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sexta-feira, junho 19, 2020

Manual Politicamente Incorreto da Civilização Ocidental

Caso queira ser chamado de simplório ou de repressor perverso, a maneira mais rápida é reconhecer que o mal realmente existe. No relativismo atual, a única coisa errada é dizer que algo é errado. (Anthony Esolen)

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Não invoco nenhum mérito pessoal nisso (não decorre de nada que eu tenha feito conscientemente – me parece algo natural, como o formato do meu nariz), mas sempre fui atraído pela História, sempre desejei conhecer os fatos do passado, como eles estavam interligados uns com os outros e como influenciavam o presente. Sempre tive a curiosidade de saber como os povos de outros tempos viviam, lutavam e amavam – e, mais importante, saber o que eles amavam e pelo que lutavam. Sempre compreendi a dificuldade, e também a necessidade indispensável, de tentar "pensar com a cabeça da época", em vez de simplesmente aplicar os padrões atuais à realidade de séculos passados, como a maioria das pessoas faz sem perceber. E, sinceramente, não entendo como é que tanta gente vê a História como uma coisa estática, sem vida, tediosa, algo que, até onde lhes importa, se resume a decorar meia dúzia de nomes e datas para fazer uma prova, receber uma nota, e depois esquecer tudo. Tampouco consigo ver sentido naquelas duas frases repetidas à exaustão (e geralmente ditas juntas) por milhões de estudantes e por outros que já não o são há um bom tempo: "Estudar História é uma perda de tempo! Pra que eu vou usar isso?"

Para os poucos que compartilham essa minha vontade de saber por que o mundo e a humanidade são como são, e a quem devemos aquilo que temos e somos (o que traz junto o peso de uma grande responsa sobre os nossos ombros), livros como este são um achado. O autor Anthony Esolen promove nestas páginas uma extensa viagem às raízes do ocidente, além de buscar respostas para as questões que estão na cabeça de todo intelectual que, mesmo nesse desvairado século XXI, ainda insiste em prezar esse legado inestimável de arte, filosofia e princípios que recebemos de nossos antecessores. Dessas questões, a primeira que vem à mente nestes tempos é: a quem interessa a destruição sistemática de todos os valores que serviram de alicerce à nossa civilização – e por quê? Questão essa que levanta imediatamente uma outra: e quando esse mundo, que direta ou indiretamente nos deu tudo o que temos (pelo menos, tudo de bom e digno) estiver definitivamente demolido, ele será substituído… pelo quê? O livro de Esolen também discute possíveis maneiras de resistir, mesmo que nossa resistência seja como a dos poloneses no Levante de Varsóvia: há momentos em que devemos lutar porque essa é a coisa certa a se fazer, mesmo que a esperança de vitória pareça ser nenhuma.

Como sabemos, a Europa, e, por consequência, todo o ocidente, nasceu do tríplice encontro entre a filosofia grega, o direito romano e a fé judaico-cristã, e Esolen faz o percurso lógico, dedicando a cada uma dessas bases um capítulo logo no começo do livro. O mais interessante é que ele não se limita a discorrer sobre a "coisa em si": em vez de focar só na filosofia grega, por exemplo, oferece-nos um painel (bem resumido, é claro) do amadurecimento da civilização helênica, que tornou possível o nascimento dessa filosofia, com copiosas indicações bibliográficas para quem quiser se aprofundar na matéria, embora, infelizmente, a maioria dos livros que ele indica não tenha edição brasileira. Qualquer pessoa com um pingo de cultura sabe que a Grécia antiga foi o berço da democracia, é claro – mas Esolen nos mostra que, por mais que a democracia seja uma coisa magnífica, já naquela época, como hoje, ela, sozinha, não era e não é garantia de nada. Liberdade é um bonito conceito, mas, se entendida simplesmente como "cada um faz o que quer", leva à libertinagem e ao caos. O homem só é verdadeiramente livre quando compreende que a liberdade não vem de graça: ela traz consigo deveres e responsabilidades, e, se ele não se mostrar à altura, desonra-se perante si mesmo e perante seus pares – isso para não mencionar outras consequências piores que o deslustro de sua honra, piores por poderem afetar seus filhos, netos e demais descendentes, caso esse homem livre de que estamos falando falhe em fazer o que tempos de crise exigem dele. Isso explica, por exemplo, o que manteve os soldados de Leônidas, homens livres, firmes em seus postos mesmo diante da morte certa, numa situação na qual os soldados-escravos do rei da Pérsia já teriam debandado, ou o que levava um legionário romano a dar a vida para impedir que o inimigo se apossasse da águia de sua legião. Como Esolen diz em algum lugar, essas civilizações só alcançaram o que alcançaram porque dispunham de homens assim – homens que temiam menos a morte que a desonra. Graças, em grande parte, ao que a Grécia e Roma nos legaram, foi possível construir uma civilização na qual um sacrifício tão drástico raramente é necessário, mas, hoje, cabe a nós lutar outro tipo de batalha. Em nossos dias, a guerra é cultural, o inimigo é ardiloso e sem escrúpulos e, como dizia Thomas Jefferson, o preço da liberdade é a vigilância constante.

Falei em liberdade porque estava pensando em democracia; as duas não são a mesma coisa, é claro, mas estão estreitamente relacionadas, e, assim como a liberdade precisa ser merecida, a democracia traz em si alguns pressupostos: o povo precisa ter um nível mínimo de educação e de virtudes cívicas para estar em condições de fazer bom uso do poder que esse sistema coloca em suas mãos. O que nos deixa (a nós, brasileiros) numa sinuca de bico que não preciso explicar. Bem, vamos adiante.

Boa parte do Manual Politicamente Incorreto da Civilização Ocidental é dedicada a desmontar o mito politicamente correto que pinta a Idade Média como a "idade das trevas" ou até mesmo a "noite dos mil anos" (esta última só pode ter sido cunhada por algum historiador francês, provavelmente filiado ao Iluminismo). A origem desse mito é fácil de entender: a Idade Média foi o período de maior poder e influência da Igreja Católica – portanto, por razões ideológicas, é da mais alta importância para os politicamente corretos que ela tenha sido um período obscurantista e miserável, quase sem nenhum progresso. É claro que essa noção é muito mais antiga que esses movimentos lacradores que hoje tentam com tanto empenho tornar a nossa vida insuportável, mas deve-se àqueles que, poderíamos dizer, foram os ancestrais ideológicos desses movimentos: os iluministas do século XVIII (sempre eles). Esolen nos toma pela mão para um passeio instrutivo no qual mostra que coisas como as catedrais, palácios e até fortalezas militares espalhadas pela Europa são testemunhas de um progresso técnico notável nos campos da engenharia e da arquitetura, o que não teria sido possível numa era culturalmente estagnada; que os primeiros hospitais e universidades surgiram precisamente na Idade Média e por iniciativa da Igreja; que, ainda que as pessoas da época estivessem longe de ter uma vida fácil, ela também não era tão horrível quanto quiseram nos fazer acreditar. O engraçado (ou revoltante, depende de como você escolha encarar) é ver que, à medida que mais e mais descobertas de evidências arqueológicas e documentos históricos vão mostrando, para além de qualquer dúvida, que a Idade Média trouxe muitos e importantes progressos em muitas áreas, a mídia vai mudando seu discurso: diante da impossibilidade de negar que esses progressos aconteceram, ela passa a insinuar que eles foram alcançados apesar da Igreja Católica, e não graças a ela. Não que isso surpreenda a alguém, considerando o habitual modus operandi da mídia e dos grupos que a controlam, e o tipo de opinião que eles tentam plantar na cabeça da população pouco instruída – e, o que é pior, daquela parte da população que teve alguma instrução, mas não enxerga o quão ideológica e enviesada ela foi. O resultado disso, é claro, é que essas pessoas se julgam altamente "críticas" e "conscientes", quando na verdade tudo o que estão fazendo é engolir um discurso que receberam pronto, sem questionar nada, ir atrás da maioria e repetir as opiniões que as deixam "bem na foto".

Você certamente conhece o relato padrão da Renascença. Os plebeus se libertaram da tirania da Igreja, e – recém-libertos – tornaram-se mais felizes e sábios. Grandes artistas, escritores e pensadores, livres para se concentrar em algo além da fé empoeirada, criaram a maior revolução artística, filosófica e cultural já vista pela Europa. A Renascença, em suma, nos é vendida como uma rejeição da Idade Média e o glorioso triunfo do secularismo. (…) Todas essas formulações servem às finalidades de nossos dias. Denigrem a religião, exaltam a modernidade e permitem que os secularistas exijam o crédito pelo florescimento da criatividade. Elas também possuem a virtude da simplicidade. O absurdo também é simples. (p. 166)

Impossível não concordar, até porque a estratégia da mídia não tem muito como fugir da obviedade nesse particular: quando você está tentando vender uma versão tendenciosa, ela não funciona se não for óbvia. Logo, se a Idade Média era ruim por causa da influência da Igreja, a Renascença (e notem como até esse nome já está carregado de ideologia), por ter, alegadamente, rompido com a Idade Média, só podia ser boa. E não se trata aqui de negar as maravilhosas realizações que os artistas desse período alcançaram nos campos das artes plásticas e da música, principalmente, nem os progressos científicos que também ocorreram; afinal, a Renascença nos deu Leonardo da Vinci, que, só ele, já teria bastado para conferir relevância a essa época, mesmo que tivesse sido o seu único expoente importante – e não foi, aliás longe disso. Acontece que essa suposta ruptura com a Idade Média (e, por conseguinte, com a fé cristã) é quase sempre muito exagerada por conta do viés ideológico de quem está contando a história; em muitos casos, se corretamente examinadas, as grandes realizações renascentistas foram muito mais um desenvolvimento natural do que já vinha sendo feito durante a Idade Média do que um grito de independência em relação a ela. Por outro lado, é um engano achar que houve progresso em todas as áreas. Houve o surgimento de muitas obras incríveis, como já dito, nas artes plásticas (pintura, escultura), na música, além de avanços nas ciências naturais etc., mas o que dizer, por exemplo, da filosofia? Na Idade Média tivemos uma vasta e rica tradição filosófica (de base cristã), iniciada por Santo Agostinho e que encontrou sua coroação com São Tomás de Aquino, que conciliou de forma brilhante o pensamento de Aristóteles com a teologia cristã. Na Renascença, o que tivemos? Maquiavel? A comparação fala por si.

(É fato que Santo Agostinho, que viveu de 354 a 430, ainda pertence, cronologicamente, à Antiguidade, mas faz sentido considerá-lo um dos fundadores da filosofia medieval, devido à enorme influência que teve nos séculos seguintes e ao fato de que viveu apenas algumas décadas antes da data tradicionalmente considerada como a da transição da Idade Antiga para a Média, com a queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476.)

Vou admitir, por uma questão de honestidade intelectual, que por vezes, ao longo do livro, Esolen parece apoiar-se um pouco demais em sua fé católica para embasar seus pontos – e quem está dizendo isso é também um católico devoto. Se o objetivo do livro é defender as bases da civilização ocidental contra os ataques orquestrados pelos movimentos "progressistas" do nosso tempo, a meu ver o autor deveria fazê-lo de forma que soasse convincente para qualquer leitor, independentemente de sua fé ou da falta dela. Você pode ser um ateu, mas se, acima de tudo, for intelectualmente honesto (e não tiver se rendido à lavagem cerebral da mídia), não deverá ter problema em reconhecer que manter de pé a civilização que a Igreja Católica tornou possível seria benéfico para a humanidade de maneira geral, quer no campo cultural, social ou espiritual (e se você, como ateu, não gostar da palavra espiritual, pode substituí-la por "psicológico"; não é bem o que eu queria dizer, mas me falta palavra melhor – em todo caso, estou me referindo à saúde mental média da população do ocidente). Demolir as bases da nossa cultura e ensinar às novas gerações que não há ordem alguma no universo, muito menos algum sentido, e que o bem e o mal não passam de construções sociais, não vai criar um mundo mais livre e feliz; vai criar um mundo cheio de gente frívola, sem objetivos e com uma enorme tendência à depressão, às drogas e ao suicídio. Isso é algo que deveria ser evidente para qualquer pessoa razoável, fosse ela religiosa ou não. Infelizmente, o mundo sempre esteve em falta de pessoas razoáveis, e hoje não é diferente, com o agravante de que as facilidades de comunicação que a tecnologia trouxe, agora permitem que doidos de toda espécie arrastem para o seu lado multidões de jovens e de pessoas influenciáveis em geral, e que movimentos políticos com intenções escusas se aproveitem disso. Esolen estaria alcançando seus objetivos de forma bem mais eficiente se convencesse seu leitor de tudo isso sem precisar antes fazê-lo compartilhar de suas próprias convicções de fé – mas não o culpo, pois sei o quanto isso é difícil, ainda que os fatos e os exemplos históricos estejam aí à vista de todos, porque a mentalidade progressista já prendeu seus antolhos na cara de muita gente, e removê-los não é tarefa fácil.

