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domingo, setembro 10, 2017

Aléxandros: O Sonho de Olympias

Até que outro livro me leve a mudar de ideia, considero a trilogia Aléxandros como o melhor trabalho de Valerio Massimo Manfredi, pelo menos na parte que se refere ao entretenimento: por alguma razão, aqui os diálogos não sofrem daquela certa rigidez pouco natural, nem as cenas de ação, do andamento arrastado que prejudica partes de suas outras obras. Como resultado, a leitura flui tão fácil que, quando nos damos conta, já percorremos os três volumes quase como se fossem um.

Muito disso deve-se ao carisma da própria figura central da trilogia, um homem absolutamente único na História, por várias razões. Como já deve estar mais ou menos óbvio até para quem não sabe nada sobre a obra, o Aléxandros do título (com tônica no é e o x pronunciado ks) é ele mesmo: Alexandre III da Macedônia, que divide com um escasso punhado de outros vultos históricos a rara distinção de ser conhecido como "o Grande". Mas não se preocupem, pois ele só é chamado assim em alguns trechos onde o autor introduz breves falas em grego; durante o resto do tempo, é Alexandre mesmo.

Poderíamos dizer que Alexandre deve ter ganho em algum tipo de loteria por ocasião de seu nascimento, considerando a grandiosa combinação de circunstâncias que permitiu que ele se tornasse aquilo que foi. Não há a menor dúvida de que tinha um conjunto raro de qualidades: inteligência, coragem, carisma pessoal, empatia, talento para uma vasta e diversificada gama de atividades, e, não menos importante, uma energia aparentemente inesgotável. Em adição a tudo isso, nasceu de um pai e de uma mãe que, cada um por suas próprias razões, tinham o máximo interesse em proporcionar-lhe a melhor educação possível – e dispunham de amplos meios para tanto. Por fim, Alexandre nasceu no lugar certo e no momento (histórico) exato. Em resumo, ele tinha tudo para dar certo, mas isso não diminui nem um pouco seus méritos individuais em tudo o que realizou durante sua curta e extraordinária vida.

A relação dos macedônios com a Grécia, ao tempo do nascimento e infância de Alexandre, era semelhante à dos romanos cerca de um século e meio depois: uma admiração não correspondida de um lado, um desprezo mesclado de temor do outro. Havia um desejo generalizado, por parte da classe mais instruída da Macedônia (aí incluídas a nobreza e a realeza) de que o país se integrasse ao mundo helênico, beneficiando-se de seus avanços sociais e políticos e de sua cultura; já os gregos desprezavam seus vizinhos do norte, que tachavam de bárbaros, porque, embora fossem muito próximos deles – tinham a mesma origem étnica, a mesma religião, e uma língua muito parecida –, os macedônios eram um povo rústico e inculto, essencialmente pastores das montanhas. Não deixava de ser uma ingratidão, de certa forma, pois, se não houvesse a Macedônia, a Grécia estaria diretamente exposta aos ataques dos verdadeiros bárbaros – os povos eslavos de além dos Bálcãs –, e isso era a última coisa de que ela precisava, considerando que já penava para resistir às intermitentes tentativas de invasão por parte do Império Persa. O rei Filipe II (r. 359-336 a.C.), pai de Alexandre, via claramente a necessidade de promover essa integração, e as vantagens que isso traria ao seu reino, não só do ponto de vista cultural, mas também político e estratégico. Essa, para ele, era a parte mais importante de sua missão como rei; porém, e também à semelhança dos romanos, Filipe e sua gente tinham como lema que "admiração é admiração, guerra e poder à parte". Já que a Grécia não estava disposta a abraçar a Macedônia como país irmão, seria obrigada a respeitá-la pela sua força militar.


Injustamente relegado em muitas crônicas históricas ao papel secundário de "pai de Alexandre", Filipe foi um rei astuto, notável tanto por sua habilidade política quanto pelo talento militar. Subjugou ou forjou alianças com vários povos vizinhos, anexou as cidades gregas da costa do mar Adriático (entre outras) e reformou completamente o exército medíocre que herdara do pai, fazendo dele uma força bélica que não conheceria rival até o surgimento das legiões romanas. Filipe, na verdade, "não era" para ter sido rei, já que tinha dois irmãos mais velhos, que reinaram durante curtos períodos: Alexandre II (r. 370-368 a.C.) e Pérdicas III (r. 365-359 a.C.); o primeiro foi assassinado, e o outro morreu em combate. Com 14 anos de idade, o então príncipe Filipe foi entregue como refém a Tebas (a Tebas grega: não confundir com a cidade egípcia de mesmo nome), e por quatro anos viveu na casa de Epaminondas, o maior general daquela cidade, com quem muito aprendeu; mal imaginava o general que estava educando o futuro pai daquele que riscaria sua cidade do mapa. Mais tarde, de volta à pátria e já ocupando o trono, Filipe faria excelente uso do que aprendera em Tebas, mas a maioria dos historiadores está de acordo em que a maior contribuição que deu para fazer do exército macedônio o mais temido do mundo foi mérito exclusivamente seu: é a Filipe que se atribui a invenção da sarissa. Nerds de história militar, preparem-se para algo interessante. O resto de vocês talvez prefira pular os próximos dois parágrafos (risos).

O que Filipe fez, de certa forma, foi reinventar a falange, que vinha sendo a espinha dorsal dos exércitos gregos já fazia séculos. Substituiu a tradicional dórica, uma sólida lança com dois a três metros de comprimento, pela sarissa, que podia medir até o dobro disso (!), com um fuste feito de madeiras selecionadas, geralmente corniso, tratadas com cera de abelha para máxima resistência e uma certa maleabilidade. Numa mesma unidade, os soldados portavam lanças de comprimentos variados: os das fileiras da frente tinham as mais curtas, e o comprimento ia aumentando gradativamente em direção à retaguarda. Em vez de lutarem ombro a ombro numa formação compacta, criando uma parede de escudos, como fazia a falange tradicional, os soldados da infantaria pesada macedônia mantinham entre si um espaço suficiente para passarem as enormes lanças dos companheiros das fileiras de trás. Com isso, as cabeças das lanças de todas as fileiras podiam ser alinhadas, formando uma verdadeira barragem de pontas afiadas que tornava a falange macedônica praticamente invulnerável a ataques frontais. Seu ponto fraco eram os flancos, que Filipe tratou de guarnecer com tropas auxiliares de infantaria leve, arqueiros e fundibulários. Também faziam parte de sua máquina de guerra duas poderosas alas de cavalaria pesada: os Hetairoi ('Companheiros'), oriundos da nobreza macedônia, e os Tessalônicos, recrutados na região grega da Tessália, aliada da Macedônia e famosa como a terra dos melhores cavalos do mundo. Essas alas eram especialmente mortíferas por combinarem mobilidade com um tremendo poder de choque; Filipe dizia que a falange era uma bigorna, e a cavalaria, um martelo.

