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sexta-feira, setembro 16, 2016

O Tigre

Salvo por alguns inevitáveis e esporádicos acidentes de percurso, a convivência milenar entre tigres e seres huma­nos tem sido, de modo geral, pacífica, quanto mais não seja porque, durante a maior parte de sua história, os ho­mens não possuíam armas suficientemente poderosas que os encorajassem a enfrentar um animal tão perigoso sem necessidade. Como regra, enquanto os tigres não atacassem pessoas, e não cobrassem um tributo excessivo dos re­banhos domésticos, os humanos os deixavam em paz. Tem sido assim desde tempos imemoriais, das taigas geladas da Sibéria até as selvas tropicais da Indonésia, e das praias do Mar Cáspio até os confins orientais da Ásia – quer di­zer, em todas as paragens habitadas por tigres e humanos. Só o advento dos séculos XIX e XX, trazendo consigo ar­mas de fogo modernas e o conceito de "caça esportiva", é que mudou essa situação. É verdade que a medicina tradi­cional chine­sa – tão admirável em algumas coisas, tão estúpida em outras – há muito atribui poderes curativos (e sem qual­quer base em fatos) a diversos pedaços do tigre; a impressão que dá é a de que existe um raciocínio de que, se uma coisa é rara e difícil de obter, então ela necessariamente deve ter propriedades milagrosas. Em consequên­cia, o sangue do tigre, o pó de seus ossos, sua bílis, órgãos internos e várias outras partes valem um alto preço, mas, enquanto o bi­cho tinha que ser caçado com arco e flecha, lança, ou com mosquetes rudimentares de um só tiro, ha­via pou­quíssima gente disposta a encarar a bronca, por maior que fosse a recompensa em jogo. Armas mais eficien­tes mu­daram as coisas – não admira que o tigre-da-china esteja quase extinto. Não foi tão melhor na antiga União Soviéti­ca, cujo vasto território abrigava duas subespécies: o tigre-do-cáspio, extinto desde a década de 1960, e o ti­gre-da-sibéria, ou tigre-de-amur, o maior e mais possante de todos os tigres, que teve um pouco mais de sorte por habitar regiões muito re­motas e pouco populosas.

Porém, essa sorte não duraria para sempre. Nos primeiros tempos do comunismo so­viético, os tigres eram considerados uma praga, e o seu extermínio era incen­tivado pelo governo. Mais ou menos na mesma época em que o tigre-do-cáspio foi extinto, e com a população de tigres-­siberianos reduzida a poucas dezenas de exemplares na natureza, felizmente parece que alguém mais esclarecido teve acesso a um cargo no qual dispunha de poder para fazer algo a respeito, e foram promulgadas leis protegen­do os animais. Com isso, o número de tigres-siberianos subiu para algumas centenas ao longo das décadas seguin­tes, e conservacionistas do mundo inteiro já se sentiam mais tranquilos, quando chegou a década de 1990 – a déca­da da Perestroika, a reestruturação política e econômica que pôs abaixo a "Cortina de Ferro" que isolava a União Soviéti­ca do resto do mundo. A isso seguiram-se, sem muita demora, o fim da própria União Soviética e a implosão do co­munismo. Isso tudo teve duros efeitos sobre a sociedade e a economia da Rússia, com um empobrecimento ge­ral da população e um aumento drástico do desemprego. Muitos russos, sem outra alternativa de sobrevivência, passa­ram a tentar viver do que as florestas da Sibéria ofereciam, fosse por meio da caça de diferentes animais ou da ex­tração de madeira – invadindo o habitat dos tigres. Pior ainda, o relaxamento do controle das fronteiras permitiu a entra­da de caçadores ilegais vindos da China em busca dos tigres que já não existiam em seu país.

No entanto, Vladi­mir Markov, o caçador ilegal de 46 anos que foi morto por um tigre, nos arredores do vilarejo siberiano de Sobolo­nye, em de­zembro de 1997, não era chinês, e sim russo mesmo. A guarda florestal imediatamente chama a equipe local do pro­jeto conhecido como Inspec­tion Tiger, subordinado ao Departamento de Conservação e Caça. A equipe é lidera­da por Yuri Trush, ex-militar e experiente caçador, cujo trabalho, agora, consiste basica­mente em proteger os tigres contra caçadores ilegais – só que, na eventualidade de os papéis de caçador e presa se­rem troca­dos, isso tam­bém é de sua alçada. Quando Trush e seus companheiros chegam ao local, constatam que pouca coisa restou de Markov para ser vista; o mais desconcertante, entretanto, é que, a julgar pelos rastros e outros sinais deixados na cena da morte (sinais esses que um caçador experiente pode ler como se estivessem escritos num livro), o tigre não ma­tou Markov num encontro fortuito, e nem mesmo para se defender: ele o espreitou e caçou, com inteligência e paci­ência, talvez durante dias.


A primeira hipótese levantada é a de que Markov tivesse capturado um filhote a fim de vendê-lo, e sofrido a vingança da mãe, mas um dos companheiros de Trush logo descarta essa possibilida­de, por­que os rastros encontrados na neve são grandes demais para pertencerem a uma fêmea. E, como se descobre de­pois, ele está certo: o tigre responsável pela morte do caçador é um macho de cerca de seis anos – jovem, mas já adulto, e especialmente grande. No decorrer da mesma investigação, os agentes do Inspec­tion Tiger descobrem uma armadilha, obviamente instalada por Markov, e destinada à captura de tigres. Ou seja, é a prova de que o fale­cido não simplesmente lidava com incidentes ocasionais envolvendo tigres, como todo caçador da taiga está sujeito a ter: ele estava deliberadamente caçando os felinos, um crime grave perante a lei russa, mas também um negócio muito lucrativo.

Uma mente civilizada reluta em estabelecer o nexo entre Markov caçar tigres e o fato de ter sido morto por um. Afinal, nenhuma fera é capaz de desejar vingança, e tampouco de executá-la, não é mesmo? Um tigre pode atacar um caçador que atire nele, que tente roubar carne de uma presa que ele abateu, ou que ameace seus filhotes, e – embora isso seja muito raro – pode até mesmo atacar um ser humano como o faria com um ani­mal qualquer, levado simplesmente pela fome, mas todas essas situações podem ser atribuídas ao instinto de auto­preservação ou ao de defender a prole. Vingança requer compreensão de causa e consequência, capacidade de pla­nejar, e também de experimentar um sentimento semelhante ao ódio – tudo coisas demasiado complexas para um animal dito "irracional". Entretanto, a relutância em admitir essa possibilida­de não é compartilhada por povos nati­vos da Sibéria, como os nanai e os udeghe, que há séculos e milênios vivem em íntima comunhão com a taiga (um tipo de floresta característico das latitudes boreais). Para os caçadores desses povos, que tiram da floresta o susten­to de suas famílias, tal como seus ancestrais o fizeram desde tempos muito antigos, o tigre é tão inteli­gente quanto um homem, igualmente capaz de ser tanto generoso quanto cruel, de guardar rancor ou de perdoar, e, por tudo isso, é digno de ser tratado com respeito e cautela. Conversando com esses caçado­res nativos, Yuri Trush e seus ho­mens vão desenvolvendo uma compreensão diferente do incidente que tirou a vida de Markov – e que se repete al­guns dias depois: desta vez, a vítima é um jovem caçador de 20 anos, Andrei Po­chepnya, para quem Markov havia sido, além de vizinho e amigo, uma espécie de mentor. Se Pochepnya estava atrás de vingança, ou se simplesmente topou com o tigre enquanto caçava para pôr comida na mesa da família, não fica claro, mas o problema nas mãos de Trush e sua equipe fica cada vez maior. Sem alternativa, os homens dão iní­cio a uma caçada perigosa em meio a um ambiente no qual o tigre parece capaz de desaparecer sempre que assim deseja, e, embora o animal esteja ferido e pareça raivoso, age com uma sagacidade quase sobrenatural, tornan­do sua caça um desafio ainda maior, e fazendo da leitura desta história uma experiência que o leitor não esquecerá fa­cilmente.

Citar críticas elogiosas feitas por escritores de renome ou por órgãos de imprensa conceituados é uma estratégia muito comum para alavancar as vendas de livros de todos os gêneros, mas uma das que aparecem na contracapa de O Tigre me parece certeira: al­gum crítico do jornal francês Le Monde teria escrito que o livro é "o equivalente de Moby Dick para a floresta", e eu concordo, por pelo menos duas boas razões. A primeira é a combi­nação mortífera de ferocidade e inteligência, de­monstrada tanto pelo grande cachalote branco de Herman Melville quanto pelo tigre homicida caçado por Trush e seu grupo – o que confere a ambas as narrativas um clima aflitivo impossível de compreender sem lê-las. A outra é que o esquema geral de Moby Dick parece ter servido de inspira­ção a John Vaillant: Melville intercalava capítulos que narravam a caçada ao cachalote com outros de conteúdo en­ciclopédico, versando sobre cetologia, sobre a ativi­dade baleeira e assuntos afins; Vaillant alterna a investigação das mortes de Markov e Pochepnya e a perseguição ao tigre com dissertações sobre aspectos históricos, geográficos e humanos da Rússia em geral e da Sibéria em particu­lar, e com uma ampla e fascinante pesquisa na qual a antropo­logia dialoga com a história natural.