A primeira vez que ouvi falar em "politicamente correto" foi durante os anos 90, e não dá para dizer que propriamente tenha ouvido falar; na verdade li sobre o assunto, numa revista (acho que era a Veja, mas não posso dar certeza) que folheava aleatoriamente na casa de alguém ou na sala de espera de um consultório qualquer – não lembro os detalhes. O texto era uma resenha sobre o livro Contos de Fadas Politicamente Corretos, de James Finn Garner (é claro que eu não lembrava o nome do autor também: procurei agora na internet), que, por sua vez, tinha o claro objetivo de ridicularizar a moda que estava então se popularizando nas universidades americanas, consistindo em fazer todo o esforço para purgar a linguagem de qualquer traço de racismo, sexismo, culturalismo, preconceito contra portadores de qualquer tipo de deficiência, e por aí afora… e de tudo o que as cabeças paranoicas e ultrassensíveis dos adeptos dessa ideologia entendessem como sendo qualquer uma dessas coisas, mesmo que o resultado fosse esquisitíssimo e, não raro, ridículo. Na prática, aplicado aos contos de fadas, isso gerou títulos como A Jovem de Origem Caucasiana e Seus Sete Amigos Prejudicados Verticalmente (para quem não entendeu, Branca de Neve e os Sete Anões). Nunca cheguei a ler o próprio livro, mas é fácil imaginar que a reação de quem o lesse seria, muito provavelmente, aquela pretendida pelo autor: dar risada. Naquele tempo, ainda parecia mais ou menos seguro confiar que essa "nova linguagem" seria encarada pela grande maioria das pessoas exatamente como aquilo que era – uma completa idiotice. Só que não era uma idiotice aleatória, e sim dotada de método e objetivo. Em 2020, em meio a notícias a respeito de escolas que estão adotando oficialmente o "gênero neutro" no ensino da língua portuguesa, fica bem mais difícil achar graça em tais coisas. "Politicamente correto", hoje, engloba muito mais que linguagem, virou designação de toda uma mentalidade que basicamente busca realizar o sonho dos marxistas mais radicais de décadas passadas: arrasar por completo a cultura e a sociedade existentes, para construir outras novas sobre as suas ruínas. Para conseguir isso, usa-se a mídia, que manipula informações de modo a moldar a opinião pública da maneira que mais favoreça esse objetivo, e a educação "moderna", que trata de inculcar cada vez mais cedo nas mentes de crianças e jovens a ojeriza a todos os valores tradicionais  (em especial religião e família) e a crença de que não existe bem ou mal, certo ou errado, de que tudo é relativo, maleável, questão de opinião e ponto de vista… E, embora tudo seja questão de opinião, só determinadas opiniões é que são aceitáveis. Agora é possível ver o que havia por trás da tal linguagem politicamente correta que nos arrancava risos há alguns anos: as palavras podem não ter poder sobre a realidade objetiva, mas têm poder sobre as mentes – o que, a longo prazo, vem a dar no mesmo. George Orwell, ao descrever a novilíngua em seu 1984, profetizou o que estamos vendo na prática hoje.

É revelador observar como, nessa nova cultura que tanto insiste em justiça e igualdade, tudo é seletivo, tudo tem dois pesos e duas medidas. O caso da linguagem apenas exemplifica o que acontece em todos os campos. A fala politicamente correta pisa em ovos para não deixar passar nada que possa soar longinquamente ofensivo a qualquer uma das assim chamadas minorias (você deve dizer "afrodescendente", porque “negro”, supostamente, traz conotações pejorativas), mas faz questão de ser o mais brutal e odiosa possível quando se trata de atacar o "outro lado": a expressão para "marido" é "estuprador legalizado". Foram inventadas até palavras e expressões totalmente novas, mas com objetivos óbvios, como "descolonização do corpo", que significa tornar-se lésbica… Porque, segundo o feminismo radical que acolheu de braços abertos a cultura politicamente correta, toda relação heterossexual é um estupro (elas afirmam isso com todas as letras), e, portanto, ser lésbica não é apenas uma característica que algumas pessoas apresentam e que deve ser respeitada: é uma escolha, um ato político – um ato de "libertação". Não podia ser mais evidente a intenção de pulverizar a família tradicional, que costuma ser um empecilho à implantação de regimes totalitários (com uma ou outra exceção, como o nazismo, que conseguiu, de certa forma, instrumentalizá-la). O mesmo com a religião: o “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, proferido por Jesus Cristo, deixou claro que há espaços na vida do indivíduo, e mesmo da sociedade, nos quais o Estado não deve interferir – ou seja, regimes totalitários são intrinsecamente maus e errados. Não causa surpresa, portanto, que os politicamente corretos de todas as vertentes tenham elegido o cristianismo como inimigo número um e alvo preferencial, e isso apesar de defenderem com tanto zelo (da boca para fora) a liberdade individual. No mundo de hoje, é opinião geral que toda pessoa deve ser livre para professar e praticar qualquer fé – contanto que não seja cristã. É malvisto criticar, ainda que moderadamente, o budismo, o islamismo ou qualquer forma de crença indígena/aborígine (é intolerância!), mas tudo bem dizer qualquer absurdo contra Deus, Jesus ou a Igreja (aí é liberdade de expressão). Há muito, mas muito objetivo por trás de tudo isso. O politicamente correto não é mais (se é que alguma vez o foi) um instrumento para proteger minorias; hoje, ele nada mais é que um meio que movimentos políticos usam para arrebanhar essas minorias – que, em termos de números, são na verdade a maioria – para usar como massa de manobra e, de quebra, calar quem discorda. Muito deste parágrafo e do anterior são observações minhas, aproveitando um ou dois ganchos fornecidos no livro de Esolen.

O capítulo VIII, já próximo do final do livro, intitula-se O Século XIX: o Homem é um Deus; o Homem é uma Besta, e inclui reflexões sobre mais de um ponto interessante. Primeiro, o que lhe dá título – no século XIX, impulsionada pelo romantismo, instaurou-se uma tendência de endeusar a natureza, o que, por sua vez, abriria caminho para a divinização do homem, que ganhou um porta-voz em Friedrich Nietzsche (1844-1900). Não que o romantismo, de maneira geral, fosse particularmente propenso ao ateísmo – muitos de seus expoentes eram cristãos, e mesmo os que não o eram, geralmente cultivavam alguma forma de espiritualidade –, mas a ênfase que ele punha nos sentimentos, no "mundo interior" de cada um, na coisa subjetiva, levou muitos (não todos, nem a maioria, mas muitos) a uma tendência perigosa para o individualismo, e daí para o ateísmo o caminho costuma ser curto. Uma vez que se admita que não há Deus, os próximos passos são previsíveis. O ideal do comportamento humano seria que o simples fato de compreendermos o que é certo e o que é errado fosse suficiente para nos levar a buscar o primeiro e evitar o segundo – porque isso é o correto a se fazer e pronto, sem necessidade de qualquer promessa de recompensa ou de castigo. Mas, repito, isso seria o ideal. Na prática, o ser humano não é assim. Se ele achar que ninguém nunca irá lhe pedir contas do que andou fazendo, quase sempre agirá conforme suas inclinações o inspirarem, fará o que tiver vontade sem se importar com quem prejudica. Ou seja, como escreveu Dostoiévski de forma tão concisa e certeira, "se Deus não existe, tudo é permitido". O homem fica livre (pelo menos, tem a impressão de que isso é liberdade) para agir ao sabor dos impulsos, deixar-se conduzir unicamente por seus instintos. Esolen exemplifica citando certas "comunidades alternativas" que surgiram na Europa no século XIX, nas quais se praticava o assim chamado amor livre. "O homem é um deus, o homem é uma besta (no sentido de animal ou fera); o homem é tudo, menos um homem."

O último capítulo, O Século XX: um Século de Sangue é dedicado a mostrar como as bases do ocidente foram sendo lentamente (ou nem tão lentamente assim) solapadas ao longo do século passado, por muitos e variados meios. A crescente intromissão do Estado na vida do indivíduo levou ao enfraquecimento da autonomia da família e dos laços entre seus membros; hoje em dia, sob o pretexto de proteger as crianças contra abusos, vem-se tirando dos pais, cada vez mais, o direito de dar a seus filhos o tipo de educação que julgarem melhor. A revolta infantiloide da maior parte da comunidade artística contra as convenções "burguesas" da arte clássica mudou as coisas, e, na minha opinião, não foi para melhor: achar que o objetivo da arte deve ser a beleza é considerado agora um ponto de vista míope e atrasado, ou até mesmo elitista – e quem contraria essa corrente é sistematicamente boicotado. O poder que a arte – aí incluídas não apenas as artes plásticas, mas também a literatura, a música e assim por diante – exerce sobre a mente do indivíduo e, por consequência, sobre a sociedade, é subestimado em muitos círculos, mas parece que o grupo dos que se interessam pela implosão da cultura ocidental o conhece muito bem. A análise de Esolen a respeito disso é elucidativa e perturbadora.

Como uma observação final sobre o livro, quero registrar que, tal como no único outro Manual Politicamente Incorreto que já tinha lido (ver aqui), senti o peso de um ponto de vista fortemente norte-americano, em especial quando o autor se alonga por páginas e mais páginas que pouco dizem aos não-estadunidenses, por abordarem a história dos EUA – da qual, sem dúvida, seria útil termos um conhecimento maior – ou aspectos do cotidiano daquele país, muito descolados da nossa realidade. Mesmo assim, o livro é valioso e importante, por acrescentar muitos conhecimentos e fornecer insights aos que desejam fazer a sua parte, por menor que seja, no esforço de resistência contra a demolição sistemática que vem sendo empreendida contra a nossa civilização.

domingo, setembro 10, 2017

Aléxandros: O Sonho de Olympias

Até que outro livro me leve a mudar de ideia, considero a trilogia Aléxandros como o melhor trabalho de Valerio Massimo Manfredi, pelo menos na parte que se refere ao entretenimento: por alguma razão, aqui os diálogos não sofrem daquela certa rigidez pouco natural, nem as cenas de ação, do andamento arrastado que prejudica partes de suas outras obras. Como resultado, a leitura flui tão fácil que, quando nos damos conta, já percorremos os três volumes quase como se fossem um.

Muito disso deve-se ao carisma da própria figura central da trilogia, um homem absolutamente único na História, por várias razões. Como já deve estar mais ou menos óbvio até para quem não sabe nada sobre a obra, o Aléxandros do título (com tônica no é e o x pronunciado ks) é ele mesmo: Alexandre III da Macedônia, que divide com um escasso punhado de outros vultos históricos a rara distinção de ser conhecido como "o Grande". Mas não se preocupem, pois ele só é chamado assim em alguns trechos onde o autor introduz breves falas em grego; durante o resto do tempo, é Alexandre mesmo.

Poderíamos dizer que Alexandre deve ter ganho em algum tipo de loteria por ocasião de seu nascimento, considerando a grandiosa combinação de circunstâncias que permitiu que ele se tornasse aquilo que foi. Não há a menor dúvida de que tinha um conjunto raro de qualidades: inteligência, coragem, carisma pessoal, empatia, talento para uma vasta e diversificada gama de atividades, e, não menos importante, uma energia aparentemente inesgotável. Em adição a tudo isso, nasceu de um pai e de uma mãe que, cada um por suas próprias razões, tinham o máximo interesse em proporcionar-lhe a melhor educação possível – e dispunham de amplos meios para tanto. Por fim, Alexandre nasceu no lugar certo e no momento (histórico) exato. Em resumo, ele tinha tudo para dar certo, mas isso não diminui nem um pouco seus méritos individuais em tudo o que realizou durante sua curta e extraordinária vida.

