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domingo, janeiro 28, 2024

Internato para Meninas Cruéis

Este foi outro daqueles livros que, mesmo não fazendo parte (bem, aparentemente não fazendo parte) de nenhum dos meus gêneros favoritos, me prenderam a atenção por um motivo ou outro, tanto que resolvi dar-lhes uma chance. E, como por vezes acontece nesses casos, tive boas surpresas: o que parecia à primeira vista ser apenas um relato dramático e um tanto revoltante sobre a adolescência feminina mostrou possuir elementos de uma boa história de suspense, gênero que, para mim (estou sendo totalmente subjetivo, OK?), está ali a meio caminho entre a ficção policial e o terror (que não precisa necessariamente envolver o sobrenatural, embora eu goste mais quando envolve). Tudo bem que a "surpresa" é parcialmente anulada pela sinopse da contracapa, que, afinal, precisava dar ao possível leitor uma noção global do que o livro realmente é, sob pena de que esse leitor largasse a obra julgando ser apenas uma história sobre os sofrimentos de uma garota desajustada no ensino médio. Pois, sim, Internato para Meninas Cruéis é isso – mas não é isso.

O ano é 1991, e Sarah Taylor, de 15 anos, está começando o segundo ano do ensino médio, só que, desta vez, não numa escola pública como aquelas em que sempre estudou até então. Sem que Sarah soubesse, sua mãe pegou um texto que ela escreveu sem pretender que jamais fosse lido por ninguém, e o mandou, junto com uma carta de pedido de bolsa de estudos, para o Internato St. Ambrose para Meninas, uma prestigiosa instituição particular de ensino na Nova Inglaterra, a algumas horas de viagem da cidadezinha melancólica onde as duas vivem. E parece que os dotes de escritora da garota impressionaram as pessoas certas, pois a bolsa foi concedida. Para Sarah, uma garota solitária e problemática apesar da inteligência acima da média, a mudança brusca para um mundo diferente não é uma perspectiva empolgante, embora ficar onde estava também não seja. Em sua cidade, tudo que ela pode esperar depois que terminar a escola é algum emprego maçante e mal remunerado; ela não tem amigos, e sua mãe, Theresa, é uma pessoa bastante vulgar e superficial, com quem Sarah não consegue sentir maior afinidade – mas com uma vontade de elevar o padrão de vida da família, o que a levou a fazer o que fez. A "família", por sinal, são só as duas: Sarah é filha única e Theresa é mãe solteira, com alta rotatividade de namorados. Sobre seu pai, tudo que Sarah sabe é que era um aspirante a roqueiro, o que atiçou os sonhos de vida glamourosa na então jovem Theresa… mas, é claro, a banda do rapaz nunca decolou e a relação dos dois acabou antes que a filha nascesse, ou talvez logo depois – não faz diferença. A vida reles não ajudou Sarah, que, para piorar, sofre de sérios problemas psiquiátricos: bipolaridade, provavelmente combinada com algo mais grave, mas o livro não entra em detalhes. Sua mente tem o péssimo hábito de levá-la a passeios alucinatórios por realidades paralelas sem sua permissão, uma condição que não tem cura, podendo apenas ser controlada mediante medicação. Aos 15 anos, ela já tentou o suicídio por duas vezes.

(Talvez seja oportuno registrar que em 1991 não existia essa modinha de ter problemas psiquiátricos, como hoje. Em 2024, entre os "jovens dinâmicos" da geração Z, se você não puser nos seus perfis nas redes sociais que tem pelo menos depressão ou algum grau de autismo e toma medicamentos controlados, você não é "bacana". [Isso é o mínimo aceitável; se puder colocar que tem algo mais grave ou mais exótico, tipo uma síndrome de Tourette, tanto melhor.] Já naquele início dos anos 90, quem realmente tinha esses problemas fazia de tudo para mantê-los ocultos, para não ser visto pelos outros como maluco ou, na melhor das hipóteses, estranho.)

Que Sarah fosse ter problemas de adaptação, seria de se esperar: ela é uma das poucas estudantes pobres naquele colégio frequentado pelas filhas de algumas das famílias mais abastadas do estado de Massachusetts. Seu vestuário simples (todo preto: ela parece ser meio gótica), a falta de traquejo social e de familiaridade com o modo de vida da classe alta a mantêm à margem, sem fazer qualquer amizade a não ser com sua colega de quarto, Ellen Strotsberry, mais conhecida por "Strots", uma atleta por natureza (mas também uma fumante inveterada já aos 15 anos; certas coisas que hoje nos parecem óbvias não o eram tanto assim naquela época) e evidentemente masculinizada, embora Sarah procure não julgar. Só que os "problemas de adaptação" assumem uma dimensão mais terrível por intervenção de uma certa Margareth "Greta" Stanhope, que ocupa o quarto bem do outro lado do corredor do dormitório, exatamente em frente ao de Sarah e Strots. Greta, para resumir, é aquilo que hoje chamamos de "patricinha", em todos os sentidos, inclusive os piores.

(É verdade que "patricinha" é uma gíria tipicamente brasileira, e que parece ter mudado sutilmente de significado ao longo do tempo. Por coincidência, ela apareceu por volta da mesma época em que esta história é ambientada; eu próprio era adolescente então, e lembro bem de quando começamos a ouvi-la ser usada. "Patricinha", logo que surgiu, era apenas o equivalente feminino de "mauricinho", termo que apareceu primeiro e designava um garoto ou rapaz que andava sempre com o visual da moda e vestia as marcas mais desejadas; tinha um leve tom pejorativo, mas era um pejorativo bem-humorado, e o mesmo acontecia com "patricinha", que, como dito, era a contraparte feminina, a garota que andava sempre produzida e muito bem vestida – e, no começo, a palavra só queria dizer isso mesmo. Por um desses fenômenos da língua que ninguém explica, "mauricinho" teve a sua época e depois caiu em desuso, mas o mesmo não aconteceu com "patricinha", que, além de continuar bem vivo no vocabulário dos jovens, foi ganhando com o tempo um sentido um pouco diferente: ainda queria dizer "garota elegante, normalmente rica", mas também adquiriu uma conotação ruim, como se na verdade significasse "garota que, porque é rica e elegante, se acha melhor que todo mundo, é arrogante e até má". Suponho que a novela teen Malhação, com seu uso repetido sempre dos mesmos estereótipos, tenha algo a ver com essa mudança de acepção.)

Greta, portanto, é a antítese de Sarah: rica, bonita, elegante e fútil. Sua implicância com a novata começa praticamente sem qualquer motivo concreto (como costumam começar as implicâncias, principalmente entre crianças ou adolescentes), e ela logo passa a fazer pequenas maldades – ou melhor, maldades que começam pequenas, mas vão escalando de forma consistente ao longo dos meses seguintes. Como toda vilã paty (pensando bem, como todo vilão adolescente, tanto faz o sexo – vide Draco Malfoy em Harry Potter), ela tem duas "capangas" fiéis, Francesca e Stacia, que seguem cegamente sua "líder" e mostram um potencial para o mal quase tão grande quanto o dela.