Os grandes primatas (entre eles nós, hominídeos) e os grandes felinos evoluí­ram de forma paralela, em muitos casos partilhan­do o mesmo habitat, e, durante 90 por cento do tempo, ou mais, os respectivos papéis eram muito claros: eles eram os predadores dominantes, e nós, presas eventuais. Nosso medo atávico do escuro (e quando digo "nosso", não que­ro dizer apenas dos humanos, mas dos grandes primatas em ge­ral) deve-se provavelmente ao fato de nossos ances­trais, durante pelo menos cinco milhões de anos, terem desen­volvido o hábito de buscar abrigo tão logo anoitecia, sob pena de tornarem-se o jantar de algum dentre uma longa lista de predadores noturnos, lista essa na qual leões, leopardos e outros felinos ocupavam lugar de destaque. Não tínhamos a menor chance contra essas feras: não po­díamos nem por sonhos rivalizar com sua força ou agilidade, e não tínhamos presas ou garras. Com o tempo, fomos encontrando maneiras de compensar essas desvantagens usando nossos dois principais trunfos – nosso cérebro e nossa habilidade manual. Aprendemos a fabricar armas cada vez mais eficien­tes e a agir em equipe de formas astu­tas, o que, aos poucos, equilibrou a balança, e depois a fez pender para o nosso lado. A partir daí, parece que passa­mos a merecer algum respeito da parte de nossos vizinhos felinos – pois, como Vaillant demonstra com base em di­versos estudos de especialistas, não somos os únicos animais capazes de incorporar novos conceitos e mudar nossos costumes de acordo com eles. Por muito tempo, os felinos viram os hu­manos como presas fáceis, mas, a partir do momento em que nossos ancestrais começaram a andar munidos de obje­tos pontiagudos e cortantes que podiam cau­sar sérios estragos, as feras passaram a evitá-los. Por outro lado, mes­mo que agora fosse capaz de se defender, o ho­mem primitivo não tinha qualquer desejo de procurar briga com ani­mais perigosos, a menos que fosse absoluta­mente necessário – um comportamento que foi passando de geração em geração, tanto entre felinos quanto entre humanos, até que se chegasse a um acordo de respeito mútuo, aquele do qual eu fala­va no começo do texto. Apesar disso, a escuridão, e o que quer que possa haver nela, continuaram e con­tinuam a nos intimidar, e devemos isso, em grande parte, aos ti­gres e seus parentes. Para mim, uma das coisas mais fasci­nantes a respeito da antropologia (e, mais especificamen­te, da parte dela que trata dos nossos ancestrais) é o fato de nos permitir compreender os moti­vos de sermos como somos.

O tigre-siberiano é um dos mais belos animais que alguém seria capaz de imaginar, e também um dos mais aterradores. Mais peludo e corpulento que seus paren­tes de regiões quentes, é uma perfeita má­quina de ma­tar que pode atingir (e, por vezes, ultrapassar) 300 quilos de peso e três metros de comprimen­to to­tal, medindo do fo­cinho à extremidade da cauda. Seus dentes cani­nos têm o comprimento de um dedo indica­dor, a mandíbula é pode­rosa o suficiente para partir o fêmur de um boi com uma única mordida, as garras são cur­vas como ganchos e afia­das como navalhas. Todo esse arsenal está a ser­viço de um cérebro astuto de predador: tal­vez por viverem e caça­rem sozinhos, os tigres parecem ter boa capacida­de de plane­jamento (sim!) e de lidar com situa­ções inesperadas, muito mais que seus primos, os leões. Nenhum animal da tai­ga está a salvo de seu apetite: o tigre pode se alimentar de qualquer coisa, de ratos-silvestres a bisões adultos, e, pasmem, até mesmo de animais que, em qualquer outro lugar, costumam ocupar o topo da cadeia ali­mentar, como ursos e lobos (!). Entretanto, parece que suas presas fa­voritas são cervídeos de grande porte (alce, rena, wapiti) e javalis.

Estima-se que existam hoje cerca de 500 ti­gres-siberianos em liberdade, mais uns cem em zoológicos e cen­tros de preservação em diferentes países. É o sufici­ente para que a subespécie não corra pe­rigo imediato, mas há outro fa­tor complicador a colocar em risco seu futuro: a gradual redução do espaço vital disponí­vel devido à ocupa­ção hu­mana. Foi-se o tem­po em que "Sibéria" designava uma região isolada e quase despo­voada, para onde eram mandados os prisioneiros políticos: hoje ela tem grandes ci­dades e uma população superior a 25 milhões de habi­tantes. Para complicar, o ti­gre, como todo predador de gran­de porte, necessita de um território vas­to – algo em tor­no de 450 quilômetros qua­drados para um macho adulto, sen­do que essa área pode sobrepor-se aos territórios de até duas ou três fêmeas. Embo­ra a Rússia tenha estabeleci­do reservas naturais visando tanto a preser­vação do tigre quanto de outras espéci­es, o sim­ples tamanho dessas reservas torna quase impossível um controle cem por cento efeti­vo; além disso, mais difí­cil que impedir que caçadores entrem, é impe­dir que os animais saiam. Há planos de trans­ferir certo número de ti­gres para o Par­que Pleistoceno, uma reserva natural no nordeste da Sibéria, onde biólogos estão tentando restabe­lecer as condi­ções ecológicas que lá existiam perto do final da última Era Gla­cial, por meio da reintrodução de espé­cies que habi­tavam a região na época. Mesmo antes que a área se tornasse um parque, já vi­viam nela animais como ur­sos, lobos, alces, renas e ja­valis; desde então, foram reintroduzidos com su­cesso bois-al­miscarados, bisões, wapi­tis, ca­valos selvagens, saigas e linces (e, se o projeto de clonagem que está ten­tando trazer de volta os mamutes for bem-­sucedido, o local será, sem dúvida, um lar confortável também para esses gigantes do passado – isso não seria for­midável??). Ainda estão em andamento os estudos sobre a viabilidade de ter tigres vi­vendo lá, e, de qualquer for­ma, será necessário aguardar que a popula­ção de herbívoros aumente até atingir núme­ros que permitam que sir­vam de alimento aos grandes feli­nos sem peri­go para sua própria conservação. Outra ideia, ainda mais ambiciosa, consiste em repovoar com tigres-siberianos as áreas antigamente ocupadas pelo extin­to tigre-do-cáspio, o que re­presentaria um aumento importante do espaço vi­tal disponível para a subespécie, mas isso ainda é uma possibilida­de distante. Por enquanto, o tigre-­siberiano só pode contar mesmo com as reservas que já ocupa, no extremo orien­te russo.

Acho que foi Jacques Cousteau quem declarou que ficava atônito de pensar que, durante o tempo de duração de sua vida, o homem, de­pois de milênios lutando contra a natureza pela sobrevi­vência, teve que fazer um giro de 180 graus e passar a empe­nhar-se em defendê-la, porque percebeu – e esperemos que não tenha sido tarde demais – que é preciso encontrar um equilíbrio. Continuando o pensamento de Cousteau, eu diria que o tigre é um perfeito exemplo concreto dessa ideia mais geral sobre a natureza. Junto com outras feras predadoras, ele fez parte dos nossos pesa­delos na pré-his­tória, e, ao longo de toda a construção da nossa cultura, foi sempre temido – pri­meiro, só temido; depois, temido, admirado e cobiçado de morte. Hoje, temos que nos esforçar para salvar os últi­mos deles, se não quisermos ser os responsáveis por legar às gerações futuras um mundo onde os tigres não exis­tam, um mundo, por­tanto, despojado de um pouco (na verdade, um muito) de sua beleza e terror. Eu fico pensando no quanto vai ser triste se, daqui a um ou dois séculos, uma criança de então abrir um livro, maravi­lhar-se com a ilustração represen­tando um gigan­tesco gato listrado de amarelo e preto, tão forte, majestoso, fasci­nante e terrível, e sentir a frustra­ção de saber que tal animal não existe mais, que nunca lhe será possível ver um de­les vivo e respi­rando – o mesmo tipo de frustração que eu, tanto em criança quanto ainda hoje, sentia e sinto ao abrir um livro e fi­car olhando com espanto para ima­gens de arsinotérios, gliptodontes, entelodontes, rinocerontes peludos e tantas outras feras magní­ficas que nunca vou ver a não ser em livros mesmo. Na verdade, acho que será mais triste ainda, porque essa crian­ça do futuro esta­rá olhando para fotografias, e não para pinturas; para um ani­mal cuja extinção não foi natural, e sim culpa do ho­mem. E ficará sabendo que tivemos uma chance de salvar o ti­gre, e não o fizemos. O que seria uma grande, grande vergonha.

terça-feira, fevereiro 19, 2013

Rhóor, o Invencível

Ah, ser um leitor pré-adolescente, cheio de inocência, mas já muito consciente de todo o bem que os livros podiam fazer a quem lhes dedicasse um pouco de tempo e atenção… E, ao mesmo tempo, não estar (ainda) preocupado com coisas "sérias" como adquirir cultura, de modo que encarava o ato de ler exatamente do modo como toda criança deveria encará-lo: como uma grande e inesgotável brincadeira, melhor que qualquer outra - embora já estivesse, sim, construindo minha cultura, sem saber, enquanto acreditava que tudo o que estava fazendo era me divertir. Para completar, tinha a sorte de não depender apenas da biblioteca da escola e dos livros que existiam em casa: ao lado do condomínio onde morava na época, ficava uma unidade do SESI (Serviço Social da Indústria), onde havia, entre muitas outras coisas, uma biblioteca, não muito grande, mas recheada de itens empolgantes para um garoto-leitor com o meu perfil.

Foi lá que vi pela primeira vez a coleção Safári, publicada em Portugal durante os anos 70, pela editora Verbo, mediante acordo com a francesa Alsatia. Tratava-se de romances de aventuras com temas e estilos variados, todos escritos por nomes consagrados da literatura juvenil na França. Ao longo do ano que se seguiu a essa descoberta, li vários dos títulos da coleção, e todos os que li me ficaram na memória: O Passageiro da Noite, de Jean-Paul Benoit, com seu clima de mistério e heroísmo em meio à paisagem majestosa dos Alpes franceses; as aventuras de escotismo O Bando dos Ayacks e O Castelo dos Vendavais, ambas escritas por Jean-Louis Foncine e transbordantes de otimismo e fé no poder transformador da juventude (ah, como devia ser bom viver numa época e num lugar onde era possível acreditar nisso); e a ficção científica Nascido no Espaço, de Geoffrey X. Passover (também francês, apesar do pseudônimo). Com exceção deste último, todos eram abrilhantados pela arte do legendário Pierre Joubert, um ilustrador tão querido na época, que chegava a ser citado pelos próprios personagens de O Castelo dos Vendavais.