A relação dos macedônios com a Grécia, ao tempo do nascimento e infância de Alexandre, era semelhante à dos romanos cerca de um século e meio depois: uma admiração não correspondida de um lado, um desprezo mesclado de temor do outro. Havia um desejo generalizado, por parte da classe mais instruída da Macedônia (aí incluídas a nobreza e a realeza) de que o país se integrasse ao mundo helênico, beneficiando-se de seus avanços sociais e políticos e de sua cultura; já os gregos desprezavam seus vizinhos do norte, que tachavam de bárbaros, porque, embora fossem muito próximos deles – tinham a mesma origem étnica, a mesma religião, e uma língua muito parecida –, os macedônios eram um povo rústico e inculto, essencialmente pastores das montanhas. Não deixava de ser uma ingratidão, de certa forma, pois, se não houvesse a Macedônia, a Grécia estaria diretamente exposta aos ataques dos verdadeiros bárbaros – os povos eslavos de além dos Bálcãs –, e isso era a última coisa de que ela precisava, considerando que já penava para resistir às intermitentes tentativas de invasão por parte do Império Persa. O rei Filipe II (r. 359-336 a.C.), pai de Alexandre, via claramente a necessidade de promover essa integração, e as vantagens que isso traria ao seu reino, não só do ponto de vista cultural, mas também político e estratégico. Essa, para ele, era a parte mais importante de sua missão como rei; porém, e também à semelhança dos romanos, Filipe e sua gente tinham como lema que "admiração é admiração, guerra e poder à parte". Já que a Grécia não estava disposta a abraçar a Macedônia como país irmão, seria obrigada a respeitá-la pela sua força militar.


Injustamente relegado em muitas crônicas históricas ao papel secundário de "pai de Alexandre", Filipe foi um rei astuto, notável tanto por sua habilidade política quanto pelo talento militar. Subjugou ou forjou alianças com vários povos vizinhos, anexou as cidades gregas da costa do mar Adriático (entre outras) e reformou completamente o exército medíocre que herdara do pai, fazendo dele uma força bélica que não conheceria rival até o surgimento das legiões romanas. Filipe, na verdade, "não era" para ter sido rei, já que tinha dois irmãos mais velhos, que reinaram durante curtos períodos: Alexandre II (r. 370-368 a.C.) e Pérdicas III (r. 365-359 a.C.); o primeiro foi assassinado, e o outro morreu em combate. Com 14 anos de idade, o então príncipe Filipe foi entregue como refém a Tebas (a Tebas grega: não confundir com a cidade egípcia de mesmo nome), e por quatro anos viveu na casa de Epaminondas, o maior general daquela cidade, com quem muito aprendeu; mal imaginava o general que estava educando o futuro pai daquele que riscaria sua cidade do mapa. Mais tarde, de volta à pátria e já ocupando o trono, Filipe faria excelente uso do que aprendera em Tebas, mas a maioria dos historiadores está de acordo em que a maior contribuição que deu para fazer do exército macedônio o mais temido do mundo foi mérito exclusivamente seu: é a Filipe que se atribui a invenção da sarissa. Nerds de história militar, preparem-se para algo interessante. O resto de vocês talvez prefira pular os próximos dois parágrafos (risos).

O que Filipe fez, de certa forma, foi reinventar a falange, que vinha sendo a espinha dorsal dos exércitos gregos já fazia séculos. Substituiu a tradicional dórica, uma sólida lança com dois a três metros de comprimento, pela sarissa, que podia medir até o dobro disso (!), com um fuste feito de madeiras selecionadas, geralmente corniso, tratadas com cera de abelha para máxima resistência e uma certa maleabilidade. Numa mesma unidade, os soldados portavam lanças de comprimentos variados: os das fileiras da frente tinham as mais curtas, e o comprimento ia aumentando gradativamente em direção à retaguarda. Em vez de lutarem ombro a ombro numa formação compacta, criando uma parede de escudos, como fazia a falange tradicional, os soldados da infantaria pesada macedônia mantinham entre si um espaço suficiente para passarem as enormes lanças dos companheiros das fileiras de trás. Com isso, as cabeças das lanças de todas as fileiras podiam ser alinhadas, formando uma verdadeira barragem de pontas afiadas que tornava a falange macedônica praticamente invulnerável a ataques frontais. Seu ponto fraco eram os flancos, que Filipe tratou de guarnecer com tropas auxiliares de infantaria leve, arqueiros e fundibulários. Também faziam parte de sua máquina de guerra duas poderosas alas de cavalaria pesada: os Hetairoi ('Companheiros'), oriundos da nobreza macedônia, e os Tessalônicos, recrutados na região grega da Tessália, aliada da Macedônia e famosa como a terra dos melhores cavalos do mundo. Essas alas eram especialmente mortíferas por combinarem mobilidade com um tremendo poder de choque; Filipe dizia que a falange era uma bigorna, e a cavalaria, um martelo.

Ainda a respeito da falange, foram necessárias algumas outras adaptações, das quais a mais visível foi a redução do tamanho do escudo: uma sarissa era bastante pesada, com até cinco ou seis quilos, e precisava ser manejada com as duas mãos, o que tornava inviável ao soldado portar o enorme e pesado escudo hoplon; foi adotado um escudo um pouco menor (embora ainda muito maior que o da infantaria leve), o que tinha o seu custo em termos de proteção individual, mas isso era equilibrado pelo fato de que, na nova maneira de combater, havia boas probabilidades de que o soldado não precisasse engajar-se em luta corpo a corpo com o inimigo. É curioso notar que, como uma lança de seis metros de comprimento tinha uma inevitável tendência de apontar para baixo quando empunhada, as sarissas mais longas, as das fileiras de trás, eram providas de um contrapeso na extremidade do cabo, como mostrado na ilustração. Essa arma inovadora, combinada à tática da frente oblíqua (também chamada ordem oblíqua), aprendida com Epaminondas, deu a Filipe uma série de vitórias memoráveis, e Alexandre, mais tarde, também se mostrou um mestre na utilização desses dois trunfos. O sonho de Filipe (para cuja realização esse poderoso exército seria uma ferramenta importante) era criar uma liga reunindo todas as principais cidades-estado gregas, pondo fim à interminável história de conflitos entre elas, e então, à frente de uma força militar formada por macedônios e gregos, invadir a Ásia e desferir um golpe mortal direto no coração do Império Persa, aniquilando de uma vez por todas o inimigo que já ameaçava o mundo helênico há tanto tempo. Uma tal façanha, sem a menor dúvida, gravaria seu nome para sempre nas páginas da História.

Dos assuntos militares para os dinásticos… Olímpia (que Manfredi chama de Olympias), mãe de Alexandre, era uma princesa do Épiro, pequeno reino vizinho da Macedônia, pouco mais que uma cordilheira montanhosa à beira do mar Jônico. Foi a quarta esposa de Filipe (não, ele não tinha enviuvado três vezes: mantinha todas elas simultaneamente, para não falar em mais algumas concubinas), e esse foi um casamento político, é claro, embora tudo indique que o rei, ao menos durante algum tempo, tenha sido verdadeiramente apaixonado por ela, que era linda e tinha uma personalidade e tanto. É provável que em parte por isso, e em parte por ter dado a Filipe um filho homem, ela foi alçada à dignidade de rainha (que era diferente de simplesmente ser esposa do rei), o que, naturalmente, atraiu a inveja das outras, contra as quais Olímpia passou boa parte da vida se precavendo. Na verdade, uma das outras esposas de Filipe já tinha um filho, Arrideu, mas esse não era considerado um candidato viável ao trono por ser meio fraco da cabeça, o que teria sido sequela de uma doença. Houve boatos de que a tal "doença" teria sido resultado de um envenenamento ordenado por Olímpia, que não queria que o garoto viesse, no futuro, a competir pelo trono com seu querido Alexandre. Nada jamais foi provado, mas, à luz do que sabemos sobre a rainha, não parece que ela seria incapaz de algo assim, se fosse para defender os interesses do filho.

Seja como for, parece que, a partir do momento em que Alexandre nasceu, Filipe nunca vacilou em relação a quem seria seu sucessor. Um bom indicativo disso foi o tanto de dinheiro e esforço que investiu na educação dele. Seus estudos foram supervisionados, a princípio, por um certo Leônidas, parente da rainha, que, além de ensinar pessoalmente, selecionava os professores que instruiriam o príncipe em matérias específicas. Mas nenhum mestre foi tão marcante para Alexandre (e para o resto do mundo) quanto Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.), responsável por sua educação dos 13 aos 16 anos. É claro que, na época, ninguém podia saber que Aristóteles passaria à História como um dos maiores filósofos que já viveram, mas ele já gozava de suficiente prestígio para que comprar seu passe não fosse barato – um investimento que Filipe fez sem hesitar, e parece que os ensinamentos do sábio lapidaram de forma única o já privilegiado intelecto de Alexandre.

Eita! Comecei este texto com o objetivo de comentar a trilogia de Valerio Massimo Manfredi, mas acabo de perceber que escorreguei para uma biografia resumida (ou nem tanto) do personagem. Vamos tentar voltar aos trilhos.

Bem, Manfredi não é nenhum grande vulto da literatura, e sabe disso. Não nos oferece momentos arrebatadores de drama, nem personagens profundos e multifacetados; sabe que não tem cacife para tanto, e não se sabota com tentativas pretensiosas de fazê-lo. Seu objetivo era que o leitor, ao terminar estes três volumes, tivesse uma razoável noção de como foi a vida de Alexandre, e que tivesse se divertido no processo – e ele conseguiu. Um de seus diferenciais em relação a outras "vidas de Alexandre" está no fato de dar certo destaque a alguns personagens que elas não mencionam muito, como o grupo de amigos de infância, todos eles filhos de nobres da Macedônia, que foram educados com ele, cresceram em sua companhia e vieram a ser seus generais. É muito curioso ler sobre aqueles garotos vivendo seus anos de molecagens despreocupadas e lembrar que pelo menos dois deles – Seleuco e Ptolomeu – dariam nome a dinastias!… Também fazia parte desse grupo ele: Heféstion, o companheiro mais chegado de Alexandre e, segundo muitos, seu amante, o que seria encarado com relativa tranquilidade entre os gregos, mas suscitaria reprovação na Macedônia. De todo modo, Manfredi opta por não colocar nenhuma ênfase particular na relação dos dois, provavelmente porque tinha outras coisas em mente para destacar em sua obra, e não quis desviar a atenção dos leitores criando polêmica desnecessária em torno da sexualidade do personagem. O suposto affair de Alexandre e Heféstion até é mencionado, mas de forma casual e nada conclusiva: um ou outro personagem comenta, como quem ouviu um boato, que "dizem que os dois são amantes" – e é tudo. Nas cenas em que eles efetivamente aparecem, nada sugere isso. Para Manfredi, Alexandre e Heféstion são grandes amigos, e isso basta.

Sabe-se que as famílias reais não são como as outras famílias, e a de Alexandre é um bom exemplo. Como vimos, seu pai nunca se pejou de praticar a poligamia, o que os costumes macedônios toleravam; com isso ele criou, de certa forma, diversas famílias menores, cada uma formada por uma esposa ou amante e os respectivos filhos. Alexandre estava na "subfamília" de maior prestígio e privilégio, já que era o herdeiro presuntivo do trono e sua mãe tinha o status de rainha, que manteve mesmo depois que suas relações com Filipe já haviam esfriado até ao ponto de os dois só eventualmente se verem. Olímpia, por falar nisso, teve outra filha, Cleópatra, única irmã bilateral de Alexandre, que tinha tantos meios-irmãos. Não há relação direta entre essa Cleópatra e a famosa rainha do Egito de quase três séculos depois, mas a semelhança não é mera coincidência. Esse nome (grego) era bastante popular na Macedônia; quando Alexandre morreu, seu império foi dividido entre seus generais, cabendo a Ptolomeu o Egito, onde o amigo de infância de Alexandre recebeu o tradicional título de faraó, reinou até o final de sua vida e, de quebra, fundou a última dinastia a governar o país – dinastia essa que, por ser de origem grega, nunca foi plenamente aceita pelo povo egípcio. A Cleópatra "de César" foi a última de uma longa sucessão de rainhas e princesas com o mesmo nome, todas descendentes de Ptolomeu.