Ainda a respeito da falange, foram necessárias algumas outras adaptações, das quais a mais visível foi a redução do tamanho do escudo: uma sarissa era bastante pesada, com até cinco ou seis quilos, e precisava ser manejada com as duas mãos, o que tornava inviável ao soldado portar o enorme e pesado escudo hoplon; foi adotado um escudo um pouco menor (embora ainda muito maior que o da infantaria leve), o que tinha o seu custo em termos de proteção individual, mas isso era equilibrado pelo fato de que, na nova maneira de combater, havia boas probabilidades de que o soldado não precisasse engajar-se em luta corpo a corpo com o inimigo. É curioso notar que, como uma lança de seis metros de comprimento tinha uma inevitável tendência de apontar para baixo quando empunhada, as sarissas mais longas, as das fileiras de trás, eram providas de um contrapeso na extremidade do cabo, como mostrado na ilustração. Essa arma inovadora, combinada à tática da frente oblíqua (também chamada ordem oblíqua), aprendida com Epaminondas, deu a Filipe uma série de vitórias memoráveis, e Alexandre, mais tarde, também se mostrou um mestre na utilização desses dois trunfos. O sonho de Filipe (para cuja realização esse poderoso exército seria uma ferramenta importante) era criar uma liga reunindo todas as principais cidades-estado gregas, pondo fim à interminável história de conflitos entre elas, e então, à frente de uma força militar formada por macedônios e gregos, invadir a Ásia e desferir um golpe mortal direto no coração do Império Persa, aniquilando de uma vez por todas o inimigo que já ameaçava o mundo helênico há tanto tempo. Uma tal façanha, sem a menor dúvida, gravaria seu nome para sempre nas páginas da História.

Dos assuntos militares para os dinásticos… Olímpia (que Manfredi chama de Olympias), mãe de Alexandre, era uma princesa do Épiro, pequeno reino vizinho da Macedônia, pouco mais que uma cordilheira montanhosa à beira do mar Jônico. Foi a quarta esposa de Filipe (não, ele não tinha enviuvado três vezes: mantinha todas elas simultaneamente, para não falar em mais algumas concubinas), e esse foi um casamento político, é claro, embora tudo indique que o rei, ao menos durante algum tempo, tenha sido verdadeiramente apaixonado por ela, que era linda e tinha uma personalidade e tanto. É provável que em parte por isso, e em parte por ter dado a Filipe um filho homem, ela foi alçada à dignidade de rainha (que era diferente de simplesmente ser esposa do rei), o que, naturalmente, atraiu a inveja das outras, contra as quais Olímpia passou boa parte da vida se precavendo. Na verdade, uma das outras esposas de Filipe já tinha um filho, Arrideu, mas esse não era considerado um candidato viável ao trono por ser meio fraco da cabeça, o que teria sido sequela de uma doença. Houve boatos de que a tal "doença" teria sido resultado de um envenenamento ordenado por Olímpia, que não queria que o garoto viesse, no futuro, a competir pelo trono com seu querido Alexandre. Nada jamais foi provado, mas, à luz do que sabemos sobre a rainha, não parece que ela seria incapaz de algo assim, se fosse para defender os interesses do filho.

Seja como for, parece que, a partir do momento em que Alexandre nasceu, Filipe nunca vacilou em relação a quem seria seu sucessor. Um bom indicativo disso foi o tanto de dinheiro e esforço que investiu na educação dele. Seus estudos foram supervisionados, a princípio, por um certo Leônidas, parente da rainha, que, além de ensinar pessoalmente, selecionava os professores que instruiriam o príncipe em matérias específicas. Mas nenhum mestre foi tão marcante para Alexandre (e para o resto do mundo) quanto Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.), responsável por sua educação dos 13 aos 16 anos. É claro que, na época, ninguém podia saber que Aristóteles passaria à História como um dos maiores filósofos que já viveram, mas ele já gozava de suficiente prestígio para que comprar seu passe não fosse barato – um investimento que Filipe fez sem hesitar, e parece que os ensinamentos do sábio lapidaram de forma única o já privilegiado intelecto de Alexandre.

Eita! Comecei este texto com o objetivo de comentar a trilogia de Valerio Massimo Manfredi, mas acabo de perceber que escorreguei para uma biografia resumida (ou nem tanto) do personagem. Vamos tentar voltar aos trilhos.

Bem, Manfredi não é nenhum grande vulto da literatura, e sabe disso. Não nos oferece momentos arrebatadores de drama, nem personagens profundos e multifacetados; sabe que não tem cacife para tanto, e não se sabota com tentativas pretensiosas de fazê-lo. Seu objetivo era que o leitor, ao terminar estes três volumes, tivesse uma razoável noção de como foi a vida de Alexandre, e que tivesse se divertido no processo – e ele conseguiu. Um de seus diferenciais em relação a outras "vidas de Alexandre" está no fato de dar certo destaque a alguns personagens que elas não mencionam muito, como o grupo de amigos de infância, todos eles filhos de nobres da Macedônia, que foram educados com ele, cresceram em sua companhia e vieram a ser seus generais. É muito curioso ler sobre aqueles garotos vivendo seus anos de molecagens despreocupadas e lembrar que pelo menos dois deles – Seleuco e Ptolomeu – dariam nome a dinastias!… Também fazia parte desse grupo ele: Heféstion, o companheiro mais chegado de Alexandre e, segundo muitos, seu amante, o que seria encarado com relativa tranquilidade entre os gregos, mas suscitaria reprovação na Macedônia. De todo modo, Manfredi opta por não colocar nenhuma ênfase particular na relação dos dois, provavelmente porque tinha outras coisas em mente para destacar em sua obra, e não quis desviar a atenção dos leitores criando polêmica desnecessária em torno da sexualidade do personagem. O suposto affair de Alexandre e Heféstion até é mencionado, mas de forma casual e nada conclusiva: um ou outro personagem comenta, como quem ouviu um boato, que "dizem que os dois são amantes" – e é tudo. Nas cenas em que eles efetivamente aparecem, nada sugere isso. Para Manfredi, Alexandre e Heféstion são grandes amigos, e isso basta.

Sabe-se que as famílias reais não são como as outras famílias, e a de Alexandre é um bom exemplo. Como vimos, seu pai nunca se pejou de praticar a poligamia, o que os costumes macedônios toleravam; com isso ele criou, de certa forma, diversas famílias menores, cada uma formada por uma esposa ou amante e os respectivos filhos. Alexandre estava na "subfamília" de maior prestígio e privilégio, já que era o herdeiro presuntivo do trono e sua mãe tinha o status de rainha, que manteve mesmo depois que suas relações com Filipe já haviam esfriado até ao ponto de os dois só eventualmente se verem. Olímpia, por falar nisso, teve outra filha, Cleópatra, única irmã bilateral de Alexandre, que tinha tantos meios-irmãos. Não há relação direta entre essa Cleópatra e a famosa rainha do Egito de quase três séculos depois, mas a semelhança não é mera coincidência. Esse nome (grego) era bastante popular na Macedônia; quando Alexandre morreu, seu império foi dividido entre seus generais, cabendo a Ptolomeu o Egito, onde o amigo de infância de Alexandre recebeu o tradicional título de faraó, reinou até o final de sua vida e, de quebra, fundou a última dinastia a governar o país – dinastia essa que, por ser de origem grega, nunca foi plenamente aceita pelo povo egípcio. A Cleópatra "de César" foi a última de uma longa sucessão de rainhas e princesas com o mesmo nome, todas descendentes de Ptolomeu.