Não obstante, o primeiro volume da coleção que li foi a aventura pré-histórica Rhóor, o Invencível, por um certo Michel Grimaud, sobre quem eu nada sabia até o dia de hoje: quando garoto, só a obra em si é que me interessava, de modo que não me preocupava com informações sobre o autor - e, mesmo que assim não fosse, pouco teria podido fazer, já que o livro nada dizia sobre o tal Grimaud, e na época não havia Google nem Wikipédia. Hoje, então, ao me sentar para escrever este post, lembrei de lançar mão dessas maravilhas modernas, e descobri, não sem surpresa, que "Michel Grimaud" era o pseudônimo coletivo de um casal de escritores: Jean-Louis Fraysse (1946-2011) e Marcelle Perriod (1937-2011), e que eles possuem uma obra extensa, tanto no campo da literatura para adultos quanto para jovens, sendo, ainda, uma referência da ficção científica em seu país. Além de tudo, eis dois afortunados seres humanos: encontrar um amor e uma parceria criativa ao mesmo tempo é felicidade reservada a poucos.

Mas creio que já é hora de começar a falar do livro!

A história aqui narrada faz lembrar a do Êxodo, pois, como no segundo livro da Bíblia, há um povo em busca de uma terra prometida. Os Rhóors são uma das tribos de caçadores-coletores que tentam sobreviver numa Europa selvagem, que ainda esperaria dezenas de milênios para ser apresentada às primeiras civilizações. Anos antes do início dos acontecimentos relatados no romance, transformações climáticas, do tipo que era comum naqueles tempos pós-Era Glacial, causaram mudanças ecológicas que privaram a tribo das fontes de sustento de que estava acostumada a depender, nas terras que até então habitava, obrigando-a a vagar por regiões inóspitas, dominadas por povos nem sempre amistosos, em busca de um lugar onde possam viver e, quem sabe, reencontrar a antiga prosperidade. Seu chefe, Rhóor, o Vesgo, decide tomar sobre si o ônus da busca, e parte, acompanhado apenas pela própria família, enquanto a tribo espera, lutando contra a fome, o frio e diversos tipos de perigos. Eventualmente, a busca alcança êxito: em paragens muito distantes, Rhóor descobre uma região ampla e verdejante, com clima ameno e caça abundante, e ainda não reclamada por nenhuma outra tribo. O líder, então, incumbe o filho mais velho de fazer o longo caminho de volta e guiar seu povo até a nova pátria.

O jovem de 17 anos tem o mesmo nome que sua tribo e seu pai. Já é um caçador experiente, muito hábil no manejo do arco - arma que representa um trunfo para os Rhóors na competição pela sobrevivência, já que as outras tribos não a conhecem -, e sua velocidade e destreza valeram-lhe o cognome de O Ágil. Além desses talentos, ele confia, para o sucesso de sua arriscada missão, na ajuda de uma aliada muito especial: Táa, uma fêmea de lobo-tigre (um sinônimo hoje em desuso para guepardo ou cheetah), pois, nessa época em que alguns grupos humanos estavam apenas começando a domesticar cães para caça, guarda e companhia, outra peculiaridade dos Rhóors é a de preferirem os guepardos para essas funções. Juntos, os dois amigos deverão percorrer milhares de quilômetros, atravessando planícies desoladas, montanhas e florestas, precavendo-se contra animais perigosos, tribos hostis e, sim, contra o meio-termo entre as duas coisas: assustadores homens-fera, remanescentes de estágios mais primitivos da evolução humana, que ainda perambulam pelo planeta, também eles lutando para sobreviver - uma luta que, fatalmente, teria vencedores e perdedores.

Rhóor, o Invencível, por sinal, retrata uma era em que todas as ambições da humanidade resumiam-se ao simples feito de sobreviver: riqueza, poder e outras tentações que obcecariam gerações futuras, mal eram concebidas pela mente do homem pré-histórico. A cada amanhecer, esse homem renovava sua determinação de mobilizar todas as forças que pudesse, com o único objetivo de manter-se vivo, a si e aos que dele dependiam, até o pôr-do-sol, e, se o conseguisse, isso era a melhor coisa que poderia esperar (sem contar que ficar vivo entre o pôr e o nascer do sol podia ser ainda mais difícil). Todo o tempo, energia e inteligência que os seres humanos possuíssem tinham que ser direcionados a essa única finalidade, apenas para que houvesse uma chance. Sabendo que as condições eram essas, podemos, a princípio, achar estranha a informação de que também foi nessa época que surgiram a música, a dança, as artes plásticas, a literatura, as competições atléticas, e diversas outras atividades nas quais estamos acostumados a pensar como sendo de lazer, desporto ou enriquecimento cultural - "luxos" que o homem só pode se permitir depois que a bendita sobrevivência já está assegurada. Porém, existe uma explicação bastante simples para essa aparente contradição.

Não fiquem demasiado surpresos se digo que a literatura nasceu na pré-história: por mais curioso que isso pareça, ela é muitíssimo mais antiga que a invenção da escrita. Pessoas que se sentavam à volta de uma fogueira à noite e contavam histórias, já estavam fazendo literatura, embora com objetivos a princípio muito pragmáticos: as histórias serviam para que os caçadores trocassem informações úteis entre si e as transmitissem aos membros mais jovens da tribo, que, a seu tempo, também seriam caçadores. O mesmo se dava com as outras atividades: cantos e danças destinavam-se a agradar aos espíritos da natureza (a primeira noção que o homem teve a respeito da divindade) para ganhar suas boas graças, a fim de que propiciassem boas caçadas e protegessem o povo contra doenças e desastres; desafios de corrida, lutas, arremesso de pesos e assim por diante, eram para aprimorar força e habilidade para a caça e o combate. É claro que, com o tempo, as tribos foram desenvolvendo o gosto por tais coisas, descobrindo o prazer que existia em ouvir boas histórias, em assistir a uma dança ou a uma competição, ou em delas participar, e também foi ficando evidente que algumas pessoas tinham um talento acima da média para alguma dessas atividades, e com isso foram começando a granjear popularidade e admiração - e é graças a isso que hoje temos Homero, Shakespeare, Beethoven, os Jogos Olímpicos, e outras riquezas inestimáveis que fazem parte de uma herança cultural que pertence a toda a humanidade; porém, o importante para nós, no momento, é compreender que as artes, em suas origens, tinham uma função prática, e, como tudo o que se fazia naquela época, eram um esforço a mais na luta constante pela sobrevivência. Isso incluía, naturalmente, as artes plásticas, como Rhóor, o Invencível, nos mostra de maneira interessante.


Ocorre que o artista pré-histórico que dedicava longas horas de trabalho a pintar figuras de animais nas paredes da caverna onde sua tribo vivia, muito provavelmente não o fazia movido por um simples desejo de morar num lugar mais bonito. Antropólogos acreditam que essas imagens tivessem finalidades mágicas: desenhar um animal, da maneira mais vívida e acurada possível, era considerado uma forma de capturar-lhe o espírito, reduzindo suas defesas e tornando-o mais fácil de abater. Isso explica, inclusive, por que a figura humana aparece tão raramente na arte rupestre, e, quando aparece, é de forma tosca, num contraste gritante com as minuciosas e coloridas representações de bisões, cavalos, cervos e outros animais de caça. Saber pintar, portanto, significava ter poder. O jovem Rhóor aprende essa arte com um ancião de uma tribo que encontra durante suas andanças. Mais tarde, é feito prisioneiro por outra tribo não tão amigável, liderada por Bisão Furioso, um gigante embrutecido em quem esse nome cai perfeitamente. A tribo de Bisão Furioso especializou-se em viver de rapina, chegando ao ponto de depender mais, para sua sobrevivência, de saques e extorsões do que da própria caça. Aprisionado entre eles, e com pouca perspectiva de escapar vivo, Rhóor propõe trocar sua liberdade pelo segredo do poder das imagens - mas antes, terá que convencer os salteadores de que a magia funciona.

Mesmo sem disporem de embasamento científico comparável, por exemplo, ao de uma Jean M. Auel, Fraysse e Perriod escreveram uma saga pré-histórica cativante e eficiente, capaz de apresentar ao leitor jovem um painel convincente (ainda que um tanto romantizado) do mundo da época. Todos os pontos principais que uma pessoa precisa saber para adquirir a compreensão do que foi a pré-história são abordados: o fato de que, durante a maior parte de sua existência, o homem adaptou-se aos ritmos e regras da natureza para sobreviver, vendo-se como parte dela, não como seu dono; os graus diversos de desenvolvimento técnico e cultural observáveis entre as diferentes tribos (já que o progresso humano não se deu de maneira simultânea e uniforme em toda parte); a importância essencial que tiveram a cooperação e a solidariedade para impedir que a humanidade fosse extinta no confronto desigual com o meio ambiente hostil; e, é claro, a já citada luta incessante pela sobrevivência. O ponto mais discutível que encontrei foi a questão do arco: é verdade que em lugar algum do livro é explicitado o período exato em que a história estaria ambientada, mas, se for o que as evidências parecem apontar - até alguns milênios depois do fim da última Era Glacial -, então o arco é um anacronismo, pois só seria inventado bem mais tarde. Também não parece muito plausível que ele fosse a "arma secreta" de uma única tribo, e encarado com assombro por todas as outras, como se fosse algo além de sua compreensão, quase uma habilidade sobrenatural. É claro que fabricar e manejar um arco não são coisas fáceis, exigem uma série de conhecimentos e muita, muita prática, mas, ainda assim, trata-se de uma arma conceitualmente simples: mesmo para uma pessoa que não o conhecesse, bastaria observar alguém utilizando-o para compreender o princípio e poder tentar imitar. As primeiras tentativas, fatalmente, seriam desastrosas, mas nada que persistência e paciência não resolvessem. E pronto: o "monopólio Rhóor do arco" estaria quebrado. Se a intenção (muito natural) dos autores era que a tribo do herói possuísse um diferencial em relação às outras, essa foi uma escolha um tanto ingênua. Porém, isso não tira os méritos de Rhóor, o Invencível, que continua sendo diversão de primeira.

