devido à carência de ferro no organismo, mas é interessante atentar para a etimologia da palavra, que, se traduzida literalmente de sua origem grega, exprime um conceito bem mais simples: an (sem) + hema (sangue). Uma vez que sabemos isso, a coisa torna-se autoexplicativa.

Danny Glick é a primeira peça derrubada num tenebroso efeito dominó. Poucas pessoas sabem o que realmente está acontecendo em Jerusalem's Lot, e essas precisam lutar sozinhas, pois, se revelarem ao resto da sociedade local o que sabem, só conseguirão ser trancadas num manicômio. Impossível não lembrar de uma cena do filme 30 Dias de Noite e de uma coisa que o líder de um grupo de vampiros diz ao repreender um de seus comandados por ter feito algo que punha em risco o segredo em torno da existência de sua raça: "Levou séculos para convencermos os humanos de que somos apenas uma lenda!" Na verdade, a mais clássica de todas as histórias de vampiro (Drácula, é claro) já trazia algo parecido, quando o Dr. Van Helsing declara que o maior trunfo do vampiro é que ninguém acredita em sua existência.

King não faz qualquer tentativa de "modernizar" o mito: seus vampiros temem crucifixos, água benta, luz do sol, talvez até alho, e não podem entrar numa casa a menos que sejam convidados. Muitos autores desprezam tais noções, especialmente as que atribuem a objetos sagrados o poder de repelir os sanguessugas; no entendimento desses autores, isso tudo é fruto da ideia popular e antiga de que os vampiros estariam necessariamente relacionados às forças do mal, quiçá ao diabo em pessoa. Bem, parece que, para Stephen King, essas ideias, pouco importa o quão populares ou antigas, podem conter um fundo de verdade: não pode ser coincidência que, num romance sobre vampiros, haja tantas menções às ligações do falecido Hubert Marsten com cultos profanos e sacrifícios de crianças.

O pequeno grupo de heróis, capitaneado por Ben Mears, conta também com Susan Norton, uma jovem que ele conheceu ao chegar à cidade e com quem rapidamente se envolveu; Matt Burke, um veterano professor de inglês e literatura; Jimmy Cody, ex-aluno de Matt e hoje médico (que sempre me fazia pensar no Dr. Jack Seward, de Drácula); o padre Donald Callahan, vigário da paróquia católica de Jerusalem's Lot; e Mark Petrie, um garoto de 12 anos cuja coragem, força de vontade e autodomínio deixariam muitos adultos envergonhados. Mark desempenha o papel que crianças frequentemente têm em histórias fantásticas: sua mente, não limitada pelas amarras do "racional", aceita os fatos (por mais bizarros que sejam) quando eles se apresentam, e reage imediatamente, em vez de perder um tempo precioso tentando negar a realidade ou procurando "explicações plausíveis". Se é com vampiros que estamos lidando, vamos preparar as cruzes e as estacas! Ficar repetindo como um idiota que "vampiros não existem" não vai manter as presas deles longe do seu pescoço. Mark conta, ainda, com uma vantagem: conhecimento. Sendo um garoto de muita imaginação e com um gosto natural por coisas soturnas e misteriosas, é um ávido leitor de terror e, por isso, é quem melhor conhece as particularidades e os pontos fortes e fracos dos vampiros. Nesse quesito, supera Ben e Matt, embora ambos sejam homens cultos e já tenham lido a sua quota de histórias sobrenaturais.

