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quarta-feira, julho 19, 2017

A Arte da Ficção

Tudo bem, ninguém precisa conhecer teoria literária para ler e apreciar a boa literatura – e, na maioria das vezes, nem mesmo para identificar aquela que não é tão boa assim. A função da TL consiste basicamente em investigar como um texto literário funciona, o que é essencial para escritores, críticos e professores, mas não para o leitor comum. É como no cinema: você não precisa saber como um filme foi feito para apreciá-lo, embora precise caso queira se aprofundar no estudo do cinema como forma de arte. De qualquer forma, mesmo que você seja apenas um leitor, é provável que, à medida em que acumula "horas de voo" e ganha experiência, venha a se sentir curioso sobre a construção de um romance ou de um conto. Para quem chegou a esse nível, o conhecimento de alguns pontos básicos de teoria literária (que, na verdade, não são nenhum bicho de sete cabeças) pode ser útil para ampliar sua compreensão dos motivos para que uma obra seja como é, e não de outro jeito – entre outras coisas, pode-se aprender a ver as opções que o escritor tinha, o porquê de ele ter feito as escolhas que fez, e, muitas vezes, até mesmo a explicação para o fato, de outra forma misterioso, de que um texto tenha a capacidade de nos manter pendurados até seu último caractere, enquanto outro nos deixa entediados.

Uma forma fácil de ter acesso a esses pontos básicos é o que o escritor e professor britânico David Lodge oferece neste livro, na verdade uma coletânea de 50 pequenos artigos escritos para o suplemento dominical do jornal londrino The Independent. Nesses textos, Lodge procurou compartilhar um pouco de sua erudição no campo da teoria literária numa linguagem popular, acessível ao público não especializado. Cada uma dessas colunas semanais publicadas no jornal trata de um assunto pertinente à literatura de ficção, e cada assunto desses, com muita probabilidade, já foi objeto da curiosidade de alguns leitores de razoável experiência. São questões que pipocam em nossa mente durante uma leitura, depois que já nos familiarizamos o suficiente com o universo da literatura para observar tais detalhes. Por exemplo, o que leva um escritor de enorme habilidade a intrometer-se na narrativa, "conversando" com o leitor e quebrando a preciosa ilusão de realidade – coisa que parece mais adequada a um aprendiz em suas primeiras tentativas? Por que certas histórias são melhor narradas em terceira pessoa, outras em primeira pessoa pelo protagonista, e outras, ainda, em primeira pessoa também, mas por um personagem secundário? Por que uma descrição pormenorizada de aparência e/ou personalidade nem sempre é a melhor maneira de apresentar um personagem? Como se constrói o suspense, e como saber a hora certa de quebrá-lo? Essas e muitas outras questões são aqui explicadas de forma concisa e descomplicada, mas não superficial.

Cada capítulo do livro (ou, originalmente, cada coluna de jornal) é estruturado da seguinte forma: primeiramente, o autor reproduz um ou dois trechos de obras literárias que exemplifiquem o ponto a ser discutido, para, em seguida, tecer suas observações a respeito. Vou confessar que conhecia bem poucos dos exemplos usados, pois, com algumas exceções, Lodge vale-se principalmente de expoentes da "literatura urbana" de língua inglesa do século XX, pela qual nunca me senti verdadeiramente atraído – em geral, são histórias comuns sobre gente comum, por vezes com o autor tentando empregar alguma técnica narrativa "revolucionária", que, não raro, transforma a leitura num tormento, e, mesmo quando não, não altera a banalidade ou o escasso interesse do tema (eu, pelo menos, não consigo me interessar pelas impressões de um yuppie inglês sobre os motoristas de táxi de Los Angeles, só para dar um exemplo). Porém, entre as ditas exceções (que não são literatura urbana, ou não são do século XX, ou as duas coisas) há algumas muito importantes, como Jane Austen, Edgar Allan Poe, Charles Dickens, Rudyard Kipling, Joseph Conrad, Ernest Hemingway… Seja como for, o fato de não termos lido a obra analisada não constitui impedimento para que consigamos acompanhar o pensamento de Lodge e captar o que ele quer nos ensinar.

Um exercício divertido que fui fazendo enquanto lia este livro foi o de ir tentando enumerar outros exemplos das características que o autor ia apontando, inclusive exemplos da literatura de língua portuguesa. Logo no segundo capítulo, o assunto é o "autor intrometido" que mencionei há pouco, e os exemplos escolhidos por Lodge são George Eliot e E. M. Forster – mas, para um brasileiro, como não lembrar imediatamente do nosso Machado de Assis? Intrometer-se na história parece, à primeira vista, um "tiro no pé", ou meramente um erro pueril de um aspirante a escritor que ainda tem muito a aprender. Criar uma ilusão de realidade, conseguir que o leitor imerja na narrativa ao ponto de esquecer que está lendo, esquecer até de si mesmo e da realidade que o cerca, para viver durante algumas horas dentro de uma história, é uma das mais belas (e difíceis) realizações que um escritor de ficção pode alcançar; então, qual o sentido de pôr isso a perder, começando uma conversa com o leitor, o que terá o efeito de puxar-lhe o tapete, jogando-o bruscamente de volta ao mundo real?… Um autor do calibre de Machado jamais faria isso de forma ingênua, o que nos obriga a concluir que ele tinha um objetivo, um que, em sua opinião, fazia valer a pena aquilo que se perdia em termos de realismo. E Lodge nos mostra (referindo-se a Forster e Eliot, é claro, mas dá para aplicar a qualquer autor que lance mão desse recurso) que objetivo era esse: depois que o narrador já se expôs como tal aos olhos do leitor, ele fica livre para emitir opiniões ou fazer observações que deixam a história mais interessante ou divertida, mas que não soariam convincentes vindas dos personagens. Funciona particularmente bem se tiver uma certa graça – e, verdade seja dita, poucos têm condições de superar Machado de Assis quando o assunto é um senso de humor sutil e certeiro.

Percorrer os ensaios de Lodge chamou-me a atenção para um punhado de detalhes e características da narrativa literária que, até então, eu, por assim dizer, via como fatos consumados – como algo que era assim ou assado porque não era possível ser de outro jeito, ou por motivos que nunca saberemos, tal como a forma do tronco de uma árvore: por que ele cresceu retorcido em vez de reto, ou por que se bifurcou? Para ser menos metafórico, poderia dizer que, muitas vezes, lendo uma história, assumi que ela fosse como era, simplesmente, porque o autor não havia encontrado outra maneira de fazer a coisa. E não é que isso nunca aconteça, mas essa não é regra: na grande maioria das vezes, cada característica de uma história é resultado de uma ou mais decisões conscientes do autor. Exemplo: no capítulo intitulado O Futuro Imaginado (que toma como exemplo os parágrafos iniciais de 1984, de George Orwell), Lodge aponta para o fato, de certa forma curioso, de que mesmo as histórias que tratam do futuro são geralmente narradas com os verbos no tempo passado. À primeira vista, o mais lógico seria utilizar o tempo futuro, já que Orwell estava escrevendo sobre eventos ambientados quase 40 anos depois de sua época, mas vamos concordar que seria bizarro se 1984 começasse assim: "Será um dia claro e frio em abril, e os relógios soarão as treze horas". E por que seria bizarro? Porque, como observa Lodge, "o passado é o tempo 'natural' da narrativa; até mesmo o uso do tempo presente tem algo de paradoxal, uma vez que qualquer coisa que tenha sido escrita já aconteceu". Se aconteceu de forma concreta ou apenas na imaginação de quem conta a história, pouco importa, mas as coisas têm que acontecer antes de serem escritas, e daí o uso do tempo passado. Isso me fez perceber outra coisa: aqui no blog, quando estou resumindo o enredo de um livro, geralmente uso o tempo presente. Nunca parei para pensar no porquê disso, mas, agora que sou levado a refletir a respeito, creio que seja porque, ao resumir, é como se eu estivesse acompanhando o leitor (o meu leitor, no caso) durante sua própria leitura do livro que estou indicando (ou contraindicando), como se essa leitura estivesse em progresso no momento em que escrevo, e daí porque o tempo presente parece mais adequado. Isso cria uma certa dificuldade quando estou falando de um livro que envolve fatos históricos misturados com a ficção: ao me referir a coisas que realmente aconteceram, sinto-me impelido a usar os verbos no passado, o que, misturado ao presente usado para os eventos fictícios, exige uma atenção especial para tentar evitar que o texto fique estranho. E sei que nem sempre tive sucesso nisso: eu próprio sempre fui da opinião de que um texto no qual os tempos verbais ficam variando dá uma sensação de amadorismo, ou pior, de desleixo. Escrever é uma das coisas que mais me dão prazer nessa vida, mas também dá um bocado de trabalho. Bem, o trabalho faz parte do prazer: se fosse fácil, não teria graça.