Além de Strots, há mais uma pessoa no St. Ambrose que demonstra simpatia para com Sarah. Pelo que pude entender, é costume nos internatos norte-americanos que cada andar dos dormitórios destinados às alunas tenha, além dos quartos delas, um pequeno apartamento que é ocupado por um professor ou professora que fica responsável por "controlar as coisas" por ali; é o "conselheiro residencial", ou apenas "CR". E o CR do andar onde moram Sarah, Strots, Greta e algumas dezenas de outras meninas é o jovem professor Nick Hollis. Nick tem uns 25 anos, ensina inglês e literatura, está se preparando para o doutorado, e é uma espécie de versão americana e moderna de Apolo (agora que escrevi isso, notei que ele de fato lembra muito a descrição de Apolo segundo Rick Riordan): alto, bonito, atlético e "descolado", enfim, o "sonho de consumo" de qualquer garota adolescente, e ainda mais desejável por ser inatingível, já que, além de ele ser casado, é um professor, de modo que qualquer envolvimento que viesse a ter com uma aluna poderia não só custar-lhe o emprego como desembocar num processo judicial. Nick ajuda Sarah quando ela sofre uma de suas crises por ter negligenciado sua medicação, e faz isso com interesse genuíno, não como alguém que está "só fazendo seu trabalho", o que conquista a estima e a confiança da garota, independentemente do "tesão" que ela já tinha nele. Com isso eles se conhecem num nível mais pessoal, Nick passa a admirar a inteligência de Sarah e a gostar da companhia dela, e os dois criam o hábito de se verem regularmente para conversar sobre livros.

Disse acima que Greta começa a implicar com Sarah sem motivo aparente; a antipatia da primeira para com a segunda tem início logo que as duas se conhecem, e vem, no início, simplesmente do fato de que, para Greta, Sarah é uma "ninguém" e está fora de seu lugar, "poluindo" um ambiente que só deveria pertencer à elite. Porém, se fosse só essa antipatia, talvez ela se empenhasse menos em infernizar a colega. A verdade é que algo mais acontece: Sarah começa a suspeitar, por alguns indícios, que Nick e Greta têm um caso – e Greta, a suspeitar que ela sabe. É tudo muito vago e inconclusivo, mas, para Greta, é o suficiente. Suas maldades, que começam discretas, só fazem subir de nível até a situação ficar insustentável.

A autora Jessica Ward parece estar escrevendo sobre coisas que conhece de perto, e, pelo visto, o bullying é algo tão presente em escolas exclusivamente femininas quanto em qualquer escola, embora, claro, seja um tipo diferente de bullying. Meninos são brutos, mas ao menos são francos: o bullying que praticam é claro e direto. Se for para humilhar um colega, você o humilha olhando na cara, e, se for para bater, você bate. Simples assim. Já o bullying feminino é sutil, dissimulado, tortuoso: uma frase dita por uma mulher a outra e que, se ouvida ao acaso por um homem, parecerá um elogio, pode ser na verdade uma farpa cruel, que não deixa de atingir o alvo. É assim entre as mais jovens também. A narração é em primeira pessoa, e há um nítido esforço por parte de Ward para "incorporar" a personagem, procurando escrever tal como Sarah escreveria – ou seja, como uma adolescente de inteligência aguçada e com um talento inato para a literatura, mas, ao mesmo tempo, com uma percepção um tanto curta da realidade, que decorre tanto da pouca idade e experiência quanto de ser uma desajustada desde que consegue se lembrar, e portanto não ter tido acesso a algumas vivências que uma garota "normal" teria conhecido. Sarah chega, por vezes, a ser um tanto cínica, mas embora eu, pessoalmente, não tenha praticamente nenhuma paciência para com o cinismo, fui capaz de dar-lhe um desconto, considerando as coisas pelas quais passou. Trata-se de uma garota com problemas reais – não de alguém que inventa problemas para se sentir especial.

No que se refere à estrutura da história, o componente de suspense vai se anunciando gradualmente, para tomar o primeiro plano durante a última quarta parte do livro, quando as picuinhas adolescentes dão lugar a fatos muito sérios e trágicos, que não detalharei para não dar spoiler. Arrisco a hipótese de que Ward (que, em outras obras, também assina como Jessica Bird ou como J. R. Ward) optou por ambientar sua história no início dos anos 90 para excluir o fator internet, pois várias situações importantes ou interessantes ao longo do livro não soariam plausíveis num mundo onde as adolescentes vivessem online a maior parte do tempo e contassem com possibilidades de comunicação quase ilimitadas. O resultado geral é positivo, com uma combinação de drama, crítica social e suspense que se mostra perfeitamente capaz de proporcionar várias horas de leitura instigante.

domingo, junho 11, 2017

Mutação

Antes de redigir um post sobre um livro, gosto de saber um pouco sobre o autor, nem que seja por meio da Wikipédia, e, no caso de Robin Cook, foi a ela que recorri. Já sabia alguma coisa sobre ele, embora Mutação seja o primeiro livro seu que realmente li. Cook é considerado o fundador de um subgênero de suspense ao qual alguns se referem como "horror médico", que talvez fosse um produto inevitável da combinação de sua formação e experiência na medicina com o gosto por escrever e uma imaginação particularmente fértil para tramas densas e sombrias. Confesso que não me sentiria muito à vontade de me tratar com o sujeito que escreveu Coma e Cérebro, suas obras mais famosas; dessas, só li as sinopses, que já são bem perturbadoras. Pretendo ler os livros no futuro. Em Mutação, Cook trata de um dos ramos mais fascinantes e, ao mesmo tempo, potencialmente perigosos da pesquisa médica moderna: a engenharia genética.

Esse, por sinal, é um daqueles assuntos sobre os quais é difícil ter uma opinião definitiva e categórica – a menos que você seja uma pessoa simplória, que acha que entende tudo e vai logo se posicionando contra… Ou a favor. As possibilidades são imensas, mas os perigos também. Desde que passamos a dominar um grau razoável de tecnologia, a lei da seleção natural perdeu a maior parte do poder sobre a nossa espécie. Na natureza, um animal que nasça com alguma doença genética, ou com qualquer característica debilitante, normalmente não sobrevive até a idade adulta, e, por consequência, não chega a se reproduzir, e não passa adiante a característica indesejável. É cruel, mas garante que a espécie se perpetue com indivíduos saudáveis. Já entre nós, humanos, é diferente: se uma criança nasce com algum problema, fazemos todos os esforços possíveis para que ela sobreviva. É claro que, do ponto de vista moral, essa é a coisa certa a se fazer, e esse senso de dever de uns para com os outros (solidariedade, se quiserem) foi um dos motivos do nosso sucesso como espécie; porém, a natureza é implacável. O fato de todos esses indivíduos que a seleção natural teria eliminado sobreviverem e eventualmente se reproduzirem acabará fazendo com que, a longo prazo, toda a humanidade seja portadora de algum tipo de doença genética – a menos que, até lá, tenhamos encontrado meios de diagnosticar e eliminar essas doenças ainda nos estágios iniciais da vida embrionária. Em resumo, pode chegar o dia em que a engenharia genética se tornará essencial para a própria sobrevivência de nossa espécie.

Por outro lado, a História mostra que novas tecnologias frequentemente recebem aplicações pouco louváveis, e a ficção científica já tentou por mais de uma vez antecipar o que poderia acontecer caso o DNA humano começasse a ser manipulado para fins meramente utilitários. Quem já tiver certa idade, suficiente para ter lido os quadrinhos da Marvel lá pelo final dos anos 80, início dos 90, talvez se lembre das histórias de Paradox, criadas por Bill Mantlo e desenhadas por Val Mayerik, e que, no Brasil, foram publicadas na revista Aventura & Ficção. Essas histórias, se não me falha a memória, ambientavam-se em meados do século XXII, e, nelas, existiam as "espécies servis", desenvolvidas por meio da engenharia genética para sobreviverem sob as condições vigentes nos diferentes planetas do sistema solar, com o único objetivo de extrair minérios e outras matérias-primas para a Terra; os membros dessas espécies eram cidadãos de segunda categoria (na prática, de quinta ou sexta), tratados como párias pelos humanos "originais". Isso já era bem ruim, mas a aparência das espécies em questão ainda era relativamente normal. A bizarrice se eleva à enésima potência no livro Man After Man, de Dougal Dixon, que tenta especular sobre as novas formas que nossos descendentes poderiam assumir à medida em que seus códigos genéticos fossem sendo reescritos para responder a novas "necessidades" impostas pelo ambiente, na Terra ou fora dela, começando alguns séculos no futuro e prosseguindo por milhões de anos.

