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sexta-feira, setembro 16, 2016

O Tigre

Salvo por alguns inevitáveis e esporádicos acidentes de percurso, a convivência milenar entre tigres e seres huma­nos tem sido, de modo geral, pacífica, quanto mais não seja porque, durante a maior parte de sua história, os ho­mens não possuíam armas suficientemente poderosas que os encorajassem a enfrentar um animal tão perigoso sem necessidade. Como regra, enquanto os tigres não atacassem pessoas, e não cobrassem um tributo excessivo dos re­banhos domésticos, os humanos os deixavam em paz. Tem sido assim desde tempos imemoriais, das taigas geladas da Sibéria até as selvas tropicais da Indonésia, e das praias do Mar Cáspio até os confins orientais da Ásia – quer di­zer, em todas as paragens habitadas por tigres e humanos. Só o advento dos séculos XIX e XX, trazendo consigo ar­mas de fogo modernas e o conceito de "caça esportiva", é que mudou essa situação. É verdade que a medicina tradi­cional chine­sa – tão admirável em algumas coisas, tão estúpida em outras – há muito atribui poderes curativos (e sem qual­quer base em fatos) a diversos pedaços do tigre; a impressão que dá é a de que existe um raciocínio de que, se uma coisa é rara e difícil de obter, então ela necessariamente deve ter propriedades milagrosas. Em consequên­cia, o sangue do tigre, o pó de seus ossos, sua bílis, órgãos internos e várias outras partes valem um alto preço, mas, enquanto o bi­cho tinha que ser caçado com arco e flecha, lança, ou com mosquetes rudimentares de um só tiro, ha­via pou­quíssima gente disposta a encarar a bronca, por maior que fosse a recompensa em jogo. Armas mais eficien­tes mu­daram as coisas – não admira que o tigre-da-china esteja quase extinto. Não foi tão melhor na antiga União Soviéti­ca, cujo vasto território abrigava duas subespécies: o tigre-do-cáspio, extinto desde a década de 1960, e o ti­gre-da-sibéria, ou tigre-de-amur, o maior e mais possante de todos os tigres, que teve um pouco mais de sorte por habitar regiões muito re­motas e pouco populosas.

Porém, essa sorte não duraria para sempre. Nos primeiros tempos do comunismo so­viético, os tigres eram considerados uma praga, e o seu extermínio era incen­tivado pelo governo. Mais ou menos na mesma época em que o tigre-do-cáspio foi extinto, e com a população de tigres-­siberianos reduzida a poucas dezenas de exemplares na natureza, felizmente parece que alguém mais esclarecido teve acesso a um cargo no qual dispunha de poder para fazer algo a respeito, e foram promulgadas leis protegen­do os animais. Com isso, o número de tigres-siberianos subiu para algumas centenas ao longo das décadas seguin­tes, e conservacionistas do mundo inteiro já se sentiam mais tranquilos, quando chegou a década de 1990 – a déca­da da Perestroika, a reestruturação política e econômica que pôs abaixo a "Cortina de Ferro" que isolava a União Soviéti­ca do resto do mundo. A isso seguiram-se, sem muita demora, o fim da própria União Soviética e a implosão do co­munismo. Isso tudo teve duros efeitos sobre a sociedade e a economia da Rússia, com um empobrecimento ge­ral da população e um aumento drástico do desemprego. Muitos russos, sem outra alternativa de sobrevivência, passa­ram a tentar viver do que as florestas da Sibéria ofereciam, fosse por meio da caça de diferentes animais ou da ex­tração de madeira – invadindo o habitat dos tigres. Pior ainda, o relaxamento do controle das fronteiras permitiu a entra­da de caçadores ilegais vindos da China em busca dos tigres que já não existiam em seu país.

No entanto, Vladi­mir Markov, o caçador ilegal de 46 anos que foi morto por um tigre, nos arredores do vilarejo siberiano de Sobolo­nye, em de­zembro de 1997, não era chinês, e sim russo mesmo. A guarda florestal imediatamente chama a equipe local do pro­jeto conhecido como Inspec­tion Tiger, subordinado ao Departamento de Conservação e Caça. A equipe é lidera­da por Yuri Trush, ex-militar e experiente caçador, cujo trabalho, agora, consiste basica­mente em proteger os tigres contra caçadores ilegais – só que, na eventualidade de os papéis de caçador e presa se­rem troca­dos, isso tam­bém é de sua alçada. Quando Trush e seus companheiros chegam ao local, constatam que pouca coisa restou de Markov para ser vista; o mais desconcertante, entretanto, é que, a julgar pelos rastros e outros sinais deixados na cena da morte (sinais esses que um caçador experiente pode ler como se estivessem escritos num livro), o tigre não ma­tou Markov num encontro fortuito, e nem mesmo para se defender: ele o espreitou e caçou, com inteligência e paci­ência, talvez durante dias.


A primeira hipótese levantada é a de que Markov tivesse capturado um filhote a fim de vendê-lo, e sofrido a vingança da mãe, mas um dos companheiros de Trush logo descarta essa possibilida­de, por­que os rastros encontrados na neve são grandes demais para pertencerem a uma fêmea. E, como se descobre de­pois, ele está certo: o tigre responsável pela morte do caçador é um macho de cerca de seis anos – jovem, mas já adulto, e especialmente grande. No decorrer da mesma investigação, os agentes do Inspec­tion Tiger descobrem uma armadilha, obviamente instalada por Markov, e destinada à captura de tigres. Ou seja, é a prova de que o fale­cido não simplesmente lidava com incidentes ocasionais envolvendo tigres, como todo caçador da taiga está sujeito a ter: ele estava deliberadamente caçando os felinos, um crime grave perante a lei russa, mas também um negócio muito lucrativo.