Creio que, com esses exemplos, já dá para ter uma ideia de como A Arte da Ficção funciona e o motivo de o livro ser uma verdadeira chave da sala do tesouro para os interessados em entender o que há por trás de um conto ou de um romance e como funcionou a sua criação. Lê-lo de cabo a rabo pode ser um tanto cansativo para quem não está acostumado a estudos desse tipo, mas não deixem que isso os desanime: experimentem ler um ou dois capítulos por dia e mantenham o livro à mão para consultá-lo quando, no decorrer de suas leituras diversas, encontrarem algum ponto que desperte a curiosidade. Geralmente, a melhor maneira de compreender a teoria é aplicando-a na prática, e aqui não é diferente.

quinta-feira, maio 11, 2017

Além

Não é muito simples definir o que diabos (opa…) venha a ser o movimento literário conhecido como "decadentismo", que tem no escritor francês Joris-Karl Huysmans (1848-1907) um de seus expoentes maiores. Seguindo o princípio do pêndulo que parece reger os grandes ciclos culturais ao longo da História, esse movimento surgiu como uma reação ao parnasianismo, que, por sua vez, reagia ao romantismo, que reagia ao racionalismo iluminista, e assim por diante. Naturalmente, literatura é arte, e, como tal, pode ter tendências, mas não está sujeita a regras absolutas, de modo que os diferentes movimentos muitas vezes se mesclam e se interpenetram de variadas maneiras; porém, ainda assim há um padrão identificável: uma corrente artística/literária que valoriza a objetividade, a racionalidade, e tenta retratar de forma realista o mundo "concreto" é seguida por outra que prefere a subjetividade, o sonho, a fantasia e os sentimentos – e vice-versa. Parece que, quando uma dessas correntes leva suas características aos extremos, ou, talvez, quando sua fórmula começa a se desgastar, isso desencadeia uma reação no sentido oposto. Também é preciso ter em consideração que cada um desses movimentos artísticos originou-se numa época diferente e foi feito por pessoas diferentes, num ambiente cultural único, e, por isso, nenhum deles jamais é igual a seus congêneres anteriores, possuindo traços que são somente seus. Exemplo disso é o fato de que, enquanto o romantismo tinha como características o idealismo e objetivos grandiosos (que por vezes sofreram trágicos desvios, vide o nacionalismo extremado de fins do século XIX, início do XX, que acabou gerando o nazifascismo), os decadentistas atacavam o que consideravam uma "cultura burguesa" e pouco estavam se preocupando com política, preferindo devotar suas energias a tudo o que pudesse chocar as "pessoas de bem" da época, em especial o sexo (incluindo modalidades não convencionais) e drogas. Ainda na mesma linha de comparações, o romantismo demonstrava, geralmente, preocupações de natureza espiritual, fosse por meio de uma reaproximação com a religião cristã (encarada com ceticismo pelos iluministas, que, aliás, deram início à campanha de difamação contra a Igreja Católica que continua até hoje) ou da redescoberta de deuses e cultos pagãos, fossem de origem grega, germânica ou outras; já para os decadentes, bacana mesmo era o ateísmo, e em especial o cinismo que ele costuma gerar como subproduto – e aqui, é impossível não lembrar do asqueroso Lorde Henry, de O Retrato de Dorian Gray. Oscar Wilde, por sinal, é considerado um representante do decadentismo na Grã-Bretanha, onde essa estética aportou graças à influência da literatura francesa. O "livro de capa amarela" que Lorde Henry envia de presente a Dorian, e que revela ao jovem protagonista uma gama de pecados e estranhezas que ele não conhecia, era, muito provavelmente, À Rebours ('Às Avessas'), romance de Huysmans publicado em 1884 e considerado um dos textos essenciais do movimento decadentista. Para finalizar este parágrafo dedicado às comparações, é oportuno observar que os decadentes tinham um certo gosto por uma imagética grotesca e chocante, lembrando, nesse ponto, os góticos, que poderiam ser definidos, grosso modo, como o segmento mais radical do romantismo e foram os grandes responsáveis pelo boom da literatura de terror na primeira metade do século XIX, bem como por plasmar certas características que fazem parte do gênero ainda hoje. Curiosamente, a denominação de "literatura decadente", ou apenas "decadentismo", foi dada por seus detratores, mas acabou adotada pelos próprios integrantes e pelos fãs do movimento.

Não é minha intenção passar-me por conhecedor de Huysmans ou do decadentismo; Além é o primeiro livro dele que leio, e ainda não sei se eventualmente terei coragem de encarar Às Avessas, que, pelos comentários que encontrei, deve ser ou chocante demais, ou um tédio – talvez as duas coisas, por mais improvável que isso pareça. A informação biográfica que se segue foi obtida da apresentação de Aníbal Fernandes (também o tradutor) que integra esta edição da Assírio & Alvim, de Portugal, e de um punhado de sites da internet. A introdução de Carlos Orsi para O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, também contribuiu com alguma coisa.

A vida do próprio Huysmans parece de alguma forma resumir a trajetória do decadentismo, ou, ao menos, a de muitos de seus representantes. O autor nasceu e viveu praticamente toda a vida em Paris; esse sobrenome tão pouco francófono era herança do pai holandês, que faleceu quando o pequeno Georges-Marie-Charles (este seu nome de batismo) ainda era jovem demais para poder lembrar-se de muita coisa a respeito dele. Já um pouco mais crescido, o menino tinha o costume de ir visitar seu túmulo no cemitério de Montparnasse, talvez idealizando a vida que, pensava ele, teria ao lado do pai caso este ainda vivesse, já que não se dava muito bem com a mãe e com o padrasto. Adulto, entrou para o serviço público por pura necessidade, já que não vislumbrava possibilidade de sustentar-se fazendo o que amava, que era escrever (meu Deus, como eu entendo isso…), e por 32 anos labutou nos escritórios do Ministério do Interior, dedicando-se à literatura nas horas livres que lhe restavam. Nunca se casou, mas por muitos anos viveu maritalmente com Anna Meunier, senhora que ganhava a vida fazendo vestidos sob medida para as damas da alta sociedade parisiense (Huysmans, diga-se de passagem, assinou muitos artigos publicados em jornais e revistas como "A. Meunier", porque preferia que seus colegas e chefes no Ministério não soubessem dessa sua atividade paralela). Publicou seu primeiro livro em 1874, às suas próprias custas, depois de ser recusado por diversos editores. Era uma coletânea de poemas, e nela o escritor usou pela primeira vez o nome com o qual passaria à posteridade: "Joris-Karl" mais ou menos "holandesava" Georges e Charles, além de soar bem combinado ao sobrenome paterno que lhe era tão caro.

Educado como católico, Huysmans afastou-se da Igreja na adolescência, e durante grande parte da vida parece ter-se considerado um ateu – embora o conhecimento verdadeiramente enciclopédico que demonstrava possuir a respeito do satanismo talvez não fosse oriundo apenas de leituras. A maior parte de seus biógrafos acredita que Huysmans nunca tenha sido de fato um satanista, mas certamente conheceu pessoas que o eram, e é quase igualmente certo que, movido por sua curiosidade a respeito do oculto, tenha comparecido como espectador a missas negras, que, como se sabe, eram celebradas com regularidade na Paris do século XIX, tal como antes e, sem dúvida, depois. Esqueçam esse satanismo com cara de autoajuda que está na moda hoje em dia: tratava-se do que estudiosos de religiões chamam de "satanismo teísta", quer dizer, esses indivíduos acreditavam em Satã e nos demônios como entidades reais, em vez de meramente os adotarem como símbolos de rebeldia, ou coisa que o valha – portanto, também acreditavam em Deus, donde o "teísta" no nome. E, já que as forças infernais realmente existiam, era um caminho curto para concluir que elas poderiam ser invocadas e, mediante os rituais e oferendas adequados, convencidas a prestar certos favores aos mortais, que podiam ir desde assegurar sucesso nos negócios ou ajudar a conquistar o coração da pessoa desejada, até causar a morte de um rival ou de outra maneira tirá-lo do páreo. Esse tema sinistro serve de eixo a Além, cuja primeira edição é de 1891, e que não sei por que ganhou esse título na tradução, já que originalmente chamava-se Là-Bas ('Lá Embaixo'), um título bem mais adequado, como se vê.

O protagonista do livro, Durtal, é um alter ego de Huysmans, que parece ter feito pouco ou nenhum esforço para disfarçar o fato. Um intelectual desgostoso com a época em que vive, ele escolheu isolar-se, e tem dedicado seus dias a trabalhar numa biografia de Gilles de Rais – uma obra tenebrosa sobre um homem de reputação tenebrosa. A única pessoa que Durtal vê regularmente é Des Hermies, médico de profissão e amante da literatura, com quem mantém longas e acaloradas discussões. Por intermédio do amigo, Durtal vem a conhecer Louis Carhaix, o sineiro da igreja de Saint-Sulpice, homem de considerável cultura e apaixonado por seu ofício. Sim, ser sineiro era verdadeiramente um ofício, e uma profissão que exigia dedicação: os sinos precisavam dobrar com pontualidade britânica (mesmo na França) várias vezes ao dia, começando na madrugada ainda escura e indo até a noite – vários sinos de diferentes tamanhos, e fazê-los soar (e soar da maneira correta) não é simples como pode parecer. Além disso, o trabalho do sineiro não consiste só em badalar os sinos: eles também precisam ser limpos e, numa cidade sujeita a extremos de temperatura como é o caso de Paris, untados com óleo para não racharem. Tudo isso para não mencionar as funções adicionais de zelador da igreja, já que Carhaix e sua esposa vivem num pequeno conjunto de cômodos junto às torres. A amizade se consolida, e Durtal, sempre em companhia de Des Hermies, torna-se razoavelmente assíduo em suas visitas ao casal, cuja sala de jantar nos altos da igreja passa a se revezar com seu próprio apartamento como cenário de longas e interessantes conversas.