Em tempo: a capa e as duas ilustrações do livro que aqui reproduzo são de Pierre Joubert, só para dar a meus leitores uma pequena amostra do trabalho desse admirável artista.

quinta-feira, junho 21, 2012

Star King - A Saga dos Príncipes-Demônios

John Holbrook Vance (1916-) não está entre os nomes mais famosos da história da ficção científica, o que talvez seja compreensível, considerando que suas obras não têm a mesma amplitude de apelo que as de um Isaac Asimov ou de um Arthur C. Clarke, e também que nunca foi tão prolífico quanto esses autores, mas tem, sim, seu próprio segmento de leitores fiéis, apaixonados por seu estilo único e sua espantosa criatividade. Um número relativamente pequeno de suas obras foi publicado em português, mas não há dúvida de que os poucos livros que chegaram até nós integram a parte mais importante e relevante de seu trabalho. Embora eu não conheça tanto de Jack Vance quanto gostaria, sempre senti que a Saga dos Príncipes-Demônios, formada por cinco romances, devia ser a joia da coroa.

Mesmo na época em que Vance começou a escrever essa saga (início dos anos 60), descrições de civilizações do futuro já eram carne-de-vaca na ficção científica. Quem quisesse criar um universo realmente marcante para ambientar suas histórias, um universo que não fizesse o leitor pensar "Humm, onde foi mesmo que já vi isso antes?", tinha diante de si um desafio muito sério. Um desafio que Jack Vance superou magnificamente. Ele começa por atiçar nossa curiosidade, ao citar datas que parecem do passado: a ação de Star King inicia em 1524. Só lá pelas tantas é que ficamos sabendo que houve uma reforma na contagem do tempo, que fez do ano 2000 o ano zero - portanto, estamos no ano que chamaríamos de 3524.

Então somos apresentados ao herói Kirth Gersen - uma das personalidades mais fascinantes que já encontrei em livros de ficção científica. Sua história é trágica: ainda criança, viu a pacata cidade onde nasceu, num planeta sem muita importância, ser pilhada e arrasada por um exército de piratas espaciais comandados por cinco homens cujos nomes causam calafrios em qualquer canto da parte habitada da galáxia, homens que, pela crueldade de seus atos de pirataria, ficaram conhecidos como os Príncipes-Demônios. Os habitantes da cidade que não foram assassinados, foram levados para serem vendidos como escravos (sim, o comércio de escravos é um negócio que prospera no assim chamado Além-Espaço, onde as leis que regem a vida na Terra e nos outros mundos civilizados não alcançam). No meio do punhado de cidadãos que escaparam, encontram-se o pequeno Kirth e seu avô, tudo o que sobrou de uma outrora extensa família. O velho Rolf Gersen trata então de preparar o neto para ir em busca de vingança. Kirth é treinado não apenas em todo tipo de habilidade de combate armado e desarmado, mas também em técnicas de investigação e em toda a gama de conhecimentos necessários para mover-se com desenvoltura pelos inúmeros mundos habitados por seres humanos.

E estes (tanto os mundos quanto os seres humanos) são de uma variedade infindável. Fala-se pouco em raças alienígenas inteligentes na Saga dos Príncipes-Demônios, mas, depois de adquirir alguma familiaridade com a obra, o leitor percebe que isso nem é necessário, tão grande é a diversidade cultural que Jack Vance atribui aos habitantes humanos dos diferentes sistemas estelares. Afastados da Terra de onde vieram seus ancestrais, esses povos desenvolveram identidades próprias, tão exóticas e surpreendentes quanto poderia ser a de qualquer raça alienígena. Só para começar, na própria Terra e nos planetas que lhe são mais chegados, a moda nessa época é tingir a pele - as pessoas se pintam de verde, azul, preto, laranja ou de qualquer cor que lhes venha à cabeça. Os poucos que não têm o hábito, como Gersen, são vistos como esquisitos. Há planetas onde o maior medo das pessoas é que estranhos lhes conheçam o rosto, de modo que usam máscaras durante a vida toda. Planetas onde a riqueza e o prestígio de um homem são medidos pela suntuosidade do túmulo que ele constrói para si próprio (bem, isso até tem antecedentes na História antiga da Terra, mas deixem pra lá). O famigerado planeta Sarkoy, cujos habitantes se orgulham de serem mestres absolutos na arte de fabricar e usar venenos - e de proteger-se deles. E por aí afora. O universo de Jack Vance é o sonho de qualquer antropólogo.

Os cinco Príncipes-Demônios - Attel Malagate, Kokor Hekkus, Lens Larque, Viole Falushe e Howard Alan Treesong - são tão diferentes entre si quanto poderiam ser. Cada um deles possui uma característica distintiva: Kokor Hekkus é inventivo e inquieto, apaixonado por máquinas complicadas; Lens Larque é um megalomaníaco; Viole Falushe tende aos vícios sensuais; Howard Alan Treesong é um gerador de caos (não me perguntem o que isso significa na prática), e Attel Malagate, cognominado "o Maldito", é frio e inflexível, desprovido de qualquer emoção. Juntando uma peça aqui e outra ali ao longo de anos de investigações, Gersen descobre que Malagate não é inumano apenas por conta de sua conduta: é inumano também na origem, pois pertence a uma estranha raça reptiliana, originária de um planeta da estrela Lambda Grus, da constelação do Grou. Esses seres intitulam-se imodestamente de "Reis das Estrelas", nome que os próprios humanos acabaram adotando por convenção. O detalhe assustador a respeito dos Reis das Estrelas é que eles não se parecem com qualquer dos inúmeros répteis inteligentes que estamos acostumados a ver em filmes, livros ou quadrinhos de ficção científica: não são escamosos nem têm pupilas verticais, muito menos cauda ou garras. Por um singular capricho da natureza, evoluíram de modo a tornarem-se externamente idênticos aos seres humanos, impossíveis de distinguir com um mero exame visual. Sim, sei o que estão pensando, mas a verdade é que a capa que o livro recebeu no Brasil, apesar de belíssima e climática, pura sci-fi art, tem o defeito de causar no leitor uma ideia errada e persistente da aparência que os Star Kings deveriam ter. Imaginem-nos com aparência humana, ponto.

Agora com 34 anos, Gersen fez aparentemente pouco progresso na missão para a qual foi preparado desde a infância, mas, absolutamente meticuloso e paciente que é, sabe que os poucos indícios que conseguiu reunir têm grande importância, pois servir-lhe-ão de ponto de partida - por muito tempo, ele não teve nem isso. É quando a sorte decide favorecê-lo: Gersen está descansando numa estalagem num pequeno planeta do Além-Espaço quando conhece um sujeito que se apresenta como Lugo Teehalt, demarcador - o que parece ser o jargão técnico para alguém que vasculha o espaço profundo e investiga mundos inexplorados, seja de forma independente, ou a mando de outrem, ou patrocinado por alguma instituição, a ver se descobre algo de interessante ou de rentável. E Teehalt descobriu um belo e idílico planeta cheio de montanhas, florestas e água, com um ar límpido e formas de vida fascinantes, pelo qual se viu imediatamente seduzido e subjugado. Infelizmente, Teehalt está demarcando para Malagate, com cujos representantes assinou um contrato: deveria, em tese, entregar a seu empregador a localização do planeta, o que se recusa a fazer, já que Malagate corromperia o belo mundo transformando-o numa colônia de férias para os chefões interestelares do crime.

Teehalt, previsivelmente, acaba assassinado quase diante dos olhos de Gersen, mas os homens de Attel Malagate cometem um erro fatal: levam por engano a nave de Gersen, que, por acaso, estava agindo sob o disfarce de demarcador a fim de não levantar suspeita sobre suas investigações, e deixam a de Teehalt. Dessa forma, Gersen se vê de posse do monitor que guarda a localização do misterioso planeta - a melhor isca que poderia querer, pois agora Malagate certamente virá atrás dele.

Assim tem início um intrincado e perigosíssimo jogo de xadrez entre dois cérebros extraordinários. Gersen tem de prever os movimentos de Malagate e, ao mesmo tempo, levar em conta o fato de que ele também estará tentando prever os seus, pois o Rei das Estrelas sem dúvida terá rapidamente percebido estar lidando com um indivíduo muito astuto. Gersen leva aos extremos a velha máxima que diz que a vingança é um prato que se come frio: cada ato que executa é calculado; não tem pressa e não é movido pelo ódio. Como ele explica a outro personagem num dos livros seguintes da saga, seu avô era quem sentia a raiva e o ódio, e foi por isso que o preparou para ser o agente da vingança, embora soubesse que não viveria o suficiente para ver essa vingança consumar-se.

Disse acima que Kirth Gersen é um dos personagens mais fascinantes da ficção científica, e a razão disso é a dualidade que existe nele: por baixo da casca de homem frio e totalmente racional que construiu ao redor de si próprio com a ajuda do avô, nota-se que seu verdadeiro espírito tem uma natureza romântica, arrebatada e idealista, bem como uma tendência algo mística a acreditar que o destino o levará a cumprir sua missão com êxito, embora tudo pareça apontar que são remotas as possibilidades de que consiga eliminar sequer um dos Príncipes-Demônios, que dirá então todos os cinco. Noventa por cento do tempo, ele age racionalmente; uma vez ou outra, rende-se ao seu gênio, para geralmente arrepender-se logo em seguida. Um personagem e tanto.