Uma mente civilizada reluta em estabelecer o nexo entre Markov caçar tigres e o fato de ter sido morto por um. Afinal, nenhuma fera é capaz de desejar vingança, e tampouco de executá-la, não é mesmo? Um tigre pode atacar um caçador que atire nele, que tente roubar carne de uma presa que ele abateu, ou que ameace seus filhotes, e – embora isso seja muito raro – pode até mesmo atacar um ser humano como o faria com um ani­mal qualquer, levado simplesmente pela fome, mas todas essas situações podem ser atribuídas ao instinto de auto­preservação ou ao de defender a prole. Vingança requer compreensão de causa e consequência, capacidade de pla­nejar, e também de experimentar um sentimento semelhante ao ódio – tudo coisas demasiado complexas para um animal dito "irracional". Entretanto, a relutância em admitir essa possibilida­de não é compartilhada por povos nati­vos da Sibéria, como os nanai e os udeghe, que há séculos e milênios vivem em íntima comunhão com a taiga (um tipo de floresta característico das latitudes boreais). Para os caçadores desses povos, que tiram da floresta o susten­to de suas famílias, tal como seus ancestrais o fizeram desde tempos muito antigos, o tigre é tão inteli­gente quanto um homem, igualmente capaz de ser tanto generoso quanto cruel, de guardar rancor ou de perdoar, e, por tudo isso, é digno de ser tratado com respeito e cautela. Conversando com esses caçado­res nativos, Yuri Trush e seus ho­mens vão desenvolvendo uma compreensão diferente do incidente que tirou a vida de Markov – e que se repete al­guns dias depois: desta vez, a vítima é um jovem caçador de 20 anos, Andrei Po­chepnya, para quem Markov havia sido, além de vizinho e amigo, uma espécie de mentor. Se Pochepnya estava atrás de vingança, ou se simplesmente topou com o tigre enquanto caçava para pôr comida na mesa da família, não fica claro, mas o problema nas mãos de Trush e sua equipe fica cada vez maior. Sem alternativa, os homens dão iní­cio a uma caçada perigosa em meio a um ambiente no qual o tigre parece capaz de desaparecer sempre que assim deseja, e, embora o animal esteja ferido e pareça raivoso, age com uma sagacidade quase sobrenatural, tornan­do sua caça um desafio ainda maior, e fazendo da leitura desta história uma experiência que o leitor não esquecerá fa­cilmente.

Citar críticas elogiosas feitas por escritores de renome ou por órgãos de imprensa conceituados é uma estratégia muito comum para alavancar as vendas de livros de todos os gêneros, mas uma das que aparecem na contracapa de O Tigre me parece certeira: al­gum crítico do jornal francês Le Monde teria escrito que o livro é "o equivalente de Moby Dick para a floresta", e eu concordo, por pelo menos duas boas razões. A primeira é a combi­nação mortífera de ferocidade e inteligência, de­monstrada tanto pelo grande cachalote branco de Herman Melville quanto pelo tigre homicida caçado por Trush e seu grupo – o que confere a ambas as narrativas um clima aflitivo impossível de compreender sem lê-las. A outra é que o esquema geral de Moby Dick parece ter servido de inspira­ção a John Vaillant: Melville intercalava capítulos que narravam a caçada ao cachalote com outros de conteúdo en­ciclopédico, versando sobre cetologia, sobre a ativi­dade baleeira e assuntos afins; Vaillant alterna a investigação das mortes de Markov e Pochepnya e a perseguição ao tigre com dissertações sobre aspectos históricos, geográficos e humanos da Rússia em geral e da Sibéria em particu­lar, e com uma ampla e fascinante pesquisa na qual a antropo­logia dialoga com a história natural.

Os grandes primatas (entre eles nós, hominídeos) e os grandes felinos evoluí­ram de forma paralela, em muitos casos partilhan­do o mesmo habitat, e, durante 90 por cento do tempo, ou mais, os respectivos papéis eram muito claros: eles eram os predadores dominantes, e nós, presas eventuais. Nosso medo atávico do escuro (e quando digo "nosso", não que­ro dizer apenas dos humanos, mas dos grandes primatas em ge­ral) deve-se provavelmente ao fato de nossos ances­trais, durante pelo menos cinco milhões de anos, terem desen­volvido o hábito de buscar abrigo tão logo anoitecia, sob pena de tornarem-se o jantar de algum dentre uma longa lista de predadores noturnos, lista essa na qual leões, leopardos e outros felinos ocupavam lugar de destaque. Não tínhamos a menor chance contra essas feras: não po­díamos nem por sonhos rivalizar com sua força ou agilidade, e não tínhamos presas ou garras. Com o tempo, fomos encontrando maneiras de compensar essas desvantagens usando nossos dois principais trunfos – nosso cérebro e nossa habilidade manual. Aprendemos a fabricar armas cada vez mais eficien­tes e a agir em equipe de formas astu­tas, o que, aos poucos, equilibrou a balança, e depois a fez pender para o nosso lado. A partir daí, parece que passa­mos a merecer algum respeito da parte de nossos vizinhos felinos – pois, como Vaillant demonstra com base em di­versos estudos de especialistas, não somos os únicos animais capazes de incorporar novos conceitos e mudar nossos costumes de acordo com eles. Por muito tempo, os felinos viram os hu­manos como presas fáceis, mas, a partir do momento em que nossos ancestrais começaram a andar munidos de obje­tos pontiagudos e cortantes que podiam cau­sar sérios estragos, as feras passaram a evitá-los. Por outro lado, mes­mo que agora fosse capaz de se defender, o ho­mem primitivo não tinha qualquer desejo de procurar briga com ani­mais perigosos, a menos que fosse absoluta­mente necessário – um comportamento que foi passando de geração em geração, tanto entre felinos quanto entre humanos, até que se chegasse a um acordo de respeito mútuo, aquele do qual eu fala­va no começo do texto. Apesar disso, a escuridão, e o que quer que possa haver nela, continuaram e con­tinuam a nos intimidar, e devemos isso, em grande parte, aos ti­gres e seus parentes. Para mim, uma das coisas mais fasci­nantes a respeito da antropologia (e, mais especificamen­te, da parte dela que trata dos nossos ancestrais) é o fato de nos permitir compreender os moti­vos de sermos como somos.

O tigre-siberiano é um dos mais belos animais que alguém seria capaz de imaginar, e também um dos mais aterradores. Mais peludo e corpulento que seus paren­tes de regiões quentes, é uma perfeita má­quina de ma­tar que pode atingir (e, por vezes, ultrapassar) 300 quilos de peso e três metros de comprimen­to to­tal, medindo do fo­cinho à extremidade da cauda. Seus dentes cani­nos têm o comprimento de um dedo indica­dor, a mandíbula é pode­rosa o suficiente para partir o fêmur de um boi com uma única mordida, as garras são cur­vas como ganchos e afia­das como navalhas. Todo esse arsenal está a ser­viço de um cérebro astuto de predador: tal­vez por viverem e caça­rem sozinhos, os tigres parecem ter boa capacida­de de plane­jamento (sim!) e de lidar com situa­ções inesperadas, muito mais que seus primos, os leões. Nenhum animal da tai­ga está a salvo de seu apetite: o tigre pode se alimentar de qualquer coisa, de ratos-silvestres a bisões adultos, e, pasmem, até mesmo de animais que, em qualquer outro lugar, costumam ocupar o topo da cadeia ali­mentar, como ursos e lobos (!). Entretanto, parece que suas presas fa­voritas são cervídeos de grande porte (alce, rena, wapiti) e javalis.