Là-Bas, aliás, tem essa característica: em muitos momentos, a história parece ser principalmente um pretexto para debates (usando os personagens para dar voz aos diferentes argumentos e pontos de vista) e trechos expositivos. Em geral, mas nem sempre, os debates são sobre literatura, e as partes expositivas, sobre atividades satânicas. Para os fins de seu livro, Durtal tem pesquisado esse assunto, já que uma das muitas acusações que pesaram contra Gilles de Rais (e das quais ele se confessou culpado sem necessidade de tortura) foi a de praticar magia negra e satanismo. Parece, entretanto, que as pesquisas foram bastante além do que seria necessário para a obra, revelando um interesse do escritor pela coisa em si mesma (e aqui, "escritor" pode referir-se a Durtal, a Huysmans, ou a ambos). Os casos sobre os quais Durtal discorre de forma professoral cobrem um arco de tempo que vai desde a Idade Média até a época em que se ambienta o livro, em fins do século XIX, destacando episódios famosos como o do padre renegado Urbain Grandier, queimado na fogueira em 1634, ou o da marquesa de Montespan, amante do rei Luís XIV, que teria recorrido à magia satânica para afastar rivais e tentar renovar o interesse do rei nela, no que ficou conhecido como "o Caso dos Venenos", durante a década de 1670. Também nesse segundo exemplo, como em muitos, houve a participação de um sacerdote, o abade Étienne Guibourg, que teria sacrificado pelo menos uma criança numa missa negra, para tentar obter dos demônios o que a marquesa desejava.

É pertinente notar que o fato de a presença de padres renegados ser quase uma constante em casos desse tipo não ocorre sem bons (ou maus) motivos. Muitos teóricos da magia classificavam a missa católica como um ato de magia branca, capaz de canalizar o poder das hierarquias angélicas para um determinado objetivo: abençoar a comunidade, interceder por uma alma etc. É claro que, à luz da teologia, considerar essas coisas como magia, seja de que tipo for, é um completo disparate, mas muita gente não via dessa forma. Daí decorre que, se a missa, e, por consequência, seu oficiante, tinham poderes mágicos próprios, nada impedia que esses poderes fossem subvertidos e empregados em rituais distorcidos para se obter qualquer fim desejado, até mesmo os menos piedosos. Todo círculo satânico queria um padre em suas fileiras. Acrescente-se a isso que como, naquela época, o sacerdócio era uma posição que dava prestígio e garantia conexões úteis, muitas famílias nobres, ou de posses, ou ligadas à política, ou tudo isso, davam um jeito de encaminhar um de seus filhos para a carreira eclesiástica, o que resultava em haver muitos padres sem um pingo de vocação e com escassas qualidades morais, que podiam facilmente ser cooptados a participar de um desses grupos satânicos e oficiar suas missas negras, já que, pelo menos naquela época, elas eram geralmente celebradas com uma finalidade específica e costumavam ser encomendadas por alguém importante, que pagava alto – ou seja, era um negócio interessante para todos os envolvidos. Contar com a ajuda de um padre também facilitava enormemente o acesso a hóstias consagradas, pois, de outra forma, esse era um processo muito trabalhoso: era preciso que os fiéis satânicos fossem às missas normais, recebendo a comunhão e mantendo-a escondida na boca até o final do ofício, para depois levá-la para ser usada em suas próprias cerimônias, nas quais o pão sagrado era submetido a profanações que prefiro não detalhar. Já Huysmans não sofre do mesmo escrúpulo: se o leitor, como eu mesmo, for um católico devoto (e mesmo se não o for, mas prezar o respeito à fé alheia), terá de estar preparado para chocar-se. Além das preleções a respeito das práticas satânicas, vez por outra somos levados a acompanhar Durtal em suas pesquisas sobre Gilles de Rais, o que também é bastante perturbador.

No meio de tudo isso, no começo é difícil entender por que Huysmans teria decidido enxertar na história um caso de amor ilícito, se é que dá para chamar assim – e a dúvida não é quanto ao "ilícito", e sim quanto ao "amor". À primeira vista, parece ser porque, na França da época, uma relação adulterina era ingrediente indispensável em todo romance que quisesse ter chance de vender, mais ou menos como, hoje em dia, uma subtrama amorosa (não necessariamente adulterina, é verdade) é obrigatória nos filmes de Hollywood. Porém, à medida em que continuamos lendo, a impressão vai mudando: passa a parecer que o autor pensou algo como "ah, já que preciso mesmo incluir um adultério, vou fazê-lo à minha maneira". Durtal começa a receber cartas de uma admiradora que escreve sob pseudônimo e que desenvolveu uma paixão platônica por ele a partir de seus livros; ela não se identifica, mas vai deixando escapar detalhes como os fatos de ser casada e de ser alguém que o escritor conhece (e conhece seu marido também), e cuja casa chegou a frequentar antes de adotar seu atual modo de vida recluso. Há um punhado de senhoras que poderiam encaixar-se nesses quesitos, e Durtal se vê torcendo ardorosamente para que a misteriosa autora das cartas seja uma das bonitas, e experimentando aquela ansiedade ao mesmo tempo aflitiva e deliciosa que costuma acompanhar situações semelhantes. Como se fosse um adolescente, por assim dizer – ele, homem de meia idade, que vez por outra frequenta bordéis para sossegar as exigências do corpo, mas que já dava como certo que o futuro não lhe reservasse qualquer novo envolvimento sentimental, fosse com quem fosse. Porém, verdade seja dita, o sujeito não é lá muito romântico: parece interessado, sobretudo, no tipo de experiência sexual que (acredita ele) apenas uma mulher apaixonada pode proporcionar, impossível de ser igualada pelas profissionais. Mesmo com expectativas tão mundanas, o caso acaba sendo essencialmente uma decepção. Durtal tem amplas oportunidades para se exasperar com a proverbial volubilidade feminina, e a dama, ciente disso, chega a citar para ele uma frase de um de seus próprios livros, que diz que "só são boas as mulheres que não tivemos". O escritor acaba dando razão a si próprio nesse ponto. Entretanto, os capítulos seguintes do livro revelam que o affair tinha uma razão de ser dentro da história, pois acarreta uma importante mudança de direção nela.

Disse acima que a introdução da edição de O Rei de Amarelo pela Intrínseca, escrita por Carlos Orsi, contribuiu com informações sobre a biografia de Huysmans e sobre o movimento decadentista; pois bem, é Orsi quem cita (sem nomeá-lo) certo crítico que teria escrito que, para o artista decadente, ao cabo de uma carreira gasta a retratar vícios, pecados, podridão e loucura, só dois caminhos eram possíveis: "o cano de uma arma ou o pé da cruz". Huysmans, felizmente, escolheu a conversão ao invés do suicídio. Durtal volta a ser o protagonista em dois outros livros, cujos títulos, assim como o de Là-Bas, são sugestivos, quase autoexplicativos: En Route ('A Caminho', de 1895) e La Cathédrale ('A Catedral', de 1898), que descrevem a trajetória do personagem rumo à conversão, trajetória essa paralela à do próprio autor. É interessante notar que, embora em Là-Bas ele ainda pareça, em linhas gerais, um cético, Durtal, em diversos momentos, demonstra um respeito instintivo, pode-se dizer, pela Igreja, além de achar difícil descrer totalmente de seus ensinamentos: em certo trecho, é dito que ele "não tem certezas absolutas" a respeito do dogma da transubstanciação; ora, quando alguém não tem certeza absoluta sobre algo, é porque existe um espaço para a dúvida. Um ateu de verdade teria simplesmente dito que a crença na transubstanciação não passava de uma sandice, e consideraria o assunto encerrado. A atitude de Durtal espelha, provavelmente, a do próprio Huysmans, que, em seus últimos anos de vida, voltou à comunhão da Igreja que havia abandonado quando rapaz, o que se refletiu em suas obras desse período e o levaria a ser citado com frequência como um nome de destaque entre a intelectualidade católica de seu tempo.

