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sexta-feira, dezembro 16, 2011

Politicamente... corretos??

Hesitei um pouco antes de decidir o lugar mais adequado para postar este texto. Por um lado, trata-se de uma reflexão de natureza pessoal, de modo que não estaria deslocada no meu outro blog, o Inner Wilderness; por outro, refere-se a literatura, de modo que também podia vir para cá, pois comentários e resenhas de livros específicos não são a única maneira de se "falar de literatura". Esse último fator acabou pesando mais – então, aqui estamos.

A revista Aventuras na História de dezembro traz uma matéria sobre a série de livros em quadrinhos (hoje dir-se-ia "graphic novels") intitulada Tintim, criada pelo jornalista e cartunista belga Hergé entre o fim da década de 20 e sua morte em 1986. Os aficionados por quadrinhos saberão na hora do que estou falando: embora menos popular, Tintim é tão clássico quanto Asterix. Para ser mais exato, a matéria é sobre as posições "discutíveis" tomadas pelo autor em praticamente todas as suas histórias, e especula um pouco sobre como Steven Spielberg terá contornado esse fato no filme que fez sobre o personagem, com estreia prevista para janeiro no Brasil.

As tais posições discutíveis consistem basicamente numa visão "eurocêntrica" do mundo. Tintim é um repórter do jornal belga (que existe mesmo: Hergé trabalhava nele quando criou o personagem) Le Vingtième Siècle, que viaja pelo mundo no exercício de sua função – mas, como teria que acontecer numa série de aventuras dirigidas ao público jovem, suas expedições jornalísticas nunca são tranquilas: ele sempre se mete em situações perigosas. Mais que isso: suas atitudes (muitas vezes de uma maneira não proposital, o que é mais revelador) deixam transparecer a ideia, apresentada como óbvia a ponto de não merecer reflexão, de que tudo o que vale a pena ou é digno de atenção, ou está na Europa ou deriva direta ou indiretamente de lá. Partindo desse ponto de vista, o colonialismo, que na época estava sendo contestado tanto nas próprias colônias quanto nas metrópoles, era plenamente justificável e até mesmo natural. Cito:

Quando Tintim foi ao Congo, em 1931, o país africano ainda era uma colônia belga (a independência veio só em 1960) e os quadrinhos reproduziam a visão eurocentrista da época. Na primeira versão do álbum, os congoleses falavam um francês primitivo e eram extremamente submissos. Em um dos trechos, Tintim substitui um professor em uma escola missionária e começa a aula apontando para um mapa da Europa: "Meus queridos amigos, hoje eu vou falar sobre o seu país: a Bélgica". Nas versões posteriores, o mapa foi substituído por um quadro-negro, e a lição sobre a Bélgica, por uma de matemática.


Gostaria de deixar algo claro antes de prosseguir: não é meu objetivo aqui defender o colonialismo (o que seria no mínimo burrice vindo de um brasileiro, cujo país começou sua história como colônia e até hoje tenta se livrar dos traumas inerentes a essa condição) ou qualquer das outras atitudes "discutíveis" que aparecerão mais adiante neste texto. O que questiono é o que nos dá o direito de "corrigir" obras que retratam uma época – e muitas vezes a retratam de maneira valiosa – para que se enquadrem nas regras daquilo que hoje é tido como "aceitável". Tintim tem atitudes eurocêntricas porque seu criador, como a maior parte dos europeus daqueles dias, tinha essas mesmas atitudes. Suas aventuras retratam um ponto de vista que prevaleceu durante muito tempo e que, gostemos ou não disso, ajudou a moldar uma época. Pergunto: faz sentido, ao invés de aprender com esses fatos e permitir que eles nos ajudem a aquilatar tudo o que mudou desde então, simplesmente querer reescrever as histórias para adequá-las àquilo que é considerado de bom tom hoje em dia?