Apesar de viverem essa situação que, para nós, parece tão estranha, tudo indica que Alexandre e o pai tivessem uma relação próxima e afetuosa, pelo menos o tipo de afeto do qual o rude guerreiro Filipe era capaz. Amava o filho do seu jeito e tinha orgulho dele, enquanto Alexandre amava o pai com um amor pontuado pela admiração e – como muito bem sublinha Manfredi – pela vontade de competir. A meu ver, o Filipe de Manfredi é um tanto moderado demais no trato com o filho, se comparado ao que algumas biografias de Alexandre fazem crer: a impressão que se tem dessas biografias é a de que o Filipe histórico estava mais preocupado em tornar o rapaz forte que em deixar-lhe boas recordações. Exemplo disso é o célebre episódio do garanhão Bucéfalo. No primeiro volume da trilogia, O Sonho de Olympias, o caso é narrado da seguinte forma: Filipe havia mandado Alexandre para uma espécie de retiro num lugar chamado Mésia, para que ele pudesse dedicar-se a seus estudos com Aristóteles sem ser distraído pela agitação da vida em Pela, a capital da Macedônia. Ali o jovem passa cerca de três anos, apenas com esporádicas visitas à capital para ver os pais e a irmã. Ao decidir que é hora de trazer o filho de volta para casa, Filipe vai pessoalmente buscá-lo e leva-lhe um presente: um cavalo magnífico, mas selvagem, que ninguém consegue dominar. O rei, pacientemente, explica ao filho que ele precisará esperar que o animal seja domado antes de poder montá-lo. Na versão de Plutarco, seguida também por outros romances que retratam a vida de Alexandre, o caso todo ocorre de forma bastante dura e absolutamente não premeditada. Filônico, um criador de cavalos da Tessália, tinha ido a Pela negociar seus animais, e ofereceu o garanhão a Filipe por treze talentos, uma soma altíssima. O rei, impressionado com a estatura e a aparência imponente do animal, pensou em comprá-lo para seu próprio uso, mas desistiu depois que seus melhores cavaleiros tentaram domá-lo sem sucesso, e disse a Filônico para levá-lo embora. O jovem Alexandre, de 14 anos, encantado pelo cavalo assim que o viu, protestou, garantindo que podia domá-lo, o que lhe valeu uma reprimenda por parte do pai, que considerou isso uma intolerável demonstração de arrogância. O garoto insistiu e o rei acabou consentindo em deixá-lo tentar, mediante um acordo, ou, melhor dizendo, uma aposta: se Alexandre conseguisse domar Bucéfalo, Filipe o compraria para ele; caso contrário, o próprio príncipe teria que pagar o preço do animal – o que, é claro, estava totalmente fora da realidade. É óbvio que tudo o que Filipe esperava era que alguns tombos e uma pequena humilhação ensinassem a seu filho algo sobre humildade, mas ele não estava preparado para o que veria a seguir, nem o estavam Filônico, os cavaleiros macedônios, ou as dezenas de membros da corte que testemunharam o evento. Com suas capacidades de observação e análise muito bem treinadas pelas lições de Aristóteles, Alexandre percebeu que o cavalo se assustava com os movimentos de sua própria sombra; obrigou-o a virar a cabeça de frente para o sol e, a seguir, cavalgou-o e o fez galopar até a exaustão, quebrando-lhe toda a resistência. Ao ver o terrível Bucéfalo domado por aquele pirralho, conta-se que Filipe foi às lágrimas de orgulho e, abraçando fortemente o filho, disse uma frase que entraria para a História: "Meu filho, procura para ti outro reino! A Macedônia é pequena para um príncipe como tu!"

Daí em diante, Bucéfalo foi a montaria de Alexandre em todas as suas batalhas (das quais não perdeu uma só) durante quase 18 anos, e, quando morreu, seu nome batizou uma das novas cidades que ele fundou na Ásia. Uma das muitas lendas em torno de Alexandre diz que Bucéfalo teria nascido no mesmo dia que ele, mas isso, na certa, não passa de uma invenção poética. Primeiro, porque não era costume de ninguém na época registrar a data de nascimento de um cavalo, e segundo, porque, se fosse assim, Bucéfalo, ao ser domado por Alexandre, já estaria com 14 anos, idade madura para sua espécie, e seria muito pouco provável que um criador permitisse a algum de seus animais chegar indomado a essa altura da vida: caso a doma resultasse mesmo impossível, teria sido sacrificado bem antes. Tampouco teria utilidade como reprodutor, já que o mais provável era que gerasse potros tão intratáveis quanto ele próprio. Portanto, Bucéfalo devia ter uns quatro ou cinco anos – adulto, mas ainda jovem –, e foi uma grande sorte para ele ter encontrado o príncipe da Macedônia. Alexandre, que comandava pessoalmente sua cavalaria no campo de batalha, tinha outras montarias, mas fazia questão de montar Bucéfalo no início de cada batalha: para ele, além de um amigo, o cavalo era uma espécie de talismã.

E, embora tivesse, antes disso, liderado pequenas expedições militares contra certas tribos do norte que punham em perigo as fronteiras da Macedônia, a primeira grande batalha de Alexandre (montando Bucéfalo, naturalmente) foi aos 18 anos, em Queroneia (338 a.C.), onde compartilhou o comando com o pai, derrotando uma coalizão de atenienses e tebanos. Depois da vitória, Filipe optou por mostrar-se generoso para com os vencidos, estabelecendo condições moderadas para a paz e incumbindo Alexandre de liderar pessoalmente a comitiva que foi enviada a Atenas para levar as cinzas dos mortos da cidade, a fim de que tivessem um sepultamento digno. Daí em diante, Atenas mostrou-se mais cooperativa para com a Macedônia… Mas Tebas não, o que seu povo, mais tarde, viria a lamentar.

É, não tem jeito: escrever sobre um assunto que se adora é praticamente garantia de "viajar" longe. Eu ia mencionar Bucéfalo de passagem, só para ilustrar o que estava dizendo sobre a forma como o rei Filipe encarava a educação do filho, e vejam só onde vim parar… Pretendia fazer um único post sobre a trilogia, mas vejo que isso vai ser impossível, então este fica sendo apenas sobre o primeiro volume, e mais tarde decido se faço outro sobre os volumes dois e três, ou se cada um deles terá que ter o seu próprio.

Além dos amigos de infância de Alexandre, outro personagem que ganhou destaque na trilogia de Manfredi (pois, em outras obras, só aparece de forma menos que periférica) foi seu tio e xará, Alexandre, rei do Épiro. Ainda um menino quando Olímpia, sua irmã mais velha, casou-se com Filipe, Alexandre viveu anos na corte de Pela, sob a proteção do cunhado, para evitar que fosse assassinado por qualquer dos nobres conspiradores que na época se digladiavam pelo trono do Épiro. Quando completou 20 anos, voltou à terra natal e, graças à ajuda de Filipe, conseguiu recuperar o trono de seus ancestrais. Cerca de cinco anos depois disso, Filipe tomou mais uma esposa, Eurídice, que tinha a idade de sua filha Cleópatra e era filha (ou sobrinha; as fontes divergem) de Átalo, um de seus generais. Uma esposa a mais ou a menos teria feito pouca diferença, não fosse por um acontecimento infeliz: na festa do casamento, Átalo, já embriagado, decidiu fazer um brinde aos noivos, rogando aos deuses que de sua união nascesse um "herdeiro legítimo" para o trono da Macedônia. Isso, é claro, equivalia a chamar Alexandre de bastardo, e o príncipe não deixou por menos: confrontou Átalo exigindo que engolisse suas palavras, e, ao não ser obedecido, atirou sua taça na cara do general. Filipe, furioso e também embriagado, desembainhou a espada e investiu contra o filho, que o esperava empunhando a sua, e talvez a coisa tivesse degenerado numa luta de verdade entre os dois, com consequências imprevisíveis, se o rei não tivesse falseado o pé e caído. Alexandre fez um comentário sarcástico sobre reis que querem invadir a Ásia, mas não conseguem nem atravessar um salão de festa, e rapidamente retirou-se; conhecia o pai e sabia que, naquele momento, Filipe seria mesmo capaz de mandar matá-lo, ainda que mais tarde morresse de remorso. Alexandre e Olímpia fugiram às pressas de Pela e refugiaram-se na corte do irmão dela, mas ali tinham pouco sossego: a cada poucos dias chegava um mensageiro de Filipe com uma carta exigindo que Alexandre retornasse a Pela e se desculpasse formalmente por seu comportamento, o que, com seu orgulho, ele jamais faria. A situação ficou ruim para Alexandre do Épiro, que, nessa briga, dava razão ao sobrinho, mas, por outro lado, devia seu trono ao cunhado. Diante disso, Alexandre, acompanhado apenas pelo fiel Heféstion, deixou o Épiro e partiu para a Ilíria (mais ou menos equivalente às atuais Sérvia, Croácia e Montenegro), na época uma terra de tribos bárbaras, algumas das quais ele já havia enfrentado e vencido em batalha à frente do exército do pai, isso nos seus 16, 17 anos; agora tinha 19 e uma reputação que o precedia. Não se sabe que aventuras Alexandre viveu durante o meio ano que duraram suas andanças pela Ilíria, e Manfredi trata o assunto com breves pinceladas; tenho para mim que só esses meses já dariam assunto para um livro.