Huysmans celebrizou-se, entre outros motivos, pelo "uso idiossincrático" do vocabulário francês, o que eu entendo como uma tendência a utilizar certas palavras com um sentido um tanto diferente daquele que os dicionários lhes atribuem, permitindo ao leitor captar o novo significado, desde que invista nisso um pouco de esforço. Traduzir um texto assim deve ter sido desafiador para Aníbal Fernandes, e, na qualidade de leitor, digo que Além exigiu de mim muita atenção e apelou à minha capacidade de fazer conexões e de inferir o sentido a partir do contexto. Certamente não é para leitores iniciantes. Feitas essas advertências, o livro deverá interessar não somente aos cultores da literatura decadentista, mas aos apreciadores do romance francês do século XIX de forma geral, e, por conta da temática macabra que ocupa parte de suas páginas, é provável que também chame a atenção de alguns fãs de terror.

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

O Senhor das Moscas

Eu não ligo mais para esse mundo
Eu só quero viver minha própria fantasia.
O destino nos trouxe a estas praias
O que tinha que ser agora está acontecendo.

Eu descobri que gosto desta vida em perigo
Viver no limite nos faz sentir como um só.
Quem liga agora para o que é certo ou errado, isto é a realidade.
Matando nós sobrevivemos, onde quer que possamos vagar,
Onde quer que possamos nos esconder, temos que fugir.

Eu não quero que a existência termine.
Nós devemos nos preparar para os elementos.
Eu só quero sentir que somos fortes
Nós não precisamos de um código de moralidade.

Eu gosto de toda essa emoção misturada e raiva
Isso traz à tona o animal,
o poder que você pode sentir.
E sentindo-nos tão altos com toda essa adrenalina
Excitados, mas assustados de acreditar no que nos tornamos.

Santos e pecadores
Algo dentro de nós
Nós somos o senhor das moscas.

Santos e pecadores
Algo que nos quer
Para ser o senhor das moscas.


                                        Iron Maiden
                                        Lord of the Flies
                                        Álbum: The X Factor (1995)

*       *       *

Quando um livro atinge o status de clássico, seu autor ganha o raro privilégio da imortalidade: seu nome continuará a ser citado séculos e, em casos extremos, milênios depois de sua morte biológica. Em compensação, o livro, pela exposição e influência que passa a ter, vira objeto de inúmeros estudos, e, por consequência, fica sujeito a todo tipo de interpretação – muitas delas que, estou certo, deixariam o autor sem fala se lhe perguntassem a respeito. Por mais que eu ame o estudo da literatura, uma coisa que sempre me incomodou nele, pelo menos dentro do ambiente acadêmico, foi essa obrigatoriedade de sempre encontrar algum significado oculto ao analisar qualquer obra… Significados esses que, com toda a probabilidade, em sua maioria jamais passaram pela cabeça do autor. Uma vez que um livro passa a ser considerado um clássico, parece se tornar inconcebível a possibilidade de que, ao escrevê-lo, o autor quisesse dizer exatamente aquilo que disse, e nada mais que isso. Citando Stephen King, que, por sua vez, estava citando Bob Dylan, a explicação deve ser que, quando você tem muitos garfos e facas, é preciso cortar alguma coisa. Não que eu ache que O Senhor das Moscas seja um exemplo de livro que diz claramente tudo o que quer dizer: pelo contrário, ele sem dúvida apresenta diversas alegorias e metáforas, e lê-lo apenas como história de aventuras seria perder de vista seus aspectos mais interessantes. Apenas acho exagerado (forçado, se quiserem) ficar tentando ver nele tudo quanto é significado político, como já vi fazerem. A meu ver, é muito mais razoável interpretá-lo como um convite a refletir sobre a natureza do ser humano e sobre a sociedade, que, no fim das contas, é um desdobramento de nossa própria essência, já que interagir uns com os outros é uma parte indissociável da condição humana.

Para (tentar) ser mais claro, eu poderia dizer que sim, certamente há alegorias políticas em O Senhor das Moscas; porém, discordo de quem quer ver aí referências específicas: "Jack é Hitler", ou mesmo o nazifascismo de modo geral. Para mim, isso é, ao mesmo tempo, forçar uma interpretação e limitar o alcance da obra. Talvez, na verdade, eu veja O Senhor das Moscas como uma história que se presta melhor à aplicabilidade que à alegoria, conforme a diferença entre as duas é explicada por Tolkien: "Acho que muitos confundem 'aplicabilidade' com 'alegoria', mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda, na dominação proposital do autor."

Também já li em algum lugar que o tema deste livro, ou, ao menos, um de seus temas, é o do mal supostamente inerente ao ser humano – e essa ideia já é mais difícil de desprezar, considerando o título da obra: 'Senhor das Moscas' é a tradução literal de Ba'al Zebuth, nome de um deus cultuado pelos antigos fenícios e cananeus, e que era associado tanto à chuva e à fertilidade (quando de bom humor) quanto à morte, principalmente a morte pela peste (quando enfurecido), donde a ligação com as moscas. O nome dessa divindade chegou aos tempos modernos como Beelzebub em inglês, Belzebu em português, e formas parecidas nas outras línguas – e, em todas elas, é um dos inúmeros nomes do diabo da tradição judaico-cristã. Com um título desses, não parece forçado aceitar que se trate de um livro a respeito do mal.

Na história, é tempo de guerra. Não sabemos qual guerra, e isso não é relevante para seus fins. Ocorre que um avião transportando dezenas de estudantes ingleses é abatido por artilharia inimiga e cai numa ilha aparentemente desabitada do Pacífico; a maioria dos jovens passageiros escapa, mas nenhum membro da tripulação sobrevive, de modo que os garotos, com idades variando de seis a doze anos, estão por sua própria conta, sem qualquer adulto para ajudá-los, tampouco para lhes dizer o que fazer ou não fazer. Estão assustados, é claro, mas também empolgados, pois aquela situação oferece mais oportunidades para aventuras e descobertas do que eles normalmente teriam em toda a vida. Dois deles, Ralph e Porquinho, encontram uma grande concha que, quando soprada da forma adequada, produz um som potente que pode ser ouvido praticamente em toda a ilha, e que logo se torna o sinal de reunir. Os dois garotos são muito diferentes, mas, de certa forma, se completam: Ralph, por ser bonito e ter um talento natural para liderar, preenche o papel do herói no imaginário dos companheiros, e é logo eleito o chefe; Porquinho é gordo e tímido, mas claramente o mais inteligente ali. Pouco depois, entra em cena uma terceira figura proeminente, Jack Merridew, que lidera um grupo que costumava ser um coro, e que também viajava no avião. Por estar acostumado ao comando, Jack mostra-se disposto a rivalizar com Ralph pela liderança geral, mas, quando o outro é eleito por aclamação, parece, no começo, aceitar o fato; Ralph lhe permite conservar a liderança do coro, e os dois parecem estar formando uma amizade.


A primeira coisa sobre a qual O Senhor das Moscas nos leva a refletir (ou, ao menos, comigo foi assim) é o fato de que, por mais civilizados e sofisticados que nos tornemos, nada mudará a verdade básica de que a selvageria sempre será o estado natural do homem. Não é preciso muito para revertermos a ela – e, em se tratando de crianças, é preciso menos ainda. Em questão de semanas, os elegantes e bem-educados alunos de tradicionais instituições de ensino britânicas já estão lembrando mais uma tribo pré-histórica – quer pela aparência, quer pelo comportamento. Cansados de sua dieta de frutas do mato, os garotos voltam seus olhos para os porcos selvagens que habitam a ilha… Porém, muito mais determinante que a vontade de todos de comer carne é o forte desejo de Jack de experimentar aquelas sensações que apenas um caçador conhece: o "poder de impor sua vontade a uma coisa viva". Abater seu primeiro porco torna-se uma obsessão, e ele converte os antigos membros do coro num time de caçadores – que, aos poucos, também vão se adaptando a fazer as vezes de sua guarda pessoal, sendo leais antes a ele que a Ralph. O primeiro conflito sério acontece quando Jack e seu grupo retornam de sua primeira caçada bem-sucedida (depois de muitas tentativas falhadas), carregando um porco morto: para ir caçar, eles abandonaram a fogueira que todos haviam concordado em sempre manter acesa no topo de um morro, e ela se apagou. O objetivo da fogueira é chamar a atenção de algum navio que porventura passe próximo à ilha, o que é a única chance de serem resgatados. De fato, um navio apareceu – Ralph o viu. E passou direto, pois a fogueira estava apagada.

A partir daí, conforme vai acumulando sucessos na caça, Jack vai ficando cada vez mais disposto a desafiar a autoridade do líder; matar parece aumentar sua autoestima e diminuir sua inclinação para obedecer, seja às ordens de Ralph ou a regras de qualquer espécie. Esse espírito contagia primeiro o coro, e depois, gradualmente, alguns dos outros.