Porém, não é preciso ir tão longe, nem se afastar tanto da nossa realidade, para compreender por que essa coisa da engenharia genética merece ser tratada com a máxima cautela. Basta pensar na clonagem, que não é exatamente engenharia genética, mas está estreitamente relacionada com ela, e nos usos que ela poderá ter num futuro próximo. Muitas pessoas adorariam a ideia de clonar um animal de estimação do qual gostavam muito e que morreu, e isso dificilmente poderia causar algum dano a alguém – mas a coisa muda de figura se quem tiver morrido for uma criança, e os pais decidirem apelar para a clonagem a fim de "ter o filho de volta". A criança-clone, é claro, não seria uma "ressurreição" da criança original, e sim algo como uma irmã gêmea dela, só que nascida depois, e todos sabemos que gêmeos só são idênticos na aparência: em geral, têm personalidades muito diferentes. Aí é que surge a pergunta inevitável: será que esses pais teriam a maturidade e o bom senso para entender que estão diante de uma pessoa única, com uma individualidade que precisa ser respeitada, e não de um mero substituto para aliviar sua saudade de alguém que já se foi? Acho que o fato de recorrerem à clonagem, em vez de terem outra criança da maneira normal, ou mesmo adotarem uma (que seriam formas de aceitar o acontecido e seguir com a vida) responde por si só, e não é preciso ser psicólogo para enxergar o quanto seria danoso para uma criança ser criada por pessoas que cultivam essa expectativa irreal de que ela seja alguém que não é e nunca será. Esse é só um exemplo de como é importante questionar não apenas se uma coisa pode ser feita, mas também (e, às vezes, principalmente) se ela deve ser feita, e questionar, acima de tudo, os motivos que nos levam a querer fazê-la, bem como suas possíveis consequências. Infelizmente, nem sempre foi isso o que aconteceu no passado, e é pouco provável que sempre aconteça no futuro.

E lá se foi mais um longo introito… Bem, acho que uma das coisas legais de se fazer um blog é poder relaxar, escrever do jeito que mais nos agrada, sem tanta preocupação em seguir manuais ou regras. Se surge um assunto interessante, por que não me permitir algumas digressões, não é mesmo? Mas já chega por ora: vamos ao livro.

Mutação é a história de um homem chamado Victor Frank (nenhum prêmio por identificar o personagem de uma obra clássica de terror e ficção científica ao qual esse nome faz alusão!) e sua família: a esposa, Marsha, e os filhos, David e Victor Jr., apelidado de VJ. Tanto Victor quanto Marsha são médicos; ela se dedica à psiquiatria, enquanto ele trabalha com pesquisa, tendo sido um dos três sócios fundadores da Chimera Inc., empresa de biotecnologia que se tornou uma gigante do setor, fazendo dele e de seus parceiros homens ricos. O casal parece ter tudo o que poderia desejar, exceto uma coisa. Complicações no parto de David comprometeram a capacidade de Marsha conceber, então, quando o filho mais velho está com cinco anos, ela e o marido decidem ter o segundo com a ajuda de uma mãe de aluguel. O óvulo é de Marsha, os espermatozoides de Victor, portanto o bebê resultante é biologicamente filho dos dois, mesmo sendo parido por outra mulher. E o procedimento parece ter sido tão bem-sucedido quanto se poderia desejar, tornando-os pais de um menino perfeito e saudável.

Entretanto, à medida que VJ cresce, fica evidente que ele é muito diferente das crianças de sua idade. Começa a falar com poucos meses, aprende a ler com pouco mais de um ano, e aos três é um brilhante jogador de xadrez e fera em computação (e creiam, lidar com os computadores da década de 80 exigia bem mais perícia que com os de hoje). Possui um QI de gênio, mas parece desprovido de emoções, é avesso a demonstrações de afeto, e prefere a companhia de adultos, já que está anos-luz à frente das outras crianças. Por volta dos três anos e meio, seu QI, inexplicavelmente, sofre uma brusca queda, e ele desaprende muitas coisas que dominava, mas, mesmo assim, continua a possuir uma inteligência muito acima da média, e não tem dificuldade para reaprender o que esqueceu. Estranhamente, a babá que cuida dele e de David, e que a princípio tinha completa adoração pelo caçula, passa a ter medo dele, a evitar sua presença e a repetir uma conversa religiosa sobre o menino ser um demônio. Pouco tempo depois, quando VJ está com cinco anos e David com dez, o garoto mais velho falece, vítima de uma forma rara de câncer – que, sem demora, tira a vida também da babá, uma coincidência quase inacreditável: esse tipo de câncer é tão raro, de fato, que a possibilidade de que afete duas pessoas de uma mesma casa é quase nula. E, no entanto, acontece, deixando VJ na condição de filho único.

A parte principal da narrativa acontece quando VJ está com dez anos. Victor se orgulha do filho, e Marsha, embora o ame profundamente, de vez em quando sente medo, conseguindo compreender, ao menos em parte, os delírios religiosos da antiga babá – mas, é claro, ela, que passa seus dias tratando as desordens mentais dos outros, não pode se permitir esse tipo de "maluquice". A vida dessa pequena família segue tão normal quanto possível, até ser sacudida por dois eventos trágicos cujo significado só Victor conhece: dois meninos de cerca de três anos, filhos de funcionários graduados da Chimera, ambos dotados de intelecto superior, sofrem algum tipo de mal súbito no cérebro e morrem, quase ao mesmo tempo. Por alguma razão, isso deixa Victor preocupado com VJ, o que ele não consegue ocultar de Marsha por muito tempo, e, naturalmente, ela quer saber o que uma coisa tem a ver com a outra. Quando Victor é forçado a se explicar, revela-se o porquê das características únicas do filho do casal e qual a relação entre ele e aqueles dois meninos que ele e seus pais nem conheciam.

Não entendo o suficiente de biologia (e não sei coisa alguma sobre medicina) para poder avaliar se as explicações oferecidas por Cook acerca do experimento que resultou na superinteligência de Victor Frank Jr. são corretas ou teoricamente possíveis, mas, para o leitor leigo, elas soam convincentes o bastante; além disso, por que não seguir o exemplo de H. G. Wells e pensar nas possíveis consequências de um avanço tecnológico, em vez de nos determos nas suas minúcias técnicas? Pois, como já entreguei, Victor pai decidiu aproveitar o plano dele e da esposa de terem um filho para colocar em prática pela primeira vez em um ser humano as experiências que já vinha realizando com animais, manipulando os genes para tentar aumentar a capacidade intelectual. Tal como seu quase-xará da obra de Mary Shelley, Victor vai descobrir que criar um novo ser é a parte fácil: prever e/ou controlar suas ações é que é o verdadeiro desafio, o que pode levar a consequências terríveis.