Quaisquer que tivessem sido as ofensas trocadas, Filipe amava o filho, e, o que era mais, sabia que a participação dele seria essencial em sua planejada campanha contra os persas. Os dois eram muito orgulhosos, e não está claro quem tomou a iniciativa ou cedeu um pouco para possibilitar a reconciliação, mas esta aconteceu afinal em 336 a.C., pouco antes de o exílio de Alexandre completar um ano (Manfredi atribui o fato à esperteza de Eumênio, amigo de Alexandre e secretário-chefe de Filipe). Alexandre retornou e fez as pazes com o pai, mas parece que o relacionamento dos dois nunca voltou a ser como antes… Bem, na verdade não houve tempo para isso, mas é melhor não nos anteciparmos.

A rainha Olímpia havia permanecido na corte do Épiro quando Alexandre partiu para a Ilíria, e lá continuou quando ele retornou a Pela. Considerando-se desonrada por Filipe, ela tentou convencer o irmão a declarar guerra à Macedônia – o que Alexandre do Épiro precisaria ser, no mínimo, doido de pedra para fazer. Ele tinha um bom exército, sim (por sinal, organizado segundo o modelo macedônio, já que o treinamento fora cortesia de Filipe), mas a simples superioridade numérica do oponente decidiria esse conflito em questão de semanas, se tanto – isso para nem mencionar que Alexandre do Épiro era um jovem guerreiro esforçado, mas Filipe era um general tarimbado cujas vitórias contavam-se às dezenas. Assim, a única resposta que Olímpia teve a suas pressões foi um categórico "nem pensar". Mesmo assim, Filipe julgou conveniente fortalecer os laços com o cunhado fazendo dele também seu genro, e ofereceu-lhe a mão da princesa Cleópatra. A jovem, educada desde a infância para resignar-se à ideia de um casamento político, que o pai decidiria sem pedir sua opinião, deve ter-se considerado com sorte no final das contas: Alexandre do Épiro era belo, gentil, inteligente e valente, e, apesar de serem tio e sobrinha, a diferença de idade entre os dois não passava de seis ou sete anos. O casamento foi preparado em Pela, com toda a grandiosidade possível, pois Filipe não perderia mais essa oportunidade de impressionar seus novos aliados gregos. O que ele não esperava era ser assassinado pouco depois da cerimônia, e antes do começo dos festejos, por um membro de sua própria guarda pessoal, um tal Pausânias. Sabia-se que esse guarda tinha queixas contra Filipe, que o havia humilhado em público durante uma de suas crises etílicas; depois, arrependido, tentou compensá-lo com presentes e honrarias, mas sem nunca desculpar-se de fato (é claro). Só que, por mais que Pausânias tivesse mágoas pessoais de seu senhor, é sempre difícil acreditar que o assassinato de um rei ocorra sem nenhuma motivação política por trás. Na lista de suspeitos de serem os mandantes figuraram desde Dario III Codomano, rei da Pérsia, que sabia dos planos de Filipe para atacá-lo, até Olímpia e o próprio Alexandre, que poderiam ter agido juntos ou separados, mas ambos no interesse de evitar que Filipe nomeasse como sucessor o pequeno Carano, seu filho com Eurídice (correndo o risco de ser ingênuo, eu prefiro acreditar que Alexandre não fosse capaz de tal coisa; Olímpia são outros quinhentos). A ordem poderia ter partido, ainda, de alguma das cidades gregas que, muito a contragosto e principalmente por medo, haviam aderido à "liga pan-helênica" que Filipe forjara e da qual se fizera líder. Porém, Pausânias, o único que poderia (mediante a "persuasão adequada") fornecer alguma informação a respeito, foi morto pelos outros guardas logo depois de consumar seu ato, e a verdade sobre os motivos do assassinato de Filipe morreu com ele.

Coroado aos 20 anos de idade assim como acontecera com seu tio, Alexandre teve como primeiro desafio na condição de rei reafirmar (por quaisquer meios possíveis) a lealdade ou ao menos a cooperação dos gregos, a fim de garantir alguma segurança e estabilidade quando partisse para a Ásia. Até mesmo a Tessália, tradicional aliada da Macedônia, vivia dias agitados, mas o jovem rei conseguiu acalmar os ânimos sem necessidade de luta. Fez o mesmo com Atenas e outras cidades; já Tebas, onde seu pai aprendera muito do que lhe ensinou, estava em negociações com o rei Dario, que prometia fornecer armas e dinheiro se os tebanos liderassem um movimento na Grécia para resistir à "tirania macedônica". A cidade não recuou de sua postura de desafio, e Alexandre, que, via de regra, era clemente com os vencidos, julgou necessário abrir uma exceção: ordenou que Tebas fosse arrasada (na verdade, como ele era um amante das artes, mandou poupar a casa onde vivera o poeta Píndaro). Quem sobreviveu teve por destino o mercado de escravos. Não foi uma vitória fácil, pois os tebanos eram guerreiros notáveis, mas serviu a seu objetivo, de modo que foi uma Grécia em relativa paz e tranquilidade que o exército macedônio (reforçado por algumas tropas gregas) deixou atrás de si ao fazer a travessia para a Ásia. O primeiro volume da trilogia termina aqui, mas não posso finalizar sem mais um comentário: achei emocionante ver o paralelo entre a aventura de Alexandre da Macedônia rumo ao oriente e a de Alexandre do Épiro rumo ao ocidente, pois, meses mais tarde, o tio e cunhado do jovem rei partiu para a Itália a fim de atender ao pedido de ajuda dos colonos gregos em Taranto, ameaçados por algumas das várias tribos independentes e belicosas que então habitavam a Península Itálica. Alexandre do Épiro, inclusive, faria uma aliança com Roma, na época uma potência em crescimento, ainda muito longe de tornar-se aquilo que a menção de seu nome desperta em nossa imaginação hoje em dia. Essa aventura empolgante não era mencionada nem sequer de passagem em nenhuma das outras versões da vida de Alexandre da Macedônia que li, e olhe que foram várias. Concluo que Alexandre do Épiro teve azar em ser tio de seu sobrinho, pois, por mais que ele tenha feito coisas extraordinárias, a sombra do outro Alexandre o encobriu por completo. Dificilmente alguém escreverá um livro ou fará um filme sobre ele, o que é mesmo uma pena.