Cada um dos principais personagens de O Senhor das Moscas passa por sua própria jornada de crescimento, o que não quer dizer necessariamente um processo de melhoria, mas apenas o caminho inevitável de tornar-se aquilo que está destinado a ser. Ralph, por exemplo, aprende a duras penas o que liderar realmente significa. Todo mundo já sonhou em ser o chefe da turminha da vizinhança (e quem nunca, que atire o primeiro coelho azul de pelúcia). Pudera: na cabeça de uma criança, "chefe" é alguém que manda em todo mundo e em quem ninguém manda, que pode fazer tudo o que quiser e não precisa fazer nada que não queira; é só status e privilégio. Porém, Ralph não demora a compreender que o posto é uma responsabilidade pesada, que exige sacrifícios e, muitas vezes, é desesperador. Tendo sido professor, o autor do livro, William Golding (1911-1993), sem dúvida sabia bem como são as crianças, particularmente os meninos. E o fato é que meninos se entusiasmam por uma ideia com a mesma facilidade com que perdem o interesse nela pouco depois. Quando Ralph sopra a concha, todos comparecem sem demora; parece haver algo na solenidade da coisa que torna essas reuniões divertidas, mas as decisões que nelas são tomadas, embora referendadas por todos e, a princípio, seguidas, são esquecidas em pouco tempo. Não é fácil ser chefe desse jeito.

Quando um dos garotos menores começa a falar sobre um "bicho" que aparece à noite, parece, a princípio, que a coisa não é mais que um pesadelo, ou um medo infantil sem origem definida – mas, quando o menino some sem que ninguém saiba como, e outros passam a acreditar ter visto a criatura, já não é tão fácil ter certeza. Ralph e Porquinho insistem que não pode haver nenhum animal ameaçador, porque nenhum grande carnívoro sobreviveria numa ilha tão pequena, mas ficam sem ter o que responder quando outro dos pequenos afirma que "o bicho sai do mar" – o que multiplica o potencial assustador do boato. Jack, por seu turno, não faz esforço algum para que os outros percam o medo; em vez disso, procura usar o "mito" em benefício próprio, garantindo a todos que, se houver um bicho, ele e seus caçadores vão matá-lo. Se isso for uma alegoria (ou se quisermos exercer a nossa liberdade como leitores para encontrar a aplicabilidade do texto), os caçadores podem simbolizar o exército, e o próprio Jack, qualquer um dos inúmeros ditadores sobre os quais a História nos conta, pois foi assim que a maioria deles chegou ao poder: tirando vantagem do medo que a população sentia, oferecendo proteção, tanto faz se contra ameaças reais ou imaginadas. Em algum momento, um dos personagens pensa em voz alta que "talvez não haja nenhum bicho; talvez sejamos só nós" (não consegui encontrar a passagem para copiar a frase exata, mas é essencialmente isso), referindo-se de maneira alegórica, mas mesmo assim bem clara, ao mal que cada pessoa traz dentro de si – e que, não raras vezes, é projetado no outro, porque fica mais fácil lidar com ele dessa forma. O ódio de Jack por Porquinho também não é gratuito: o gordinho é a voz da razão e do conhecimento, que dissipam o medo. Se Jack permitir que isso aconteça, ficará privado de seu maior trunfo.

Jack leva adiante seu trabalho de sedição, que chega ao ponto da ruptura, com ele e seus seguidores separando-se da "tribo" para formar a sua própria. Para convencer mais garotos a trocar de grupo, ele lança mão de qualquer meio ao seu alcance, desde promessas (principalmente a de que quem o seguir sempre terá carne para comer) até intimidação. À medida em que a inimizade entre os dois grupos vai ficando mais amarga e mais séria, as regras de conduta introjetadas mediante anos de educação vão se revelando como nada mais que um fino verniz, que descasca e cai se não for continuamente reforçado. Enquanto Ralph tenta fazer com que seus companheiros não se esqueçam do que significa ser humano, Jack e os seus vão progressivamente cedendo à tentação da violência e da arbitrariedade, num conflito que acaba por ser mais profundo e de implicações mais graves (ao menos para quem está vivendo a situação) que o tradicional antagonismo "bem" versus "mal". Não há surpresa quando a tensão descamba para a violência homicida – mas a ausência de surpresa não faz com que o fato deixe de ser chocante. Bem, ao menos deveria sê-lo; não creio que o público dos anos 2000, acostumado a ver violência extrema ser apresentada como uma forma de entretenimento, se perturbe com o final da narrativa. O que eu não consigo ver como um bom sinal.

O Senhor das Moscas, publicado originalmente em 1954, teve o mesmo destino de muitos outros clássicos: não foi nenhum sucesso instantâneo. Sua primeira edição não vendeu nem três mil cópias, mas, redescoberto durante as décadas de 60 e 70, ganhou o status de cult e acabou dando a seu autor o Prêmio Nobel de Literatura em 1983. Hoje é leitura obrigatória em muitas escolas secundárias em todos os países de língua inglesa – e eu sinceramente espero que isso, por si só, não leve muita gente a desenvolver uma antipatia a priori por ele, o que seria mesmo uma pena. A grande sacada do livro, na minha opinião, é a de ter pego um enredo que nada tinha de original (grupos de personagens isolados em ilhas desertas ou lugares semelhantes são um plot que vem sendo explorado desde a Antiguidade) e, a partir disso, criado tantas situações fascinantes e cheias de significados. Além disso, Golding é excelente na arte da narração e da descrição; provavelmente o melhor exemplo disso está no capítulo chamado Visão de Uma Morte, no qual o autor demonstra saber perfeitamente como é uma tempestade nos trópicos – coisa que a maioria dos anglo-saxões não consegue nem imaginar. Em resumo, O Senhor das Moscas deve ser lido, antes de mais nada, por prazer, mas é altamente aconselhável manter um olho aberto para o que ele pode nos ensinar e para as reflexões que pode estimular. E essa é a melhor combinação que podemos encontrar num livro.

sexta-feira, dezembro 16, 2011

Politicamente... corretos??

Hesitei um pouco antes de decidir o lugar mais adequado para postar este texto. Por um lado, trata-se de uma reflexão de natureza pessoal, de modo que não estaria deslocada no meu outro blog, o Inner Wilderness; por outro, refere-se a literatura, de modo que também podia vir para cá, pois comentários e resenhas de livros específicos não são a única maneira de se "falar de literatura". Esse último fator acabou pesando mais – então, aqui estamos.

A revista Aventuras na História de dezembro traz uma matéria sobre a série de livros em quadrinhos (hoje dir-se-ia "graphic novels") intitulada Tintim, criada pelo jornalista e cartunista belga Hergé entre o fim da década de 20 e sua morte em 1986. Os aficionados por quadrinhos saberão na hora do que estou falando: embora menos popular, Tintim é tão clássico quanto Asterix. Para ser mais exato, a matéria é sobre as posições "discutíveis" tomadas pelo autor em praticamente todas as suas histórias, e especula um pouco sobre como Steven Spielberg terá contornado esse fato no filme que fez sobre o personagem, com estreia prevista para janeiro no Brasil.

As tais posições discutíveis consistem basicamente numa visão "eurocêntrica" do mundo. Tintim é um repórter do jornal belga (que existe mesmo: Hergé trabalhava nele quando criou o personagem) Le Vingtième Siècle, que viaja pelo mundo no exercício de sua função – mas, como teria que acontecer numa série de aventuras dirigidas ao público jovem, suas expedições jornalísticas nunca são tranquilas: ele sempre se mete em situações perigosas. Mais que isso: suas atitudes (muitas vezes de uma maneira não proposital, o que é mais revelador) deixam transparecer a ideia, apresentada como óbvia a ponto de não merecer reflexão, de que tudo o que vale a pena ou é digno de atenção, ou está na Europa ou deriva direta ou indiretamente de lá. Partindo desse ponto de vista, o colonialismo, que na época estava sendo contestado tanto nas próprias colônias quanto nas metrópoles, era plenamente justificável e até mesmo natural. Cito:

Quando Tintim foi ao Congo, em 1931, o país africano ainda era uma colônia belga (a independência veio só em 1960) e os quadrinhos reproduziam a visão eurocentrista da época. Na primeira versão do álbum, os congoleses falavam um francês primitivo e eram extremamente submissos. Em um dos trechos, Tintim substitui um professor em uma escola missionária e começa a aula apontando para um mapa da Europa: "Meus queridos amigos, hoje eu vou falar sobre o seu país: a Bélgica". Nas versões posteriores, o mapa foi substituído por um quadro-negro, e a lição sobre a Bélgica, por uma de matemática.


Gostaria de deixar algo claro antes de prosseguir: não é meu objetivo aqui defender o colonialismo (o que seria no mínimo burrice vindo de um brasileiro, cujo país começou sua história como colônia e até hoje tenta se livrar dos traumas inerentes a essa condição) ou qualquer das outras atitudes "discutíveis" que aparecerão mais adiante neste texto. O que questiono é o que nos dá o direito de "corrigir" obras que retratam uma época – e muitas vezes a retratam de maneira valiosa – para que se enquadrem nas regras daquilo que hoje é tido como "aceitável". Tintim tem atitudes eurocêntricas porque seu criador, como a maior parte dos europeus daqueles dias, tinha essas mesmas atitudes. Suas aventuras retratam um ponto de vista que prevaleceu durante muito tempo e que, gostemos ou não disso, ajudou a moldar uma época. Pergunto: faz sentido, ao invés de aprender com esses fatos e permitir que eles nos ajudem a aquilatar tudo o que mudou desde então, simplesmente querer reescrever as histórias para adequá-las àquilo que é considerado de bom tom hoje em dia?