Estima-se que existam hoje cerca de 500 ti­gres-siberianos em liberdade, mais uns cem em zoológicos e cen­tros de preservação em diferentes países. É o sufici­ente para que a subespécie não corra pe­rigo imediato, mas há outro fa­tor complicador a colocar em risco seu futuro: a gradual redução do espaço vital disponí­vel devido à ocupa­ção hu­mana. Foi-se o tem­po em que "Sibéria" designava uma região isolada e quase despo­voada, para onde eram mandados os prisioneiros políticos: hoje ela tem grandes ci­dades e uma população superior a 25 milhões de habi­tantes. Para complicar, o ti­gre, como todo predador de gran­de porte, necessita de um território vas­to – algo em tor­no de 450 quilômetros qua­drados para um macho adulto, sen­do que essa área pode sobrepor-se aos territórios de até duas ou três fêmeas. Embo­ra a Rússia tenha estabeleci­do reservas naturais visando tanto a preser­vação do tigre quanto de outras espéci­es, o sim­ples tamanho dessas reservas torna quase impossível um controle cem por cento efeti­vo; além disso, mais difí­cil que impedir que caçadores entrem, é impe­dir que os animais saiam. Há planos de trans­ferir certo número de ti­gres para o Par­que Pleistoceno, uma reserva natural no nordeste da Sibéria, onde biólogos estão tentando restabe­lecer as condi­ções ecológicas que lá existiam perto do final da última Era Gla­cial, por meio da reintrodução de espé­cies que habi­tavam a região na época. Mesmo antes que a área se tornasse um parque, já vi­viam nela animais como ur­sos, lobos, alces, renas e ja­valis; desde então, foram reintroduzidos com su­cesso bois-al­miscarados, bisões, wapi­tis, ca­valos selvagens, saigas e linces (e, se o projeto de clonagem que está ten­tando trazer de volta os mamutes for bem-­sucedido, o local será, sem dúvida, um lar confortável também para esses gigantes do passado – isso não seria for­midável??). Ainda estão em andamento os estudos sobre a viabilidade de ter tigres vi­vendo lá, e, de qualquer for­ma, será necessário aguardar que a popula­ção de herbívoros aumente até atingir núme­ros que permitam que sir­vam de alimento aos grandes feli­nos sem peri­go para sua própria conservação. Outra ideia, ainda mais ambiciosa, consiste em repovoar com tigres-siberianos as áreas antigamente ocupadas pelo extin­to tigre-do-cáspio, o que re­presentaria um aumento importante do espaço vi­tal disponível para a subespécie, mas isso ainda é uma possibilida­de distante. Por enquanto, o tigre-­siberiano só pode contar mesmo com as reservas que já ocupa, no extremo orien­te russo.

Acho que foi Jacques Cousteau quem declarou que ficava atônito de pensar que, durante o tempo de duração de sua vida, o homem, de­pois de milênios lutando contra a natureza pela sobrevi­vência, teve que fazer um giro de 180 graus e passar a empe­nhar-se em defendê-la, porque percebeu – e esperemos que não tenha sido tarde demais – que é preciso encontrar um equilíbrio. Continuando o pensamento de Cousteau, eu diria que o tigre é um perfeito exemplo concreto dessa ideia mais geral sobre a natureza. Junto com outras feras predadoras, ele fez parte dos nossos pesa­delos na pré-his­tória, e, ao longo de toda a construção da nossa cultura, foi sempre temido – pri­meiro, só temido; depois, temido, admirado e cobiçado de morte. Hoje, temos que nos esforçar para salvar os últi­mos deles, se não quisermos ser os responsáveis por legar às gerações futuras um mundo onde os tigres não exis­tam, um mundo, por­tanto, despojado de um pouco (na verdade, um muito) de sua beleza e terror. Eu fico pensando no quanto vai ser triste se, daqui a um ou dois séculos, uma criança de então abrir um livro, maravi­lhar-se com a ilustração represen­tando um gigan­tesco gato listrado de amarelo e preto, tão forte, majestoso, fasci­nante e terrível, e sentir a frustra­ção de saber que tal animal não existe mais, que nunca lhe será possível ver um de­les vivo e respi­rando – o mesmo tipo de frustração que eu, tanto em criança quanto ainda hoje, sentia e sinto ao abrir um livro e fi­car olhando com espanto para ima­gens de arsinotérios, gliptodontes, entelodontes, rinocerontes peludos e tantas outras feras magní­ficas que nunca vou ver a não ser em livros mesmo. Na verdade, acho que será mais triste ainda, porque essa crian­ça do futuro esta­rá olhando para fotografias, e não para pinturas; para um ani­mal cuja extinção não foi natural, e sim culpa do ho­mem. E ficará sabendo que tivemos uma chance de salvar o ti­gre, e não o fizemos. O que seria uma grande, grande vergonha.

sábado, fevereiro 28, 2015

O Monstro de Florença

Este livro-reportagem muito bem escrito trata de um dos maiores, se não o maior mistério da crônica policial italiana em todos os tempos: o serial killer que ganhou da imprensa (na verdade, de Mario Spezi, coautor do livro) o apelido de "o Monstro de Florença". Embora, na capa, o nome de Spezi apareça junto ao de Douglas Preston, escritor norte-americano relativamente famoso no campo do romance policial, o texto parece ter sido integralmente escrito por Preston. A coautoria atribuída a Spezi fica por conta do fato de ele, no exercício de suas funções de jornalista, ter acompanhado a história do Monstro desde 1981 – muito antes de conhecer Preston – e formado, ao longo dos anos, um vasto arquivo de documentos referentes ao caso. Sua obsessão pelo assunto, e o conhecimento que acumulou sobre ele, levaram seus colegas da imprensa a apelidá-lo de "monstrólogo". Foi Spezi quem, apoiado em todo esse conhecimento, colocou Preston a par de tudo quando este último chegou a Florença, no ano 2000.

Foi em junho de 1981, a propósito, que a polícia e a imprensa somaram dois mais dois e perceberam que havia um serial killer em ação. O assassinato do casal Carmela De Nuccio e Giovanni Foggi, quando faziam sexo dentro de um carro junto à estrada rural denominada Via dell'Arrigo, perto de Florença, tinha muitos pontos de semelhança com o de Stefania Pettini e Pasquale Gentilcore, em 1974, em Borgo San Lorenzo, também nos arredores de Florença ― e, embora isso só tenha sido "desenterrado" depois, também com o de Barbara Locci e Antonio Lo Bianco, em 1968. O exame balístico mostrou que os projéteis responsáveis pela morte das vítimas, em todos os três crimes, eram de um mesmo lote, e, mais importante, haviam saído todos da mesma arma, uma pistola Beretta calibre 22. Um novo assassinato, com características idênticas, ocorreu em outubro de 1981, e outro em 1982. Daí em diante, os crimes se sucederam, sempre um por ano e sempre no verão, até 1985, quando pararam. Oito assassinatos duplos – dezesseis pessoas mortas. O modus operandi do assassino era sempre o mesmo: espreitar um casal que estacionasse o carro num local ermo a fim de fazer sexo, e atacar quando estivessem mais entretidos. Homem e mulher eram mortos a tiros e, depois, o corpo da vítima feminina era arrastado até uma certa distância e submetido a mutilação sexual – tudo sempre tão igual e metódico que chegava a parecer um ritual, o que não é raro em se tratando de serial killers. Análises de peritos da polícia determinaram que o assassino escolhia cuidadosamente o local, matando apenas em terreno que conhecesse bem; já as vítimas eram escolhidas ao acaso, bastava que estivessem no lugar certo (ou, do ponto de vista delas, errado) e que fossem um casal (numa ocasião, o Monstro pegou dois turistas alemães gays, mas os peritos foram unânimes em considerar que foi por engano, tanto que, ao perceber que eram dois homens, ele se retirou sem completar o ato costumeiro).