Pois é… Acabei resumindo o livro todo, erro que antigamente eu volta e meia cometia nos meus posts, mas que tenho, em geral, conseguido evitar nos últimos tempos. O problema é que, por alguma razão, fica bem mais difícil evitar isso quando os acontecimentos sobre os quais estou escrevendo são históricos. Paciência: gostei pra caramba de escrever este texto, gostei de como ficou, e agora já me afeiçoei demais a ele para conseguir mudá-lo muito – quem gosta de escrever conhece a sensação: um texto, de certa maneira, é como se fosse um filho. Felizmente, como este é apenas o primeiro volume, acho que não dei grandes spoilers, mesmo que haja alguém no planeta com algum interesse no mundo helênico (ao menos o suficiente para desejar ler esta trilogia) e que já não saiba, em linhas gerais, como a história de Alexandre continua e como ela termina. Enfim: quem já leu Aléxandros me compreende, e quem ainda não leu deveria fazer isso o quanto antes.

quinta-feira, outubro 15, 2015

O Império dos Dragões

No ano 260 d.C., a cidade romana de Edessa, na Anatólia (correspondente a parte da atual Turquia) está sob cerco do exército persa. Dentro de suas muralhas, o bom imperador Valeriano espera por reforços, quatro legiões que estão vindo do oeste, conduzidas por seu filho Galieno, mas acaba por ficar evidente que o socorro não chegará a tempo de evitar que a população e as tropas aquarteladas na cidade pereçam devido à fome. Então chega uma mensagem de Shapur I, rei dos persas, propondo um encontro para discutir condições para o fim do cerco e a instauração da paz na região. Contrariando os conselhos do experiente legado Marco Metelo Áquila (o "Comandante Águia", como é chamado por seus homens), o imperador aceita o convite. Uma vez que suas advertências não deram resultado, Metelo insiste para que Valeriano lhe permita acompanhá-lo, no que é atendido.

Infelizmente, Metelo Áquila estava certo em desconfiar: o convite era uma armadilha. O imperador cai prisioneiro dos persas, e, com ele, Metelo e mais dez homens de sua legião, a Segunda Augusta (não tenho certeza se a presença da Augusta na Anatólia na segunda metade do século III é histórica; não encontrei registros nesse sentido, mas também nenhuma evidência em contrário). Não se sabe mais nada de Valeriano depois disso; ele pode ter sido executado pelos persas logo em seguida, ou pode ter vivido anos no cativeiro.

Tal como já o fizera em A Última Legião, Valerius Maximus Manfredus… perdão, Valerio Massimo Manfredi aproveita-se do final reticente da biografia de um imperador romano para explorar possibilidades surpreendentes numa obra de ficção. Porém, diferente do que acontecia naquele livro, neste o imperador em questão não vê o fim da jornada. O grupo é levado para uma mina de turquesas no coração do Império Persa – e ir para uma mina era um dos piores destinos que alguém podia ter na época. As condições insalubres, a alimentação miserável e os maus-tratos cobram seu preço de todos, mas Valeriano, devido à idade, sofre mais, e acaba não resistindo – ele e um soldado cuja fé cristã atrai a antipatia dos feitores persas, valendo-lhe uma dose extra de castigos físicos. À parte essas duas baixas, o restante do grupo insiste em agarrar-se à vida, até que, quando se dão conta, estão trabalhando na mina há mais de um ano, o que já é bem mais do que a maioria sobrevive em tal lugar. Quando conseguem fugir, isso é um feito inédito, só alcançado graças à ajuda de um prisioneiro veterano, o único que está lá há mais tempo que eles. Os conselhos do velho de nome Uxal e seu conhecimento do terreno, aliados à determinação dos romanos e sua capacidade para agir em equipe, permitem ao grupo escapar da mina, mas isso é apenas o começo de sua odisseia, que segue com uma exaustiva e perigosa fuga pelo deserto, caçados pelos persas. Num entreposto comercial, perto de onde o rio Khaboras (hoje conhecido como Khabur, na Síria) deságua no legendário Tigre, encontram um mercador indiano que os contrata como escolta para sua caravana, que, a partir daí, segue viagem pelo rio. Em tal companhia, Metelo e os outros chegam à foz do Tigre, no Golfo Pérsico, e, mais tarde, ao Oceano Índico, em cujas águas, até então, pouquíssimos europeus navegaram.

O plano original é separarem-se aí; os romanos esperam encontrar um navio que os leve rumo ao oeste e de volta para casa, enquanto Daruma, o indiano, seguirá ainda mais para o oriente, rumo ao misterioso país da seda, que, nos mapas romanos, é designado, de forma vaga, como Sera Maior – um lugar sobre o qual Roma, e o ocidente em geral, sabem muito pouco. Porém, é época de monção: durante os seis meses seguintes, ventos fortes e constantes soprando rumo ao leste tornarão impossível navegar em qualquer outra direção; Metelo e seus companheiros teriam que escolher entre ficar esse tempo esperando em alguma vila litorânea, sem conhecer o idioma local e quase sem dinheiro, ou tentar fazer o trajeto por terra, o que levaria talvez um ano ou mais, sem mencionar os incontáveis perigos, o fato de não conhecerem o caminho e, é claro, a vigilância dos persas. Daruma, então, lhes propõe o seguinte: os dez romanos podem continuar em sua função de escolta até que a caravana chegue a seu destino; promete-lhes pagamento generoso e, ao final, providenciar-lhes a viagem de volta. Considerando as poucas opções de que dispõem, Metelo e os outros aceitam.

Quando esse acordo é feito, Metelo já percebeu que Daruma não é um comerciante comum. A carga mais preciosa a viajar em sua caravana e em seus navios não é a mercadoria que leva, e sim um jovem cuja aparência só não é mais exótica que seus modos. Ele diz chamar-se Dan Qing e ser um príncipe chinês, que, depois de um bom tempo como refém dos persas, está retornando a seu país, onde o trono que seria seu por direito foi usurpado. Mesmo sozinho, o príncipe espera retomar o que lhe pertence e devolver a paz a seu império dividido. Dan Qing foi educado em certas misteriosas artes orientais, que combinam filosofia e combate, possuindo habilidades que, aos olhos dos soldados romanos, parecem quase sobre-humanas. Entre ele e Metelo, a despeito de uma interação, a princípio, muito fria e formal, vai gradualmente surgindo o mútuo e natural respeito entre dois homens bravos, semelhantes em essência, apesar de virem praticamente de mundos diferentes, com um abismo de distância e de cultura a separá-los. Acompanhando Dan Qing, Daruma e seus homens, o pequeno grupo de legionários desgarrados irá entrar num mundo exótico, além de sua imaginação, ver inúmeras maravilhas da natureza e da arte, e, também, envolver-se em conflitos de poder e em diversos outros tipos de perigos. Já contei o suficiente, mais que isso seria spoiler, mas podem ter certeza de que as possibilidades abertas por esse enredo são tão enormes e empolgantes, que facilmente renderiam uma série em vez de um único livro.

O Império dos Dragões é mais uma bela história de Valerio Massimo Manfredi, sem dúvida um excelente entretenimento, e também me ensinou um pouco sobre a situação do Império Romano no século III, período do qual não se fala muito… Mas qual será a probabilidade de que essa ficção esteja calcada em algo de verídico? O que Roma e a China sabiam uma da outra nessa época? Será possível que os dois impérios tenham interagido de algum modo?

Por tudo o que sabemos de seguro, com base em registros fiáveis, tanto do ocidente quanto do oriente, parece que os romanos tinham noções muito vagas a respeito da China, e vice-versa – cada uma dessas civilizações pensava na outra como pouco mais que um lugar lendário, inimaginavelmente distante, que podia existir ou não. Apesar disso, a interação acontecia, embora de modo indireto. Sabe-se que os mercados mais refinados de Roma ofereciam especiarias, seda e jade trazidos da China, o que não significa que algum mercador tivesse feito todo o percurso – esses produtos, provavelmente, eram comprados e vendidos pelo menos meia dúzia de vezes desde o seu local de origem até a venda ao consumidor final, o que era mais um motivo para que seus preços fossem proibitivos para todos com exceção dos mais ricos. Entretanto, não é impossível que, em algum momento da Antiguidade, uma conspiração de eventos, jamais prevista por ninguém, tenha levado esses dois mundos distantes a entrarem em contato de outras formas.