Atravessando o oceano, encontramos mais exemplos: as obras de Mark Twain (1835-1910) estão sendo reescritas nos Estados Unidos para atender às demandas da tirania politicamente correta. No texto de Twain, é largamente utilizada a palavra
nigger – uma designação pejorativa para pessoas negras –, agora substituída por slave ('escravo'). Note-se que a situação dos negros não é um ponto de pouca importância nessas obras, já que o escravo Jim, fiel amigo dos imortais anti-heróis Tom Sawyer e Huckleberry Finn, é um dos personagens mais atuantes nas histórias. Eu já tinha lido, creio que numa dissertação sobre a vida e a obra de Samuel Langhorne Clemens (Mark Twain era pseudônimo) que, já em meados do século passado, portanto bem antes da babaquice politicamente correta ser inventada (ou seria ela bem mais antiga do que imaginamos?), as Aventuras de Huck (1885), geralmente consideradas sua obra mais importante, haviam sido alvo de protestos por parte de pessoas que consideravam o livro racista. Pessoalmente, acho que o racismo estava muito mais na cabeça de tais pessoas do que nas páginas dessa obra essencial da literatura norte-americana. De outra forma, como teria sido possível alguém não perceber que o que Twain estava fazendo era sair em defesa dos negros, que eram particularmente marginalizados no sul dos Estados Unidos, região onde ele nasceu e viveu? A escravidão foi abolida no país com a vitória dos estados do norte na Guerra Civil, em 1865, quando Mark Twain tinha 30 anos de idade; já as aventuras de Tom Sawyer e Huck Finn são ambientadas nos anos da adolescência do autor, quando a escravidão era vista como um fato cotidiano, e seria ingenuidade esperar que uma emenda constitucional tivesse o poder de mudar instantaneamente a atitude que a maioria dos americanos brancos tinha em relação aos negros. Há um trecho em que Huck inventa, para uma senhora com quem se encontra, que esteve viajando num barco a vapor e que chegou atrasado porque a cabeça de um cilindro da embarcação saltou devido à pressão, exigindo uma parada para conserto. A tal senhora então pergunta se alguém se feriu e, ao ouvir em resposta que um negro morreu, manifesta alívio, "porque em acidentes desse tipo, às vezes, pessoas se machucam". O autor estava sendo racista? Claro que não: se no livro os negros são vistos por muitos como seres sub-humanos, é porque era isso mesmo o que acontecia na época que a história retrata – e também na época em que ela foi publicada, mesmo que entre uma coisa e outra a escravidão tivesse sido abolida. Esquecer esses fatos, ou escondê-los das novas gerações, fará bem a alguém? Acredito que muito pelo contrário: como escreveu Sêneca (se não me engano), quem esquece o passado condena-se a repeti-lo, e isso não vale só para indivíduos: aplica-se também às sociedades. Observe-se ainda, de passagem, que defender a igualdade das pessoas independentemente de raça, nos tempos de Mark Twain, exigia muito mais coragem do que hoje, porque essa ideia não era unanimidade: muitas pessoas que se consideravam "de bem" davam como certo que os negros, e qualquer outra raça não-caucasiana, eram inferiores, e fim de papo. Isso era ensinado em escolas e universidades; havia cientistas que acreditavam tê-lo provado.

O que fico me perguntando é: d
epois de terem purgado as obras de Twain de todas as partes supostamente racistas, qual será o próximo alvo da patrulha politicamente correta? Suponho que os próprios Tom e Huck, cuja maior qualidade enquanto criações literárias é (era?) precisamente o fato de representarem garotos reais, de carne e osso, do sul dos Estados Unidos em meados do século XIX: garotos criados soltos nos brejais do Mississípi, que fumavam cachimbo, pregavam mentiras sempre que achavam necessário e preferiam com toda a certeza perambular pelo mato e remar de ilha em ilha pelo rio ao invés de ir à escola. Agora, se depender dessa turma, provavelmente as próximas edições de Tom Sawyer e das Aventuras de Huck terão protagonistas vegetarianos, que fazem ginástica ao acordar e trabalho voluntário para causas sociais...

Não estou dizendo que os preconceitos de época presentes em obras literárias devam ser considerados normais ou assim apresentados aos novos leitores. O que acontece é que o melhor caminho, aquele que mais contribuiria para a edificação cultural e para a própria formação das novas gerações, mais uma vez, não é o caminho mais fácil. Temos um exemplo mais perto de nós: Monteiro Lobato (1882-1948), que pode não ter revolucionado a literatura brasileira como Mark Twain fez com a norte-americana, mas sem dúvida marcou a infância de muitos brasileiros e foi responsável por despertar em pelo menos alguns o gosto pela leitura. Há, sim, detalhes racistas nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, mas seria ignorância culpar o autor por isso: ele era simplesmente um homem de sua época. Nos anos 30 e 40, quando esses livros foram publicados pela primeira vez, muitas pessoas que haviam sido escravas, ou donas de escravos, ainda estavam vivas; era, portanto, normal que Tia Nastácia chamasse sua patroa, Dona Benta, de "sinhá" – mas como uma criança de hoje iria interpretar isso? Depende apenas dos instrumentos de interpretação que a família e a escola lhe houverem fornecido. Mais complicado: sempre que a boneca Emília queria fazer uma malcriação com Tia Nastácia (o que acontecia em média umas duas vezes por livro), chamava-a de "negra beiçuda" ou de outros insultos de teor racista. Em pelo menos uma ocasião, Dona Benta vem em defesa da cozinheira dizendo que "todos sabem que Nastácia só é preta por fora" (!), declaração que consegue ser mais racista que os xingamentos dos quais tentava defendê-la.

Entretanto, eu defendo que a solução para isso não é nem banir as obras de Lobato (que são literatura infantil de qualidade, que já se provou capaz de resistir ao tempo) nem "reescrevê-las" para que não choquem os mais sensíveis nem disseminem ideias preconceituosas entre os jovens. Esse tipo de "reescrita" (e o que digo agora vale para as obras de Hergé, Twain, Lobato e dezenas de outros) teria o efeito de criar nesses jovens a noção de que o mundo foi sempre como é agora, tirando-lhes qualquer chance de vir a compreender na prática o que significam variações de cultura e perspectiva histórica – coisas sem as quais, a meu ver, não é possível alcançar a verdadeira maturidade intelectual. Devíamos, isso sim, investir em esforços para que a educação oferecida a cada nova geração a tornasse capaz de fazer seus próprios julgamentos, de modo que, quando fosse o caso, pudesse apreciar uma obra literária pelo que tem de belo e interessante, sem necessariamente aceitar como verdade todas as ideias que ela apresente. Não é fácil? Certamente que não. Mas quem aí já obteve algo de bom na vida fazendo as coisas do jeito mais fácil?

Infelizmente, a brigada politicamente correta que domina certos setores da cultura contemporânea, seja por mera ignorância ou por desonestidade intelectual, uma determinação consciente de fazer ouvidos surdos a qualquer coisa que desqualifique seus argumentos (e, não raro, tudo isso), não demonstra qualquer senso de perspectiva: já vi censurarem Cristóvão Colombo por não ter tido preocupações ecológicas no início da colonização das Américas, e absurdos ainda maiores. É até natural que cada geração tenha a tendência de pensar que suas próprias crenças e visões de mundo são as "certas" – mas aqueles que, em qualquer geração, vêm a alcançar algum grau de sabedoria, não demoram a compreender o quanto tais coisas são frágeis. Embora não seja uma coisa fácil de aceitar, Salman Rushdie estava certo ao dizer que verdade é o que a maioria vê como verdade  mas a maioria também pode mudar de opinião ao longo da História. É muito possível que ideias que hoje aceitamos como normais sejam consideradas absurdas e preconceituosas daqui a alguns séculos. Não há saída: toda pessoa que tenha a pretensão de estender sua compreensão um pouco além de sua vidinha cotidiana tem que aceitar o fato de que tudo é transitório, tudo é nebuloso, e de que não temos certeza de coisa alguma.



quarta-feira, junho 29, 2011

Uma Paixão por Cultura

Como é a trajetória de uma pessoa que "acorda" para o mundo da cultura? Que um belo dia (ou gradualmente, ao longo do tempo) percebe que há mais na vida que cerveja, futebol e música pop de FM? Essa é uma metamorfose, infelizmente, rara, mas, sim, é possível: já testemunhei um caso ou dois. E é um testemunho desse tipo que Carlos Eduardo Paletta Guedes nos oferece neste livro extremamente interessante e (não muito) disfarçadamente autobiográfico.