Star King é escrito de uma forma peculiar, que se tornaria uma marca registrada da Saga dos Príncipes-Demônios: é como se fossem dois livros em um. Cada capítulo começa com uma longa epígrafe revelando detalhes sobre o universo por onde transita Kirth Gersen; os textos consistem em trechos de manuais sobre os planetas, trechos de livros de História, declarações à imprensa feitas por personalidades de destaque sobre assuntos relevantes para esse universo, e assim por diante - naturalmente, tudo fictício, saído da cabeça incrivelmente imaginosa de Jack Vance. Terminada a epígrafe, tem início a ação propriamente dita do capítulo. Essa estrutura é uma ideia inovadora e brilhante, que permite ao leitor uma imersão sem igual no ambiente da história. Porém, verdade seja dita, o sistema ainda precisava de um certo polimento: talvez por ser este o primeiro livro onde o empregou, parece que o autor ainda estava aperfeiçoando um certo pulo-do-gato para fazer com que a coisa funcionasse. Enquanto certos trechos das epígrafes deste primeiro volume da saga trazem informações fascinantes e vitais para entendermos o universo do autor, outros são bastante indigestos e sem muito propósito. Para crédito de Vance, deve-se observar que as epígrafes presentes nos dois volumes seguintes, A Máquina de Matar e O Palácio do Amor, mostram-se bem menos pretensiosas, mais acessíveis e agradáveis.

Por falar nisso, até onde sei, infelizmente apenas esses três primeiros volumes da Saga dos Príncipes-Demônios existem em português; todos foram publicados pela Francisco Alves ao longo da década de 80, e existe também uma edição de bolso do segundo volume pela Europa-América, de Portugal, com o título A Máquina Assassina. Esse narra a caçada de Gersen ao segundo Príncipe-Demônio, Kokor Hekkus, enquanto O Palácio do Amor trata do terceiro, Viole Falushe. Todos podem ser lidos independentemente uns dos outros, mas o leitor que optar por seguir a saga acumulará informações que lhe permitirão apreciar melhor cada volume. E, com a ressalva do parágrafo anterior, qualquer livro de Jack Vance pode ser entusiasticamente recomendado aos apreciadores da boa ficção científica.

quarta-feira, abril 25, 2012

Os Filhos de Anansi

Minha segunda visita ao universo de Neil Gaiman acabou não sendo por meio de O Mistério da Estrela nem de Coisas Frágeis, como eu havia planejado - e, pombas, eu estava planejando isso há bastante tempo!... Minha lista de livros por ler cresce muito mais depressa do que eu consigo dar conta dela, e confesso que nem sempre sigo uma rigorosa ordem de chegada: muitas vezes, a sequência em que os livros são lidos não segue lógica alguma. Então, certo domingo, há poucas semanas, estava eu em Porto Alegre e, ao passar pela Livraria Cultura no shopping Bourbon Country, fui irremediavelmente arrastado para dentro por algo que deve ter algum parentesco com o canto das sereias de que nos fala a Odisseia, com a diferença de que Ulisses só precisou entupir os ouvidos de seus homens com cera e amarrar-se ao mastro de seu navio para escapar dessa influência, enquanto eu ainda não encontrei um método preventivo que funcionasse. E, naquele delicioso exercício de percorrer estantes e mostruários de modo mais ou menos aleatório (está bem, vamos ser francos: completamente aleatório), topei com essa nova edição de Os Filhos de Anansi, livro que já tivera em mãos há alguns anos, quando tinha uma capa diferente e era publicado, creio, por outra editora, mas não cheguei a lê-lo na ocasião. Comprei-o, e, acontecendo que no dia seguinte embarcava para uma viagem de trabalho que duraria a semana toda, resolvi, num impulso, colocá-lo na mala. Como resultado, minhas noites de segunda a quinta-feira num quarto de hotel foram singularmente instigantes, empolgantes e engraçadas. Tentarei dar um vislumbre do quanto.

Charles Nancy (em quem o apelido de Fat Charlie, o 'Charlie Banha', ou, numa tradução mais livre, 'Charlie Gorducho', grudou como uma incômoda segunda pele) é um típico americano do sul, que agora mora na Inglaterra - percurso inverso ao do próprio Neil Gaiman, um inglês que hoje vive nos Estados Unidos. Filho único, ou assim ele pensava, Charlie, nascido na ensolarada Flórida, mudou-se ainda garoto para a nevoenta Londres com a mãe, quando ela se separou de seu pai, a respeito de quem tudo o que Charlie consegue lembrar é que tratava-se de um sujeito alegre, chegado às "boas coisas da vida" (segundo alguns pontos de vista), de conversa fluente, que cativava com facilidade os estranhos e tinha um senso de humor um tanto duvidoso, que o levava a divertir-se enormemente colocando as outras pessoas - sem excluir o próprio filho - em situações vexatórias. Por causa disso, o adjetivo que mais facilmente vem à memória de nosso herói ao pensar no pai é "constrangedor", e ele acha muito confortável ter toda a largura do Atlântico a separá-lo do velho. Isso estabelecido, Charlie é um homem comum que vive uma vida comum: um emprego chato numa firma de contabilidade, um apartamento, e uma noiva, Rosie, com quem está planejando o casamento próximo. Aliás, é só por insistência de Rosie, que não conhece a "peça", que Charlie decide convidar o pai para o casamento, e, com essa intenção, telefona para uma antiga vizinha na Flórida para tentar fazer contato com ele - e fica sabendo que seu pai acaba de morrer.

Sem saber direito por que faz isso, Charlie acaba viajando para os Estados Unidos para comparecer ao funeral do pai. Depois da cerimônia, a vizinha, Sra. Higgler, cumpre outro ritual, o de levar o rapaz para rever a antiga casa, ver se quer guardar algum dos objetos pessoais deixados pelo pai, etc. E também partilha com ele uma série de reminiscências e de coisas que ele não sabia sobre o próprio pai - como o fato, que a velha senhora joga como se não tivesse mais importância do que dizer o time de beisebol para o qual o homem torcia, de que o pai de Charlie era na verdade Anansi, o deus-aranha no panteão de certos povos africanos. E revela-lhe também que ele tem um irmão, e que, quando quiser vê-lo, só precisa pedir a uma aranha que passe o recado.

Entendam: Fat Charlie Nancy não apenas é um sujeito sem o menor interesse por qualquer assunto de natureza mística ou religiosa - é também um sujeito absolutamente comum e sem um pingo de imaginação. Jamais consideraria a possibilidade de que sua visão confortável do mundo talvez estivesse equivocada e de que algumas coisas estranhas e misteriosas pudessem ser reais. Assim, é num momento em que tem a mente nublada pelo álcool que ele realmente fala com uma aranha e pede-lhe para dizer a seu desconhecido irmão que apareça para vê-lo quando puder.

E o irmão, vejam só, aparece mesmo!

Spider (pois é assim que ele se apresenta) parece ter herdado toda a substância divina que havia no pai dos dois, da mesma forma como Fat Charlie ficou com todos os traços mais prosaicamente mortais: consegue fazer as coisas acontecerem conforme sua vontade, e, quando Charlie se refere a tais feitos como sendo "magia", Spider fica ofendido e explica que não é magia: são milagres. Mas essa não é a coisa a respeito do irmão que mais incomoda Charlie. O que há é que os dois se parecem, mas ao mesmo tempo não: é como se Spider fosse a versão idealizada que Charlie guarda de si mesmo em algum canto da mente - o cara que ele gostaria de ser. Enquanto Fat Charlie é tímido e desajeitado, Spider é "descolado" e esbanja autoconfiança; enquanto Charlie arrasta seu noivado um tanto sem graça com Rosie (que, aparentemente, está com ele mais para chatear a mãe ranzinza que por outro motivo qualquer), Spider é um verdadeiro ímã para mulheres. Tanto que acaba "pegando" também Rosie, que, acreditando que ele seja o irmão, sente repentinamente o afeto aguado que até então a ligava ao noivo transformar-se em paixão avassaladora. A fim de livrar-se de Spider - pois simplesmente pedir-lhe que vá embora não dá resultado -, Charlie viaja novamente aos Estados Unidos para pedir ajuda à Sra. Higgler, que, com o auxílio de outras vizinhas idosas, realiza um ritual mágico que leva Charlie a um lugar misterioso onde ele se encontra com uma série de criaturas estranhas - deuses-arquétipos comuns a todas as mitologias primitivas, cada um representado por um animal, com o qual se parece, ao mesmo tempo em que tem figura humana. Todos eles conhecem Anansi e sua fama de esperto e gozador, mas nenhum parece interessado em ajudar o filho dele. Quando finalmente encontra um deus que aceita fazer um pacto com ele, Charlie não tem ideia do que está desencadeando quando tudo o que realmente deseja é fazer com que Spider vá embora - mas não tardará a descobrir. Só para começar, ele se torna um alvo para o vingativo Tigre (Gaiman ressalta várias vezes que "tigre", aí, é um designativo genérico para qualquer grande felino, com a possível exceção do leão: leopardos, onças e vários parentes seus já foram, em alguma época e região, chamados de "tigre", o que explica a presença desse animal no folclore dos povos africanos, os quais obviamente não conheciam o tigre propriamente dito, que não existe na parte do mundo que habitam). O Tigre costumava ser o "dono das histórias" numa era sombria e esquecida, até ser tapeado por Anansi, que, assim, assumiu o papel de protagonista dessas histórias, alterando profundamente o caráter de cada uma delas e, por consequência, o próprio mundo em volta: quando as histórias pertenciam ao Tigre, o mundo era um lugar violento e sanguinário... Bem, ele ainda é assim, mas ao menos, com Anansi como dono das histórias, existem humor, riso e alegria para contrabalançar; nada disso existia quando o Tigre mandava.

E que histórias seriam essas? Quase todas. No livro estão recontadas várias delas, que a maioria de nós já ouviu ou leu: aquela do macaco que roubava bananas até ser apanhado com a ajuda de um boneco de piche, por exemplo, está aqui, apenas adaptada para ter Anansi como protagonista (ou seria a versão de Anansi a original e a que conhecemos a adaptação? Hum...). Essa história, assim como uma miríade de outras, é encontrada nas culturas de inúmeros povos ao redor do globo, desde os celtas da Irlanda até os ainos do norte do Japão - leia-se: povos sem nenhuma possibilidade de terem tido qualquer tipo de interação entre si antes do surgimento dos meios de comunicação modernos. Então como é que todos contavam as mesmas histórias, variando apenas nos detalhes? Carl Jung tinha uma teoria fascinante e, além disso, plausível para explicar esse fato. Neil Gaiman oferece-nos outra, ou, melhor dizendo, dá nova forma à teoria de Jung, recontando-a de modo a transformá-la em mais uma fábula. Brilhante!