VJ, desde muito pequeno, passa muito tempo na Chimera, primeiro no laboratório do pai; mais tarde, passa a circular por outras dependências do lugar na companhia de Philip, um empregado mentalmente atrasado com quem fez amizade – ou seria melhor dizer que o recrutou a fim de poder dispor de força muscular quando precisar? Já mais velho, o garoto é frequentemente visto entrando na empresa e tornando a sair horas depois, mas ninguém parece capaz de dizer ao certo onde ele passa esse tempo ou o que faz. Tem passe livre para quase qualquer lugar do vasto complexo, graças à combinação de sua condição de filho de um dos donos da companhia com sua capacidade de cativar a todos quando quer – pois, como os psicopatas, pode mostrar-se muito simpático e sedutor quando isso for útil para a consecução de seus objetivos, apesar de não ser capaz de formar laços emocionais verdadeiros. Quando fatos estranhos e inexplicáveis começam a ser descobertos na empresa, ninguém os relaciona à presença constante do garoto, até as peças começarem a se ligar de uma forma que não pode mais ser ignorada… E paro por aqui, para não dar spoiler.

A escrita de Cook, pelo menos neste livro, não é nenhum primor de estilo; baseado nisso, o leitor pode ficar tentado a achar que ele é aquele tipo de autor que tem repertório para bolar boas ideias em razão de seu conhecimento profundo de uma determinada área – no caso, a medicina –, mas a quem faltam a sutileza e o refinamento técnico que também são tão importantes para um bom escritor. Eu não teria tanta certeza… Pode ser assim em relação à técnica, mas não se pode dizer que Cook não tenha uma considerável habilidade para decifrar o espírito humano (imagino que isso também seja necessário a um bom médico) e para retratar isso tudo em suas histórias. Em Mutação, isso aparece nas personalidades do casal Victor e Marsha Frank, em especial no modo como cada um deles age em relação ao filho: ela, seriamente preocupada com cada coisa inacreditável que vai descobrindo a respeito de VJ; ele, tentando achar tudo normal. Por exemplo, quando o gato da família é cruelmente morto por alguém de identidade desconhecida que parece estar tentando intimidá-los, e deixado para que o encontrem, Marsha fica transtornada com a tranquilidade de VJ diante do fato horrível; para ela, o menino deveria ao menos demonstrar alguma emoção, fosse raiva, pesar ou o que fosse – qualquer coisa, menos a mesma frieza inabalável de sempre. Já Victor acha que o filho está simplesmente "agindo com maturidade". Mais adiante no livro, quando Victor descobre certos feitos extraordinários de VJ, sua reação pode parecer excessivamente tranquila, mas, num segundo pensamento, lembramos que a relação dele com o menino não é apenas a de um pai com o filho, mas também (e talvez predominantemente) a de um cientista com o resultado de seus mais ousados experimentos. E o resultado de experimentos científicos precisa ser encarado com objetividade, não importa o quão empolgante (ou horripilante) possa ser.

Há uma observação que é impossível deixar de fazer: VJ lembra fortemente o garoto Damien, do livro/filme A Profecia, e isso serve para nos fazer refletir que a humanidade sempre terá seus medos, ainda que eles vão mudando conforme os tempos. E isso nem sempre significa que novos medos vão substituindo os antigos: muitas das coisas que hoje tememos são as mesmas que nossos ancestrais temiam, sejam coisas sobrenaturais como demônios ou fantasmas, ou concretas como guerra e doenças, e a isso se somam novos temores, como o do que pode acontecer caso as tecnologias cada vez mais incríveis que vão sendo desenvolvidas caiam em mãos erradas, sejam usadas de forma irresponsável, ou simplesmente acabem demonstrando ser mais do que somos capazes de administrar. Os livros de Robin Cook proporcionam uma experiência envolvente e diferente aos apreciadores do suspense, mas também cumprem a função de nos fazer pensar nos perigos de tudo isso. Se há algo que nós, meros mortais, possamos fazer a respeito, é outra questão, mas uma coisa podemos dar como certa: se estivermos cientes dos riscos e já tivermos refletido sobre eles, talvez tenhamos chance de fazer alguma coisa; por outro lado, se o que vier por aí nos apanhar desprevenidos e ingênuos, não teremos chance alguma.

sábado, novembro 05, 2016

Hannibal: a Série

Da última (e primeira!) vez que escrevi sobre um trabalho de Thomas Harris, a obra que comentei foi Hannibal: a Origem do Mal, que, dos livros a respeito do personagem Hannibal Lecter, foi o último a ser escrito e publicado, embora seja o primeiro por ordem cronológica. Na ocasião, tracei vagamente o plano de ler ou reler os outros livros, e, possivelmente, comentá-los um por um. Entretanto, antes que eu efetivamente pegasse o próximo da saga, que seria Dragão Vermelho, comecei a assistir à série de TV Hannibal, produzida pela NBC, e agora acabo de chegar ao final de seus 39 episódios, distribuídos em três temporadas, exibidas de 2013 a 2015. Ela começa com o personagem vivendo seu auge em termos profissionais, como um dos psiquiatras mais conceituados da cidade de Baltimore e, provavelmente, de todo o estado de Maryland, e quando, além de clinicar em seu consultó­rio, era frequentemente chamado a colaborar com a agência local do FBI, ajudando a montar perfis psi­quiátricos que pudessem orientar os investigadores na busca a criminosos insanos. Isso, é claro, foi an­tes de suas pró­prias atividades como serial killer serem descobertas, e de seu consequente confinamen­to na insti­tuição para, bem, criminosos insanos onde vamos encontrá-lo em Dragão Vermelho e O Si­lêncio dos Inocen­tes. Porém, se vocês ainda não assistiram à série e pretendem fazê-lo, estejam avisa­dos: seu criador, Bryan Fuller, não fez questão alguma de se ater ao que os leitores de Har­ris e os espectadores dos filmes baseados em seus livros já sabiam. Trata-se de uma rei­maginação radical do mundo que ro­deia Hannibal – e dele próprio.

Só para começar, a primeira coisa que salta aos olhos é a época em que os episódios estão ambientados. Sabemos, por meio dos li­vros e filmes, que Hannibal Lecter nasceu em 1933 e que testemunhou as provações que seu país natal, a Lituânia, atra­vessou durante a Segunda Guerra Mundial e em sua posterior anexação à União Soviéti­ca; aliás, as ex­periências traumáticas que o então menino Hannibal viveu durante a guerra foram, muito provavelmen­te, o gatilho que despertou o instinto assassino latente nele e que, de outra forma, talvez ti­vesse perma­necido adormecido durante toda a sua vida. Hannibal emigrou para os Estados Unidos no início dos anos 50 e estudou na prestigio­sa Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Seguindo essa cronologia, seus tempos de psiquiatra fa­moso deveriam coincidir com as décadas de 60 e 70; o filme Dragão Ver­melho informa que sua prisão teria acontecido em 1980. A série, entretanto, parece trans­correr na mes­ma época em que foi produzida e exibida, ou seja, em meados desta nossa própria e assus­tadora segun­da década do século XXI: os per­sonagens acessam a internet, portam smartphones e diri­gem carros mo­dernos. Se Hannibal (aqui inter­pretado pelo ator dinamarquês Mads Mikkelsen) estiver, como aparen­ta, nos seus 40 e poucos anos, en­tão deveria ter nascido no início dos anos 70, no mínimo 25 anos de­pois do fim da Segunda Guerra. Essa inconsistência não é explicada em momento algum da série.

Falar em internet me fez lembrar de outra coisa. Em Dragão Vermelho aparece o personagem Freddie Lounds, um repórter da imprensa sensacionalista, interpretado por Philip Seymour Hoffman, que es­creve para um tabloide – um jornale­co. Na série, ele, em vez disso, tem um site, mas o curioso não é isso, e sim o fato de ele ter virado ela: aqui, "Freddie" é o apelido de Fredericka (isso mesmo!) Lounds, papel de uma tal Lara Jean Chorostecki. Esse é apenas um exemplo do grau de liberdade que a série toma em relação a tudo o que já conhece­mos ligado à história de Hannibal.