Apesar de viverem essa situação que, para nós, parece tão estranha, tudo indica que Alexandre e o pai tivessem uma relação próxima e afetuosa, pelo menos o tipo de afeto do qual o rude guerreiro Filipe era capaz. Amava o filho do seu jeito e tinha orgulho dele, enquanto Alexandre amava o pai com um amor pontuado pela admiração e – como muito bem sublinha Manfredi – pela vontade de competir. A meu ver, o Filipe de Manfredi é um tanto moderado demais no trato com o filho, se comparado ao que algumas biografias de Alexandre fazem crer: a impressão que se tem dessas biografias é a de que o Filipe histórico estava mais preocupado em tornar o rapaz forte que em deixar-lhe boas recordações. Exemplo disso é o célebre episódio do garanhão Bucéfalo. No primeiro volume da trilogia, O Sonho de Olympias, o caso é narrado da seguinte forma: Filipe havia mandado Alexandre para uma espécie de retiro num lugar chamado Mésia, para que ele pudesse dedicar-se a seus estudos com Aristóteles sem ser distraído pela agitação da vida em Pela, a capital da Macedônia. Ali o jovem passa cerca de três anos, apenas com esporádicas visitas à capital para ver os pais e a irmã. Ao decidir que é hora de trazer o filho de volta para casa, Filipe vai pessoalmente buscá-lo e leva-lhe um presente: um cavalo magnífico, mas selvagem, que ninguém consegue dominar. O rei, pacientemente, explica ao filho que ele precisará esperar que o animal seja domado antes de poder montá-lo. Na versão de Plutarco, seguida também por outros romances que retratam a vida de Alexandre, o caso todo ocorre de forma bastante dura e absolutamente não premeditada. Filônico, um criador de cavalos da Tessália, tinha ido a Pela negociar seus animais, e ofereceu o garanhão a Filipe por treze talentos, uma soma altíssima. O rei, impressionado com a estatura e a aparência imponente do animal, pensou em comprá-lo para seu próprio uso, mas desistiu depois que seus melhores cavaleiros tentaram domá-lo sem sucesso, e disse a Filônico para levá-lo embora. O jovem Alexandre, de 14 anos, encantado pelo cavalo assim que o viu, protestou, garantindo que podia domá-lo, o que lhe valeu uma reprimenda por parte do pai, que considerou isso uma intolerável demonstração de arrogância. O garoto insistiu e o rei acabou consentindo em deixá-lo tentar, mediante um acordo, ou, melhor dizendo, uma aposta: se Alexandre conseguisse domar Bucéfalo, Filipe o compraria para ele; caso contrário, o próprio príncipe teria que pagar o preço do animal – o que, é claro, estava totalmente fora da realidade. É óbvio que tudo o que Filipe esperava era que alguns tombos e uma pequena humilhação ensinassem a seu filho algo sobre humildade, mas ele não estava preparado para o que veria a seguir, nem o estavam Filônico, os cavaleiros macedônios, ou as dezenas de membros da corte que testemunharam o evento. Com suas capacidades de observação e análise muito bem treinadas pelas lições de Aristóteles, Alexandre percebeu que o cavalo se assustava com os movimentos de sua própria sombra; obrigou-o a virar a cabeça de frente para o sol e, a seguir, cavalgou-o e o fez galopar até a exaustão, quebrando-lhe toda a resistência. Ao ver o terrível Bucéfalo domado por aquele pirralho, conta-se que Filipe foi às lágrimas de orgulho e, abraçando fortemente o filho, disse uma frase que entraria para a História: "Meu filho, procura para ti outro reino! A Macedônia é pequena para um príncipe como tu!"

Daí em diante, Bucéfalo foi a montaria de Alexandre em todas as suas batalhas (das quais não perdeu uma só) durante quase 18 anos, e, quando morreu, seu nome batizou uma das novas cidades que ele fundou na Ásia. Uma das muitas lendas em torno de Alexandre diz que Bucéfalo teria nascido no mesmo dia que ele, mas isso, na certa, não passa de uma invenção poética. Primeiro, porque não era costume de ninguém na época registrar a data de nascimento de um cavalo, e segundo, porque, se fosse assim, Bucéfalo, ao ser domado por Alexandre, já estaria com 14 anos, idade madura para sua espécie, e seria muito pouco provável que um criador permitisse a algum de seus animais chegar indomado a essa altura da vida: caso a doma resultasse mesmo impossível, teria sido sacrificado bem antes. Tampouco teria utilidade como reprodutor, já que o mais provável era que gerasse potros tão intratáveis quanto ele próprio. Portanto, Bucéfalo devia ter uns quatro ou cinco anos – adulto, mas ainda jovem –, e foi uma grande sorte para ele ter encontrado o príncipe da Macedônia. Alexandre, que comandava pessoalmente sua cavalaria no campo de batalha, tinha outras montarias, mas fazia questão de montar Bucéfalo no início de cada batalha: para ele, além de um amigo, o cavalo era uma espécie de talismã.

E, embora tivesse, antes disso, liderado pequenas expedições militares contra certas tribos do norte que punham em perigo as fronteiras da Macedônia, a primeira grande batalha de Alexandre (montando Bucéfalo, naturalmente) foi aos 18 anos, em Queroneia (338 a.C.), onde compartilhou o comando com o pai, derrotando uma coalizão de atenienses e tebanos. Depois da vitória, Filipe optou por mostrar-se generoso para com os vencidos, estabelecendo condições moderadas para a paz e incumbindo Alexandre de liderar pessoalmente a comitiva que foi enviada a Atenas para levar as cinzas dos mortos da cidade, a fim de que tivessem um sepultamento digno. Daí em diante, Atenas mostrou-se mais cooperativa para com a Macedônia… Mas Tebas não, o que seu povo, mais tarde, viria a lamentar.

É, não tem jeito: escrever sobre um assunto que se adora é praticamente garantia de "viajar" longe. Eu ia mencionar Bucéfalo de passagem, só para ilustrar o que estava dizendo sobre a forma como o rei Filipe encarava a educação do filho, e vejam só onde vim parar… Pretendia fazer um único post sobre a trilogia, mas vejo que isso vai ser impossível, então este fica sendo apenas sobre o primeiro volume, e mais tarde decido se faço outro sobre os volumes dois e três, ou se cada um deles terá que ter o seu próprio.

Além dos amigos de infância de Alexandre, outro personagem que ganhou destaque na trilogia de Manfredi (pois, em outras obras, só aparece de forma menos que periférica) foi seu tio e xará, Alexandre, rei do Épiro. Ainda um menino quando Olímpia, sua irmã mais velha, casou-se com Filipe, Alexandre viveu anos na corte de Pela, sob a proteção do cunhado, para evitar que fosse assassinado por qualquer dos nobres conspiradores que na época se digladiavam pelo trono do Épiro. Quando completou 20 anos, voltou à terra natal e, graças à ajuda de Filipe, conseguiu recuperar o trono de seus ancestrais. Cerca de cinco anos depois disso, Filipe tomou mais uma esposa, Eurídice, que tinha a idade de sua filha Cleópatra e era filha (ou sobrinha; as fontes divergem) de Átalo, um de seus generais. Uma esposa a mais ou a menos teria feito pouca diferença, não fosse por um acontecimento infeliz: na festa do casamento, Átalo, já embriagado, decidiu fazer um brinde aos noivos, rogando aos deuses que de sua união nascesse um "herdeiro legítimo" para o trono da Macedônia. Isso, é claro, equivalia a chamar Alexandre de bastardo, e o príncipe não deixou por menos: confrontou Átalo exigindo que engolisse suas palavras, e, ao não ser obedecido, atirou sua taça na cara do general. Filipe, furioso e também embriagado, desembainhou a espada e investiu contra o filho, que o esperava empunhando a sua, e talvez a coisa tivesse degenerado numa luta de verdade entre os dois, com consequências imprevisíveis, se o rei não tivesse falseado o pé e caído. Alexandre fez um comentário sarcástico sobre reis que querem invadir a Ásia, mas não conseguem nem atravessar um salão de festa, e rapidamente retirou-se; conhecia o pai e sabia que, naquele momento, Filipe seria mesmo capaz de mandar matá-lo, ainda que mais tarde morresse de remorso. Alexandre e Olímpia fugiram às pressas de Pela e refugiaram-se na corte do irmão dela, mas ali tinham pouco sossego: a cada poucos dias chegava um mensageiro de Filipe com uma carta exigindo que Alexandre retornasse a Pela e se desculpasse formalmente por seu comportamento, o que, com seu orgulho, ele jamais faria. A situação ficou ruim para Alexandre do Épiro, que, nessa briga, dava razão ao sobrinho, mas, por outro lado, devia seu trono ao cunhado. Diante disso, Alexandre, acompanhado apenas pelo fiel Heféstion, deixou o Épiro e partiu para a Ilíria (mais ou menos equivalente às atuais Sérvia, Croácia e Montenegro), na época uma terra de tribos bárbaras, algumas das quais ele já havia enfrentado e vencido em batalha à frente do exército do pai, isso nos seus 16, 17 anos; agora tinha 19 e uma reputação que o precedia. Não se sabe que aventuras Alexandre viveu durante o meio ano que duraram suas andanças pela Ilíria, e Manfredi trata o assunto com breves pinceladas; tenho para mim que só esses meses já dariam assunto para um livro.

Quaisquer que tivessem sido as ofensas trocadas, Filipe amava o filho, e, o que era mais, sabia que a participação dele seria essencial em sua planejada campanha contra os persas. Os dois eram muito orgulhosos, e não está claro quem tomou a iniciativa ou cedeu um pouco para possibilitar a reconciliação, mas esta aconteceu afinal em 336 a.C., pouco antes de o exílio de Alexandre completar um ano (Manfredi atribui o fato à esperteza de Eumênio, amigo de Alexandre e secretário-chefe de Filipe). Alexandre retornou e fez as pazes com o pai, mas parece que o relacionamento dos dois nunca voltou a ser como antes… Bem, na verdade não houve tempo para isso, mas é melhor não nos anteciparmos.

A rainha Olímpia havia permanecido na corte do Épiro quando Alexandre partiu para a Ilíria, e lá continuou quando ele retornou a Pela. Considerando-se desonrada por Filipe, ela tentou convencer o irmão a declarar guerra à Macedônia – o que Alexandre do Épiro precisaria ser, no mínimo, doido de pedra para fazer. Ele tinha um bom exército, sim (por sinal, organizado segundo o modelo macedônio, já que o treinamento fora cortesia de Filipe), mas a simples superioridade numérica do oponente decidiria esse conflito em questão de semanas, se tanto – isso para nem mencionar que Alexandre do Épiro era um jovem guerreiro esforçado, mas Filipe era um general tarimbado cujas vitórias contavam-se às dezenas. Assim, a única resposta que Olímpia teve a suas pressões foi um categórico "nem pensar". Mesmo assim, Filipe julgou conveniente fortalecer os laços com o cunhado fazendo dele também seu genro, e ofereceu-lhe a mão da princesa Cleópatra. A jovem, educada desde a infância para resignar-se à ideia de um casamento político, que o pai decidiria sem pedir sua opinião, deve ter-se considerado com sorte no final das contas: Alexandre do Épiro era belo, gentil, inteligente e valente, e, apesar de serem tio e sobrinha, a diferença de idade entre os dois não passava de seis ou sete anos. O casamento foi preparado em Pela, com toda a grandiosidade possível, pois Filipe não perderia mais essa oportunidade de impressionar seus novos aliados gregos. O que ele não esperava era ser assassinado pouco depois da cerimônia, e antes do começo dos festejos, por um membro de sua própria guarda pessoal, um tal Pausânias. Sabia-se que esse guarda tinha queixas contra Filipe, que o havia humilhado em público durante uma de suas crises etílicas; depois, arrependido, tentou compensá-lo com presentes e honrarias, mas sem nunca desculpar-se de fato (é claro). Só que, por mais que Pausânias tivesse mágoas pessoais de seu senhor, é sempre difícil acreditar que o assassinato de um rei ocorra sem nenhuma motivação política por trás. Na lista de suspeitos de serem os mandantes figuraram desde Dario III Codomano, rei da Pérsia, que sabia dos planos de Filipe para atacá-lo, até Olímpia e o próprio Alexandre, que poderiam ter agido juntos ou separados, mas ambos no interesse de evitar que Filipe nomeasse como sucessor o pequeno Carano, seu filho com Eurídice (correndo o risco de ser ingênuo, eu prefiro acreditar que Alexandre não fosse capaz de tal coisa; Olímpia são outros quinhentos). A ordem poderia ter partido, ainda, de alguma das cidades gregas que, muito a contragosto e principalmente por medo, haviam aderido à "liga pan-helênica" que Filipe forjara e da qual se fizera líder. Porém, Pausânias, o único que poderia (mediante a "persuasão adequada") fornecer alguma informação a respeito, foi morto pelos outros guardas logo depois de consumar seu ato, e a verdade sobre os motivos do assassinato de Filipe morreu com ele.