Os Filhos de Anansi é um daqueles livros que a gente devora na primeira leitura, e que merecem uma segunda, mais lenta e refletida. Está cheio das marcas registradas de Neil Gaiman: personagens cativantes, situações divertidas, toques geniais de seu infalível humor britânico, e uma maneira absolutamente única de tratar a dualidade entre o mundo "real" e a infinita esfera dos inúmeros mundos místicos, oníricos ou legendários que compõem o imaginário humano - e que, por fazerem parte desse imaginário, são, a meu ver, perfeitamente reais a seu modo, sendo esse o motivo das aspas usadas quando me refiro ao mundo que vulgarmente chamamos de "real". Desconfio seriamente, e não pela primeira vez, que Gaiman seja um grande fã de Michael Ende, e que, se é que a recíproca não era verdadeira, deve ter sido apenas porque o autor de A História Sem Fim não viveu o suficiente para vê-lo alcançar a merecida fama e ter uma chance de conhecer sua obra. Gaiman cumpre com raro vigor e originalidade a missão de não apenas nos mostrar caminhos para chegar a Fantasia, como também de nos fazer refletir sobre o quanto nossas visitas periódicas a ela são essenciais para que nosso próprio mundo conserve alguma dose de equilíbrio e sanidade.

quarta-feira, novembro 23, 2011

Rei Morto, Rei Posto

A escritora britânica Mary Renault (1905-1983) foi durante décadas a grande dama da ficção histórica de língua inglesa. Para dar uma ideia de sua importância, hoje ela é citada como influência por sujeitos como Steven Pressfield, Conn Iggulden, Simon Scarrow e outros desse calibre. Sobre ela, a crítica chegou a dizer que era capaz de escrever sobre a Grécia antiga como se nela tivesse vivido. Deve ser verdade, pois suas narrativas têm o poder de nos dar a sensação de que nós, leitores, é que estamos vivendo lá. 

Dos quatro livros da autora que li até hoje, Rei Morto, Rei Posto (no original, The King Must Die, literalmente 'O Rei Deve Morrer') é sem dúvida o meu favorito; lido na adolescência, foi relido agora por nenhum motivo em especial, a não ser a vontade de curtir novamente a história envolvente e o estilo narrativo agradavelmente trabalhado que caracteriza a autora. Suas frases são por vezes tortuosas, dizendo as coisas de maneiras não óbvias, mas sem cair num pedantismo cansativo. O texto é pontilhado por longas metáforas que lembram irresistivelmente o estilo de Homero, de quem Renault era sem dúvida uma profunda conhecedora. Este livro em particular, ambientado nos primórdios da civilização helênica, antes mesmo da Guerra de Troia, é uma versão romanceada da lenda do herói Teseu, que procura dar aos elementos míticos tradicionais uma interpretação histórica crível. 

Teseu é um dos heróis mais importantes da mitologia grega clássica. Embora seus feitos não rivalizem em número nem em grandeza com os de Hércules - de quem, segundo algumas fontes, teria sido contemporâneo -, pode-se dizer que deixou um legado bem mais importante. Sim, pode-se falar em legado, pois tudo aponta para a probabilidade de ter havido um Teseu de carne e osso, que só não se pode dizer "histórico" porque viveu antes que a escrita fosse introduzida na Grécia. Seu papel, afora muitas façanhas guerreiras, foi o de libertar os gregos do domínio cretense e unificar as diversas pequenas cidades da região da Ática num Estado forte, tendo Atenas como capital. 

Obs.: Em Rei Morto, Rei Posto há algumas menções à escrita, inclusive uma parte em que Teseu escreve do próprio punho uma carta a seu pai. Não sei dizer se isso teria sido uma falha da autora - coisa pouco provável em se tratando de alguém que tão evidentemente possuía vasto conhecimento sobre a Antiguidade - ou se apenas estaria de acordo com as informações que a arqueologia podia oferecer na época em que o livro foi escrito (década de 50). Em todo caso, isso pode ser relevado, e de modo algum tira o mérito da história. 

A narrativa de Renault é em primeira pessoa e segue a lenda de perto. Teseu, rei de Atenas e já de idade avançada, rememora sua vida, desde sua infância na cidade de Trezena, onde nasceu, neto do rei local, Piteu. A princesa Etra, mãe de Teseu, foi a única filha legítima que restou ao rei, que perdeu os outros, bem como a esposa, vitimados por uma epidemia - e filhos bastardos, embora ele os tenha em quantidade, não contam para fins de sucessão, de modo que o pequeno Teseu é o presumível herdeiro do trono. Além de princesa, Etra é uma alta sacerdotisa; nunca se casou e há quem acredite que o pai de seu filho não é outro senão Poseidon, deus do mar. Teseu, é claro, gosta dessa ideia, mas, à medida em que cresce, vai achando-a cada vez mais improvável. Embora a questão de sua paternidade vá ter implicações bem mais sérias que essa em sua vida futura, por muito tempo a coisa que mais o preocupa é o fato de ser menor que a maioria dos rapazes de sua idade, enquanto era crença geral que os filhos de deuses distinguiam-se por serem muito mais altos que os outros homens - e, na Grécia da época, todo jovem desejava ser alto, o que representava uma vantagem na maioria das modalidades atléticas, além de deixá-los mais impressionantes no campo de batalha, portando elmo, escudo e lança.

O mistério de sua origem é esclarecido quando Teseu faz 17 anos: sua mãe conta-lhe que seu pai (que ela ainda se recusa a dizer quem é) ocultou algo sob uma grande pedra, que ele, Teseu, ao atingir a idade adulta, deveria ser capaz de erguer sozinho. Se o jovem se mostrasse à altura do desafio e recuperasse o que estava escondido, ela deveria mandá-lo ao pai; caso contrário, ele poderia terminar seus dias em Trezena. E Teseu não decepciona: cumpre a tarefa não com força bruta, mas com inteligência, usando o princípio da alavanca, e encontra sob a rocha a espada e as sandálias que pertenceram a seu pai. Finalmente é chegada a hora das respostas: a mãe e o avô revelam-lhe que ele é filho de Egeu, rei de Atenas, a quem a então adolescente Etra entregou a virgindade num ato cerimonial, obedecendo à determinação de um oráculo. Na ocasião, Egeu insistiu em que, se dessa breve união resultasse um filho homem, este deveria ser mantido na ignorância de sua origem até que tivesse crescido e demonstrado sua capacidade, pois, caso se tornasse público que era seu filho, o menino correria o risco, mesmo ali em Trezena, de tornar-se um alvo para os ambiciosos parentes da casa real ateniense. 

Teseu parte para Atenas pela perigosa Estrada do Istmo, e pelo caminho elimina uma série de bandidos - essa, conforme a lenda, foi a primeira façanha a dar algum destaque a seu nome, mas Renault não entra em detalhes nem se alonga a respeito (leiam aqui sobre um certo Procusto, cuja história vale a pena conhecer). Quando Teseu chega à cidade de Elêusis, aí sim, a autora por fim o tem onde o queria desde o início. Essa cidade segue a religião antiga, a do "povo da costa", que ocupava a Grécia antes da chegada dos helenos, e por quem estes últimos parecem sentir um incômodo misto de desprezo e fascínio (posso estar enganado - se alguém puder retificar ou ratificar minha teoria, agradeço -, mas pela descrição física desse povo, mais o fato de eles chamarem a si mesmos de "mínios", suponho que fossem um ramo da civilização minoica, e, portanto, aparentados com os cretenses, embora muito menos poderosos que eles na época. Na verdade, "minoico" é um nome cunhado pelos arqueólogos, pois não se sabe como esse povo chamava a si mesmo, mas Renault naturalmente precisava designá-los de algum modo). 

A "religião antiga" mencionada é essencialmente matriarcal. A principal sacerdotisa é também a rainha, e é quem de fato governa: o rei não passa de seu marido, pouco mais que uma figura decorativa, além de um acessório indispensável se ela pretende ter filhos. É muitíssimo bem tratado e altamente honrado por todos - só que seu reinado é extremamente curto. Depois de um ano, deve ser sacrificado e substituído por outro, que se casa com a mesma rainha, e assim sucessivamente. O sacrifício anual do rei é considerado essencial para que a terra produza e as mulheres concebam. É a morte gerando a vida, e vice-versa: a serpente Ouroboros, com a cauda na boca. O círculo infinito. 

Quanto à escolha do novo rei, ela é deixada nas mãos dos deuses: será o primeiro forasteiro que entrar na cidade no dia determinado. No caso, Teseu. Suponho que para proporcionar um espetáculo melhor, ou apenas por questão de tradição local, a fórmula do sacrifício é um tanto diferente da comum. Em vez de ser colocado numa ara e ter o pescoço cortado por um sacerdote, o "antigo" rei enfrenta seu sucessor presumido numa luta até a morte. Não fica claro o que aconteceria se o primeiro vencesse; na verdade, na narração da cena, a sensação que se tem é a de que o rei se deixa vencer, como num sacrifício mesmo. Assim que ele morre, é como se jamais tivesse existido, e Teseu torna-se o novo queridinho da rainha e do povo de Elêusis - mas, mesmo com 17 anos de idade, ele mantém a perspectiva das coisas, e não esquece em momento algum que a areia na ampulheta já está correndo também para ele. 

Terei falado demais?? Então, melhor dizer que quem quiser saber de que maneira Teseu irá escapar da ratoeira real onde se enfiou terá que ler o livro. Daqui até o fim do post, abordarei alguns dos motivos da importância da figura de Teseu para a nação grega e o modo como esses pontos são abordados por Mary Renault.

Cnossos em sua glória

A Grécia foi durante séculos a civilização mais pujante do Mediterrâneo e de todo o ocidente, embora, por causa de suas divisões, nunca tenha possuído uma estatura política que igualasse suas realizações culturais - a menos que consideremos a época de Alexandre, mas, mesmo então, o que houve foi uma unificação forçada e artificial, que durou pouquíssimo tempo. De todo modo, antes dos gregos, um outro povo detinha a supremacia na região: os cretenses. 