Por muito tempo, os suspeitos favoritos da polícia foram dois irmãos sardos, Salvatore e Francesco Vinci. Primeiro Salvatore e depois Francesco haviam sido amantes de Barbara Locci, a vítima feminina do crime de 1968, assassinada quando estava com o amante da vez, Antonio Lo Bianco, o que poderia ter servido de motivação para o ato – ciúme ou despeito. Acontece que o marido de Barbara, um certo Stefano Mele, havia confessado o assassinato dela e de Antonio, exatamente com a mesma motivação, sendo preso em seguida – e preso continuava em 1974 e 1981, de modo que não poderia ter cometido os crimes seguintes. Apesar disso, a análise balística não deixava dúvida: todos os assassinatos tinham sido praticados com a mesma arma. Poderia ter acontecido que Stefano – um homem de cabeça meio fraca –, depois de cometer o crime, tivesse entrado em pânico e feito uma canhestra tentativa de livrar-se da pistola, que, dessa forma, teria acabado em poder de um dos irmãos, já que estes tinham ligações com ele e sua família.

O fato de serem sardos já lançava uma certa sombra sobre os Vinci. Embora a Sardenha, politicamente falando, seja uma região autônoma da Itália, os sardos, em muitos sentidos, são um povo à parte, e gostam de continuar assim; para eles, os italianos do continente são "estrangeiros". Sardos têm há muito tempo a fama de violentos e vingativos, e também de se regerem por leis próprias, não escritas, e, por isso, não darem muita importância às leis instituídas. Acontece que nem Salvatore nem Francesco pareciam encaixar-se no perfil do assassino – um perfil feito pelo FBI americano, a pedido da polícia italiana. O Monstro (segundo o tal perfil) parecia sofrer de uma grave inadequação sexual, sendo provavelmente impotente e não se sentindo capaz de interagir com pessoas vivas, de modo que procurava "possuir" as mulheres da única maneira que conseguia: matando-as. Quanto aos homens, eram apenas um obstáculo que ele removia. Pois bem… Francesco, o mais jovem dos irmãos Vinci, era um notório mulherengo, enquanto Salvatore era ainda menos seletivo, "pegando" mulheres e homens indistintamente. Com certeza nenhum dos dois era impotente ou tinha medo de pessoas vivas. Entretanto, parece que ao menos parte do pessoal da polícia, promotores etc., tinha uma tendência a agarrar-se a uma teoria (mesmo que ilógica) e fazer o que fosse preciso para manter a investigação atrelada a ela – inclusive ignorar evidências, se estas fossem contrárias à tal teoria. Isso custou a ambos os Vinci longas temporadas na prisão.

Ainda nessa esfera, é preciso assinalar que o livro não pinta um retrato muito lisonjeiro da polícia italiana de maneira geral: dos oito duplos assassinatos investigados em conexão com o caso, apenas no último é que alguém teve a ideia de isolar a cena do crime. Nos outros sete, policiais, jornalistas e até reles curiosos puderam circular livremente pelos locais, e só Deus sabe quantas pistas que poderiam ter sido importantes foram inutilizadas. Isso sem mencionar as diversas vezes em que a investigação enveredou por becos sem saída devido a conflitos de egos, incapacidade de reconhecer erros, ou por causa da tradicional rivalidade entre a polícia e os carabinieri, que são o equivalente italiano de uma polícia militar.

Como é dito em algum lugar do livro, a investigação a respeito do Monstro de Florença transformou-se, ela própria, num monstro, e não apenas por causa das dimensões enormes que assumiu ao longo de muitos anos. Pessoas foram acusadas e presas injustamente, e mais de uma delas teve a reputação e/ou a vida arruinada. Numa reviravolta bizarra, o próprio Mario Spezi passou um tempo atrás das grades e foi levado a julgamento, acusado de obstrução da justiça, de plantar provas contra um inocente, e até mesmo de ser um dos "mandantes" dos crimes do Monstro. Quanto a Preston, escapou por pouco de passar os mesmos apertos, e parece que a única coisa que livrou sua pele foi sua cidadania americana – sendo que precisou deixar a Itália e abster-se de lá retornar durante um bom tempo, pois, caso o fizesse, poderia mesmo acabar preso. Uma vez em segurança nos Estados Unidos, entrou em contato com organizações de proteção à imprensa de diferentes países e deflagrou uma campanha internacional pela libertação do amigo. Fosse por causa dessa pressão ou porque os juízes acabaram vendo a luz, o fato é que Spezi foi absolvido e saiu de cabeça erguida, aclamado por jornalistas do mundo todo como um herói da liberdade de imprensa. Outros não tiveram a mesma sorte.

Além de tudo o que já citei, a investigação do Monstro incluiu o melhor e o pior que existe em qualquer força policial ou sistema de justiça: houve homens tenazes e corajosos, que, em seu esforço para descobrir o culpado, foram muito além daquilo que as atribuições de seus cargos exigiam, e houve oportunistas vulgares, que usaram o caso como trampolim para progredir na carreira. Pior ainda: Preston tem certeza de que a prisão e o julgamento de Spezi aconteceram por obra e graça do inspetor-chefe Michele Giuttari e do promotor Giuliano Mignini, que teriam levantado as acusações contra ele como represália pelas duras críticas que lhes fizera em artigos publicados em jornais.