O protagonista Fábio é um jovem comum no sentido mais comum do termo, do tipo que cada um de vocês deve conhecer pelo menos uma dúzia: com cerca de 30 anos, carreira profissional começando a decolar, vai levando sua vida do modo óbvio. Torce por seu time, trabalha, namora, sai, e ignora a existência de coisas como poesia, filosofia, artes plásticas, teatro ou música clássica. Livros, só os de Direito, sua área profissional, e nada mais. E, como a dúzia de caras parecidos que todos nós conhecemos, sente-se cômodo e satisfeito dessa forma. Embora seu melhor amigo, Felipe Marco, o "Turco", seja um professor universitário e muito culto, a amizade dos dois parece ser do tipo "cada um no seu quadrado": nada que agite a superfície do lago plácido (um lago que só tem mesmo superfície...) que é a vida de Fábio.

Nosso herói começa a sentir que algo está faltando quando sua namorada de três anos, Maria Lúcia, larga-o, sob a alegação de que ele não preenche os anseios intelectuais dela - aliás, tive que rir ao ler o trecho onde Fábio diz que M.L., como ele a chama, decidiu começar a tratá-lo como intelectualmente inferior depois de ler um livro de filosofia para adolescentes: não consegui deixar de ter a forte impressão de que ele só não citou o título (O Mundo de Sofia, é claro) para não ferir suscetibilidades. É então que, vendo como o amigo anda "pra baixo" desde o fim da relação, Turco, na intenção de distraí-lo um pouco, convida-o para uma festa que dará em sua casa, apenas para alguns alunos que são membros de um grupo de estudos que ele dirige. Fábio não se anima muito, imaginando, com alguma razão, que sua pouca bagagem e quase nenhum interesse cultural fará dele um peixe fora d'água nessa reunião, mas, mesmo assim, acaba indo. E é lá que, numa dessas surpresas que o destino nos arma, ele conhece a mulher de sua vida: uma estudante de Jornalismo, a linda e inteligentíssima Thaís.

Apaixonado e determinado a ganhar a gata de qualquer maneira, Fábio começa imediatamente a representar para ela o papel de um homem culto, sensível, conhecedor e admirador da arte em todas as suas manifestações - algo muito distante de seu verdadeiro perfil. E, como Thaís é uma dessas mulheres uma-em-um-milhão que não vão adiante com um homem se ele não demonstrar inteligência (pois, verdade seja dita, a imensa maioria não liga a mínima para isso - como a maioria dos homens também não, sejamos justos), Fábio tem pela frente um verdadeiro trabalho de Hércules... Ou melhor, os doze de uma vez. Sob a orientação do amigo Turco, começa a toque de caixa a tentar assimilar conhecimentos sobre música (não o pop-rock a que estava acostumado, e sim figuras como Bach, Mozart e companhia), cinema (nada de Duro de Matar e congêneres: aqui o papo é filme de arte europeu) e outras formas de expressão que não tinha o costume de prestigiar nem sequer em suas manifestações mais triviais, como literatura e pintura. E, para sua própria surpresa, começa a perceber-se envolvido e fascinado pelo universo da arte e da beleza, a sentir um interesse genuíno por tudo de grandioso que o gênio humano já produziu. De tal forma que, mesmo quando suas chances de ficar ao lado de Thaís parecem ter-se reduzido a zero, ele não abandona seus esforços para adquirir cultura: sem perceber, Fábio aprendeu a lição mais importante de todas, a de que cultivar o próprio intelecto e sensibilidade é algo que deve fazer por si mesmo, e não para agradar seja a quem for. Aos poucos, ele se dá conta de que não está mais fingindo.

A história de amor de Fábio e Thaís é um fio condutor criativo para introduzir o leitor ao universo da alta cultura: entremeadas na história há ótimas listas de sugestões para quem deseja se iniciar na música clássica, no cinema "cabeça" e na literatura (se bem que nesse último campo eu apontaria uma lacuna: a lista dos livros essenciais não inclui nenhum clássico da Antiguidade), e também instigantes discussões sobre o papel da cultura na sociedade e na vida do indivíduo. Há pontos onde concordo e outros onde não concordo - o que é ótimo: que valor teria um debate onde todo mundo pensasse igual? Por exemplo, não concordo com o personagem (um professor palestrante) que, embora fazendo apologia à cultura e ao conhecimento, reconhece que "ler não faz de ninguém um ser humano melhor. O filósofo Francis Bacon, por exemplo, casou por interesse e morreu com 65 anos, devendo mais de 20 mil libras esterlinas (...). Tenho certeza que (sic) ele leu tudo o que havia de mais profundo e sábio". Eu digo que sim, ler faz de nós pessoas melhores; talvez não no aspecto moral ou ético, mas nos enriquece, abre nossa mente, faz-nos capazes de ter visões diferentes, livres dos antolhos que limitam o olhar das pessoas comuns, torna-nos mais sábios, mais capazes de conviver com as diferenças e com situações de incerteza. Leonardo da Vinci falava do sfumato (literalmente, "enfumaçado"), nome de uma técnica usada em pintura para dar aos objetos contornos imprecisos, como se vistos através de uma névoa; Leonardo e seus seguidores (incluo-me, ainda que correndo o risco de parecer pretensioso) também usavam, usam isso como uma metáfora para a capacidade de lidar com ideias e situações onde não são possíveis regras rígidas, onde nada é muito claro, onde a incerteza faz parte da própria essência das coisas. E, a menos que me engane, pessoas que leem mais e, por consequência, sabem mais, estão bem mais preparadas para isso. Pessoas incultas tendem a ver o mundo em apenas duas cores.

O cientista espanhol Santiago Ramon y Cajal dizia que cada pessoa pode ser escultora do próprio cérebro, caso realmente se proponha a isso, e essa frase seria um excelente resumo para a temática de Uma Paixão por Cultura, mas, como Turco não deixa de alertar Fábio, quem opta por se tornar culto está, ao mesmo tempo, abraçando uma existência essencialmente solitária. Por mais democrático que seja (e por mais conflitos que evite) dizer que "gosto não se discute", fica bem mais difícil continuar concordando com essa velha máxima quando se está andando pela rua e passa ao nosso lado um carro repleto de alto-falantes berrando o último sucesso do funk carioca a 240 decibéis... O fato é que a vasta maioria das pessoas nunca vai compreender o que existe de fascinante numa boa peça de teatro, nem experimentar aquela sensação de ter um balão inflando no peito ao ouvir um concerto de Bach, nem se maravilhar diante de uma pintura ou de um desenho de Da Vinci... Aliás, a maioria nem mesmo compreende qual o sentido de abrir um livro se o conhecimento que ele oferece não puder ser usado em seu trabalho. Sempre viveremos no meio dessa maioria rasa e enfadonha, que, por sua vez, sempre irá encarar os poucos que dão valor à cultura como chatos, esnobes ou simplesmente esquisitos. Optar pela cultura é uma decisão pessoal, que garante a quem a toma uma vida inimaginavelmente mais cheia, rica, bela, interessante, instigante que a dos que se contentam em habitar o espaço do óbvio - mas, ao mesmo tempo, uma vida bem menos confortável, repleta de inquietações e dúvidas que os "outros" não conhecem. E isso não é coisa para gente fraca. Para levar uma vida assim, a pessoa precisa ter fé verdadeira de que as recompensas oferecidas fazem tudo valer a pena: a escassez de interlocutores, a necessidade de procurar por seus prazeres, por vezes com esforço, enquanto os outros encontram os deles a toda hora e em toda parte, e a ocasional marginalização que irá sofrer. E, na minha opinião pessoal, ter acesso a cinco mil anos de história, conhecimento e arte vale muito mais do que ficar à vontade no meio da "galera" que só conhece futebol, cerveja e música pop de FM.

quarta-feira, julho 14, 2010

Conhecimento Prático - Literatura

Como este é o meu "blog de literatura", e trata-se de um fato deveras relevante para as minhas aspirações literárias, peço licença aos meus leitores para registrar que, pela primeira e espero que não última vez, tive um texto de minha autoria publicado numa revista de circulação nacional. Refiro-me à revista Literatura, do grupo Conhecimento Prático, da editora Escala Educacional, que também inclui Língua Portuguesa, Filosofia e Geografia. Meu modesto trabalho intitula-se Eneida: a evolução do herói, e é um breve ensaio sobre a visão do heroísmo retratada na obra-prima do poeta romano Virgílio, que veio a ser também o grande poema nacional de Roma, tal como a Ilíada e a Odisseia foram para a Grécia. O assunto despertou minha curiosidade quando estava redigindo meu trabalho de conclusão da faculdade e, ao fazer um estudo comparativo entre a obra de Virgílio e as de Homero, dei-me conta de que, apesar de toda a influência que este último exerceu sobre o outro, a ideia do que fosse um herói não era a mesma para ambos. É um assunto sobre o qual pode-se escrever todo um livro - projeto que continuo acalentando -, mas considero-me, por ora, satisfeito com o resultado que pode ser visto nas páginas da revista, e ficaria deveras lisonjeado se algumas das pessoas que acompanham meu blog porventura a lessem e me enviassem suas impressões, não importa que não especializadas. Como dizem os aficionados por futebol ao verem seu time fazer o primeiro gol numa partida que até aí ameaçava terminar no zero a zero, "por onde passa um boi, passa uma boiada", então já tenho cá os meus planos para mais alguns artigos.

terça-feira, abril 15, 2008

Literatura Fantástica

"Trust the tale, not the teller!" (D.H. Lawrence)

Esta tarde passei duas horas muito agradáveis participando da aula inaugural da oficina literária O Fantástico no Conto, ministrada por Maurício Chemello, mestre em Letras, na livraria/café Letras & Cia (Av. Osvaldo Aranha, 444). Adoraria poder participar de todos os encontros, que acontecerão até fins de junho, sempre às terças-feiras, mas, infelizmente, trabalho no interior e geralmente fico de segunda a sexta-feira longe de Porto Alegre. Pude estar presente à aula inaugural (aberta a todos os interessados, sem necessidade de inscrição) por estar de férias no momento. Ao me despedir do Maurício, sugeri que promova uma oficina aos fins de semana, o que seria ótimo para diversas pessoas que gostariam de participar e têm o mesmo problema que eu.