Embora os gregos fossem conhecidos como marinheiros notáveis, os cretenses estavam ainda vários passos à frente deles nessa arte - e, numa época em que os poucos países civilizados que existiam dependiam quase completamente do tráfego marítimo para poderem interagir, dominar as rotas de navegação significava ter poder. Graças a sua invejável frota, Creta por muito tempo manteve as cidades gregas situadas na costa ou em ilhas (ou seja, quase todo o território do país!) sob um controle estreito. Por um lado, os cretenses mantinham o mar livre de piratas; por outro, cobravam pesados tributos e impunham restrições ao desenvolvimento de uma navegação independente pelos gregos. O rei de Creta, que governava de sua capital, Cnossos - sem dúvida uma das maiores e mais ricas cidades do mundo na época - era sempre chamado de Minos, o que não era um nome, e sim um título. 

Até aqui, é fato histórico. Daqui para a frente, é mito - e, se eu puder deixar aqui uma nota de protesto contra a conotação negativa que muita gente atribui a esta palavra, quero fazer isso citando um dos maiores estudiosos de mitos de todos os tempos, Joseph Campbell. As frases não devem ser exatamente assim, porque estou citando de memória, mas, em essência, dizem: "O mito é a verdade do homem, pois o homem se exprime no mito: portanto, o mito não é mentiroso. Não podemos ignorar o mito se quisermos compreender o homem" (o grifo é meu). Isto posto, vamos em frente. 

Conta-se que o rei Minos (um deles), após ter vencido disputas dinásticas para chegar ao trono, pediu a Poseidon um sinal: se seu reinado contasse com a aprovação dos deuses, que lhe aparecesse um touro branco, o qual ele prometia oferecer em sacrifício em seguida. Dito e feito: um grande e magnífico touro, branco como a neve, apareceu nos arredores do palácio, trazendo a confirmação que o rei desejava. Minos, porém, acabou desonrando sua promessa e, em vez de sacrificar aos deuses o valioso animal, manteve-o para si. Como castigo, a deusa Afrodite, a pedido de Poseidon, incitou na rainha Pasífae uma paixão insana pelo touro - paixão que ela, de alguma maneira, consumou. Dessa união não natural nasceu um monstro com corpo humano e cabeça de touro, que, embora tivesse recebido da mãe o nome de Astérion, ficou conhecido simplesmente como Minotauro, o "touro de Minos". Minos, aliás, sem dúvida pensou em mandar matar a criatura logo que nasceu, mas deve ter concluído que fazer isso atrairia ainda mais ira divina contra ele: os deuses haveriam de querer que Astérion permanecesse como um vergonhoso lembrete de seu crime. 

Logo que o Minotauro cresceu um pouco, tornou-se evidente sua natureza feroz, e, apesar de suas afinidades bovinas, estava longe de ser um herbívoro pacífico: seu alimento favorito era carne humana. Minos, então, incumbiu o famoso arquiteto Dédalo de construir um labirinto por onde Astérion pudesse perambular à vontade sem nunca achar a saída, o que foi feito. Em seguida, pensando ao mesmo tempo numa maneira de manter seu monstruoso enteado sem ter que sacrificar seu próprio povo, e em vingar a morte do filho Androgeu, que fora assassinado em Atenas, o rei determinou que, em acréscimo ao tributo anual que já lhe pagava em metais preciosos, cereais, vinho e azeite, aquela cidade, de agora em diante, deveria enviar a cada ano sete moças e sete rapazes, que seriam conduzidos ao labirinto para servir de alimento ao Minotauro. 

Essa situação já durava anos quando Teseu, tendo chegado a Atenas e sido reconhecido como filho pelo rei Egeu, decidiu que era hora de dar um basta. Ofereceu-se voluntariamente para ser uma das vítimas daquele ano, e, antes de embarcar no navio cretense, prometeu ao pai que, se voltasse vitorioso, trocaria as velas negras que a embarcação ora levava por outras brancas. 

Em Creta, a princesa Ariadne, filha de Minos e meia-irmã do Minotauro, apaixonou-se à primeira vista pelo jovem grego. Em segredo, antes que Teseu fosse para o labirinto, entregou-lhe uma espada e um novelo de lã, que, amarrado firmemente junto à porta e desenrolado à medida em que fosse avançando, lhe permitiria, depois, encontrar a saída. Teseu matou o Minotauro e embarcou de volta com seus companheiros, mas esqueceu-se de mudar as velas do navio como havia prometido. Ao avistar as velas negras aproximando-se do porto, o rei Egeu, desesperado pensando que seu filho tivesse morrido, lançou-se ao mar e morreu. Daí em diante, o mar que banha o leste da Grécia recebeu seu nome, que tem até hoje. 

Teseu teve muitas outras aventuras, desde raptar Helena de Esparta (mais tarde celebrizada como Helena de Troia) quando ela ainda era quase uma criança e ele já um homem de meia-idade, até raptar (também) Antíope, a rainha das ferozes amazonas da Ásia Menor, o que causou o lendário ataque delas contra Atenas. De Antíope, Teseu teve seu único filho legítimo, Hipólito, que protagonizaria uma autêntica tragédia, bem ao gosto dos gregos. Mas isso tudo daria (e talvez dê mesmo) assunto para mais uns três textos. Por ora, para finalizar este post, eu gostaria de chamar atenção para a realidade histórica por trás do mito do Minotauro e do labirinto.

Além de seu poderio naval, a ilha de Creta era famosa por seu gado - vacas e touros formidáveis, bem maiores e mais possantes que a raça criada pelos gregos. A figura lendária do Minotauro, que fundia homem e touro, surgiu lá, e para os cretenses tinha provavelmente um significado muito diferente do que a lenda grega mais tarde lhe daria: não um sinal de infâmia nem um monstro cruel, mas sim um símbolo de força e poder. Com essa conotação, foi adotado como uma espécie de emblema oficial pelo Estado cretense, como a águia seria mais tarde para Roma: a figura do Minotauro ornava as velas dos navios de Creta e as fachadas de seus palácios, e passou a ser associada, tanto pelos próprios cretenses quanto pelos gregos, à nação cretense em si mesma. Portanto, "matar o Minotauro" significa provavelmente que Teseu liderou os gregos numa rebelião, que derrubou o poder de Creta e transformou a ilha em possessão helênica. De fato, quem for ler a Ilíada de Homero encontrará, nessa narrativa sobre a Guerra de Troia, um personagem chamado Idomeneu, que é apresentado como rei de Creta, e é, em tudo e por tudo, um heleno. Portanto, tudo sugere que, poucas décadas depois do tempo de Teseu, Creta havia sido colonizada pelos gregos e era agora um reino helênico. O labirinto, por sua vez, pode ser uma referência ao palácio real de Cnossos, que tinha tantas salas e corredores que seria fácil perder-se dentro dele. 

Quanto ao sacrifício anual de sete moças e sete rapazes, Mary Renault adota a versão de que eles iriam na verdade participar de algo que era ao mesmo tempo parte de um ritual religioso e espetáculo popular: a Dança do Touro, na qual uma equipe de atletas - homens e mulheres jovens, de preferência pequenos, leves e ágeis - realizava uma exibição que era um misto de tourada com ginástica artística. Um touro furioso era solto na arena com os dançarinos, que, além de sobreviver, deviam dar um bom espetáculo, por meio de saltos, esquivas ágeis e assim por diante. A façanha suprema, que assegurava ao dançarino o respeito dos companheiros e a adoração da plateia, consistia em equilibrar-se plantando bananeira sobre o dorso ou os chifres do bicho. Nem é preciso dizer que o índice de mortalidade entre os Dançarinos do Touro devia ser altíssimo, de modo que, quando cada novo grupo chegava, deviam restar muito poucos do ano anterior ainda vivos. 

Há muitos outros detalhes interessantes que quem ler Rei Morto, Rei Posto e tiver algum conhecimento sobre história e mitologia gregas perceberá, e eu bem gostaria de mencionar tudo o que encontrei, mas, mesmo que quem lê este blog já haja demonstrado que não tem medo de textos longos (risos), acho que ainda assim é bom manter um pouco de moderação, então vou colocando o ponto final por agora. Creio que os livros de Mary Renault devem estar fora de catálogo no Brasil, mas não tive dificuldade em achá-los em bons sebos. E qualquer um desses livros que caia nas mãos de vocês pode ser plenamente recomendado. 

Em tempo: quando li o livro pela primeira vez, foi numa edição diferente, não lembro de que editora era, e a capa fugiu-me quase completamente da memória. O exemplar que tenho hoje foi comprado num sebo faz algum tempo e foi lançado pelo Círculo do Livro, com a capa que aparece no início deste post - capa, por sinal, péssima. Já vi chifres maiores e caras mais assustadoras num tambo de leite que visitei certa vez do que no Minotauro nela representado, e, quanto ao herói que aparece, lembra muito mais a descrição tradicional de Hércules que a de Teseu.

quarta-feira, abril 14, 2010

Cerimônias Satânicas


O título deste livro é um exemplo típico de adaptação com objetivos marketeiros, um daqueles casos em que não é ao tradutor que deve ser atribuída a culpa: o pessoal da editora que publicou a obra no Brasil deve ter achado que a tradução direta do título original, que era simplesmente The Ceremonies, não soaria forte o bastante em português (e talvez estivessem certos nesse ponto...) e lascou o "satânicas" para atiçar a curiosidade dos fãs de literatura de terror. Na verdade, não há nada de especificamente satanista no enredo deste excelente romance. Na capa, lê-se uma opinião altamente elogiosa atribuída a ninguém menos que Stephen King! Talvez não haja como checar a autenticidade de tais palavras, mas, ao chegar ao fim do livro, não é difícil acreditar que essa é uma história da qual o "home" teria gostado.