Coroado aos 20 anos de idade assim como acontecera com seu tio, Alexandre teve como primeiro desafio na condição de rei reafirmar (por quaisquer meios possíveis) a lealdade ou ao menos a cooperação dos gregos, a fim de garantir alguma segurança e estabilidade quando partisse para a Ásia. Até mesmo a Tessália, tradicional aliada da Macedônia, vivia dias agitados, mas o jovem rei conseguiu acalmar os ânimos sem necessidade de luta. Fez o mesmo com Atenas e outras cidades; já Tebas, onde seu pai aprendera muito do que lhe ensinou, estava em negociações com o rei Dario, que prometia fornecer armas e dinheiro se os tebanos liderassem um movimento na Grécia para resistir à "tirania macedônica". A cidade não recuou de sua postura de desafio, e Alexandre, que, via de regra, era clemente com os vencidos, julgou necessário abrir uma exceção: ordenou que Tebas fosse arrasada (na verdade, como ele era um amante das artes, mandou poupar a casa onde vivera o poeta Píndaro). Quem sobreviveu teve por destino o mercado de escravos. Não foi uma vitória fácil, pois os tebanos eram guerreiros notáveis, mas serviu a seu objetivo, de modo que foi uma Grécia em relativa paz e tranquilidade que o exército macedônio (reforçado por algumas tropas gregas) deixou atrás de si ao fazer a travessia para a Ásia. O primeiro volume da trilogia termina aqui, mas não posso finalizar sem mais um comentário: achei emocionante ver o paralelo entre a aventura de Alexandre da Macedônia rumo ao oriente e a de Alexandre do Épiro rumo ao ocidente, pois, meses mais tarde, o tio e cunhado do jovem rei partiu para a Itália a fim de atender ao pedido de ajuda dos colonos gregos em Taranto, ameaçados por algumas das várias tribos independentes e belicosas que então habitavam a Península Itálica. Alexandre do Épiro, inclusive, faria uma aliança com Roma, na época uma potência em crescimento, ainda muito longe de tornar-se aquilo que a menção de seu nome desperta em nossa imaginação hoje em dia. Essa aventura empolgante não era mencionada nem sequer de passagem em nenhuma das outras versões da vida de Alexandre da Macedônia que li, e olhe que foram várias. Concluo que Alexandre do Épiro teve azar em ser tio de seu sobrinho, pois, por mais que ele tenha feito coisas extraordinárias, a sombra do outro Alexandre o encobriu por completo. Dificilmente alguém escreverá um livro ou fará um filme sobre ele, o que é mesmo uma pena.

Pois é… Acabei resumindo o livro todo, erro que antigamente eu volta e meia cometia nos meus posts, mas que tenho, em geral, conseguido evitar nos últimos tempos. O problema é que, por alguma razão, fica bem mais difícil evitar isso quando os acontecimentos sobre os quais estou escrevendo são históricos. Paciência: gostei pra caramba de escrever este texto, gostei de como ficou, e agora já me afeiçoei demais a ele para conseguir mudá-lo muito – quem gosta de escrever conhece a sensação: um texto, de certa maneira, é como se fosse um filho. Felizmente, como este é apenas o primeiro volume, acho que não dei grandes spoilers, mesmo que haja alguém no planeta com algum interesse no mundo helênico (ao menos o suficiente para desejar ler esta trilogia) e que já não saiba, em linhas gerais, como a história de Alexandre continua e como ela termina. Enfim: quem já leu Aléxandros me compreende, e quem ainda não leu deveria fazer isso o quanto antes.

sexta-feira, setembro 04, 2015

Deuses e Heróis

Conta-se que Escopas, homem nobre e importante da região grega da Tessália, pediu ao afamado poeta Simônides de Ceos que compusesse uma ode em louvor a suas vitórias – que podem ter sido no campo de batalha ou em competições atléticas; as fontes divergem. Tratava-se de uma prática comum na época: poetas eram solicitados a compor obras sobre o tema que lhes fosse proposto, recebiam por isso, e era assim que muitos deles ganhavam a vida. A ode deveria ser entoada num banquete que Escopas planejava oferecer. Chegado o dia, ao lhe ser pedido que apresentasse o poema, Simônides levantou-se com sua lira e cantou uma das mais belas odes já ouvidas na Tessália, celebrando as vitórias de seu anfitrião. (Não estranhem se uso "cantar" em vez de "declamar"; na época, os poemas eram realmente cantados, pois não se fazia distinção entre poesia e música.) Para obter um melhor efeito lírico, o poeta ornamentou a obra com menções aos feitos dos admiráveis gêmeos Castor e Pólux, filhos de Zeus e Leda, irmãos da célebre Helena de Esparta, mais conhecida como Helena de Troia.

Seria de se imaginar que qualquer homem razoável se sentisse honrado por ter seu nome citado lado a lado com os de tão insignes heróis, mas, infelizmente, Escopas era do tipo egocêntrico. Queria a admiração de seus convivas toda para si, e não estava disposto a partilhá-la, nem mesmo com os legendários filhos de Zeus, de modo que não lhe agradou o que estava ouvindo. Quando Simônides, tendo terminado de cantar, dirigiu-se a ele para receber sua recompensa, Escopas pagou-lhe metade da soma combinada, dizendo-lhe, em tom de troça, que cobrasse o restante de Castor e Pólux. Simônides, decepcionado e ofendido, retornou ao seu lugar em meio à zombaria geral dos convidados.

Pouco mais tarde, um dos servos de Escopas entrou no salão de banquete e avisou a Simônides que estavam lá fora dois jovens a cavalo, que diziam ter de lhe falar com urgência. Saindo, o poeta não encontrou ninguém à sua espera, mas repentinamente o teto do salão veio abaixo, matando Escopas e seus convidados. Depois de pedir ao servo mais detalhes sobre a aparência dos jovens que o haviam procurado, o desconcertado Simônides convenceu-se de que não eram outros senão os próprios Castor e Pólux. A história termina dizendo que os corpos dos comensais do banquete ficaram tão desfigurados, que seus familiares não conseguiam identificá-los para poder dar a cada um os ritos funerários devidos, mas Simônides lembrava o nome de cada um dos presentes e o exato lugar onde ele estava sentado, e, graças a isso, todos os corpos puderam ser identificados.

Essa bela história talvez não seja verídica (embora eu não a desacredite totalmente: considero uma rematada tolice duvidar de que maravilhas possam mesmo acontecer), mas, seja ou não, ela ilustra bem um fato curioso acerca dos grandes poetas da Antiguidade: suas vidas tendem a fundir-se com a própria mitologia que lhes servia de tema, de modo que para nós, hoje, eles acabam por ser figuras quase tão legendárias quanto os heróis cujos feitos celebravam. Assim foi com o maior de todos, Homero, a quem são atribuídas a Ilíada e a Odisseia, e com outros que vieram depois – entre eles Simônides, o protagonista de Deuses e Heróis.

Mary Renault, cujo Rei Morto, Rei Posto já tive oportunidade de comentar, conduz a nós, seus leitores, em outro mergulho na Antiguidade Clássica, embora, desta vez, a um período histórico posterior e bem diferente daquele em que tiveram lugar as façanhas do herói Teseu. Simônides viveu aproximadamente de 556 a 468 a.C., numa Grécia mais civilizada e de instituições já consolidadas, e, por consequência, uma Grécia que podia dedicar mais atenção às artes, fato que é bem retratado no romance. O que, é claro, não significa que as guerras tivessem ficado no passado – nem as guerras contra inimigos externos, no caso o Império Persa, nem as guerras locais, entre diferentes cidades-estado gregas, coisa que permeou praticamente toda a história da Grécia Antiga e impediu o êxito de diversas tentativas de unificação política entre os povos de língua e cultura helênicas. Simônides, por sinal, foi o autor do famoso epitáfio gravado no monumento erigido em homenagem a Leônidas e seus trezentos espartanos ("Ide dizer a Esparta, ó estranhos que passam / Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos."), aliás, um dos poucos fragmentos de sua obra que chegaram até nós, infelizmente. Tampouco são conhecidos muitos detalhes de sua biografia, de modo que a autora teve de fazer o que fazia tão bem: mesclar a informação histórica disponível com o produto de sua própria imaginação. O livro é um mosaico de eventos factuais e fictícios e de personagens históricos e inventados, sendo que estes últimos não parecem menos convincentes que os primeiros, e a interação entre todos é perfeitamente plausível. Quer dizer, parte do que aqui lemos efetivamente aconteceu – e o restante poderia ter acontecido.

A narrativa segue um esquema semelhante ao de Rei Morto, Rei Posto: um Simônides já idoso, aproximando-se do final de uma carreira prestigiosa, parece sentir que é chegado o momento de contar suas memórias, e essa história tem início na ilha de Ceos (hoje Kea), uma das Cíclades. Seu pai, Leoprepes, era um homem de posses para os padrões da ilha e um de seus cidadãos mais proeminentes, o que não significa que não trabalhasse duramente, ou que seus filhos pudessem, em princípio, esperar da vida muito mais que isso. Para maior azar de Simônides, ele era o filho varão mais jovem, além de agraciado pela natureza com um tipo físico pouco admirado entre os ilhéus, e entre os gregos da etnia jônica em geral: baixo e magro, embora de boa constituição; pele morena e cabelos negros, sem falar num rosto não exatamente atraente, enquanto seu irmão, Teásides, era o jovem heleno perfeito sempre retratado por pintores e escultores – alto, loiro, belo e atlético. Só isso já teria bastado para definir o papel de cada um: Teásides era o filho de quem os pais esperavam que os enchesse de orgulho e trouxesse honra ao nome da família; já Simônides, se dependesse dos planos deles, nunca iria muito além de ser um trabalhador não remunerado nas lavouras e rebanhos do pai. Apesar disso, os dois irmãos se dão bem; na verdade, Teásides parece ser o único a dedicar a Simônides alguma atenção e afeto.

Durante a infância e início da adolescência, Simônides exerce a ocupação mais icônica possível para um menino grego: a de pastor. E, como todo pastor, tem por hábito cantar e tocar flauta para preencher as longas horas vazias vigiando os carneiros que pastam. É dessa forma que descobre seu talento, pois possui uma voz naturalmente afinada, e, tão importante quanto isso para um poeta da época, uma ótima memória. Entretanto, por muito tempo, ele guarda só para si sua ambição de ser poeta, e acaba por amargurar-se, já que, vivendo na rústica Ceos, e ainda sendo o filho desprezado de um pai severo e austero, realizar esse sonho parece impossível. Sua sorte muda quando um poeta de nome Cléobe, de passagem pela ilha, se apresenta no casamento de um homem importante da comunidade – e o velho Leoprepes lá está como convidado, levando toda a família, até mesmo o filho feioso que geralmente é deixado em casa. O jovem acaba sendo aceito como ajudante e aprendiz pelo artista, e em sua companhia deixa Ceos, aos 14 anos, para tentar a sorte na carreira escolhida.