Atravessando o oceano, encontramos mais exemplos: as obras de Mark Twain (1835-1910) estão sendo reescritas nos Estados Unidos para atender às demandas da tirania politicamente correta. No texto de Twain, é largamente utilizada a palavra
nigger – uma designação pejorativa para pessoas negras –, agora substituída por slave ('escravo'). Note-se que a situação dos negros não é um ponto de pouca importância nessas obras, já que o escravo Jim, fiel amigo dos imortais anti-heróis Tom Sawyer e Huckleberry Finn, é um dos personagens mais atuantes nas histórias. Eu já tinha lido, creio que numa dissertação sobre a vida e a obra de Samuel Langhorne Clemens (Mark Twain era pseudônimo) que, já em meados do século passado, portanto bem antes da babaquice politicamente correta ser inventada (ou seria ela bem mais antiga do que imaginamos?), as Aventuras de Huck (1885), geralmente consideradas sua obra mais importante, haviam sido alvo de protestos por parte de pessoas que consideravam o livro racista. Pessoalmente, acho que o racismo estava muito mais na cabeça de tais pessoas do que nas páginas dessa obra essencial da literatura norte-americana. De outra forma, como teria sido possível alguém não perceber que o que Twain estava fazendo era sair em defesa dos negros, que eram particularmente marginalizados no sul dos Estados Unidos, região onde ele nasceu e viveu? A escravidão foi abolida no país com a vitória dos estados do norte na Guerra Civil, em 1865, quando Mark Twain tinha 30 anos de idade; já as aventuras de Tom Sawyer e Huck Finn são ambientadas nos anos da adolescência do autor, quando a escravidão era vista como um fato cotidiano, e seria ingenuidade esperar que uma emenda constitucional tivesse o poder de mudar instantaneamente a atitude que a maioria dos americanos brancos tinha em relação aos negros. Há um trecho em que Huck inventa, para uma senhora com quem se encontra, que esteve viajando num barco a vapor e que chegou atrasado porque a cabeça de um cilindro da embarcação saltou devido à pressão, exigindo uma parada para conserto. A tal senhora então pergunta se alguém se feriu e, ao ouvir em resposta que um negro morreu, manifesta alívio, "porque em acidentes desse tipo, às vezes, pessoas se machucam". O autor estava sendo racista? Claro que não: se no livro os negros são vistos por muitos como seres sub-humanos, é porque era isso mesmo o que acontecia na época que a história retrata – e também na época em que ela foi publicada, mesmo que entre uma coisa e outra a escravidão tivesse sido abolida. Esquecer esses fatos, ou escondê-los das novas gerações, fará bem a alguém? Acredito que muito pelo contrário: como escreveu Sêneca (se não me engano), quem esquece o passado condena-se a repeti-lo, e isso não vale só para indivíduos: aplica-se também às sociedades. Observe-se ainda, de passagem, que defender a igualdade das pessoas independentemente de raça, nos tempos de Mark Twain, exigia muito mais coragem do que hoje, porque essa ideia não era unanimidade: muitas pessoas que se consideravam "de bem" davam como certo que os negros, e qualquer outra raça não-caucasiana, eram inferiores, e fim de papo. Isso era ensinado em escolas e universidades; havia cientistas que acreditavam tê-lo provado.

O que fico me perguntando é: d
epois de terem purgado as obras de Twain de todas as partes supostamente racistas, qual será o próximo alvo da patrulha politicamente correta? Suponho que os próprios Tom e Huck, cuja maior qualidade enquanto criações literárias é (era?) precisamente o fato de representarem garotos reais, de carne e osso, do sul dos Estados Unidos em meados do século XIX: garotos criados soltos nos brejais do Mississípi, que fumavam cachimbo, pregavam mentiras sempre que achavam necessário e preferiam com toda a certeza perambular pelo mato e remar de ilha em ilha pelo rio ao invés de ir à escola. Agora, se depender dessa turma, provavelmente as próximas edições de Tom Sawyer e das Aventuras de Huck terão protagonistas vegetarianos, que fazem ginástica ao acordar e trabalho voluntário para causas sociais...

Não estou dizendo que os preconceitos de época presentes em obras literárias devam ser considerados normais ou assim apresentados aos novos leitores. O que acontece é que o melhor caminho, aquele que mais contribuiria para a edificação cultural e para a própria formação das novas gerações, mais uma vez, não é o caminho mais fácil. Temos um exemplo mais perto de nós: Monteiro Lobato (1882-1948), que pode não ter revolucionado a literatura brasileira como Mark Twain fez com a norte-americana, mas sem dúvida marcou a infância de muitos brasileiros e foi responsável por despertar em pelo menos alguns o gosto pela leitura. Há, sim, detalhes racistas nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, mas seria ignorância culpar o autor por isso: ele era simplesmente um homem de sua época. Nos anos 30 e 40, quando esses livros foram publicados pela primeira vez, muitas pessoas que haviam sido escravas, ou donas de escravos, ainda estavam vivas; era, portanto, normal que Tia Nastácia chamasse sua patroa, Dona Benta, de "sinhá" – mas como uma criança de hoje iria interpretar isso? Depende apenas dos instrumentos de interpretação que a família e a escola lhe houverem fornecido. Mais complicado: sempre que a boneca Emília queria fazer uma malcriação com Tia Nastácia (o que acontecia em média umas duas vezes por livro), chamava-a de "negra beiçuda" ou de outros insultos de teor racista. Em pelo menos uma ocasião, Dona Benta vem em defesa da cozinheira dizendo que "todos sabem que Nastácia só é preta por fora" (!), declaração que consegue ser mais racista que os xingamentos dos quais tentava defendê-la.