Kurt Barlow, como se descobre, é apenas o nome atual de um ser que provavelmente já usou muitos outros ao longo dos séculos. Trata-se de um vampiro muito velho e muito poderoso; em certo capítulo, os caçadores invadem seu covil durante o dia, apenas para descobrir que ele antecipou seu movimento e foi esconder-se em outro lugar, deixando para eles uma carta muito polida e ligeiramente irônica. A carta é para o grupo, mas há algumas linhas dirigidas especificamente a cada um, e, na parte dedicada ao Pe. Callahan, Barlow revela que, embora há muito tempo ele tenha suas "diferenças" com a Igreja Católica, ela não é seu inimigo mais antigo: "Eu já era velho quando ela ainda era nova, quando seus membros se escondiam nas catacumbas de Roma e desenhavam peixes no peito, para poderem distinguir-se entre os outros. Eu já era forte quando esse clube lamuriento de comedores de pão e bebedores de vinho, que veneram o seu salvador-cordeiro, ainda era fraco." Portanto, estamos falando de um ser com mais de dois mil anos de idade – bem mais, se ele já se considerava velho quando a Igreja dava seus primeiros passos, pois sabemos que a palavra velho tem um significado diferente para um vampiro do que tem para um humano. Perto de Barlow, Drácula, com os quinhentos e poucos anos que teria se ainda fosse "vivo" nos anos 70, não passaria de um aprendiz. Do alto dessa vasta experiência acumulada, Barlow conhece bem a natureza humana, e sabe onde deve atacar primeiro ao fechar o cerco sobre Jerusalem's Lot. Qual o seu objetivo com isso? Mistério. Tudo o que podemos depreender é que tem a ver com Hubert Marsten, com quem o velho vampiro tinha ligações e, provavelmente, algum tipo de acordo. E ele ataca primeiro onde vê fragilidade: às vezes visa crianças, como no caso dos irmãos Glick, outras vezes pessoas que estejam emocionalmente abaladas, como Floyd Tibbets, o ex-namorado rejeitado de Susan, ou Corey Bryant, logo depois de ser pego em flagrante pelo marido de sua amante. Sendo um vampiro clássico, Barlow deve possuir todos os poderes que as lendas antigas atribuem a sua raça, ou, pelo menos, aos representantes mais poderosos dela: força descomunal, capacidade de controlar animais e sabe-se lá o que mais; Bram Stoker insinua que Drácula era capaz de controlar até mesmo as condições meteorológicas. Porém, ele prefere, sempre que possível, utilizar métodos mais sutis, em especial a hipnose. Depois de um instante de medo extremo, suas vítimas experimentam uma sensação de conforto e paz, uma noção de que basta entregarem-se para que todo o medo e sofrimento acabem. Para resistir a isso, é necessária uma tremenda força de vontade.

Vou admitir, 'Salem's Lot tem trechos deprimentes, sem relação direta com nada sobrenatural; o autor se permite explorar (nunca muito longamente, graças a Deus) a sordidez que constitui uma faceta inseparável da natureza humana – embora a natureza humana não se resuma só a sordidez, como certa classe de chatos parece sentir prazer em papagaiar. Uma jovem mãe que alivia sua frustração com a vida batendo no filho pequeno; uma anciã cuja razão de viver é conhecer segredos escabrosos dos outros habitantes da cidade e espalhá-los para o maior número de ouvintes que puder; um homem de negócios que suborna sem hesitar um de seus trabalhadores para que ele fique calado a respeito de possíveis evidências de um crime, e por aí vai. Outros trechos retratam momentos depressivos vividos por um ou outro personagem, como o Pe. Callahan, que enfrenta problemas com álcool e uma crise de fé. Pelo menos na minha leitura, as páginas dedicadas a isso tudo são necessárias: parece haver nas entrelinhas do romance como um todo uma insinuação de que, se todas as pessoas fossem fortes, íntegras, saudáveis e felizes, seres como Kurt Barlow não teriam poder, e talvez nem conseguissem sobreviver. Para se fortalecer e exercer seu poder, ele precisa das trevas – tanto as da noite quanto as da alma humana. Entretanto, o saldo final da história não é de puro pessimismo, já que existem pessoas corajosas dispostas a arriscar tudo para deter o mal. Ainda há esperança para nossa pobre espécie.