O leitor atento provavelmente terá estranhado quando eu disse que Spezi foi acusado de ser mandante dos crimes do Monstro de Florença: desde quando um indivíduo perturbado que mata com motivação sexual tem "mandante"? Quem explica isso é um aristocrata florentino, amigo de Spezi e Preston, o conde Niccolò Caponi. Numa conversa com Preston, Caponi lhe apresenta o conceito de "dietrologia" (do italiano dietro, 'atrás'), a "ciência" de sempre ver coisas ocultas nos bastidores, de nunca aceitar explicações simples, dando sempre preferência à versão mais rebuscada que for oferecida a respeito de qualquer assunto ― e, se envolver figuras importantes da sociedade, melhor ainda. Em outras palavras: para a opinião pública italiana (segundo Caponi), não seria suficientemente emocionante admitir que o Monstro de Florença era algum tipo de assassino psicótico, que agia por conta própria e matava por suas próprias razões doentias; era muito mais interessante acreditar que, por trás dos crimes, havia alguma organização secreta, provavelmente uma seita satânica que enviava o assassino, ou assassinos, em busca de despojos sexuais humanos para serem usados em rituais macabros. Por mais que custe crer, essa versão digna de tabloide sensacionalista orientou durante anos uma das principais linhas de investigação no caso do Monstro (conduzida por Giuttari, o que explica o porquê dos ataques de Spezi). Eu diria que o conde Niccolò tem um olhar bastante arguto, mas engana-se quando afirma que o gosto pela "dietrologia" é uma característica tipicamente italiana: basta ver a paixão do público norte-americano (e de muita gente em todos os países do mundo) por teorias da conspiração, para constatar que esse fenômeno não tem fronteiras.

O Monstro de Florença é um livro de não-ficção que não fica a dever nada a um bom romance de suspense – e, por falar nisso, não poderia deixar de mencionar que, além de Preston, outro escritor americano interessou-se pela história do Monstro: ninguém menos que Thomas Harris, autor de O Silêncio dos Inocentes e de sua sequência, Hannibal, que mostra o psiquiatra/psicopata Dr. Hannibal Lecter vivendo em Florença e trabalhando como curador da biblioteca do Palácio Caponi (sim, o palácio da família do conde Niccolò). Harris estudou o caso do Monstro e até assistiu aos julgamentos de alguns acusados, e detalhes reais dos crimes e de sua investigação foram uma clara fonte de inspiração para seus escritos.

domingo, setembro 27, 2009

O Culto do Amador

Qualquer pessoa que já haja experimentado manter comigo alguma conversação de pelo menos 15 minutos sobre temas culturais (como é o caso de todos os leitores deste blog - toda a meia dúzia, quero dizer) já me ouviu esbravejar ardorosamente contra o que considero uma das maiores pragas da modernidade: aquilo que chamo de fragmentação do conhecimento, fruto de uma supervalorização da especialização, que, por sua vez, é fruto dos antolhos que o mundo capitalista pós-moderno prendeu na cara do cidadão mediano do fim do século XX, início do XXI. Em bom português, a ideia geral é que você não precisa (e, para muitos, nem deve) conhecer, saber ou se interessar por coisa alguma que não tenha diretamente a ver com sua profissão ou área de atuação: se você é um técnico em informática, não tem que saber nada de biologia, se você é um administrador, não deve perder tempo com literatura, se você é um advogado, não deve se ocupar de nada que não seja jurídico, e por aí afora. Para mim, isso é a receita mais garantida para criar uma multidão de pessoas burras (diploma e sucesso profissional não são antídoto contra a burrice, nunca foram), rasas, tapadas, desumanas e materialistas. Mesmo que eu esteja sozinho no mundo, sem ninguém que compartilhe de tal opinião, continuo acreditando que devemos saber um pouco de tudo, sim: não necessariamente ser um multi-homem como Leonardo da Vinci, mas saber uma infinidade de pequenas e grandes coisas sobre os mais variados assuntos, saber o que é fotossíntese, quem foi Péricles, no que acreditam os muçulmanos, onde fica o deserto de Gobi, o que são placas tectônicas, como se sopra vidro, como os samurais obtinham a liga de aço que lhes permitia fabricar as melhores espadas do mundo, saber que baleia não é peixe, saber o que é o teorema de Pitágoras, saber qual a função dos metais semicondutores na eletrônica... SABER! Não importa se esses conhecimentos irão lhe ser "úteis" algum dia ou não: saber, simplesmente (parafraseando Ítalo Calvino) porque saber é melhor que não saber. É preciso conhecer muitas coisas, sobre muitos assuntos diferentes, para chegar a alguma percepção - nunca à percepção completa - de que todas as áreas do conhecimento humano estão interligadas, de que todas as ciências e artes interagem e se interpenetram, de que tudo faz parte de um grande todo. Estou convencido de que o único motivo porque algumas pessoas são curiosas e sedentas de saber, enquanto outras são apáticas e não se interessam por coisa alguma, é que as primeiras compreenderam isso, e as outras não.

Ocorre que o "jogo" (na falta de palavra melhor...) do conhecimento tem ainda outra particularidade tão fascinante quanto aflitiva: toda moeda tem dois lados. Este livro de Andrew Keen me mostrou esse fato na prática. Tendo sido um figurão dentro de mais de uma grande empresa norte-americana de internet, Keen não apenas testemunhou a assim chamada "revolução da informação" nos anos 90, mas ajudou a fazê-la. Agora, nos anos 2000, alarmado com os rumos que a coisa tomou, escreveu este livro para chamar a atenção para o grande problema deste mundo onde temos toda a informação que desejarmos sempre à mão, acessível com poucos cliques: quem é que garante a qualidade dessa informação? Essa já era uma das grandes questões relacionadas à internet desde que ela se popularizou e passou a ser acessível a muita gente, e tornou-se ainda mais crucial nos dias de hoje, quando literalmente qualquer um pode escrever e publicar qualquer coisa que deseje.

Não se trata de questionar o princípio da liberdade de expressão, e não mudei de ideia sobre o bem que faz à mente humana interessar-se por muitas coisas diferentes, mas é preciso reconhecer que algo está errado quando não se faz mais distinção entre boato e realidade, entre opinião e fato, entre amador e especialista. Eu me irrito com a conversa de executivos que são totalmente analfabetos sobre qualquer outra coisa que não seja o mundo "business", mas reconheço a importância do que fazem e jamais me meteria a entender mais que eles sobre esse mundo, assim como consideraria ridículo que um deles pretendesse saber mais que eu sobre língua ou literatura. O que me distingue desses executivos é apenas que, enquanto eles não sabem nem querem saber nada que não se relacione ao seu campo profissional, eu, embora tenha estudado e me formado em língua e literatura, não me contento em viver num mundo onde só exista isso: quero conhecer física, química, biologia, ocultismo, matemática, zoologia, medicina, geografia, história, religião, arte, filosofia e (por que não?) também economia e administração, ou seja, "business"... Não me tornarei um expert em nenhuma dessas disciplinas como o sou (espero) em língua e literatura, mas, poxa, eu quero saber! Saber, sem perder de vista que você tem que estudar uma coisa durante longos anos se quiser ser algo mais que um curioso sobre ela. Quando um especialista em qualquer um desses campos estiver falando, eu humildemente murcharei a minha orelha. Isso requer apenas bom senso.