Como em muitos romances do gênero, temos aqui um prólogo enigmático, seguido de um "início da história propriamente dita" aparentemente corriqueiro e inocente. No prólogo, uma "coisa" não nomeada assume o controle da vontade de um menino que a encontra por acaso (será?) ao afastar-se da fazenda onde mora e embrenhar-se na mata, nos Estados Unidos do século XIX, e começa a "instruí-lo"... A natureza dessa "coisa" permanece misteriosa: talvez tenha origem extraterrestre, talvez seja sobrevivente de um passado pré-humano ao estilo Lovecraft, mas nada se sabe com certeza. Em qualquer caso, nada tem a ver com o Satã da tradição judaico-cristã.

No início da história propriamente dita, já "nos dias de hoje" – o que, quando o livro foi escrito, significava algum momento da década de 1980 –, conhecemos Jeremy Freirs, estudante e professor em Nova York, que, às vésperas de completar 30 anos, ganha a vida ministrando cursos livres sobre literatura e cinema, enquanto prepara uma dissertação sobre o romance gótico – é claro que Klein gosta de literatura gótica, e, a bordo dos estudos de Jeremy, demonstra possuir invejáveis conhecimentos nesse campo: reencontrei nas páginas de Cerimônias Satânicas muitos dos autores e livros mencionados por H.P. Lovecraft em seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura (para mais detalhes, consultem meu texto sobre Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino), a maioria dos quais, infelizmente, continua inacessível ao público brasileiro. Klein chega a mencionar esse próprio ensaio! Mas desviei-me do assunto.

Jeremy encontra por acaso (?), no mural da biblioteca onde faz suas pesquisas, um anúncio de aluguel de verão colocado por um casal de Gilead, localidade rural não distante de Nova York, e decide passar lá suas férias, aproveitando a tranquilidade do campo para dedicar-se a sua dissertação. O casal, Sarr (que raio de nome é esse?) e Deborah Poroth, como quase todos os moradores do lugarejo, pertence à Confraria do Redentor, uma fictícia seita cristã fundamentalista cujos membros vivem isolados do mundo moderno e ainda guardam muitos preceitos do Velho Testamento há muito considerados ultrapassados pelas denominações cristãs principais (embora Sarr fale desdenhosamente da seita Amish, está na cara que esta foi o modelo direto para Klein criar a Confraria). A mãe de Sarr é uma espécie de Sibila local, cujos poderes proféticos despertam nos membros da comunidade uma mistura de respeito e temor. E ela descende justamente dos Troet, que vêm a ser a família do menino Absolom – aquele possuído pela "coisa" mais de um século antes.

Urdindo tudo, manipulando as pessoas sem que elas percebam, arquitetando cuidadosamente as interações entre elas, está um misterioso "Velho", que, de humano, conserva a aparência e pouco mais – é um servo da "coisa", totalmente dedicado aos misteriosos desígnios dela. Não estou dando spoiler ao revelar que o Velho é o próprio Absolom, já com uns 110 anos de idade ou mais: Klein não diz isso explicitamente até bem avançado o livro, mas qualquer leitor deduziria facilmente o fato. Ele encontra um meio de aproximar Jeremy de Carol, uma jovem que trabalha na biblioteca, e os dois iniciam um romance, mas o Velho tem o maior cuidado no sentido de sabotar qualquer oportunidade que pudessem ter de chegar às "vias de fato" – pois Carol é virgem, e é da máxima importância para os planos do Velho que permaneça assim. Para poder vigiá-la de perto e conseguir que confie nele, apresenta-se no papel de um velhinho bondoso, meio caduco, mas muito culto e viajado, que a contrata como auxiliar de pesquisa para um livro que alega estar escrevendo sobre a origem obscura de certas rimas e brincadeiras infantis, muitas das quais, segundo ele, remontam a rituais pagãos pré-históricos. Aproveitando-se dessa proximidade, o Velho desenvolve com Carol uma espécie de relação de avô e neta, e vai conduzindo os atos da moça na direção que interessa a ele e à força misteriosa à qual ele serve.

Eu chegaria a dizer que o elemento sobrenatural  que, embora magistralmente tratado, ocupa uma parte surpreendentemente pequena do livro – não é o principal em The Ceremonies. A história chama bem mais atenção por suas fugidias mas fascinantes referências a tradições antigas que continuam bem mais presentes no nosso dia-a-dia do que normalmente imaginamos (e bem mais do que muitos de nós gostam de acreditar) e pelo confronto entre visões de mundo diferentes – muitas vezes, dentro de uma mesma cabeça. Sarr Poroth, o jovem fazendeiro, membro fervoroso da Confraria do Redentor, pasmem, já foi estudante universitário fora da comunidade; trata-se de um homem de certa instrução, que voluntariamente renunciou ao mundo da cultura e do conhecimento para dedicar-se ao trabalho da terra (que ele considera "a única ocupação digna" que conhece) e voltar a viver no mundo simples, sem meios-tons, oferecido pela visão fundamentalista de sua seita: Deus está no céu e a Seus servos compete cultivar os Seus campos e louvá-Lo – qualquer coisa que vá além disso é pecado e mal. Uma ojeriza toda especial é reservada pelos Irmãos ao trabalho intelectual, que, na verdade, eles nem mesmo consideram trabalho: ficar sentado lendo e escrevendo, para eles, não passa de um disfarce para o pecado do ócio. Trabalho só é trabalho se deixar um homem suado e extenuado ao final do dia e lhe der calos nas mãos. De modo que Jeremy, trancado em seu anexo na fazenda dos Poroth, lidando o tempo todo com livros e papéis, torna-se alvo de desconfiança e desprezo generalizados na comunidade.

Mesmo assim, Sarr não consegue apagar a marca que o fato de ter tido estudo deixou nele. Uma das passagens mais interessantes do livro é uma na qual todos os seus vizinhos próximos, com as respectivas famílias, comparecem para ajudá-lo no plantio do milho – que é realizado à noite, com muitos toques ritualísticos que os Irmãos não percebem: simplesmente receberam a fórmula por tradição e não lhes parece existir outra maneira de fazer a coisa. A horas tantas (isso também faz parte da tradição), todos interrompem o trabalho e reúnem-se em torno de uma mesa ao ar livre para devorar um gigantesco pão de milho em forma de estrela de cinco pontas, maior que um homem. Enquanto os outros participam alegremente do trabalho e da refeição, sem se questionarem sobre coisa alguma, Sarr, se lembra do que leu na biblioteca da universidade sobre a origem desse costume: a estrela de cinco pontas é uma representação estilizada de um corpo humano, o da vítima sacrificial que outrora era oferecida aos deuses para propiciar uma boa colheita. Inquieta-o um pouco pensar que todos aqueles bons cristãos ali estão, sem saber, participando do que já foi em tempos um sangrento ritual pagão. Ter mais cultura significa ter consciência de muitas coisas que escapam às pessoas sem instrução – e isso nem sempre é agradável: pode, por vezes, ser bem perturbador. Sarr preferiria poder apagar da própria mente muitas coisas que aprendeu e voltar a partilhar a paz da ignorância com seus irmãos de seita, mas isso não está em seu poder. Por causa dessa mesma dualidade, ele é provavelmente o personagem mais complexo do livro, às vezes mostrando-se surpreendentemente inteligente e tolerante em questões religiosas ("A trovoada era uma colisão de moléculas, e também a voz de Deus; ambas deviam ser verdade. [...] Deus atende por muitos nomes diferentes e é adorado de muitas maneiras. Mas Ele é sempre o mesmo Deus. [...] A princípio [...] perturbavam-me as muitas e diferentes formas que Deus podia tomar. Mas, no final, descobri que podia voltar a acreditar com ainda mais fé do que tinha antes, porque consegui compreender que, mesmo quando Ele tinha nomes diferentes, era sempre o mesmo Deus que eu conhecia"), e outras, absurdamente ignorante em relação a essas mesmas questões ("Olhou para sua tia inconsciente [...]. 'Ela vai morrer, se não a levaram para um hospital...' Mas essa providência fora sugestão do demônio [...], remanescente dos anos que ele passara no perverso mundo exterior. Sabia agora que a oração funcionava tão bem quanto os instrumentos de um cirurgião"). Esse é o exemplo mais flagrante, mas de modo algum o único, da característica fascinante que tem The Ceremonies de conseguir oferecer uma multiplicidade de pontos de vista. Os personagens principais parecem ser Jeremy e Carol, mas a cada passagem temos uma visão diferente dos mesmos fatos, através dos olhos de um personagem diferente: além dos dois, também Sarr, Deborah, o Velho (cujos pensamentos são assustadoramente objetivos e desprovidos de emoção) e até figuras de pouca importância como Rochelle, a colega de quarto de Carol, e um ou outro dos Irmãos da Confraria, todos dão a sua versão das coisas.

Klein conseguiu a proeza de escrever um livro que, mesmo tão longo (mais de 600 páginas), não deixa o leitor impaciente em momento algum – não é como em outros livros extensos em que a gente enfrenta algumas partes chatas porque outras são interessantes: aqui, até mesmo o que não é (ou não parece) essencial para a trama tem o seu sabor próprio, e o estilo é sempre agradabilíssimo. Os personagens são convincentes e bem construídos, enfim, são pessoas de verdade, às quais o leitor consegue se afeiçoar, e, embora haja longos trechos com pouquíssimo ou nenhum teor sobrenatural, quando ele aparece, é de uma forma que o leitor dificilmente esquecerá. O destino do mundo está em jogo, e, de certa forma, o próprio fato de isso não ser aparente, nem do conhecimento da maioria dos personagens, aumenta o seu potencial ameaçador, ainda mais porque a tênue esperança que existe está nas mãos de pessoas comuns, que nem mesmo sabem com o que estão lidando.

Não será fácil achá-lo, já que trata-se de uma edição já antiga e, pelo menos até onde sei, não tem sido reimpresso, mas a quem tiver a sorte de encontrar The Ceremonies em seu sebo preferido, aconselho não pensar duas vezes: o pequeno investimento irá render muitas horas de leitura absorvente.