Rumores sobre a presença de contingentes militares romanos na antiga China circulam há séculos, e investigações feitas nos tempos modernos chegaram a fornecer-lhes certo respaldo, ao menos aparente. Depois da batalha de Carras, em 53 a.C. – uma das piores derrotas sofridas pelo exército romano em sua longa história –, cerca de dez mil legionários (ou seja, o equivalente a duas legiões inteiras) foram feitos prisioneiros pelos inimigos partas, e nunca mais o ocidente ouviu falar deles… Até meados do século XX, quando alguns historiadores ingleses levantaram uma hipótese, no mínimo, curiosa. Esses pesquisadores examinaram registros chineses sobre a batalha de Zhizhi, travada em 36 a.C., em algum lugar do atual Cazaquistão, entre as forças do Império do Centro (que era como a China chamava a si própria) e um povo que eles chamavam de Xiongnu, e que eram provavelmente os citas, cavaleiros nômades que habitavam as estepes de partes das atuais Rússia e Ucrânia. Nessa batalha, segundo tais registros, os Xiongnu contavam com uma infantaria pesada que lutava numa formação que os chineses nunca tinham visto; nela, os soldados posicionavam seus escudos numa configuração semelhante à de escamas de peixe. O ponto é: os citas, como outros povos acostumados a viver e morrer sobre seus cavalos, consideravam desonroso lutar a pé; seus exércitos eram compostos principalmente por arqueiros montados. Portanto, se os tais Xiongnu eram mesmo os citas – como parece ser o mais provável –, isso levanta a questão de qual seria a origem dessa infantaria. Os pesquisadores pensaram o mesmo que eu teria pensado no lugar deles: essa parte sobre os escudos dispostos "como escamas de peixe" parece uma descrição bastante boa da manobra que os legionários romanos chamavam de testudo ('tartaruga'), e, afinal, a batalha de Zhizhi foi apenas 17 anos depois da de Carras… É plausível, ao menos em tese, que os partas tivessem vendido os romanos capturados como soldados-escravos para os citas, seus vizinhos do norte, ou que ao menos parte dos legionários tivessem, de alguma forma, recuperado sua liberdade, e, ante a quase impossibilidade de voltarem para casa, passassem a ganhar a vida como mercenários.

Já se apontaram, como uma possível evidência a favor dessa teoria, as curiosas características étnicas dos habitantes da pequena cidade de Liqian, no norte da China, muitos dos quais têm olhos azuis ou esverdeados, cabelos alourados e estatura mais alta que a comum na região… Acontece que essas características nunca foram típicas dos romanos, um povo originalmente de estatura mediana, olhos e cabelos escuros. Por outro lado, as legiões não eram formadas só por romanos "da gema": para alistar-se, bastava ter cidadania romana e falar um pouco de latim. Você podia ser cidadão romano sem nunca ter posto o pé na Itália e mesmo que seu biotipo estivesse mais para celta ou germânico: bastava que seu pai, avô, bisavô ou outro ancestral tivesse sido romano, e que, desde então, tivesse havido uma linha ininterrupta de descendentes masculinos. Havia até os que eram cidadãos sem terem um pingo de sangue italiano – eram aqueles cujos pais ou avós haviam servido nas tropas auxiliares, pois, ao darem baixa, esses soldados de origem bárbara recebiam a cidadania romana, que era transmitida aos descendentes. Ou seja, as legiões tinham, sim, a sua quota de soldados altos e de olhos claros. A história da legião perdida pode ter lá o seu fundamento – ou não. Até o momento, não foram encontradas evidências materiais na região de Liqian, tais como armas ou artefatos de estilo romano, o que seria uma prova mais contundente. Por outro lado (de novo!), a ausência desses objetos não é necessariamente uma contraevidência: se os romanos que supostamente chegaram até lá estivessem entre aqueles aprisionados em Carras, seria muito natural que seus captores partas lhes tivessem tirado qualquer objeto que estivessem levando; mais tarde, ao se reequiparem, os romanos teriam que se contentar com armas e utensílios locais. Talvez alguma coisa de muito empolgante ainda esteja por ser descoberta.

Uma observação final. Eu gosto muito de Valerio Massimo Manfredi, apesar de reconhecer que ele não pode ser considerado um grande escritor do ponto de vista da técnica literária; seu métier, originalmente, eram História e arqueologia, e foi a partir disso que chegou à literatura, sem ter tido, até onde sei, um treinamento formal para tanto. Seus diálogos raramente são brilhantes, e os personagens carecem de profundidade e individualidade, mas, mesmo com essas limitações, o cara tem boas ideias e a energia necessária para fazê-las render. Para quem, como eu, é apaixonado por História em geral e pela Antiguidade em particular, seus livros sempre serão interessantes. Pena que, como já acontecia em A Última Legião, também no caso de O Império dos Dragões nem o tradutor Mario Fondelli nem seu revisor (cujo nome não é creditado) parecem ter a mínima noção acerca de como conjugar verbos nas pessoas tu e vós, de modo que a tentativa de dar um ar "de época" às falas dos personagens resulta em coisas realmente horríveis.


quinta-feira, setembro 30, 2010

A Águia da Nona

Séculos de luta - Décadas de guerra ficaram para trás.
Inúmeros foram os homens que derrotamos.
Mas agora, meus irmãos, temos de enfrentar
Um inimigo mais valente que todos os outros.
A mão direita de Roma, o martelo da Espanha
A Nona Legião...


* * *

Esses versos são parte de uma música da banda alemã Suidakra, de seu álbum Caledonia (2006). Quem os conhece já sabe da fascinação que têm por histórias arturianas, mas nesse disco suas viagens líricas vão mais fundo no passado da Bretanha, até os dias da ocupação romana. E talvez tenham até se inspirado, pelo menos em parte, neste e em outros romances da autora inglesa Rosemary Sutcliff. Sei que já tinha lido o nome dela em algum lugar - pensei que pudesse ter sido na parte final do manual de RPG GURPS Império Romano, onde o autor dá inúmeras sugestões de livros, filmes e outras fontes de inspiração para a criação de aventuras, mas, por mais que procurasse, não achei menção a Sutcliff lá. Em todo caso, ao topar com este livro, o nome e o título imediatamente fizeram "tocar um sino" na memória, de modo que o interesse foi automático. E não me arrependi.

Caledônia é o nome que os romanos davam à Escócia, terra que desistiram de conquistar no século II, sob o imperador Adriano. Antes, durante o último quarto do século I, o célebre general Cneu Júlio Agrícola chegara a obter consideráveis sucessos no esforço de conquista, de modo que toda a parte do país ao sul do Firth of Forth (o estuário do rio Forth, o "grande braço de mar", como diz Sutcliff, que pode ser visto no mapa, quase separando as metades norte e sul da Escócia) veio a ser uma província romana, com o nome de Valentia (pronuncia-se Valência, curiosamente o mesmo nome da capital romana da Espanha; não sei o porquê da homonímia). Mais tarde, Adriano, que era contra a política de "conquista pela conquista" de alguns de seus predecessores, determinou o abandono de Valentia, cuja manutenção estava tendo um custo alto tanto em recursos quanto em vidas. Ordenou, então, a construção da muralha que levou seu nome e marcou, grosso modo, o que até hoje é a fronteira da Inglaterra com a Escócia. A Muralha visava proteger a província romana da Bretanha contra os ataques dos povos do norte - os pictos (do latim picti, "pintados"), um povo semisselvagem, e os escotos, um ramo dos celtas que, ao contrário de outras tribos, continuava quase intocado pela cultura romana e ferozmente obstinado em sua recusa em fazer parte do Império. E o isolamento propiciado pela construção da Muralha só fez aumentar a percepção que os habitantes da parte da ilha ao sul dela - o povo formado pela miscigenação de celtas e romanos que, aos poucos, passou a ser conhecido como bretão - tinham das terras do norte como um lugar misterioso, envolto em névoa, e não apenas a névoa natural. De acordo com Sutcliff, a Legio IX Hispana (a Nona Legião Espanhola) teria marchado para o norte a fim de dominar a insurreição de uma tribo na fronteira, e desaparecido - nenhum soldado retornou e ninguém mais teve notícias dela. Não há comprovação de que tal fato tenha realmente ocorrido, mas isto é um romance histórico, que, antes de ser histórico, é romance, ou seja, ficção; mais importante que a fidelidade férrea aos fatos é que haja uma boa história (sem H maiúsculo), e isso o livro oferece.