Entretanto, eu defendo que a solução para isso não é nem banir as obras de Lobato (que são literatura infantil de qualidade, que já se provou capaz de resistir ao tempo) nem "reescrevê-las" para que não choquem os mais sensíveis nem disseminem ideias preconceituosas entre os jovens. Esse tipo de "reescrita" (e o que digo agora vale para as obras de Hergé, Twain, Lobato e dezenas de outros) teria o efeito de criar nesses jovens a noção de que o mundo foi sempre como é agora, tirando-lhes qualquer chance de vir a compreender na prática o que significam variações de cultura e perspectiva histórica – coisas sem as quais, a meu ver, não é possível alcançar a verdadeira maturidade intelectual. Devíamos, isso sim, investir em esforços para que a educação oferecida a cada nova geração a tornasse capaz de fazer seus próprios julgamentos, de modo que, quando fosse o caso, pudesse apreciar uma obra literária pelo que tem de belo e interessante, sem necessariamente aceitar como verdade todas as ideias que ela apresente. Não é fácil? Certamente que não. Mas quem aí já obteve algo de bom na vida fazendo as coisas do jeito mais fácil?

Infelizmente, a brigada politicamente correta que domina certos setores da cultura contemporânea, seja por mera ignorância ou por desonestidade intelectual, uma determinação consciente de fazer ouvidos surdos a qualquer coisa que desqualifique seus argumentos (e, não raro, tudo isso), não demonstra qualquer senso de perspectiva: já vi censurarem Cristóvão Colombo por não ter tido preocupações ecológicas no início da colonização das Américas, e absurdos ainda maiores. É até natural que cada geração tenha a tendência de pensar que suas próprias crenças e visões de mundo são as "certas" – mas aqueles que, em qualquer geração, vêm a alcançar algum grau de sabedoria, não demoram a compreender o quanto tais coisas são frágeis. Embora não seja uma coisa fácil de aceitar, Salman Rushdie estava certo ao dizer que verdade é o que a maioria vê como verdade  mas a maioria também pode mudar de opinião ao longo da História. É muito possível que ideias que hoje aceitamos como normais sejam consideradas absurdas e preconceituosas daqui a alguns séculos. Não há saída: toda pessoa que tenha a pretensão de estender sua compreensão um pouco além de sua vidinha cotidiana tem que aceitar o fato de que tudo é transitório, tudo é nebuloso, e de que não temos certeza de coisa alguma.



quarta-feira, novembro 12, 2008

Construtores de Continentes

“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Nossa tragédia é que não temos um mínimo de auto-estima.” (Nelson Rodrigues)

Em primeiro lugar, não, eu não sou fã de Nelson Rodrigues. Concordo que todo escritor que tenha a pretensão de dar alguma profundidade ao que escreve não pode furtar-se, por vezes, a ter de retratar as torpezas e o mal inerente aos seres humanos, mas tenho para mim que isso deve ser feito quando necessário. No meu entender, um escritor que escolhe sempre e deliberadamente como tema o que existe de pior na humanidade, não está contribuindo para criar nada de bom, e não terá a minha admiração. Excesso de idealismo? Talvez; podem chamar do que quiserem.

Mas, mesmo não simpatizando com o dramaturgo carioca, não vou tirar os méritos que ele tenha, e um deles é o de ter forjado um punhado de frases certeiras e perfeitas sobre vários assuntos. A que escolhi para abrir este artigo é minha preferida, e tem a ver com meu tema.

Dias atrás, visitando a Feira do Livro de Porto Alegre, tive a grata surpresa de encontrar numa caixa de saldos o livro Construtores de Continentes, do autor norte-americano L. Sprague de Camp, que já havia lido nos meus saudosos 14 ou 15 anos, época do meu maior furor no que se referia à ficção científica. Batido pela nostalgia, comprei o livro por um valor simbólico qualquer e, no trem mesmo, durante a viagem de volta para São Leopoldo, comecei a relê-lo, experimentando uma sensação muito semelhante à de reencontrar um velho amigo.