Outros persona­gens não trocaram de sexo, mas nem por isso deixaram de sofrer grandes mudanças. Um deles é Will Graham, que, junto com Hannibal, é uma das figu­ras centrais. Em Dragão Vermelho ele era inter­pretado por Edward Norton, e era um agente do FBI, o responsável pela prisão de Hannibal; na série, o papel per­tence a Hugh Dancy, e Graham não é um agente, apenas um professor que leciona criminolo­gia para os trainées do FBI, e que, teoricamente, não deveria ter qualquer envolvimento direto com in­vestigações. Acontece que o cara possui um dom raro. Ao ver-se no cenário de um crime violento, consegue re­criar mentalmente o ocorrido, colocando-se no lugar do assassino, compreendendo seu modus operan­di, sentindo suas emoções e, muitas vezes, desco­brindo suas motivações, por mais loucas que se­jam. As ce­nas em que Will faz isso fazem com que pareça quase uma habilidade sobrenatural. Minto: parece mesmo sobrenatural. Não é preciso dizer que essa capaci­dade é extremamente útil na elucidação de as­sassinatos, e por isso a ajuda de Graham é frequen­temente solicitada pelo chefe da seção de Ciên­cias do Com­portamento, Jack Crawford – que, por sinal, também sofreu uma metamorfose, aliás mais uma. Em O Silêncio dos Inocentes, Crawford, vivido por Scott Glenn, tinha a cara de um agente de escri­tório, mais acostumado ao trabalho de coordenação que a sair pessoalmente atrás de assassinos; em Dragão Ver­melho ele era interpretado por Harvey Keitel, e pare­cia um delegado de polícia às vésperas da aposentadoria; em Hanni­bal, a série, Crawford aparece em sua encarnação mais durona: o ator Laurence Fishburne deu ao per­sonagem um jeitão de ex-fuzileiro. Crawford está ci­ente do quanto essas colaborações custam a Gra­ham, ho­mem afável e bondoso, que não suporta ver cães abandonados e por isso tem uma verdadeira matilha em casa. Sua natureza terna se choca terrivel­mente com os detalhes medonhos de todos aqueles assassi­natos, o que vai gradualmente abalando sua sanidade mental. Crawford sofre ao ver isso aconte­cer, mas o fato é que a participação de Graham salva vidas, e por isso ele não pode se dar ao luxo de dis­pensá-la – e Graham, embora não sendo obrigado, não tem coragem de negá-la. Will tem uma queda evidente por uma colega de trabalho, a psiquiatra Alana Bloom (papel da linda atriz canadense Caroline Dhaver­nas), ex-aluna de Hannibal, mas, embora não seja indiferente a ele, ela parece em dúvida sobre se seria uma boa ideia os dois se envolverem. O próprio Hannibal nunca está muito longe, embora haja episó­dios em que outros personagens (geralmente Will Graham) aparecem mais que ele.

(Uma observação que pouca gente deve ter feito, mas sem dúvida curiosa, é que Hannibal marca o reencontro de Mads Mikkelsen e Hugh Dancy, que já haviam contracenado em Rei Arthur, no qual ambos interpretavam cavaleiros da Távola Redonda: Mikkelsen era Tristão, e Dancy, Galahad.)

Li em algum lu­gar que, ao aceitar o papel-título na série, Mads Mikkelsen declarou que, apesar de sua admira­ção por Anthony Hopkins, não tinha a intenção de que "seu" Hannibal fosse igual ao dele. E, pelo visto, falava sério. Não podemos saber até que ponto Mikkelsen pôde influenciar os roteiros, mas o fato é que o per­sonagem, tal como interpretado por ele, não difere da versão de Hopkins apenas por uma questão de es­tilo e jeito de ser, mas também por diversos atos que pratica ao longo da série, e que o Hannibal de Hopkins ou faria de modo diferente, ou não faria em absoluto. O Hannibal de Hopkins tem um pendor para a ironia e o deboche, e por vezes demonstra um humor sutil e ácido; o de Mikkelsen é mais sério que um capincho, como dizemos aqui no Rio Grande do Sul: se esboçou um levíssimo sorriso, quase im­perceptível, duas vezes em toda a série, foi muito. Hopkins: Hannibal mata e come pessoas, mas esses atos, quase sempre, estão ligados a um senso de justiça – extremo e estranho, mas, ainda assim, um senso de justiça; quer dizer, é claro que não podemos aprovar o que ele faz, mas o entendemos. É muito raro que pratique uma crueldade gratuita. Mikkelsen: Hannibal também não mata aleatoriamente, mas é mais comum que o faça para proteger seus segredos e interesses do que por justi­ça; além disso, por ve­zes coloca pessoas em situações enlouquecedoras, de propósito, só pela curiosida­de de ver como irão rea­gir. Reitero que é difícil saber até onde as novas características do personagem devem ser atribuídas a Mads Mikkelsen e até onde são obra de Bryan Fuller, mas que ele está radical­mente di­ferente, isso, sem dúvida, está.

Novamente, preparem-se: o aviso de "recomenda-se discri­ção ao assistir", que aparece no início de todos os episódios, não é uma formalidade. A série é um desfile de mortes bizarras, perpetradas por serial killers tão insanos que, comparado com eles, Hannibal quase parece um cara normal. Há um sujeito que fabrica cordas para instrumentos musicais usando tripas hu­manas em vez das de animais. Outro é uma espécie de lobisomem hi-tech. Pelo menos três usam cadá­veres humanos como matéria-prima para instalações artísticas, e um, como terreno de plantio. Só em fi­car se pergun­tando se existirá mesmo tanta gente (?) com esse tipo de criatividade macabra, você já pode perder umas horas de sono. Volta e meia há uma cena de Hannibal cozinhando ao som de música clássica, mas com isso vocês vão se acostumar fácil. Para ele não parece haver diferença entre preparar um prato com ingredientes comuns adquiridos em sua delicatessen favorita, ou com pedaços de alguém.


Paralela­mente às buscas a esses assassinos (buscas essas nas quais Hannibal colabora com seu conhecimento psiquiátrico), Jack Crawford e seus subordinados nas Ciências do Comportamento lidam há anos com os crimes de um serial killer misterioso conhecido como o "Estripador de Chesapeake" (do nome do es­tuário que banha, entre outros, os estados de Maryland e Virgínia, sua área de atuação). Esse Estripa­dor, vocês adivinharam, é Hannibal em pessoa, que, como a maioria dos serial killers, tem um certo or­gulho de suas realizações, como se fossem algum tipo de obra artística, e ainda mais orgulho de fazer tudo o que faz enquanto passa boa parte do tempo convivendo com o pessoal do FBI, que o respeita, admira e tem suas opiniões em alta conta – ao mesmo tempo em que, sem saber, o caça febrilmente e sem sucesso. Mesmo precisando, por motivos óbvios, abster-se de reclamar o "mérito" de seus assassinatos, Hannibal quer receber reconhecimento por eles, e por esse motivo não fica nada satisfeito quando o Dr. Abel Gideon (outro médico psicopata, interpretado por Eddie Izzard, e interno do mesmo instituto onde Hannibal eventualmente iria parar) reivindica para si os crimes do Estripador de Chesapeake. Isso serve de estopim a uma bizarra batalha de egos entre assassinos, que é um, mas nem de longe o único conflito psicológico insólito que encontramos na série. Alguns desses conflitos são criações originais de Fuller, enquanto outros serão reconhecidos por quem leu os livros de Thomas Harris. Personagens conhecidos aparecem, embora tanto eles quanto suas histórias tenham sofrido transformações para se encaixar no universo recriado para a tela da TV.