Bom senso esse que, como nos mostra Keen, anda em falta no mundo pós-revolução da informação: qualquer pessoa, por menos credenciais que tenha, pode discorrer sobre qualquer assunto, e 99% dos eventuais leitores irão atribuir ao material produzido por essas pessoas sem credenciais o mesmo peso que aos trabalhos de doutores na matéria, simplesmente por não terem maturidade intelectual para separar o que merece credibilidade do que não merece. Na verdade, talvez a maioria dos leitores-internautas dê mais valor ao que é escrito por amadores, por ser mais próximo do seu nível de entendimento e de seus pontos de vista como leigos - ainda que o que está sendo dito seja uma asneira digna de participante de reality show.

Tudo o que escrevi até agora pode ser assim resumido: um sujeito contentar-se em ser especialista em algo e pensar que não precisa saber mais nada é ruim, mas muito pior é não saber nada e pensar que pode falar como um especialista - e vira uma calamidade se houver outras pessoas ainda mais desinformadas que o aceitem como se fosse um.



Infelizmente, o que não falta neste mundo - ou nestes mundos: o real e o virtual - é gente desinformada.

Keen prossegue seu raciocínio mostrando que há muito mais em jogo do que apenas a qualidade da informação que estamos digerindo e assimilando: o desenfreado faça-você-mesmo da internet dos anos 2000 está aterrando o fosso que sempre separou o palco da plateia, gerando uma oferta torrencial de conteúdo gratuito criado pelos próprios usuários, e que, por ser gratuito, está usurpando o mercado que sempre pertenceu a profissionais ou empresas que se dedicavam a produzir esse conteúdo - e que, por só fazerem isso, podiam especializar-se e atingir a excelência em seus respectivos campos. Se a visão (muitas vezes tola e desinformada) de um sujeito que durante o dia trabalha em qualquer outra coisa e posta textos num site depois do jantar, vale para o público o mesmo que a de um jornalista profissional com décadas de experiência, por quanto tempo ainda será compensador para um jornal ou uma emissora de TV continuar pagando um salário a esse jornalista? O oba-oba dos downloads gratuitos de música destruiu a indústria fonográfica, que atualmente está em seus estertores (não vou bancar o único inocente e dizer que nunca baixei música da internet: só posso dizer em meu favor que não parei de comprar CDs por causa disso). Sem gravadoras, quem irá investir dinheiro e trabalho em descobrir e alavancar novos talentos musicais? E quanto tempo levará para que a indústria do cinema e a do livro tenham o mesmo destino? Conclusão: o atual modelo de utilização da internet está promovendo o fim das próprias fontes de conteúdo das quais depende.

Um velho adágio existente em várias línguas diz que o que vem fácil, vai fácil; embora tenha sido criado para referir-se a dinheiro, ele é igualmente verdadeiro no que toca ao conhecimento. Quando eu e as pessoas da minha geração frequentávamos a escola, um trabalho de história, por exemplo, demandava horas na biblioteca, pesquisando em enciclopédias - ao contrário da maioria dos colegas, eu gostava disso, mas não vem ao caso: gostando ou não, o próprio esforço despendido em encontrar e processar as informações de que precisávamos fazia com que ao menos uma parte daquilo tudo se cristalizasse em nossos cérebros em formação, de modo que sei até hoje quem foram Maurício de Nassau e o padre Anchieta; já os estudantes de hoje, tudo o que precisam fazer é acessar o Google ou o Yahoo! e digitar no mecanismo de busca o tema do trabalho, para instantaneamente terem dezenas ou centenas de textos prontos à disposição. Aí temos que perguntar: o que essa garotada está realmente aprendendo? Alguns anos atrás, essa suprema facilidade para se obter informação era o sonho de quem desejava um mundo onde a cultura estivesse ao alcance de todos; hoje, quando muitos professores se veem obrigados a proibir seus alunos de entregar trabalhos impressos, tendo que exigir que sejam manuscritos, para tentar evitar que eles simplesmente imprimam qualquer coisa achada na internet e entreguem sem ler, somos forçados a reconhecer que parece ter havido algum desvio no caminho trilhado entre o sonho e sua transformação em realidade.

Talvez o maior exemplo do "culto do amador" na era da internet seja a famigerada Wikipédia, a "enciclopédia livre que todos podem editar" - que ostenta esse slogan com orgulho, como se conhecimento fosse uma questão de democracia. E não é: sinto muito, mas não é. Nas enciclopédias tradicionais, podemos ter a certeza de que as informações que encontraremos serão fidedignas: o verbete sobre o padre Anchieta foi escrito por um historiador, o sobre José Saramago, por um doutor em Letras, o sobre dicotiledôneas, por um botânico, o sobre vulcões, por um geólogo, e assim por diante. Naturalmente que todo esse pessoal não é infalível, mas são eles os que, por todo o estudo e experiência que acumularam, têm maiores possibilidades de deter informação correta sobre seus respectivos campos. Na Wikipédia, por tudo o que se sabe, qualquer verbete pode ter sido escrito por um adolescente de bermudão e boné de beisebol virado para trás, já que ninguém lhe pediu credenciais mesmo. Conforme conta Keen:

"O dr. William Connolley, um modelador climático no British Antarctic Survey em Cambridge, especialista em aquecimento global e autor de muitas publicações profissionais, recentemente entrou em confronto direto com um editor da Wikipédia particularmente agressivo em torno do verbete 'aquecimento global' do site. Após tentar corrigir imprecisões que percebera no verbete, foi acusado de 'impor fortemente seu ponto de vista, com a remoção sistemática de todo ponto de vista que não coincidia com o seu'. Connolley, que não estava impondo nada além da precisão factual, foi submetido a restrições editoriais pela Wikipédia e limitado a fazer apenas uma adição por dia. Quando contestou a decisão, o comitê de arbitragem da Wikipédia não deu nenhum peso à sua expertise, tratando-o, um especialista internacional em aquecimento global, com a mesma deferência e atribuindo-lhe o mesmo nível de credibilidade que a seu adversário anônimo – o qual, pelo que se sabia, podia ser um pinguim na folha de pagamento da Exxon Mobil." (pp. 44-5)

Exxon Mobil é uma grande companhia petrolífera norte-americana, que, é claro, não deve ter entre suas prioridades a correta informação da opinião pública sobre a questão do aquecimento global.

Esse excerto ilustra o quanto a distinção entre fato e opinião torna-se a cada dia mais nebulosa nessa nova cultura que está se formando entre as malhas da "rede". "Pontos de vista", meus amigos, não têm o poder de mudar fatos, mas parece que, no mundo da cultura pós-moderna, ninguém sabe ou se importa com isso. Dar a mesma importância às palavras de um especialista e às de um diletante sem qualquer instrução formal na matéria que se mete a discutir, é reconhecer que estamos pouco ligando para a qualidade da informação que consumimos.