Cléobe vem a ser mais pai para Simônides do que Leoprepes alguma vez o foi, ensinando-lhe seu ofício com dedicação e paciência. Mesmo quando fica evidente que o rapaz é um talento dos grandes, jamais demonstra ciúme, nem qualquer receio de ser superado pelo discípulo. Natural de Éfeso, o velho bardo possui uma casa e certo patrimônio nessa cidade, mas a vida de um poeta, naquela época, era uma vida errante, sujeita a todas as agruras que podem atingir os que não têm pouso certo. Durante os primeiros anos a serviço de seu novo mestre, Simônides conhece boa parte da Grécia insular e continental, passa por apertos de todos os tipos, e, principalmente, aperfeiçoa sua arte, amplia seu repertório e conhece pessoas interessantes. Seu aprendizado prossegue em Éfeso, onde mestre e discípulo se fixam por algum tempo, e de onde acabam fugindo (assim como grande parte da população) por causa da ameaça da invasão persa. O novo domicílio dos dois é a cidade de Samos, na época, provavelmente, a mais rica do mundo helênico, embora não a de maior efervescência cultural: essa já era então, como ainda o seria por muito tempo, Atenas. Samos é governada pelo tirano Polícrates (a palavra "tirano", na origem, não tinha o sentido que hoje lhe atribuímos: significava apenas um governante que tivesse chegado ao poder pelos próprios meios, e não por herança ou por eleição regular). Lá, Simônides começa, aos poucos, a atuar de forma profissional, embora não de um jeito que seu mestre considere particularmente honroso: cantando numa taberna. Mesmo não sendo muito bem vista, essa ocupação lhe permite garantir seu pão de cada dia, e, não menos importante que isso, fazer muitos contatos, o que era outra coisa da qual um poeta grego daqueles tempos não podia prescindir.

Não obstante, é em Atenas, já com 20 e poucos anos, que o jovem poeta vê sua carreira decolar de verdade, em grande parte graças à proteção e incentivo de outro tirano, Pisístrates, que, no entanto, é muito diferente de Polícrates. Enquanto o tirano de Samos parece apadrinhar artistas da mesma forma como adquire objetos preciosos (ou seja, por mera exibição de riqueza e poder), Pisístrates é um real admirador das artes em geral e da poesia em especial. Há um trecho particularmente interessante, que reproduz uma conversa da qual participam o tirano, seu filho Hiparco, e Simônides, e que demonstra a preocupação dos dois primeiros com a preservação das grandes obras poéticas, que, na época, eram transmitidas apenas oralmente e conservadas de memória. Nunca passou pela cabeça de Simônides que as obras de Homero, por exemplo, pudessem ser perdidas – ele próprio sabe de cor a Ilíada e a Odisseia (que, juntas, têm mais de 27 mil versos), e, embora seja alfabetizado, jamais considerou a possibilidade de escrever nem os poemas que aprendeu, nem os seus próprios: para ele, a escrita é para fins práticos e prosaicos, como a contabilidade da fazenda de seu pai. Poesia deve ser guardada somente no espaço entre as duas orelhas, como ele diz; isso é questão de orgulho não só para ele, mas para a maioria dos poetas da época… E, se me for permitida uma observação pessoal, devo dizer que, embora ser capaz de declamar toda a obra de Homero de cor seja, sem dúvida, um feito formidável e digno de admiração, é difícil não ter vontade de xingar um pouco esses sujeitos quando penso no sem-número de obras deslumbrantes que certamente desapareceram para sempre, só porque alguém, um dia, por orgulho, recusou-se a registrá-las por escrito. Baquílides, sobrinho e discípulo de Simônides, parece ter sido um dos primeiros poetas a romper com esse preconceito e passar a escrever, o que o tio acaba aceitando, sem nunca verdadeiramente aprovar.

(Observe-se também, apenas de passagem, que "entre as duas orelhas" é um anacronismo de linguagem, pois, na época, ainda não se sabia que o cérebro era o responsável pela inteligência e pela memória; a teoria mais aceita era a de que essas funções fossem do coração. Quanto à questão de para que o cérebro realmente servia, as opiniões se dividiam. Aristóteles, um dos maiores filósofos gregos, que viveu cerca de um século depois do tempo de Simônides, acreditava que ele funcionasse como uma espécie de radiador, dissipando o excesso de calor do organismo; outros atribuíam à massa cinzenta funções ainda menos nobres, como a de produzir o muco que lubrifica nossas vias respiratórias.)

Pisístrates é um governante justo, que ganha a admiração e o respeito de Simônides, assim como da maior parte dos atenienses, e, quando morre, seus filhos parecem ser capazes de, juntos, dar continuidade ao trabalho do pai. Eles recebem o título de arcontes – o arcontado era uma assembleia formada por nove cidadãos eminentes, que partilhavam entre si as responsabilidades do governo –, embora todos saibam que têm, na prática, muito mais poder que seus pares. Hípias, o mais velho, é mais sisudo e preocupado, enquanto o outro, Hiparco, é um homem que gosta de aproveitar a vida e de cercar-se de companhias agradáveis. Não que seja dado a orgias ou excessos, pelo menos não de modo habitual; Simônides o estima, e, aos poucos, a relação de ambos extrapola a de artista e mecenas, transformando-se em verdadeira amizade. Não há motivo algum para que o poeta se importe com a queda que Hiparco tem por belos rapazes, nem com o hábito dele de ter sempre um favorito partilhando de seu divã nos banquetes, e, mais tarde, sem dúvida, também seu leito. Esses favoritos estão sempre mudando, cabendo a cada um deles um "reinado" de poucos meses, de modo que, por tudo o que Simônides pode ver, seu amigo não tem propensão a formar laços sentimentais, e ainda menos a qualquer tipo de fixação ou obsessão. Porém, os seres humanos nunca deixam de nos surpreender, e isso era tão verdadeiro na Grécia de 2500 anos atrás quanto o é hoje.

Na época em que Simônides viveu, relacionamentos homoafetivos eram vistos com naturalidade entre a alta sociedade (não entre a população em geral) na maioria das cidades gregas, mas existiam certas regras não escritas que deviam ser observadas. Havia uma distinção bem clara entre "amante" e "amado". O amante (erastes) era um homem adulto, normalmente na casa dos 30 ou 40 anos, já estabelecido socialmente e quite com a obrigação de assegurar a continuidade da família – quer dizer, geralmente um homem casado e com filhos. O "amado" (eromenos – pronuncie como proparoxítona) era um efebo (adolescente). O primeiro oferecia o afeto, o segundo o recebia – não era uma via de mão dupla, ao menos não em teoria. Não era bem visto que o parceiro mais jovem correspondesse; ser alvo das atenções do mais velho era visto como uma honra, especialmente se ele fosse alguém de alta posição social, mas não como um prazer. Se a reciprocidade existisse, era de bom tom que só fosse manifestada em privado. Tais relacionamentos podiam, ou não, incluir intercurso sexual. O mais importante era o que o eromenos podia aprender com o erastes, principalmente no que se referia a aprimorar o traquejo social, a conhecer pessoas e ingressar em certos círculos, o que iria repercutir em toda a sua futura vida social – ter um erastes com influência e contatos podia colocar o jovem no caminho de uma carreira bem-sucedida. Por fim, era considerado louvável que o erastes mantivesse uma visão realista das coisas, abstendo-se de se apaixonar pelo jovem parceiro, uma vez que esse tipo de relação tinha prazo de validade, devendo acabar quando o rapaz deixava a puberdade, já que, a partir daí, ele passaria a ter outras coisas das quais se ocupar, como a carreira e o casamento, até chegar aos 30 e poucos anos, idade em que estaria apto a tornar-se erastes de seu próprio eromenos. De qualquer forma, o normal era que uma ligação desse tipo durasse alguns anos; não era frequente que um mesmo homem vivesse a experiência mais que duas ou três vezes ao longo da vida, pois não era visto como adequado continuar a ter esse comportamento depois de uma certa idade. A alta rotatividade de favoritos no divã de Hiparco era uma exceção, tolerada porque naquela época, como hoje, os poderosos eram vistos como pessoas a quem era permitido transgredir certas convenções.

Simônides, ao menos na versão de Mary Renault, não se envolve com nada disso – sua conduta parece ser estritamente heterossexual, seja por ter sido criado em meio aos costumes austeros de Ceos, ou apenas por uma questão de preferência pessoal. Mesmo suas relações com mulheres não são muitas, em parte devido a sua intensa dedicação a sua arte, em parte por causa de traumas da juventude, ligados à rejeição que não poucas vezes sofreu por causa de sua feiura – que, aliás, em sua opinião, teve o lado bom de mantê-lo fora da mira dos apreciadores de efebos. Porém, ele acaba sendo testemunha de uma ocasião em que uma relação erastes/eromenos abalou a sociedade ateniense. Os protagonistas do episódio são o jovem Harmódio, filho de uma família ateniense antiga e tradicional, e Aristogíton, atleta de certo renome. Harmódio é de uma beleza extraordinária, o que nem sempre é uma sorte; em seu caso, atraiu o azar de chamar a atenção de Hiparco, que fica obcecado pelo rapaz, a ponto de aparentemente já não comer ou dormir direito (observações de Simônides, a cujos olhos atentos não escapa a aparência abatida e febril de seu amigo). Seja porque seu coração já pertence a Aristogíton, ou porque lhe repugna a ideia de ceder ao assédio de Hiparco a troco de ascensão social, ou simplesmente porque o arconte não lhe agrada – e talvez por tudo isso –, o fato é que Harmódio repetidamente repele as investidas amorosas que vai recebendo, o que acaba levando Hiparco ao desespero, e a chegar a um ponto do qual Simônides jamais o julgaria capaz: o de tentar vingar-se do jovem adotando represálias contra sua família. Isso tudo conduz a um desenlace desconcertante e terrível.

O livro termina com esse incidente, que teve lugar quando Simônides tinha pouco mais de 40 anos, sendo que ele viveria até próximo dos 90; o poeta ainda viajaria muito, viveria em diferentes lugares (Tessália, novamente Atenas, e por fim a Sicília, na época colônia grega, onde terminaria seus dias) e foi contemporâneo de muitos eventos importantes da história grega, além, é claro, de ter composto inúmeros poemas, que, infelizmente, nunca leremos. Portanto, se Deuses e Heróis tem um defeito, é o de ser curto demais. Acompanhar a prosa de Mary Renault é um prazer difícil de descrever, especialmente numa boa tradução, feita por alguém que, mais que o mero domínio das línguas inglesa e portuguesa, também tinha cultura para compreender as inúmeras referências históricas e mitológicas presentes no texto, e tratá-las de forma adequada: registro aqui todo o meu respeito ao Sr. Donaldson M. Garschagen, um tradutor de verdade, de um tipo que quase não existe mais. Também cabe avisar que essa mesma cultura, bem como a capacidade de apreciar uma linguagem elaborada, será muito útil a quem desejar ler o livro.

O fato de Simônides ter vivido durante um dos períodos mais importantes para o desenvolvimento intelectual da Grécia não passa em branco. Ao longo da narrativa, o protagonista tem oportunidade de interagir com um expressivo punhado de figuras relevantes: poetas como Laso, Íbico, o já citado Baquílides, e, de modo especial, Anacreonte, este um de seus melhores amigos; o arquiteto e escultor Teodoro; o filósofo e matemático Pitágoras; e o dramaturgo Ésquilo. Todos pessoas reais, alguns mais famosos, outros menos, mas todos tendo contribuído de forma valiosa para o engrandecimento da cultura grega, e, por consequência, de toda a cultura ocidental – na época, hoje e para sempre.