Sendo eu um graduado em Letras, não sou estranho à nomenclatura particular da Teoria Literária, mas, como, na faculdade, o currículo dedicava pouquíssimo espaço à literatura fantástica, saí desta aula com algumas noções novas. Aprendi, por exemplo, que o que comumente chamamos de literatura de fantasia (exemplo: todas as sagas heróicas ambientadas em mundos próprios e/ou envolvendo seres imaginários) é conhecido, dentro da Teoria Literária, como realismo mágico. Imagino que a palavra realismo, aí, aponte para o fato de que essas histórias descrevem uma determinada realidade - não a nossa, mas uma realidade - onde as coisas acontecem de modo a serem coerentes com a lógica interna desse universo próprio. Já o conto fantástico, assunto propriamente dito da oficina, é aquela história que, em princípio, retrata a realidade cotidiana - onde o autor introduz algum elemento incomum, inusitado, inesperado, que vai contra a ordem "normal" das coisas, podendo, ou não, ter caráter sobrenatural. Forçando um pouco (não muito) essa definição, poderíamos até dizer que todo conto é fantástico!... Pois toda história, para existir, precisa envolver um conflito - algo que perturba o andamento da vida cotidiana -, sendo que o enredo falará basicamente das ações dos personagens com o objetivo de restabelecer o equilíbrio. Isso se aplica tanto a Os Três Porquinhos como a Guerra e Paz; é um princípio universal. Daí temos que, se for para escrever uma história apenas narrando fatos comuns do dia-a-dia, onde nada de diferente acontece, melhor não escrevê-la. Por outro lado, se, em meio ao cotidiano, destaca-se um fato qualquer digno de ser narrado, isso não encaixa a história na definição acima? Pois!...

Claro que sabemos que não é bem assim, mas não dá pra resistir a fazer um pouco de "terrorismo" contra aquelas criaturas cansativas que gostam de torcer o nariz para livros, filmes, etc., dizendo que são "inverossímeis", como se isso fosse um defeito...

Como "tema" para a próxima aula, da qual, infelizmente, já não poderei participar, o Maurício nos recomendou ler a coletânea de contos O Livro de Areia, do argentino Jorge Luís Borges, um grande autor do conto fantástico e também ensaísta, que vem a ser um dos (inúmeros) escritores com os quais já estou há muito tempo devendo a mim mesmo um contato mais aprofundado. Mesmo não podendo seguir a oficina, pretendo fazer o tema: depois escrevo aqui sobre o livro.

Para pensar: cá entre nós: para que a literatura (ou, se pensarmos bem, todas as artes) serviria, se nada mais pudesse fazer do que copiar a realidade?

quinta-feira, outubro 04, 2007

O 13.º Guerreiro


De um livro pouco conhecido de Michael Crichton (autor do blockbuster Jurassic Park, além de outros livros/filmes de sucesso mais discreto, como Congo e Linha do Tempo) originou-se este ótimo filme de aventuras dirigido por John McTiernan e estrelado por Antonio Banderas. Além de adrenalina, o DVD também oferece ao espectador mais atento a questões culturais uma série de detalhes interessantes de se observar. Por sinal, as proporções relativas do sucesso alcançado pelas obras de Crichton adaptadas para a tela reflete a grande e inevitável injustiça da indústria cinematográfica: O 13.º Guerreiro é incomparavelmente mais interessante que todas as correrias de T. Rex e Velociraptors pelo parque.

O título original do livro era Eaters of the Dead - ('Os devoradores de mortos'). Não tive o prazer de lê-lo ainda, mas uma pesquisa a respeito me informou que Crichton utilizou o velho truque de apresentar a história como sendo a transcrição de um "antigo manuscrito", nesse caso de autoria do árabe Ahmad Ibn Fadlan, datado do ano 922. Exilado do "mundo civilizado" (o que, nessa época, significava principalmente os países árabes, que superavam em muito a Europa cristã em matéria de ciência e desenvolvimento cultural), Ahmad é enviado para o norte, para atuar como embaixador num país distante. Mas não chega ao destino: às margens do Volga, encontra um bando de vikings e acaba tendo que acompanhá-los numa arriscada viagem para socorrer um reino ameaçado por um mal antigo e misterioso. Um oráculo determina que a expedição deve ser composta por homens em número idêntico ao dos meses no calendário dos nórdicos - treze - e que o último não deve ser viking. Sobra para Ahmad.

Embora eu seja um apaixonado pela cultura, história e mitologia dos povos nórdicos, não posso me dizer um grande conhecedor. Entretanto, até onde pude ver, o visual do filme é bem cuidado: arquitetura, figurinos, armas e, o mais importante, nada de elmos com chifres, coisa que pertence a uma visão caricata dos vikings. Não que tais capacetes não existissem, mas eram raros e usados somente em cerimônias religiosas ou ocasiões de gala - por exemplo, era bem visto para um chefe comparecer a uma festa importante usando sua melhor roupa e um capacete com chifres. Já em batalha, tal objeto seria apenas um peso desnecessário e um alvo fácil para os golpes do inimigo.

Nota-se que a história do filme é parcialmente inspirada no poema épico Beowulf, um dos mais antigos representantes da literatura inglesa - escrito ainda em anglo-saxão, língua ancestral do inglês moderno, e datado entre os anos 700 e 1000. E, sim, foi escrito na Inglaterra, apesar da temática nórdica, e provavelmente antes das invasões dinamarquesas do século X. É claro que no poema não havia nenhum árabe envolvido, e no filme o nome do herói mudou ligeiramente: Beowulf virou Buliwyf. Além disso, não é ele o protagonista, e sim Ahmad.

O mal que os treze guerreiros são convocados a enfrentar é uma horda de criaturas aparentemente semi-humanas, semi-animais, que se escondem em cavernas e atacam em noites brumosas, matando todos que encontram com incrível brutalidade. Seu número parece ilimitado, de modo que apenas lutar com eles e matá-los é inútil: a parte mais difícil da missão consiste em encontrar um meio de detê-los.


Há diversas sugestões de que o wendol - coletivo que designa os monstros - é na verdade uma raça de origem muito primitiva: num dos lugares por onde semearam a morte, eles perdem um ídolo, uma pequena estátua feminina com seios e nádegas enormes, ou seja, uma deusa representando a fertilidade, tal como era figurada pelo homem de Cro-Magnon há mais de 30 mil anos. São aparentemente governados por uma "rainha-mãe" e pelo companheiro dela, que lidera o wendol nos ataques e usa chifres como insígnia. Tudo elementos de uma simbologia de origem pré-histórica: a Grande Mãe e o Deus Chifrudo...

Mas o mais interessante é o choque de culturas, que o livro deve desenvolver muito mais, já que no filme só há tempo para rápidas pinceladas. Ahmad é um homem culto, sofisticado, que a princípio se choca na presença daqueles "bárbaros", mas aos poucos aprende a reconhecer suas qualidades e a criar laços de amizade com eles. Fica atordoado com a alegria constante e ruidosa dos nórdicos, que brincam e gargalham quase o tempo todo, seja a bordo de um navio a ponto de ir a pique numa tempestade, ou pouco antes de uma batalha em tremenda desvantagem numérica contra um inimigo apavorante. Tanto ele quanto o espectador compreendem um pouco melhor essa atitude quando um dos guerreiros diz a Ahmad mais ou menos isto: "Nosso destino já estava escrito antes de nascermos, e assim também o momento de nossa morte. Esconda-se num buraco se quiser, mas isso não o fará viver nem um minuto a mais. O homem nada ganha com o medo". Essa filosofia fatalista explica a coragem por vezes beirando a insensatez que sempre caracterizou os guerreiros nórdicos, e é idêntica à que norteava os heróis gregos nos poemas homéricos: o homem não escolhe o momento de sua morte, mas pode escolher o modo como irá encará-la.

Enfim, seja com um olhar cultural ou apenas por diversão, recomendo plenamente que O 13.º Guerreiro seja visto. Vale bem mais a pena do que muitos outros filmes sobre os quais se fez bem mais barulho!