Um desses personagens é Mason Verger, apresentado aos leito­res no último livro sobre Hannibal, intitulado apenas com o nome do personagem. Verger é um jovem milionário e inveterado abusador de crianças, que, graças ao poder e influência de sua família, escapou de qualquer pena mais severa, sendo "condenado" apenas a serviços sociais e a fazer terapia – com o Dr. Lecter. Logo fica claro para Hannibal que seu paciente não tem intenção alguma de se corrigir; Mason não apenas não leva a terapia a sério como tenta suborná-lo e, possivelmente, também seduzi-lo (há in­sinuações nesse sentido tanto no livro quanto no filme). Movido por seu já mencionado senso de justiça, Hannibal "cuida" de Mason à sua maneira; não fica cla­ro se o deixa com vida de propósito, mas o riqui­nho fica desfigurado e inválido, o que, para ele, é prova­velmente um casti­go muito pior que acabar no fogão de Lecter. Daí em diante, sua vida só tem um obje­tivo: vingar-se de Hannibal da maneira mais pa­vorosa imaginável. Não vou falar mais de Mason aqui, tanto para não dar spoiler para quem for ver a série, quanto pelo fato de que ainda tenho planos de falar do livro Hannibal, mas podem estar certos de que ele é um dos vilões mais diferentes e terríveis que já vi na literatura de suspense. No filme, Verger era interpretado pelo excelente Gary Oldman, embora fos­se impossível reco­nhecê-lo sob a maquiagem grotesca da cara desfigurada do personagem; na série, o papel é de Michael Pitt, que, a meu ver, captu­rou bem a combinação de maldade e frivolidade que carac­teriza o persona­gem antes do incidente. Já sua irmã e vítima, Margot, que existe no livro e na série, mas não no filme, é interpretada por Katharine Isabelle – e, também ela, enormemente diferente do que era na origem. Fuller chegou a dizer que tinha planos de que a agente Clarice Starling, tornada famosa pela interpretação de Jodie Foster em O Silên­cio dos Inocentes, também aparecesse, mas isso não havia se concretizado até o fim da terceira e última temporada. Também há boatos de uma possível retomada da série, mas, até o momento em que escrevo, não encontrei nenhuma informação concreta a respeito.

Acima de todas as subtramas, está sempre a relação entre Hannibal e Will Graham, uma relação cuja exata natureza nunca conseguimos descobrir. Os dois não apenas se compreendem: na ver­dade, cada um é a única pessoa ca­paz de compreender o outro, o que poderia fazer deles melhores ami­gos, quase almas gêmeas – mas nada tão simples assim acontece. Will ora se apoia totalmente em Han­nibal e pre­cisa desesperadamente dele, ora o odeia ao ponto de desejar sua morte, mesmo sem ter a confirmação das terríveis (e corretas) suspeitas que nutre. Já Hannibal é incapaz tanto de amor quanto de ódio; para ele, Will é uma pessoa digna de sua atenção, o que, pela sua cartilha, é um enorme elogio; o fato de que essa atenção, não raro, assume a forma con­creta de ciladas e tortura psicológica é para ele uma mera consideração secundária. Aqui e ali ao longo da série, e mais intensamente perto do final, há insinuações de que a relação dos dois poderia (caso as circunstâncias não o tornassem impossível) tomar um rumo homossexual; insinuações essas, a meu ver, que não contribuem em nada para a história, que poderia passar muito bem sem elas.

Sei que já fiz alertas demais para um post só, mas há mais um sem o qual não posso terminar: Hannibal não é uma série fácil de assistir, e não só por causa das ima­gens grotescas que volta e meia ocupam a tela. Muitos episódios são "psicológicos", o que significa que envolvem pouca ação de fato e, frequentemente, exibem cenas que não sabemos se são reais ou apenas as alucinações de alguém – em geral, Will Graham. Bem, pelo menos até que imagens claramente aluci­natórias se intro­metam no que até aí tinha aparência de realidade. Em seu mundo psicodélico, no qual vai se embre­nhando cada vez mais à medida em que sua sanidade vai ficando comprometida, Will vê Hannibal sim­bolizado ora por um enorme cervo negro, ora por um ser semelhante ao Deus Chifrudo da mitologia pri­mitiva – meio homem, meio cervo. O porquê da escolha do cervo, um herbívoro inofensivo, para repre­sentar um matador como Hannibal, é questão aberta à interpretação, mas tenho para mim que foi para fugir da obviedade de simbolizá-lo em um lobo ou outro animal predador. Esses episódios mais "men­tais" requerem muita atenção e paciência, e por vezes se tornam, numa palavra, cansativos. Aí vocês po­dem me perguntar: vale a pena? E a respos­ta só pode ser uma: é claro que vale. Entretanto, só recomen­do a série para cabeças fortes e tranquilas, que não achem que narrativa boa é a que aconte­ce em veloci­dade de videoclip e que, por amor a um excelen­te enredo geral, estejam dispostas a encarar alguns mo­mentos indigestos. E principalmente, desenca­nem de ficar ligando o que verão nesta série com o que já conheci­am dos livros e filmes. Aceitem que é uma recriação e mergulhem na história sem outras preocu­pações.

Um comentário prático à guisa de encerramento: cá pra nós, o jeito como Hannibal foi lançado em DVD no Brasil foi uma grande sacana­gem! Primeira temporada, volume 1, e Primeira temporada, volume 2? Pra quê? Quero dizer, pra que, além de obrigar o fã a pagar praticamente o do­bro, já que cada "volume" custa pouco menos do que cus­taria a temporada inteira, se lançada de uma vez só, numa única embalagem? O pior é que isso parece estar se tornando uma prática comum: já vi outras séries que estão sendo lançadas do mesmo jeito. De­pois, com que moral essas com­panhias vão poder reclamar se o público preferir recorrer à pirataria?

Por fim, isto agora os fãs de Arquivo X vão achar interessante: Gillian "Scully" Anderson aparece no pa­pel da Dra. Bedelia Du Mau­rier, a psiquiatra de Hannibal – que, como todo bom psiquia­tra, também tem sua própria psiquiatra. Gillian aparece primeiro de forma esporádica, para, lá pelo iní­cio da tercei­ra tempo­rada, assumir uma importância central na trama.

sábado, janeiro 16, 2016

Hannibal: a Origem do Mal

Thomas Harris, poderíamos dizer, criou um novo subgênero dentro do suspense, o que lhe garantiu reconhecimento tanto na literatura quanto por meio das adaptações de suas obras para as telas do cinema e da TV. Seu personagem mais famoso, o Dr. Hannibal Lecter, foi colocado em evidência pela primeira vez com o filme O Silêncio dos Inocentes, em 1991 (baseado no livro publicado apenas três anos antes), tornando-se conhecido do grande público, e não mais apenas dos leitores de Harris: o rosto do ator Anthony Hopkins usando a máscara-mordaça do personagem virou um ícone do cinema dos anos 90. Hannibal sempre foi uma figura diabolicamente única (eu, pelo menos, não conheço nada parecido), e a magistral interpretação de Hopkins o tornou ainda mais marcante. Nesse filme, Lecter já nos é apresentado preso, sob fortíssima segurança, numa instituição para criminosos insanos, mas ficamos sabendo que, antes de ser apanhado, ele conciliou com sucesso durante anos as atividades de psiquiatra forense e assassino em série. Trata-se de um homem de brilhante inteligência e cultura, refinado e elegante, apreciador de arte, música erudita, literatura e alta gastronomia – sendo que, nesse último campo, tinha o hábito, quando em liberdade, de incorporar aos sofisticados pratos que preparava certos "cortes especiais" retirados dos corpos de suas vítimas, fosse apenas para seu próprio deleite ou para servir aos amigos (sem revelar os ingredientes usados, é claro!) em agradabilíssimos jantares que oferecia periodicamente, em geral reunindo pessoas selecionadas da comunidade da alta cultura de Baltimore, Maryland, onde morava e clinicava.