Uma curiosidade final: entre as lembranças esparsas que vão surgindo enquanto ele conta sua história (algo que esperaríamos de um homem idoso), o Simônides de Mary Renault nos oferece uma versão um pouco diferente da história do banquete de Escopas, que eu contei no início deste post; uma versão mais simpática a Escopas, e na qual o elemento sobrenatural aparece atenuado, de modo que o leitor pode, se o preferir, atribuir a salvação da vida do poeta a uma coincidência providencial. Se admitirmos que essa versão foi a que de fato aconteceu, então aquela outra certamente recebeu uma adaptação, destinada a fazer dela uma fábula com conteúdo moral. A verdade nunca será conhecida, mas, seja como for, eu me permito ter a opinião de que a versão que contei é mais bonita.

E agora é para concluir mesmo: o título original do livro é The Praise Singer, e existe uma outra edição brasileira, da editora Siciliano, que adotou a sua tradução literal, chamando-se O Cantor do Prazer. Eu prefiro o título da edição que tenho, a mais antiga, da Nova Fronteira, publicada em 1984, pois, embora não tenha nada a ver com o título original, ele reflete melhor o espírito da obra de Simônides, que passou a vida cantando sobre deuses e heróis, enquanto O Cantor do Prazer faz parecer que ele se dedicava à poesia erótica… Como eu já escrevi antes, o mais literal nem sempre é o melhor.

quinta-feira, outubro 16, 2014

Hércules


Ir ao cinema para ver um desses filmes baseados em mitologia que andam surgindo nos últimos anos é um grande risco para criaturas como eu, que adoram mitologia desde sempre. O espectador comum, que pouco entende do assunto e não se importa especialmente com ele, não tem o que temer… Já nós, estamos sujeitos a ter um fim de semana estragado e uma crise de nervos pela falta de uma fuça que possamos socar pelo sacrilégio. E é mesmo uma loteria: você pode ver desde coisas legais como A Odisseia (a versão com Armand Assante, de 1997) ou Fúria de Titãs (o de 1981) até horrores como Troia, Fúria de Titãs 2010 ou Imortais - para falar a verdade, esse eu nem tive coragem de ver, depois do que ouvi de alguns amigos. Felizmente, Hércules não se inclui na categoria dos desastres, aqueles a que o velho Zeus responderia com certeiros raios na cabeça do diretor e do roteirista. Não é um grande filme, mas também não é revoltante. E me fez achar que essa poderia ser uma ótima deixa para outro texto nos moldes do que escrevi sobre Perseu: um olhar geral à lenda e, dentro disso, comentários sobre o filme. Talvez algum de meus leitores ache interessante - e, independente disso, sem a menor dúvida, eu me divertirei muito escrevendo-o!

Eu naturalmente já tinha lido alguma coisa sobre Hércules antes, provavelmente algum resumo bem sucinto de sua vida e principais façanhas, em algum livro sobre mitologia, mas meu primeiro contato mais minucioso com o herói foi por meio do livro Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, que li quando tinha uns dez ou onze anos de idade. Em várias de suas obras além dessa, é fácil perceber que Lobato era um admirador apaixonado da cultura helênica - sua história, mitologia, instituições e legados. Hoje, me parece que ele tinha uma visão um tanto idealizada demais: parecia crer que os gregos foram a única civilização que "acertou", que nada antes deles se comparava e que tudo o que veio depois foi retrocesso. O autor apresentava como fato indiscutível que tudo da Grécia era superior, desde o sistema de governo até o vestuário, e, como escrevia em plenos tempos da Segunda Guerra Mundial, também dava vazão a sua indignação ante as notícias que chegavam da Europa dando conta de milhares de mortes sem sentido - e fazia isso pintando a Grécia antiga como um lugar onde a verdadeira sabedoria havia criado a paz perfeita. À luz do que sei agora, acho muito estranho que alguém que estudou tanto o mundo antigo quanto Lobato obviamente o fez, aparentemente não conhecesse o outro lado da moeda. Enxergar a Grécia apenas pelo que tinha de belo e grandioso é tão ingênuo quanto a ideia que muita gente tem de um "paraíso terrestre" no Brasil, ou nas Américas em geral, antes da chegada dos europeus. Os índios não eram perfeitos e os gregos também não: tanto os primeiros quanto os últimos eram simplesmente humanos, que lutaram guerras terríveis uns contra os outros e tinham costumes que nos deixariam horrorizados. Mas isso não é o mais importante aqui.

Os Doze Trabalhos de Hércules parece ter nascido de um "gancho" que Monteiro Lobato forneceu a si mesmo em O Minotauro, um livro mais curto e que também colocava os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo na Grécia antiga. Por essa ocasião, Pedrinho, Emília e o Visconde de Sabugosa teriam assistido a um dos Doze Trabalhos do herói, a destruição da hidra de Lerna, e daí em diante, naturalmente, não sossegariam enquanto não assistissem aos outros onze. E assim foi que o trio voltou aos tempos heroicos da Grécia por meio do "pó de pirlimpimpim" - por falar nisso, um dos maiores problemas que os editores de hoje encontram na hora de apresentar a obra de Monteiro Lobato a novas gerações de crianças. O tal pó tinha que ser aspirado pelo nariz, causava inconsciência, e, quando a pessoa acordava, estava em outro lugar e/ou outra época - tudo lembrando perigosamente outro pó e outras "viagens". Mas, dizia eu, Pedrinho, Emília e o Visconde vão novamente à Grécia antiga, desta vez com o objetivo expresso de acompanhar Hércules em seus famosos trabalhos. Rapidamente fazem amizade com o herói e passam a ser seus companheiros indispensáveis, eles os três e mais um jovem centauro a quem Emília põe o nome tipicamente "emiliano" de Meioameio. De modo que não é um Hércules solitário, e sim esse curiosíssimo quinteto que atravessa diversas vezes a Grécia e terras vizinhas para cumprir os trabalhos determinados pelo rei Euristeu, que detesta o herói e fica decepcionado cada vez que o vê voltar com vida. Lobato apresenta um Hércules que facilmente cativa o jovem leitor: além de sua coragem e da força proverbial, ele tem um coração de ouro, mas não um cérebro no mesmo nível - o autor declara-o "burrão de nascença como todos os grandes atletas" (hoje isso seria considerado preconceituoso!). Se formos analisar a lenda em uma de suas versões clássicas, a questão da inteligência, ou falta dela, de Hércules, é controvertida - afinal, nem todos os Doze Trabalhos poderiam ter sido levados a bom termo só na base da força bruta: alguns deles foram completados graças a boas ideias. Na versão de Lobato, essas ideias vêm de Emília e às vezes de Pedrinho, com a contribuição científica do Visconde; sem a presença deles, só se pode imaginar que, ou Hércules, afinal, tinha alguns neurônios, ou então que devia contar com a ajuda constante de sua meia-irmã, a deusa Atena, de quem era protegido. Talvez as duas coisas.

O Maior dos Heróis…

Hércules nasceu em Micenas (e não em Atenas, como dito no filme recente), no palácio onde reinava a mesma dinastia outrora fundada por Perseu. O rei Anfitrião tinha duas esposas, que, casualmente, estavam grávidas ao mesmo tempo - uma, dele mesmo, enquanto a outra, a bela Alcmena, esperava um filho de (adivinhem…) Zeus. A gravidez de Alcmena estava um pouco mais adiantada, de modo que tudo indicava que o filho de Zeus nasceria primeiro e seria o herdeiro do trono, mas a deusa Hera, esposa de Zeus, que sempre fazia o que podia para infernizar a vida dos inúmeros filhos que seu marido tinha com suas também inúmeras amantes, enviou uma serpente que pregou um tremendo susto na outra esposa do rei, causando o nascimento prematuro de seu filho - Euristeu. Com isso, o filho de Alcmena ficou relegado à posição de um príncipe inferior. Quando ele nasceu, a mãe, sabendo que o menino estaria na mira de Hera, tentou apaziguar a deusa dando a ele o nome de Héracles ('glória de Hera' - Hércules é a forma latinizada). Não adiantou: o primeiro ataque de Hera contra o pequeno Hércules aconteceu quando ele ainda estava no berço, e também envolveu serpentes. Duas delas, robustas e venenosas, apareceram nos aposentos de Alcmena quando ela estava ausente e atacaram o menino; quando a mãe retornou, encontrou o bebê brincando com as cobras mortas: tinha-as estrangulado, cada uma com uma mão.

À medida em que Hércules crescia, ficou logo evidente que o elemento sobre-humano estava presente nele em maior grau que nos outros semideuses: sua força era prodigiosa, sua coragem, extraordinária, e seu apetite, insaciável. Como muitos outros heróis gregos, antes e depois dele, teve como mestre o sábio centauro Quíron (sim, Quíron acumulou um currículo extenso antes de ir para o Acampamento Meio-Sangue), que fez dele um exímio arqueiro. Já para o combate corpo a corpo, Hércules elegeu a clava como arma favorita; ao contrário da maioria dos outros heróis, nunca teve grande afinidade com espadas. Praticou muitas façanhas formidáveis, algumas delas responsáveis (conforme a antiga crença popular) até mesmo por alterar a geografia: acreditava-se que o mar Mediterrâneo tivesse sido originalmente um lago, com a Europa e a África se tocando, até que o herói, com um pontapé (!), abriu o estreito de Gibraltar, que, não por acaso, os gregos, e, depois deles, os romanos, chamavam de "Colunas de Hércules". Conta-se também que, na disputa pela mão de Dejanira, sua segunda esposa, Hércules derrotou o rio-deus Aquelau, que tinha o poder de transformar-se num touro, e, durante a luta, quebrou-lhe um dos chifres: isso provavelmente é uma alegoria mitológica. Deve significar que o rio Aquelau, a certa altura de seu curso, dividia-se em dois; Hércules, ou quem quer que esteja na origem de sua lenda, pode ter construído uma barragem - obra ambiciosa para os padrões da época -, secando um dos leitos, ou seja, simbolicamente "quebrando um chifre" do deus que personificava o rio. Por fim, as terras que formavam esse leito se mostrariam muito férteis, devido ao lodo deixado pelo rio, o que daria origem à lenda da Cornucópia, o chifre miraculoso que se enchia de qualquer coisa que seu possuidor desejasse. Esses são apenas dois dentre inúmeros exemplos que a mitologia oferece, mas ilustram bem a maneira como os antigos pensavam em Hércules: um super-homem, capaz de proezas que seriam impensáveis não só para os homens comuns, mas até mesmo para a maioria dos outros heróis.

Não obstante, embora haja muitas, as aventuras mais famosas da carreira do filho de Alcmena são, sem dúvida, aquelas que ficaram conhecidas como os Doze Trabalhos de Hércules. Segundo a lenda, a deusa Hera, que parecia nunca se cansar de perseguir o enteado, certa vez lançou sobre ele uma praga de loucura, que, embora temporária, durou o suficiente para que Hércules praticasse o crime que por pouco não arruinou sua vida: descontrolado, ele assassinou a primeira esposa, Mégara, e os três (ou sete; depende da fonte) filhos do casal. Ao voltar a si e ver o que havia feito, o herói, como diríamos hoje, entrou em depressão. Recolheu-se a uma região selvagem, onde passou a viver isolado, alimentando-se do que caçava e evitando todo contato humano. Foi resgatado por seu amigo Teseu, que, depois de uma extensa busca, conseguiu localizá-lo e o convenceu a consultar o oráculo de Apolo, em Delfos, para saber qual penitência poderia livrá-lo de sua culpa. Quando ele assim fez, ouviu em resposta que devia prestar doze anos de serviços a seu irmão de criação, o rei Euristeu. É interessante registrar que, também dependendo da versão (é sempre assim em mitologia), o nome que o herói recebeu da mãe ao nascer foi Alcides, que significa apenas "descendente de Alceu", em referência a um de seus ancestrais. Segundo essa versão, o nome Héracles foi dado pela pitonisa - a sacerdotisa que servia de voz ao deus no oráculo - justamente por ocasião dessa consulta, e assim ele seria conhecido daí em diante.