Só como curiosidade, a Nona Legião pode ter sido recrutada por Pompeu na própria Espanha por volta de 65 a.C., ou por Júlio César, na Gália, sete anos depois - os defensores da segunda hipótese apontam que ela só ganhou o epíteto de "Hispana" décadas mais tarde, por sua valente participação numa campanha contra certas tribos espanholas, durante a década de 20 a.C. Entre outros momentos-chave da história militar romana, a Nona apoiou César na primeira guerra civil e Augusto na segunda, tendo participado das célebres batalhas de Farsalos e Actium, e, depois, da segunda invasão da Bretanha, sob o imperador Cláudio, em 43 d.C. E na Bretanha a Nona permaneceu estacionada, como parte das forças de ocupação, durante os próximos cerca de 80 anos; depois de 120, deixa de haver registros sobre ela. Alguns indícios sugerem que tenha sido transferida para a Germânia, e lá tenha presumivelmente sido destruída num de vários confrontos com as tribos do Reno, os soldados sobreviventes incorporados a outras unidades e seu número excluído do ranqueamento oficial das legiões imperiais. Mas isso é apenas especulação.

É possível que, quando Rosemary Sutcliff escreveu seu livro, em meados do século XX, houvesse ainda menos informações históricas e arqueológicas disponíveis a respeito do possível destino da Nona Legião do que hoje - e, como sabiamente escreveu C. C. Humphreys, é precisamente nas lacunas que o romancista histórico encontra espaço para trabalhar. De modo que Sutcliff sentiu-se livre para adotar a versão de que a Nona teria desaparecido em direção ao norte. O protagonista do livro é Marcus Flavius Aquila (a autora não lhe deu o sobrenome "Águia" por acaso), um jovem centurião que recebe como primeira missão de comando levar uma coorte de auxiliares gauleses até uma pequena fortaleza nos arredores da cidade de Isca Dumnoniorum, no sul da Bretanha, e, chegando lá, assumir o comando do forte. Marcus vem de uma família de longa tradição militar, e é filho de um dos oficiais desaparecidos da Nona. Além de toda a empolgação de início de carreira, o fato de ter sido enviado justamente à Bretanha faz com que não consiga deixar de ter uma pequena esperança de, de alguma forma, talvez descobrir algo sobre o destino do pai. Porém, suas expectativas pouco duram: está há poucas semanas em seu posto quando estoura a rebelião de uma tribo local. Durante a batalha, num ato tão heroico quanto doido, o jovem oficial ataca a pé uma carruagem de guerra bretã na tentativa de salvar um grupo de seus companheiros. Uma de suas pernas fica praticamente moída, mas, contra toda a expectativa - inclusive a sua própria -, Marcus sobrevive.

Como tem pela frente pelo menos um ano de convalescença, e mancará pelo resto da vida, isso representa o fim de sua carreira militar - a carreira com a qual sonhava desde criança e a única na qual já se imaginara. Marcus vai então para a casa de um tio, também reformado do exército, em Calleva, para recuperar-se. É lá que, já refeito do ferimento, ouve de um oficial amigo do tio certos rumores que o inquietam: os bárbaros do extremo norte da ilha teriam em seu poder uma águia romana, que tudo indica ser a mesma que desapareceu com a Nona Legião.

É de se imaginar que a maioria dos leitores modernos não tenha a exata dimensão do que significava o estandarte da águia para um soldado romano. Tratava-se do símbolo máximo da honra de sua legião. Como o próprio Marcus explica no livro, mesmo que só reste um punhado de soldados, se a águia estiver com eles a legião ainda existirá; se a águia for perdida, a legião acaba. Esperava-se de um bom legionário que morresse antes de permitir que inimigos se aproximassem da águia. Carregá-la durante a batalha era uma grande honra, e perdê-la, uma desgraça. Há poucos registros de casos em que a águia efetivamente caiu em mãos inimigas; em diversos deles, o portador do estandarte preferiu suicidar-se ainda no campo de batalha a ter que se apresentar diante de seu comandante e dizer que perdera a águia.

E Marcus, mesmo não estando mais na ativa, não deixou de ser um soldado em sua essência. A Nona foi a legião de seu pai, o que torna a história toda uma questão profundamente pessoal para ele, que decide então arriscar-se numa louca aventura pela Caledônia, acompanhado apenas por seu escravo pessoal, o ex-gladiador Esca Mac Cunoval, para tentar recuperar a águia, resgatar a honra de seu pai e, quem sabe, conseguir que a legião seja reconstituída. Será uma viagem perigosa e talvez sem volta, por uma terra selvagem habitada por um povo orgulhoso que odeia os romanos (embora os admire como guerreiros), mas abrirá os olhos de Marcus para uma visão diferente da vida, através do contato com uma gente que vive segundo um ritmo diferente, mais próximo da natureza. Há inclusive a narração de uma cerimônia religiosa realizada pelos nativos em honra ao Chifrudo, o grande deus da natureza, à qual Marcus, sendo um adorador de Mitra - deus de origem persa que havia se tornado muito popular entre os soldados das legiões romanas na época -, assiste com o distanciamento que lhe é possível, sem conseguir evitar que emoções estranhas aflorem diante do mistério. Mas talvez o encantamento que faz de A Águia da Nona um livro que prende, seja o seu aspecto mais humano: a relação entre Marcus e Esca, que passam gradualmente a se ver e tratar como iguais - não mais senhor e escravo, mas amigos, unidos por uma lealdade que passa por cima de ódios ancestrais e diferenças de cultura. Marcus representa o que de melhor a civilização romana tinha: sua determinação a seus objetivos, a fidelidade inflexível a seus princípios e valores, o apego à honra e à família, e um olhar esclarecido, capaz de ser tolerante para com as diferenças. Esca, por sua vez, lembra muito a imagem estereotipada, mas sempre simpática, do "bom selvagem", chegando a se parecer com os heroicos guerreiros indígenas de romances como O Último dos Moicanos: um braço forte e um coração fiel, fala pouco, mas quando o faz, é com toques poéticos e uma sabedoria simples e certeira - que romanos mais arrogantes, como um ou dois personagens do livro, talvez desprezassem, mas que Marcus respeita e leva em grande consideração.