Em O Silêncio dos Inocentes (tanto o livro quanto o filme), o mistério em torno de como Hannibal se tornou o que é faz parte do fascínio exercido pelo personagem; esse é o segundo livro, em ordem de publicação, no qual ele aparece, sendo o primeiro Dragão Vermelho (1981) e o terceiro, Hannibal (1999). Dragão Vermelho já havia recebido uma adaptação livre, de pouca repercussão, em 1986, sob o título de Manhunter (no Brasil, Caçador de Assassinos), com rápida aparição de Hannibal, interpretado por Brian Cox. O Silêncio dos Inocentes, como já vimos, chegou aos cinemas em 1991, mas, apesar do sucesso, não parece ter havido interesse, na época, em filmar seu predecessor: Hollywood preferiu esperar pela publicação de Hannibal, cuja versão para as telas estreou em 2001, novamente com Anthony Hopkins. Como esse filme também foi bem recebido pelo público, Dragão Vermelho pôde, por fim, ganhar nova versão, mais fiel ao livro e com o título original. Nessa versão, produzida logo a seguir e lançada em 2002, Hopkins encarnou o psiquiatra canibal pela última vez até o presente momento.

Harris cedeu aos muitos pedidos de seus leitores e voltou a escrever sobre Hannibal Lecter depois de ter deixado o personagem no ostracismo durante longo tempo. Hannibal Rising, ou Hannibal: a Origem do Mal, foi publicado em 2006 e transformado em filme no ano seguinte, com o francês Gaspard Ulliel interpretando o jovem Hannibal. Essa prequel revela detalhes da origem do personagem (que mesmo quem leu os outros livros só conhecia por meio de referências curtas e enigmáticas) e sobre sua infância e adolescência, dando finalmente a dimensão completa do trauma que ele sofreu ainda pequeno (e que recebera uma menção fugidia no livro Hannibal) e que pode explicar como veio a desenvolver inclinações antropofágicas. Portanto, se quiserem ler a saga na cronologia correta, ignorem a ordem em que os livros e/ou filmes foram lançados e leiam assim: 01) Hannibal: a Origem do Mal; 02) Dragão Vermelho; 03) O Silêncio dos Inocentes; 04) Hannibal.


Como também já insinuado em outros lugares, Hannibal escolheu os Estados Unidos para viver, mas é, por nascimento, um legítimo representante da velha aristocracia europeia. Seu ancestral, Hannibal, o Terrível, que viveu nos séculos XIV e XV, é um herói semilendário para a população da Lituânia (acho que o autor criou esse ancestral inspirando-se livremente em Vlad III da Valáquia), e o "nosso" Hannibal, nascido por volta de 1933 no vetusto Castelo Lecter, é o oitavo de sua linhagem a usar o nome. Seu pai, que tinha o título de conde, casou-se com uma dama de tradicional família italiana; a influência da mãe pode ter sido, em grande parte, o que despertou no garoto o amor pela música e pela arte. Sua prodigiosa inteligência já se anunciava desde tenra idade, mas aqueles não eram tempos fáceis para uma pessoa viver sua infância: em 1941, quando Hannibal está com oito anos, e sua irmã, Mischa, com três, as forças da Alemanha nazista varrem o leste europeu numa preparação para a invasão da União Soviética. É a Operação Barbarossa, que marca o rompimento do pacto de não agressão que vigorava entre as duas potências desde o início da Segunda Guerra. O Conde Lecter, então, decide tirar a família do castelo, e vão todos viver numa antiga cabana de caça escondida em meio às densas florestas que cobrem suas terras. O plano parece funcionar durante bastante tempo: os Lecter e alguns de seus criados (entre eles o Sr. Jakov, um velho judeu de enorme erudição que serve de tutor a Hannibal) vivem ali durante os três anos e meio que a Lituânia permanece sob domínio nazista, sem serem achados. A sorte os abandona já no final da ocupação: numa das últimas batalhas entre russos e alemães a serem travadas em solo lituano, todos, com exceção de Hannibal e Mischa, perdem a vida. As duas crianças são achadas por um grupo de ex-Hiwis – nome dado aos colaboradores voluntários dos nazistas – liderados pelo asqueroso Vladis Grutas. Embora tenham ajudado os invasores a subjugar e rapinar seu próprio país, esses homens não conseguiram concretizar sua esperança de ganhar um lugar nas SS, e, de qualquer forma, como já é 1945 e a derrota alemã é questão de tempo, essa ambição perdeu o sentido; assim, os celerados tiram a vantagem que ainda podem, aproveitando-se do caos gerado pelo estado de guerra para ganhar a vida como saqueadores, e não escolhem o lado de quem pilham e assassinam.

Abrigados no pavilhão de caça dos Lecter, com Hannibal e Mischa como prisioneiros, e isolados em meio ao rigoroso inverno lituano, Grutas e os outros se veem ameaçados pela fome… E a memória de Hannibal apresenta uma lacuna (mais provavelmente, um bloqueio) nesse ponto. A coisa seguinte de que ele se lembra é de ter sido encontrado por soldados russos, sozinho e semimorto, num campo deserto. Em 1946, com 13 anos de idade, ele está vivendo num orfanato que, numa triste ironia, foi estabelecido no antigo Castelo Lecter; a Lituânia é agora uma república soviética e já não há aristocratas: são todos "camaradas". Os terríveis acontecimentos no pavilhão de caça, quaisquer que tenham sido, cobraram seu preço: Hannibal ficou incapaz de falar, embora à noite, durante seus pesadelos, chame em desespero pela irmã, que não sabe que fim levou. Apesar de sua incapacidade de se comunicar e de se enturmar com os outros garotos no orfanato, a inteligência de Hannibal é óbvia; isso e o modo penetrante como observa tudo à sua volta o tornam temido e hostilizado – e ele sempre encontra meios surpreendentes para fazer com que as pessoas se arrependam de lhe ter causado algum mal.

Com as coisas voltando ao normal depois da guerra (um "normal" que nunca mais será como antes, é claro – nem para Hannibal, nem para a Lituânia, nem para o mundo), o único parente vivo de Hannibal, seu tio Robert, consegue encontrá-lo no orfanato, e o leva para viver com ele e sua esposa, na França. Aliás, desposar estrangeiras exóticas e de origem ilustre parece ser um costume prezado entre os homens da família Lecter: a esposa de Robert é Lady Murasaki, descendente de uma antiga linhagem de samurais da região de Hiroshima, cidade onde toda a sua família pereceu, vitimada pela bomba atômica dos americanos. No filme, Lady Murasaki é interpretada pela bela atriz chinesa Gong Li, e há uma diferença importante na narrativa em relação ao livro: Hannibal foge do orfanato e atravessa sozinho vários países até chegar à França, onde procura pelo tio guiando-se pelo endereço de algumas velhas cartas que encontrou no castelo – e não chega a conhecê-lo, sendo acolhido por uma Lady Murasaki já viúva. O roteirista deve ter optado por essa mudança porque, no filme, Hannibal parece ter vivido no orfanato durante alguns anos, já está mais velho, com uns 16 ou 17 anos em vez de 13, e praticamente não conviveu com mulheres desde sua infância, o que faz com que se veja confuso, sem saber como deve se sentir diante de uma mulher mais velha, bonita e charmosa – que é sua tia. Se Robert Lecter ainda vivesse, a situação ficaria complicada. No livro não há esse problema, pois tudo é muito mais gradual. De qualquer forma, Hannibal não deixa de experimentar certos sentimentos normais para um rapaz de sua idade… Uma das poucas coisas a respeito dele que podem ser consideradas normais.