Disse acima que conhecimento não é uma questão de democracia. Explico-me: não quero com isso dizer que ele não deve ser democratizado - ele deve, claro, ser democratizado, no sentido de estar acessível a todos, e para isso a internet poderia (eu disse poderia) ser uma ferramenta maravilhosa. Porém, a veracidade de um fato não depende da "opinião" de uma ou de milhões de pessoas, e não deveria ser tratada como se dependesse, que é o que vem acontecendo na sociedade pós-revolução da informação. Há assuntos onde existe espaço para opiniões divergentes; em outros não. Num fórum sobre telenovelas, um participante pode declarar que acha Caminho das Índias ridícula, enquanto outro pode considerá-la uma obra definitiva da teledramaturgia brasileira - cada um tem suas razões para pensar como pensa, e, concordando ou não, devemos respeitar essas razões. Mas, se em vez de telenovela o assunto em pauta for de natureza científica, como no caso do Dr. Connolley versus o "pinguim", aí não se pode dar-se ao luxo de entrar no terreno do "eu acho". Em ciência não existem "opiniões": existem teorias, que, para adquirirem o status de fatos, precisam ser provadas.

Percebo que me foquei na questão que mais me chamou a atenção no livro, porque isso tudo me fez repensar a minha velha antipatia a priori pela noção de especialista, o que significou a necessidade de remodelar diversas ideias que eu tinha há bastante tempo, mas Keen não para por aí. Ele dedica um capítulo todo ao desmoronamento da indústria da música graças à pirataria digital, outro ao perigo do jogo de azar online (potencialmente ainda mais pernicioso que o jogo tradicional em cassinos, por estar acessível 24 horas por dia e a partir de qualquer lugar), e outro, ainda, aos males causados pelo livre acesso de crianças e adolescentes à pornografia na rede (já que nenhum controle parental é cem por cento seguro, e na maioria dos sites a única exigência feita ao usuário é clicar num botão que diz "sou maior de 18 anos"...). O capítulo final chama-se Soluções, e tem exatamente o conteúdo que o título sugere, mas, sem querer ser muito apocalíptico, a maior parte das saídas propostas por Keen para os problemas discutidos nos capítulos anteriores soa-me um tanto ingênua: algumas passam pela adaptação da legislação existente e pela criação de uma nova, capaz de ser aplicável ao meio amorfo e em constante mutação que é a internet - o que, concordo, é da maior importância -, mas a maior parte das soluções sugeridas parecem depender de que o público em geral caia em si e mude de atitude - uma circunstância que tenho dificuldade em acreditar que se concretize. Historicamente, situações extremas somente foram revertidas após terem chegado ao ponto de ruptura - e não me perguntem o que pode representar o "ponto de ruptura" para um mundo onde uma gorda fatia do dinheiro e toda a informação passam por uma internet que lembra muito o Velho Oeste sem lei. Mas uma coisa é possível dizer: ao contrário do que acontece com os grandes problemas ecológicos, por exemplo, onde é lugar comum dizer que "nossos filhos e netos sofrerão as consequências", no mundo da web tudo é tão rápido que não poderemos sequer contar com a chance de passar a bola para as gerações seguintes: a maioria de nós ainda estará por aqui para ver o fim. Seja ele qual for.

quinta-feira, julho 30, 2009

O Delírio de Dawkins

“Dawkins está correto - inquestionavelmente correto - quando propõe que não embasemos a vida em delírios. Precisamos examinar nossas crenças - em especial se formos ingênuos o bastante para acreditar, primeiramente, que não temos nenhuma. No entanto, pergunto-me: quem está, de fato, iludido sobre Deus?” (Alister McGrath)

Antes de se transformar no guru do ateísmo "científico" que se contenta em ser hoje, o biólogo britânico Richard Dawkins foi por muito tempo um dos mais bem-sucedidos dentre os cientistas que se ocupam da delicada e por vezes espinhosa missão de tornar a ciência inteligível para o leitor não especializado. Suas obras de divulgação científica inspiraram e despertaram entusiasmo e curiosidade em muita gente, e, só por isso, ele já seria merecedor de algum crédito. Isso tudo torna ainda mais difícil de compreender o fato de que ele hoje se empenhe, de forma absolutamente fanática e amarga, numa contínua tentativa de dissuadir a humanidade de qualquer tipo de crença na divindade, levantando a bandeira de que "a ciência explica tudo". Com esse objetivo, escreveu um verdadeiro tijolo de mais de 500 páginas, intitulado Deus: um Delírio, onde tenta provar por A mais B que a crença em Deus não passa de uma herança perniciosa e ridícula que ficou de épocas supersticiosas, e que seria melhor extirpar de uma vez, já que, além de inibir o pensamento crítico e obstruir o avanço da ciência, ela se constitui (segundo ele) na "raiz de todo o mal" sofrido pela humanidade. Para dar a resposta necessária, ninguém melhor que um colega de Dawkins (ambos são professores na Universidade de Oxford) que, ateu na juventude, converteu-se ao cristianismo, e, hoje, doutor tanto em biologia molecular quanto em teologia, está preparado como poucos para discorrer sobre o conflito (se é que precisa ser um conflito) entre ciência e fé. Este é Alister McGrath, autor de O Delírio de Dawkins.

Tendo sido durante anos um admirador do trabalho de Dawkins como cientista e divulgador da ciência, McGrath mostra-se perplexo de constatar o quanto seu colega afastou-se da razão que alega defender, com o objetivo de propagandear suas idéias ateístas. Não o critica por ser ateu - pois esse é um direito que assiste tanto a Dawkins quanto a qualquer pessoa, assim como o direito de ter fé, se tal for a sua opção -, mas pela atitude inflexível, intolerante e, surpreendentemente, cheia de dogmas que ele demonstra em seu livro.

Tive o primeiro contato com a obra de Dawkins quando tinha uns 18 anos de idade e encontrei por acaso seu livro O Relojoeiro Cego na livraria da universidade. Na época, eu vivia contando os tostões (não raro, saía de casa só com o dinheiro certo para o ônibus), de modo que não tinha a menor condição de comprá-lo, mas voltei diversas vezes só para ler mais um trecho, sentindo-me cativado pela defesa vigorosa e apaixonada que Dawkins fazia do darwinismo, e que me parecia ser uma prova cabal de que uma atitude científica podia, sim, ser conciliada com a intensidade emocional e, por conseguinte, com uma certa forma de idealismo. Para qualquer pessoa que, sem a obrigação acadêmica ou profissional de fazê-lo, movida apenas pela curiosidade e pelo amor ao conhecimento, haja se dado ao trabalho de estudar de fato a teoria da evolução e de se inteirar do que ela realmente diz, há pouca coisa mais exasperante que ouvi-la ser atacada por pessoas que, nos próprios "argumentos" (?) que usam, entregam o fato de que nunca chegaram sequer a entendê-la - nem querem, pois, caso a entendessem, correriam o risco de começar a achar que ela faz sentido.