Uma observação para finalizar: na segunda orelha do livro, lê-se que "adaptado para o cinema pelo diretor Kevin Macdonald, o mesmo de O Último Rei da Escócia (...), A Águia da Nona promete arrebatar o público de todo o mundo." Ahhhh! Eu estava mesmo estranhando que um livro publicado pela primeira vez há mais de 50 anos, e para o qual as editoras brasileiras nunca deram pelota em todo esse tempo, fosse lançado por estas bandas justamente agora, assim no más, como dizemos aqui no Rio Grande do Sul. Não dá para a gente não se aborrecer ao constatar que para que nós, brasileiros, possamos ter acesso a uma joia como esta, primeiro é preciso esperar que Hollywood a descubra. Resta esperar que o filme não repita o fiasco de A Última Legião, que transformou o belo romance de Valerio Massimo Manfredi na abobrinha que se viu nas telas.

sábado, agosto 13, 2005

A Última Legião


O escritor italiano Valerio Massimo Manfredi escolheu como seu "chão" o mundo antigo, tendo-se notabilizado entre nós com sua belíssima trilogia Aléxandros (para quem não sabe, é sobre Alexandre, o Grande, sendo o título a forma original do nome do grande conquistador – a tônica é no e e o x pronuncia-se ks), sobre a qual ainda espero escrever meus comentários. Não obstante, foi com A Última Legião que tive meu primeiro contato com a obra de Manfredi, e foi este o livro que me levou a considerá-lo um nome no qual se deve prestar atenção entre os expoentes atuais no campo da ficção histórica.

Experimentem pegar diversos livros, ou, mais ainda, filmes, cuja ação seja ambientada na Roma antiga, e ler as sinopses nas orelhas e contracapas. Em quase todos se leem coisas como "um retrato vivo e marcante da Roma antiga da época da decadência". Isso me irrita profundamente, pois demonstra apenas que quem escreve essas sinopses não entende coisíssima alguma de História. Seja qual for o período que o livro ou filme focalize – as Guerras Púnicas, a época de Júlio César, a perseguição aos cristãos sob Nero ou o tempo de Marco Aurélio e Cômodo – as sinopses sempre falam em "época da decadência", como se a civilização romana jamais tivesse feito coisa alguma em toda a sua história a não ser "decair". E foi essa a ideia que se popularizou: Roma como uma civilização de bêbados, loucos e libertinos. Ninguém jamais ouviu falar em Horácio Cocles, que defendeu a Ponte Sublícia, sozinho, contra todo o exército etrusco, ou em Caio Cévola, que queimou a própria mão direita para não entregar ao inimigo informações que prejudicassem seus compatriotas. Mesmo no tempo de Calígula ou de Nero, as orgias e demências desses dois imperadores e de seus protegidos nenhuma diferença faziam para o legionário anônimo que arriscava a vida em alguma fronteira bárbara pela grandeza do Império.

Por outro lado, pode-se dizer que A Última Legião, sim, é um romance que realmente fala sobre a decadência do Império Romano. Não que retrate nobres embriagados ou funcionários corruptos: ele simplesmente narra os acontecimentos de 476 d.C. – ano em que foi deposto Rômulo Augusto, último imperador a governar o Império Romano do Ocidente, acontecimento esse que, por convenção, marca o fim da civilização romana e da Antiguidade, bem como o início da Idade Média (não custa lembrar que o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, com sede em Constantinopla, continuaria a existir por mais mil anos).

O livro é apresentado como se fossem as memórias de Myrdin Emreis, que os romanos chamam de Meridius Ambrosinus – um druida da Bretanha, que no ano fatídico desempenhava as funções de preceptor do imperador, que tinha, à época, apenas 13 anos de idade. Rômulo é filho do general Flávio Orestes, que foi, em tempos, assessor de Átila, conseguindo amenizar, ao menos um pouco, o impulso destruidor que os hunos traziam ao invadirem o Império. Mais tarde, Orestes veio a derrubar o fraco imperador Júlio Nepote, mas, ao invés de colocar o manto imperial sobre os próprios ombros, preferiu nomear o filho, reservando para si o comando supremo do exército. Numa época em que o exército romano era formado basicamente por guerreiros bárbaros recrutados, Orestes decidiu (assim nos conta Manfredi) criar uma unidade especial, à qual chamou Legio Nova Invicta, treinada nos moldes das antigas legiões, cuja força e disciplina levaram Roma a dominar o mundo. Quando o chefe germânico Odoacro – que havia feito carreira servindo ao exército romano – decide se rebelar, a Nova Invicta, depois de lutar bravamente, é massacrada por uma multidão de guerreiros bárbaros sob as ordens do líder rebelde, quase ao mesmo tempo em que a casa de Orestes é atacada por outro bando. Quase todos são mortos, mas o jovem imperador e seu mestre Myrdin, por alguma razão, são poupados e conduzidos vivos ao exílio na ilha de Capri, onde a outrora suntuosa e agora decadente Villa Júpiter, residência de verão construída pelo imperador Tibério, torna-se seu cárcere. É historicamente sabido que Rômulo foi realmente poupado e exilado – mas essa é a última informação que os historiadores podem oferecer sobre ele. Nada mais se sabe sobre sua vida desse ponto em diante, e é precisamente esse momento nebuloso que Manfredi escolhe para começar sua narrativa.

Entre os poucos sobreviventes da Última Legião estão três bravos que ainda não desistiram de considerar a si próprios soldados romanos: o espanhol Rúfio Vatreno, o africano Cornélio Batiato, e o único italiano de nascimento entre eles, Aureliano Ambrósio, conhecido como Aurélio – e deve-se observar que as origens diversas dos três heróis lembram o fato de que ser romano não era realmente uma questão de nacionalidade, mas de cultura, de identificação com uma civilização e suas ideias. Surge então o audacioso plano de seguir o imperador até seu cativeiro em Capri e tentar libertá-lo. Ao destemido trio juntam-se os gregos Orósio e Demétrio, e a jovem Lívia Prisca, exímia arqueira vinda de uma cidade recém-fundada na laguna próxima de Ravena: uma cidade chamada Venetia (pronuncia-se Venécia), construída sobre as águas e onde o único meio de locomoção viável são os barcos. Isso lembra alguma coisa??

Está armado o palco para uma aventura de tirar o fôlego, onde lances de ação vertiginosa se revezam com passagens contemplativas em que os personagens (especialmente o jovem Rômulo, orientado por seu mestre bretão) procuram entender o que se passa com o mundo que os cerca, pois ninguém ainda conseguiu assimilar verdadeiramente a noção de que o Império Romano, que durante séculos pareceu tão perene quanto o céu, não existe mais. Myrdin conduz os companheiros à sua terra natal, na vasta e misteriosa ilha que foi outrora a província mais setentrional do Império, onde ainda os aguarda uma última batalha, e onde a memória de seus feitos, através da bruma dos séculos, irá dar origem a uma nova lenda.

Um detalhe desagradável, mas que não é culpa do autor, é o fato de que, na tradução brasileira, a tentativa de utilizar uma linguagem "de época", que correspondesse melhor ao clima da história, resultou numa infinidade de frases gramaticalmente defeituosas – a triste realidade é que, hoje em dia, praticamente ninguém mais sabe conjugar corretamente os verbos nas pessoas tu e vós.

Para finalizar, uma curiosidade: na nota de agradecimento no começo do livro, o autor "entrega" que já escreveu a história pensando numa futura adaptação para o cinema, o que torna muito lógicas as sequências de ação realmente "visuais" e "cinematográficas" de que o romance está repleto. E quando, meses depois de ter lido A Última Legião, vi no cinema o trailer de Rei Arthur, que estava prestes a ser lançado, confesso que, antes de ficar sabendo do que se tratava, pensei que já fosse o livro de Manfredi transformado em filme!... As paisagens britânicas, aquele guerreiro de elmo e armadura romanos, uma bela arqueira, tudo parecia bater. Leiam o livro e vejam se não me dão razão!... Por fim, faço votos de que o filme A Última Legião não tarde muito a surgir.