Suas reações, entretanto, não são propriamente normais. Ele comete seu primeiro assassinato antes de completar 14 anos, eliminando o açougueiro da vila próxima à mansão onde está vivendo com os tios. Esse sujeito desagradável havia insultado publicamente Lady Murasaki, o que já seria imperdoável no sistema de valores de Hannibal: como sabe quem o conhece, ele não tolera a grosseria. Para agravar a coisa, o tio Robert fica sabendo do ocorrido, vai tirar satisfações com o açougueiro e, sob o efeito da raiva, seu coração debilitado não resiste. Hannibal perpetra seu ato e não sente culpa – aliás, não sentirá isso em momento algum de sua vida.

A morte de Robert deixa Lady Murasaki e Hannibal em dificuldades. A mansão onde viviam, no interior da França, tem que ser vendida para saldar dívidas, e os dois se mudam para uma moradia mais modesta em Paris, onde Hannibal começa a cursar a escola de medicina, mostrando-se logo um aluno brilhante. Como também possui notáveis dotes artísticos, aproveita para ganhar algum dinheiro pintando imagens em estilo japonês e vendendo-as para negociantes de arte da cidade, até que, certo dia, na loja de um dos marchands com quem negocia, encontra um quadro que conhece: fazia parte da coleção de seus pais, e só pode ter sido roubado do Castelo Lecter. O quadro se torna a primeira pista de uma trilha tortuosa que Hannibal seguirá para encontrar os Hiwis que mantiveram sua irmã e ele como prisioneiros. Desses homens, ele quer algumas respostas, e, possivelmente, muito mais. E cheguei até onde podia sem dar spoiler.

Hannibal, que começa na medicina como cirurgião, mais tarde migra para a psiquiatria, mas já nesta narrativa a respeito de sua juventude nota-se nele um talento para essa área. Como aluno bolsista, uma de suas tarefas consiste em ir às prisões de Paris (onde também é aplicada a pena capital aos condenados) para buscar os corpos que serão utilizados nas aulas de anatomia. Há um capítulo no qual ele precisa conseguir que um condenado à guilhotina assine um termo autorizando o uso de seu corpo, e o sujeito está lelé, fala com ele fingindo (ou melhor, provavelmente acreditando) ser um advogado com procuração para representá-lo. Hannibal lida com a situação com enorme astúcia; é difícil dizer se isso vem de sua condição de psicopata (manipulador por natureza) ou de uma mente com um pendor para lidar com as desordens mentais de outros, apenas aplicando esse dom para alcançar o objetivo do momento.

Ainda no mesmo assunto, é muito curioso que Hannibal opte pela psiquiatria, já que ele próprio poderia servir de objeto de estudo durante muitos anos para os mais instruídos e sagazes de seus colegas. Em alguns momentos ao longo da série, ele é referido como um sociopata, em outros como um psicopata, e, pelo menos uma vez, é dito que a medicina não tem uma palavra capaz de defini-lo. Pessoalmente, não tenho qualquer conhecimento formal sobre o assunto, tudo o que sei é o que um curioso consegue descobrir aqui e ali, e, ao procurar pelas definições de sociopatia e psicopatia para tentar dar mais consistência a este texto, achei-as extremamente parecidas uma com a outra. Pelo visto, não sou o único a ter essa impressão, pois li também que há muita discussão, mesmo entre os especialistas, sobre o que distingue os dois transtornos, seja de modo geral ou em casos específicos. Parece que a tese mais aceita é a de que ambos se distinguem pela origem: o psicopata já teria nascido assim, enquanto o sociopata seria produto de um ambiente abusivo ou violento. Seja como for, uma característica que costuma estar associada a ambos os quadros, a dificuldade para controlar os impulsos, passa longe do perfil de Hannibal. Na verdade, o personagem parece possuir um autocontrole extraordinário: sabe exatamente quando pode matar e quando não pode, e nunca o faz a menos que tenha certeza de que conseguirá cobrir seus rastros com perfeição. Também não mata à toa, nem apenas por desejo de saborear uma refeição de carne humana: seus alvos preferenciais são pessoas rudes, prepotentes, ou que representem perigo para ele, ou ainda algumas sem as quais, em sua opinião, o mundo ficará melhor – há um caso anedótico, citado em Hannibal e mostrado em live action em Dragão Vermelho (que, embora filmado depois, retrata acontecimentos anteriores), no qual ele elimina um flautista ruim, que estava estragando o som da Filarmônica de Baltimore, e serve um dos órgãos do homem num jantar para o qual convida todos os membros do conselho diretor da orquestra.

Outros pontos nos quais o perfil de Hannibal não parece se ajustar à descrição-padrão de psicopata ou sociopata são a ausência de empatia e a incapacidade de formar laços afetivos: pode ser fato que ele não tem qualquer empatia nem preocupação com o bem-estar da quase totalidade da espécie humana, mas há exceções, e essas são muito importantes. Há pessoas a quem ele, sem dúvida, dedica afeto, ou ao menos um grande respeito, como Lady Murasaki e, mais tarde, Will Graham (o agente do FBI que o prendeu), Clarice Starling, e até mesmo Barney, o enfermeiro/carcereiro em quem o Dr. Lecter encontrou um discípulo atento, uma mente ávida por conhecimento (em tempo: conhecimento sobre arte e cultura, não sobre assassinato). O que me parece, enquanto leitor, é que Thomas Harris deve ter estudado a fundo as características dos transtornos psiquiátricos, mas, de propósito, deve ter feito com que seu personagem fugisse deles em alguns pontos, enquanto se encaixa em outros, o que o torna mais enigmático. Por esse motivo, entre outros, Hannibal talvez seja um dos mais interessantes anti-heróis da literatura recente: seus crimes nos horrorizam, mas também há momentos em que torcemos por ele e até o entendemos. Quem nunca teve vontade de matar uma pessoa grosseira? A diferença é que Hannibal não fica na vontade, e, como se fosse uma réplica póstuma à ofensa recebida, sempre que possível ainda faz questão de comer um pedaço do ofensor, como se insinuasse, com o humor ácido que é uma de suas marcas registradas, que para alguma coisa "boa" a pessoa acabou servindo.

Peguei Hannibal: a Origem do Mal para ler meio por acaso, era apenas um dos muitos livros que aguardavam a vez, e preciso dizer, a bem da verdade, que ele não é tão bom quanto O Silêncio dos Inocentes ou Hannibal (ainda não li Dragão Vermelho, mas, naturalmente, vi todos os filmes), mas também está longe de ser uma leitura ruim. Parece-me agora que essa pode ser uma boa oportunidade de percorrer toda a saga de Hannibal na ordem cronológica certa, então é possível que leia/releia tudo, não necessariamente um atrás do outro – posso alternar com outros, mas procurarei fazer isso, e, se assim for, retorno ao assunto em breve.