Talvez Euristeu tenha recebido ajuda de Hera para selecionar as tarefas mais difíceis e perigosas que pudesse haver no mundo da época; ou isso, ou ele realmente se esmerou na escolha. A ordem de realização dos trabalhos, como não poderia deixar de ser, varia conforme a fonte, mas, de um modo geral, é como segue…

  1. Matar o leão de Nemeia. Esse temível animal, além de ser muito maior e mais feroz que os leões comuns, era, ao que se dizia, invulnerável.
  2. Matar a hidra de Lerna, uma serpente venenosa gigante com nove cabeças, sendo que, se uma fosse cortada, duas outras cresceriam no mesmo instante.
  3. Capturar, viva, a corça de Cerínia, de chifres de ouro e cascos de bronze, que corria a uma velocidade espantosa, sem jamais se cansar.
  4. Capturar o javali de Erimanto, um verdadeiro tanque de guerra vivo, que arrasava tudo em seu caminho.
  5. Limpar as cavalariças de Áugias. Esse rei possuía milhares de cavalos, e as vastas cavalariças onde os mantinha não eram limpas havia décadas.
  6. Matar ou afugentar as aves carnívoras do lago Estínfale. Essas enormes aves de rapina devoravam indistintamente homens e animais pela região ao redor do lago, e eram cobertas por penas de bronze, o que as fazia quase invulneráveis a flechas ou lanças.
  7. Capturar o grande Touro de Creta, um animal enlouquecido que já matara muitas pessoas nessa ilha.
  8. Matar os cavalos de Diomedes, rei da Trácia, que se alimentavam de carne humana.
  9. Obter o cinturão de Hipólita, a rainha das amazonas.
  10. Roubar os bois de Gerião, um gigante de três cabeças.
  11. Obter um pomo de ouro do jardim das Hespérides.
  12. Capturar Cérbero, o cão de guarda do reino de Hades, o deus do mundo dos mortos.

É de se imaginar que passar por tão tremendas experiências mudaria qualquer pessoa, mas Hércules parece não se ter deixado afetar mais que o necessário. Terminado o período de penitência, já livre da servidão a Euristeu, retomou o modo de vida que, pensando bem, era o único possível para um homem como ele: o de aventureiro, sempre em busca de oportunidades para novos feitos heroicos. Eventualmente, ganhou o direito à mão de Dejanira - depois de derrotar Aquelau e outros rivais poderosos - e em companhia dela empreendeu a viagem de retorno a Micenas. Às margens do rio Eveno, o casal encontrou Nesso, um centauro que Hércules conhecia. O que o herói não sabia, porém, era que Nesso o odiava, por ter, anos antes, matado em combate vários parentes seus. O centauro, dissimulado, o cumprimentou afavelmente e ofereceu ajuda, prontificando-se a transportar Dejanira até a margem oposta. Uma vez fora do alcance de Hércules (ou assim pensava), tentou escapar com a moça, planejando raptá-la. Hércules, é claro, agiu depressa: atirou uma flecha que acertou Nesso em cheio. Antes de morrer, o centauro ainda teve tempo de dizer a Dejanira que seu sangue tinha um poder miraculoso. Apontando para a túnica que ela usava, e que ficara respingada de sangue, ele disse que ela devia guardá-la bem: se Hércules um dia parecesse cansado dela, tudo o que precisaria fazer seria conseguir que ele a vestisse, e teria de volta o afeto do marido, mais forte que antes. Dejanira guardou a túnica, mas durante muitos anos não voltou a se lembrar dela.

Certa ocasião, durante uma de suas expedições, Hércules salvou uma princesa de nome Iole, e pensou que seria uma boa ideia casá-la com seu filho Hilo. Levando consigo a jovem, pôs-se a caminho para a corte do rei Eurites, pai dela, a fim de propor o arranjo, e, acontecendo de passar próximo de Micenas, mandou um emissário à sua casa, para dar notícias a Dejanira e buscar algumas roupas e outros itens de que precisava. Ao encontrar a esposa do herói, o tal emissário descreveu com cores tão vivas a beleza de Iole, que Dejanira ficou mordida de ciúmes, e convenceu-se de que a intenção alegada de fazer dela sua nora não passava de um pretexto, e de que Hércules estava era apaixonado pela garota. Isso lhe trouxe de volta à memória as palavras de Nesso, e, acreditando na promessa do centauro, ela incluiu a velha túnica entre as roupas que mandou para o marido (os trajes masculinos e femininos não eram tão diferentes na época).

Gostaria que vocês não esquecessem que é de mitologia grega que estamos falando, e, portanto, de um mundo onde nenhuma maravilha - e nenhum horror - é fantástica demais para existir, então não se apressem em julgar Dejanira uma tonta. Como a maioria de nós, ela tinha uma tendência a acreditar no que desejava, e, além disso, um centauro com poção do amor correndo nas veias será mais inacreditável que cavalos carnívoros ou uma serpente de nove cabeças? De qualquer forma, Nesso a enganou: a única coisa que havia de especial em seu sangue era o veneno da hidra de Lerna. O centauro sabia que, depois de matar a hidra, Hércules untara as pontas de suas flechas com o veneno do monstro, e que esse era um veneno tão potente, que também tornava venenoso o sangue daqueles que matava. A mentira que contou a Dejanira foi a maneira que encontrou para, mesmo depois da morte, conseguir vingar-se do herói.

Quando Hércules vestiu a túnica, sentiu-se como se tivesse entrado numa fogueira. Tentou livrar-se dela, mas o tecido se agarrava a seu corpo e arrancava pedaços de pele e carne. Sabendo que seu fim havia chegado, ele construiu às pressas uma pira funerária, deitou-se sobre ela e ordenou a seu escudeiro, o jovem Filoctetes, que a acendesse. A clava e a pele do leão de Nemeia queimaram junto com o herói, mas Filoctetes herdou o arco e as flechas, com os quais ainda teria um papel importante a desempenhar na Guerra de Troia, décadas mais tarde. Quanto a Dejanira, ao saber do acontecido, suicidou-se. Um final trágico bem ao gosto grego, sem dúvida - mas que não é realmente o final. A lenda conta que Zeus chamou seu filho para o monte Olimpo e fez dele um deus, e a verdade é que fé em Hércules nunca faltou: templos e monumentos dedicados a ele espalhavam-se não só pela Grécia, mas também pela Albânia, Bulgária, parte da Turquia, Sicília e sul da Itália - todas regiões que os gregos conquistaram. O culto de Hércules difundiu-se ainda mais durante o período romano, e continuaria popular até o advento do cristianismo.



…em um filme banal

Talvez o principal mérito de Hércules (2014, dirigido por Brett Ratner e estrelado por Dwayne Johnson no papel do herói) esteja em ter um roteiro original: os célebres Doze Trabalhos e outros feitos conhecidos de Hércules são apenas citados, e provavelmente é melhor assim. O filme já começa com uma bola fora, embora, na certa, pouquíssima gente tenha notado: a data mencionada é 358 a.C. - o que, para os padrões da História grega, já é uma época recente e bem documentada; os monstros fabulosos e os heróis sobre-humanos pertencem a um passado muito mais remoto e misterioso. Para dar uma ideia, 358 a.C. é apenas dois anos antes do nascimento de Alexandre, que, por sinal, acreditava ser descendente (bem distante) de Hércules, cuja lenda já era antiga em sua época. Os personagens Anfiarau (Ian McShane) e Autólico (Rufus Sewell) também declaram que "quem morrer a serviço de uma causa justa irá para os Campos Elísios, onde estão os grandes heróis, como Teseu, Odisseu e Aquiles"; como já vimos, Teseu era contemporâneo de Hércules, enquanto Odisseu (também chamado Ulisses) e Aquiles lutariam na Guerra de Troia, de modo que provavelmente ainda nem haviam nascido. Ou seja, a cronologia desse filme é digna do seriado da Xena.

A primeira cena do filme (sem contar os pequenos trechos de narração que a antecedem) é idêntica à de O Escorpião Rei (2002), primeiro filme a garantir a Johnson uma maior exposição como ator - ele ainda usava seu nome de lutador de wrestling, The Rock. A cena, aliás, já não era propriamente a coisa mais criativa do mundo, mesmo em 2002: o amigo/parente do herói está nas mãos de inimigos, prestes a ser morto ou coisa pior, quando O Cara em pessoa aparece para salvá-lo, sempre no último momento possível. A seguir, somos apresentados ao bando de Hércules, composto por personagens tirados de várias lendas diferentes, a maioria sem ligação com a dele. Conheço bem a história de Atalanta, mas sei pouco sobre Tideu (Aksel Hennie), e nada sobre Anfiarau ou Autólico. É claro que poderia fazer uma rápida pesquisa e reunir informação sobre todos, mas receio que este texto já vai ficar enorme sem isso (risos). Então, comento apenas que Tideu é citado na Ilíada como pai de Diomedes (nada a ver com o rei que tinha os cavalos comedores de gente; este Diomedes era um herói intrépido, que se destacou na Guerra de Troia), e tendo, ele próprio, praticado feitos notáveis durante o famoso episódio dos Sete Contra Tebas - ou seja, o Tideu original devia ser muito diferente do selvagem incapaz de falar, retratado no filme. Quanto a Atalanta, sua interpretação pela atriz norueguesa Ingrid Bolsø Berdal acrescenta uma bem-vinda dose de beleza, o que não faz mal a filme algum. De toda essa turma, o único a realmente ter ligação com Hércules é seu sobrinho Iolau (Reece Ritchie), que também se consagrou como herói em "carreira solo", embora, claro, sem nunca chegar aos pés do tio. Em todo caso, participou da caçada à hidra e de outras aventuras ao lado dele, lutando - não era uma espécie de relações-públicas, como mostrado no filme.

O enredo é simples. Hércules e esse grupo de companheiros ganham a vida como mercenários, e seu mais novo empregador é um certo lorde Cotys, da Trácia (John Hurt). Esse lorde está enfrentando uma guerra civil contra um líder rebelde de nome Rhesus, que, pelo que se diz, aterroriza o interior do país, matando e pilhando, à frente de um exército de centauros. O exército de Cotys sofreu grandes perdas, e, para repô-las, só há os novos recrutas - simples camponeses sem qualquer experiência militar. A tarefa de Hércules e seus amigos consiste em treinar esses homens e depois comandá-los na campanha contra Rhesus. Enquanto a história vai sendo contada, pistas vão surgindo sobre o passado do herói, principalmente sobre o episódio triste e traumático da morte de Mégara e dos filhos - que, só para dar uma dica, não é exatamente como na lenda. Mais: também vão aparecendo as evidências de que, embora Hércules seja, sem dúvida, um dos guerreiros mais poderosos do mundo em seu tempo, pode ser que nem tudo o que se conta sobre ele seja bem como dizem. Isso levanta a indagação que talvez seja o ponto central do filme: o que faz de alguém um herói? Poder ou espírito? A dimensão de suas façanhas, ou a coragem necessária para realizá-las? Junto com isso, o desenrolar dos acontecimentos vem mostrar que a situação na Trácia é um tanto diferente do que a princípio parecia, o que irá exigir de Hércules e dos outros uma decisão difícil.

Quando Hércules acabava de estrear, li em algum lugar da internet um comentário que dizia que ele "desconstruía" a lenda, o que, na minha opinião, seria uma coisa idiota de se fazer. As lendas devem ser deixadas em paz. Entretanto, quando vi o filme, minha impressão foi bem diferente: Brett Ratner não realizou nenhuma grande obra, mas é inocente de qualquer intenção de "sabotar" a lenda de Hércules reduzindo-a a um punhado de fatos comuns. O recado que a produção procura dar é o de que o mais importante na lenda não são os detalhes fantásticos, mas a essência da história, aquilo que podemos aprender com ela. Não importa tanto se Hércules tinha a força de dez homens ou se não tinha, se ele enfrentou monstros fabulosos ou só ameaças naturais; aliás, não importa tanto nem mesmo se houve um Hércules de carne e osso ou se não houve. O importante é compreendermos que o heroísmo não reside em superforça nem em sangue divino, e sim em um determinado tipo de atitude diante de desafios ou situações adversas, quando uma pessoa está lutando por alguma coisa maior que ela própria. O heroísmo está acessível a todo ser humano, mas são poucos os que o alcançam, e, dos que alcançam, a maioria continuará anônima para sempre.