Dá um certo desespero perceber que, não bastasse o fato de que não viverei o suficiente para ler todos os livros que gostaria (e ver todos os filmes, estudar todos os assuntos, visitar todos os lugares...), ainda há esse outro fato: o de que muitos livros, dentre os que já li, mereceriam, se fosse possível, uma segunda leitura, à luz de tudo o que aprendi e vivi desde meu primeiro contato com eles. É o caso de Construtores de Continentes, pois a nova leitura me levou a pensar coisas que não ocorreram ao garoto que eu era 20 anos atrás.

Lyon Sprague de Camp (1907-2000) foi o que poderíamos chamar de escritor polivalente, pois, além de ficção científica, escreveu fantasia, romance histórico, mistérios, poesia e sabe Deus o que mais. Foi um nome importante durante a Era de Ouro da ficção científica, e amigo pessoal de vários outros autores famosos, entre eles Isaac Asimov, que, aliás, prefaciou este livro. Construtores de Continentes não é um romance - inclui duas novelas independentes entre si, embora ambientadas no mesmo futuro imaginário. A primeira passa-se em 2137, chama-se Moto-contínuo, e narra as aventuras de Felix Borel, um trambiqueiro profissional que decide tentar a sorte em Krishna, um planeta de descoberta relativamente recente, habitado por uma raça espantosamente semelhante aos terráqueos, só que com algumas características insectóides, e com um nível tecnológico pouco mais que medieval. Justamente por terem, até então, convivido pouco com os terráqueos, os krishnianos ainda são passíveis de serem enganados por golpes em que, na Terra, ninguém mais cai há muito tempo - ou seja, o planeta é um paraíso para trapaceiros como Borel, que, no entanto, vai descobrir, às suas próprias custas, que nada é tão fácil quanto parece.

A segunda novela, que dá título ao livro, começa em 2153 e fala sobre um projeto que está sendo implementado para criar um novo continente no Atlântico, entre a América do Sul e a África. Por meio de engenharia tectônica, os cientistas e técnicos do século XXII esperam aumentar o espaço vital disponível para a humanidade na Terra, independentemente da eventual migração para outros planetas.

Agora é que chegamos ao ponto verdadeiramente importante... Por mais interessantes que sejam os enredos dessas duas histórias, não são elas que mais chamam a atenção dos leitores brasileiros, e sim um "detalhe" do pano-de-fundo: no futuro imaginado por De Camp, os Estados Unidos decaíram de sua posição de liderança mundial, que passou a ser exercida por uma nova superpotência... Imaginam qual? Sim, meus amigos, o Brasil.

Ao contrário de muitos outros escritores (e dos norte-americanos em geral), De Camp realmente conhecia alguma coisa sobre o Brasil - no texto original em inglês apareciam diversas palavras em português, que o tradutor teve a boa idéia de assinalar para nossa referência. O departamento de abrangência mundial que cuida das idas e vindas dos viajantes espaciais chama-se Viagens Interplanetárias - assim mesmo, em português, porque a coisa toda é controlada e administrada por brasileiros. De Camp não teria incluído isso em seus livros se não acreditasse pelo menos na possibilidade de tais coisas - e ele era norte-americano... E nós, que somos brasileiros? Nós acreditamos que possamos chegar lá??

É difícil dizer até que ponto o nosso povo criou o autoconceito que tem, e até que ponto simplesmente comprou a imagem de si mesmo que é vendida pelos "gringos", mas o que se observa é que o brasileiro, quase sempre, acredita que sua função no mundo é simplesmente a de ser o cara alegre, hospitaleiro e "caloroso", e que a vocação do Brasil é a de um "país-colônia de férias", para onde americanos, europeus, japoneses e demais habitantes do "Primeiro Mundo" vêm quando querem praia, sol e festa - porque, tanto na visão desses estrangeiros quanto, infelizmente, na dos próprios brasileiros, tudo o que o nosso país tem para oferecer são praia, sol e festa! Tem sido assim por tanto tempo, que é difícil para a maioria dos brasileiros encarar a possibilidade de fazerem parte de algo sério e importante, ou de que seu país possa um dia ocupar uma posição de destaque no cenário mundial. Pois isso exigiria um esforço sério e comprometido, cujos resultados só seriam visíveis a longo prazo, e, ainda mais importante, exigiria que acreditássemos ser capazes. Seria necessário que víssemos em nós mesmos força de vontade e inteligência (qualidades que, infelizmente, não estamos acostumados a associar ao nosso próprio povo como um todo), e capacidade latente para fazer mais do que apenas organizar o maior carnaval do mundo. Quero muito acreditar que, se não a nossa geração, a de nossos filhos ou netos há de acordar desse torpor de séculos e se dar conta de que tudo o que qualquer outro povo foi (ou será) capaz de realizar, também está ao nosso alcance, desde que queiramos e acreditemos.