Embora isso possa parecer uma desnecessária divagação pessoal, creio que pode ser útil, por ilustrativo, sintetizar aqui a experiência intelectual de um leitor de Dawkins no tocante ao suposto choque "Ciência x Religião". O que há é que sou e fui católico toda a minha vida; sou também um darwinista convicto, e nunca vivi um só instante de conflito devido ao fato de ser ambas as coisas. Para mim, a evolução biológica é um fato além de qualquer contestação possível; a dúvida que ainda paira em torno dela reside somente em ainda estarmos longe de compreender integralmente de que forma ela acontece. O livro do Gênese não precisa (nem deve) ser lido literalmente - trata-se de uma alegoria, e, também, de uma explicação adaptada à compreensão das pessoas da época. Não há nada de intrinsecamente anti-religioso em aceitar a noção de que a natureza segue seu curso, submetida a determinadas leis - uma das quais é a da evolução, que determina que as espécies vivas se transformem, ao longo de milhares ou milhões de anos, a fim de melhorar suas chances de sobrevivência dentro das condições impostas pelo ambiente. Tal noção nada tem de incompatível com a crença em Deus: conforme a expressão extraordinariamente feliz empregada por McGrath, "Deus deu corda ao relógio e, então, deixou-o trabalhar por si". A atitude de certas correntes religiosas (ou, talvez, nem isso: a de alguns indivíduos dentro delas), sim, é anticientífica ao usar a crença como uma fonte de respostas fáceis: quando defrontadas com qualquer mistério ou indagação relacionada a algum fenômeno da natureza, essas pessoas simplesmente declaram que "isso é assim porque Deus quer que seja assim e pronto". Esse tipo de atitude me enoja e revolta. Ninguém agrada a Deus sendo burro, e menos ainda usando o nome d'Ele como desculpa esfarrapada para a própria preguiça de pensar. O que Dawkins faz, infelizmente, é fechar os olhos ao fato de que só alguns extremistas e fanáticos agem dessa forma: a fim de tentar dar consistência a seus argumentos, ele finge acreditar que toda e qualquer pessoa religiosa usa necessariamente sua crença como um álibi para a ignorância voluntária, e que, portanto, fé é incompatível com ciência. Ele se empenha para vender sua idéia de que o verdadeiro cientista deve ser ateu - e, para vendê-la, está disposto a fazer o que for necessário, inclusive manipular informações. Nas palavras de McGrath, "um dos traços mais característicos da polêmica anti-religiosa de Dawkins é apresentar o patológico como o normal, o extremo como o centro, o excêntrico como o padrão. Isso em geral funciona bem para o seu público, que supostamente pouco conhece de religião e, com muita probabilidade, menos ainda se importe com ela. O que, no entanto, não é aceitável nem científico."

E, de fato, nota-se que muitas vezes Dawkins torna-se o que poderíamos chamar um "cego guiando cegos", pois não consegue ocultar que desconhece a coisa que está atacando. Ao contrário de outros autores ateus, como Christopher Hitchens, que pelo menos sabe do que está falando, o autor de Deus: um Delírio mostra-se deploravelmente ignorante em matéria de cultura religiosa. Por tal razão, o maior efeito que seu trabalho atual alcança é o de perpetuar preconceitos - coisa que, a meu ver, deveria estar abaixo da dignidade de qualquer pessoa que se pretenda um cientista. Pintando todos os cristãos - aliás, todos os adeptos de qualquer religião - como fanáticos pervertidos e auto-iludidos, Dawkins age como os homens que o imperador Nero mandava infiltrarem-se pelos mercados e tavernas de Roma, para espalhar rumores de que os cristãos praticavam incesto e canibalismo em suas reuniões secretas - tudo para preparar a opinião pública para uma perseguição em massa contra essa estranha seita. Contra os pontos levantados por Hitchens, é possível ter uma discussão decente; quanto a Dawkins, tudo o que se pode fazer é desejar que ele fosse menos obtuso e tendencioso.

"A visão dawkinsiana da realidade", escreve McGrath, "é uma imagem invertida da concepção encontrada em algumas das seções mais exóticas do fundamentalismo americano". Outra frase certeira. Talvez a coisa mais surpreendente na argumentação de Dawkins, e na visão de mundo por trás dela, seja perceber o quanto ele se tornou dogmático em seu próprio antidogmatismo. Acusa os religiosos de serem "imunes a qualquer argumentação" e de teimarem em manter suas crenças "a despeito da ausência de qualquer evidência - e até mesmo contra ela", mas não parece se dar conta de que faz as mesmas coisas de que acusa os outros. A mim parece que fanatismo algum pode ser bom - não importa que seja fanatismo teísta ou ateísta. Não admira que nem mesmo a maioria dos cientistas que são ateus simpatizem com Dawkins e muito menos queiram ter seus nomes associados, de qualquer forma que seja, ao dele: não se pode querer que um sistema de idéias seja levado a sério, quando alguém que se diz seu representante parece querer que todos os que pensam diferente sejam queimados na fogueira. McGrath menciona que "um respeitável cientista ateu, colega em Oxford, me pediu (...): 'Não julgue todos nós por essa conversa fiada pseudo-intelectual'". Outro cientista, Michael Ruse, igualmente ateu, registrou, e McGrath relata: "Quando João Paulo II escreveu uma carta endossando o darwinismo, a resposta de Richard Dawkins foi simplesmente dizer que o papa era hipócrita, que ele não podia falar genuinamente sobre a ciência e que o próprio Dawkins preferiria um fundamentalista honesto." Evidentemente que preferiria: isso lhe daria excelente motivo para lançar mais farpas contra a Igreja Católica e, por extensão, contra o cristianismo em geral, acusando-o de ser anti-ciência. E, claro, pela ótica de Dawkins, qualquer religioso que se declare favorável à ciência está sendo "hipócrita"...

Não há dúvida de que o mundo estaria melhor sem o fundamentalismo religioso - mas será que seria vantagem substituí-lo pelo fundamentalismo ateu de Dawkins? É realmente digno de lástima que um cientista de tanto mérito se empenhe hoje nesse tipo de "cruzada anti-Deus", ao invés de devotar sua energia e entusiasmo ao progresso e à divulgação da ciência, como fez durante tanto tempo, mas talvez não haja muito o que fazer além de ter esperanças de que Dawkins acabe vendo a luz - não uma luz divina, já que despreza tal idéia (e tem todo o direito de fazê-lo), mas a luz da razão, essa mesma razão que ele tanto defende com palavras e da qual tanto se desvia com suas atitudes.