Mesmo nessa fase inicial de sua carreira, King já demonstrava uma compreensão muito precisa de como o medo funciona, e também do fato de que existem diferentes tipos de medo. Há medos que são socialmente aceitos, porque considerados racionais, como o medo da violência urbana, do futuro incerto, da guerra, de doenças; esses são temores que as pessoas confessam com relativa facilidade, porque sabem que encontrarão empatia. Porém, há outros medos, como aquele que experimentamos tarde da noite, sozinhos em casa, deitados na cama, no escuro, incapazes de dormir, quando temos a sensação inexplicável de uma presença sombria no canto do quarto, ou poderíamos jurar ter ouvido algo se mover na peça ao lado – e não temos coragem sequer de esticar o braço para acender a luz, quanto mais de ir averiguar a origem do barulho. Horas depois, à luz do dia, esses temores parecem tolos, e a maioria de nós acharia muito embaraçoso confessá-los a qualquer outra pessoa, mas isso não muda o fato de que aquele momento de medo e suor frio durante a madrugada parece durar um século, e de que, enquanto dura, esse medo sem nome é absolutamente real. Racionalmente, eu sei que o medo do escuro nada mais é que uma herança dos nossos ancestrais primatas, que, nas savanas e florestas onde viviam, estavam sempre expostos aos ataques de predadores de olhos brilhantes e presas afiadas que preferiam caçar à noite. Sendo assim, e continuando a ser racional, reconheço que esse medo está obsoleto, já que dificilmente algum leopardo ou hiena vai invadir meu apartamento – e, não obstante, algo em mim parece impermeável a toda essa racionalidade, e, como resultado, o velho medo do escuro continua a dar as caras de vez em quando. Muito menos que quando eu era criança, é verdade, mas ele ainda aparece. Talvez as únicas pessoas imunes a isso sejam as totalmente desprovidas de imaginação, e isso não é coisa que se possa escolher… E, para ser franco, ainda que fosse possível, eu não escolheria. Como dizia Jorge Luís Borges, não se pode matar os demônios sem matar junto as fadas.

Mas chega de poesia. Não há muito mais que eu possa dizer sobre 'Salem's Lot sem dar spoiler, exceto que, como narrativa de terror, é de uma eficiência implacável. Além disso, como acontece com quase todos os trabalhos de Stephen King, é um texto de leitura fluente, que você percorre sem sentir, o que favorece enormemente a imersão do leitor na história. Esta edição da Nova Cultural tem alguns pequenos problemas, erros que provavelmente não devem ser creditados à tradutora Luzia Machado da Costa, mas à revisão e/ou ao pessoal da composição – confesso que não faço ideia de como era o passo a passo da produção de um livro no início dos anos 90. A respeito da tradução, eu gostei dela de modo geral, tenho a impressão de que preservou bem o sabor original da prosa de King, embora haja alguns detalhes meio estranhos, em especial o fato de que nomes de lugares ou estabelecimentos comerciais são quase sempre mantidos "inteiros" como no original; por exemplo, a colina onde fica a Casa Marsten também leva o nome dos antigos proprietários, e a tradutora a chama de "Marsten's Hill" – por que não Colina Marsten? Ao chegar a Lot, Ben aluga um quarto numa pensão cuja proprietária chama-se Eva, e mais tarde diz a Susan que está hospedado em "Eva's Rooms" (!). Um senhor de nome Milt Crossen possui um bar, açougue e mercearia ao qual a tradutora se refere como "Crossen’s Store"; a meu ver, seria muito mais natural dizer "Loja Crossen", ou "a loja do Crossen", já que o texto, depois de traduzido, está em português. Também é engraçado que os personagens chamem uma menina ou moça de "pequena": isso me faz lembrar as dublagens de certos filmes do tempo do onça (creio que a maioria era dos anos 50, e as dublagens devem ter sido feitas logo depois) que eram reprisados à exaustão na Sessão da Tarde quando eu era garoto. Pode ter sido proposital, uma tentativa de reproduzir na tradução uma linguagem meio arcaica que talvez ainda fosse ouvida em lugarejos interioranos dos EUA naqueles tempos sem internet e quando rádios e TVs eram basicamente regionais. De qualquer forma, quem for adquirir o livro agora encontrará a edição da Suma de Letras, que provavelmente tem uma tradução diferente.

Curiosidade 1: Quando Ben e seus companheiros invadem a Casa Marsten e encontram certo personagem morto, pendurado de cabeça para baixo, Stephen King se engana ao colocar na boca do Pe. Callahan que "São Paulo foi crucificado assim, numa cruz em forma de X, com as pernas quebradas". São Paulo não foi crucificado de nenhuma maneira, porque, embora de origem judaica, possuía cidadania romana, e nenhum cidadão romano podia ser crucificado, já que esse método de execução era tido como aviltante. Em vez disso, ele foi decapitado, o que, em comparação, era considerado uma morte misericordiosa e, se não propriamente digna, ao menos decente. Quem morreu da forma que King descreve (com a possível exceção das pernas quebradas, pois não encontrei referência a isso) foi Santo André, o padroeiro da Escócia – é por isso que a bandeira desse país ostenta uma cruz em forma de X, a "Cruz de Santo André". Segundo a tradição da Igreja, André, condenado à morte no ano 60, teria pedido a seus carrascos para crucificá-lo de cabeça para baixo, porque não se achava digno de morrer do mesmo modo que Jesus Cristo. Idêntico pedido fez seu irmão, São Pedro (o primeiro papa), ao chegar sua vez, sete anos depois. A Cruz de São Pedro tem a mesma configuração da cruz comum, só que invertida, e já era reconhecida como o emblema do santo séculos antes que os satanistas decidissem adotá-la como símbolo de oposição a Cristo.

Curiosidade 2: Depois do prólogo e antes de começar a primeira parte de 'Salem's Lot, intitulada A Casa Marsten, encontramos, como epígrafe, uma citação do livro The Haunting of Hill House, de Shirley Jackson, publicado em 1959 e que recentemente ganhou uma adaptação para a TV, produzida pela Netflix. A citação é aquela que ouvimos logo no início do primeiro episódio, na voz do mais velho dos irmãos Crain, o escritor Steven: começa com "Nenhum organismo vivo pode continuar a existir por muito tempo num estado de realidade total", e termina com "o que quer que caminhasse ali, caminhava só". Stephen King visivelmente segue seu próprio conselho, o que ele sempre oferece aos aspirantes a escritor: ler muito, e parece que dedica especial atenção aos autores que escrevem o mesmo gênero que ele.

'Salem's Lot foi filmado em 1979 como uma minissérie de TV em seis episódios, totalizando cerca de três horas de duração, e dirigida por Tobe Hooper, mais conhecido por causa do filme "ame-ou-odeie" O Massacre da Serra Elétrica, e que também dirigiu ao menos um episódio de Contos da Cripta. Alguns anos mais tarde, apareceu nas videolocadoras uma versão editada de duas horas, apresentada como um filme único, com o título A Mansão Marsten. Em 2004 saiu um remake, desta vez feito para o cinema, com direção de Mikael Salomon, Rob Lowe no papel de Ben Mears, Rutger Hauer (de Blade Runner e O Feitiço de Áquila) como Kurt Barlow, e Donald Sutherland (de Jogos Vorazes) como Richard Straker. Confesso que não vi nenhum deles (assim como no caso de Christine, preferi preservar minhas próprias imagens da história), mas, enquanto procurava na internet por ilustrações para este post, encontrei fotos do ator Reggie Nalder caracterizado como Barlow para a antiga minissérie… O visual foi obviamente inspirado em Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau: assim como Nosferatu, o Barlow de Nalder tem os dentes incisivos centrais em forma de presas, ao invés dos caninos, como é o comum em representações de vampiros – o que lhe dá uma aparência asquerosa lembrando um rato. Além disso, é calvo e tem a pele azul (!). Nada a ver com a descrição que King faz de Barlow, que deveria ter um aspecto aristocrático e atraente, podendo aparentar a idade que preferisse. Optei por não usar nenhuma dessas imagens, já que se afastam tanto da visão do autor, mas, se tiverem curiosidade, é bem fácil achá-las no Google.