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quinta-feira, maio 11, 2017

Além

Não é muito simples definir o que diabos (opa…) venha a ser o movimento literário conhecido como "decadentismo", que tem no escritor francês Joris-Karl Huysmans (1848-1907) um de seus expoentes maiores. Seguindo o princípio do pêndulo que parece reger os grandes ciclos culturais ao longo da História, esse movimento surgiu como uma reação ao parnasianismo, que, por sua vez, reagia ao romantismo, que reagia ao racionalismo iluminista, e assim por diante. Naturalmente, literatura é arte, e, como tal, pode ter tendências, mas não está sujeita a regras absolutas, de modo que os diferentes movimentos muitas vezes se mesclam e se interpenetram de variadas maneiras; porém, ainda assim há um padrão identificável: uma corrente artística/literária que valoriza a objetividade, a racionalidade, e tenta retratar de forma realista o mundo "concreto" é seguida por outra que prefere a subjetividade, o sonho, a fantasia e os sentimentos – e vice-versa. Parece que, quando uma dessas correntes leva suas características aos extremos, ou, talvez, quando sua fórmula começa a se desgastar, isso desencadeia uma reação no sentido oposto. Também é preciso ter em consideração que cada um desses movimentos artísticos originou-se numa época diferente e foi feito por pessoas diferentes, num ambiente cultural único, e, por isso, nenhum deles jamais é igual a seus congêneres anteriores, possuindo traços que são somente seus. Exemplo disso é o fato de que, enquanto o romantismo tinha como características o idealismo e objetivos grandiosos (que por vezes sofreram trágicos desvios, vide o nacionalismo extremado de fins do século XIX, início do XX, que acabou gerando o nazifascismo), os decadentistas atacavam o que consideravam uma "cultura burguesa" e pouco estavam se preocupando com política, preferindo devotar suas energias a tudo o que pudesse chocar as "pessoas de bem" da época, em especial o sexo (incluindo modalidades não convencionais) e drogas. Ainda na mesma linha de comparações, o romantismo demonstrava, geralmente, preocupações de natureza espiritual, fosse por meio de uma reaproximação com a religião cristã (encarada com ceticismo pelos iluministas, que, aliás, deram início à campanha de difamação contra a Igreja Católica que continua até hoje) ou da redescoberta de deuses e cultos pagãos, fossem de origem grega, germânica ou outras; já para os decadentes, bacana mesmo era o ateísmo, e em especial o cinismo que ele costuma gerar como subproduto – e aqui, é impossível não lembrar do asqueroso Lorde Henry, de O Retrato de Dorian Gray. Oscar Wilde, por sinal, é considerado um representante do decadentismo na Grã-Bretanha, onde essa estética aportou graças à influência da literatura francesa. O "livro de capa amarela" que Lorde Henry envia de presente a Dorian, e que revela ao jovem protagonista uma gama de pecados e estranhezas que ele não conhecia, era, muito provavelmente, À Rebours ('Às Avessas'), romance de Huysmans publicado em 1884 e considerado um dos textos essenciais do movimento decadentista. Para finalizar este parágrafo dedicado às comparações, é oportuno observar que os decadentes tinham um certo gosto por uma imagética grotesca e chocante, lembrando, nesse ponto, os góticos, que poderiam ser definidos, grosso modo, como o segmento mais radical do romantismo e foram os grandes responsáveis pelo boom da literatura de terror na primeira metade do século XIX, bem como por plasmar certas características que fazem parte do gênero ainda hoje. Curiosamente, a denominação de "literatura decadente", ou apenas "decadentismo", foi dada por seus detratores, mas acabou adotada pelos próprios integrantes e pelos fãs do movimento.

Não é minha intenção passar-me por conhecedor de Huysmans ou do decadentismo; Além é o primeiro livro dele que leio, e ainda não sei se eventualmente terei coragem de encarar Às Avessas, que, pelos comentários que encontrei, deve ser ou chocante demais, ou um tédio – talvez as duas coisas, por mais improvável que isso pareça. A informação biográfica que se segue foi obtida da apresentação de Aníbal Fernandes (também o tradutor) que integra esta edição da Assírio & Alvim, de Portugal, e de um punhado de sites da internet. A introdução de Carlos Orsi para O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, também contribuiu com alguma coisa.

A vida do próprio Huysmans parece de alguma forma resumir a trajetória do decadentismo, ou, ao menos, a de muitos de seus representantes. O autor nasceu e viveu praticamente toda a vida em Paris; esse sobrenome tão pouco francófono era herança do pai holandês, que faleceu quando o pequeno Georges-Marie-Charles (este seu nome de batismo) ainda era jovem demais para poder lembrar-se de muita coisa a respeito dele. Já um pouco mais crescido, o menino tinha o costume de ir visitar seu túmulo no cemitério de Montparnasse, talvez idealizando a vida que, pensava ele, teria ao lado do pai caso este ainda vivesse, já que não se dava muito bem com a mãe e com o padrasto. Adulto, entrou para o serviço público por pura necessidade, já que não vislumbrava possibilidade de sustentar-se fazendo o que amava, que era escrever (meu Deus, como eu entendo isso…), e por 32 anos labutou nos escritórios do Ministério do Interior, dedicando-se à literatura nas horas livres que lhe restavam. Nunca se casou, mas por muitos anos viveu maritalmente com Anna Meunier, senhora que ganhava a vida fazendo vestidos sob medida para as damas da alta sociedade parisiense (Huysmans, diga-se de passagem, assinou muitos artigos publicados em jornais e revistas como "A. Meunier", porque preferia que seus colegas e chefes no Ministério não soubessem dessa sua atividade paralela). Publicou seu primeiro livro em 1874, às suas próprias custas, depois de ser recusado por diversos editores. Era uma coletânea de poemas, e nela o escritor usou pela primeira vez o nome com o qual passaria à posteridade: "Joris-Karl" mais ou menos "holandesava" Georges e Charles, além de soar bem combinado ao sobrenome paterno que lhe era tão caro.

Educado como católico, Huysmans afastou-se da Igreja na adolescência, e durante grande parte da vida parece ter-se considerado um ateu – embora o conhecimento verdadeiramente enciclopédico que demonstrava possuir a respeito do satanismo talvez não fosse oriundo apenas de leituras. A maior parte de seus biógrafos acredita que Huysmans nunca tenha sido de fato um satanista, mas certamente conheceu pessoas que o eram, e é quase igualmente certo que, movido por sua curiosidade a respeito do oculto, tenha comparecido como espectador a missas negras, que, como se sabe, eram celebradas com regularidade na Paris do século XIX, tal como antes e, sem dúvida, depois. Esqueçam esse satanismo com cara de autoajuda que está na moda hoje em dia: tratava-se do que estudiosos de religiões chamam de "satanismo teísta", quer dizer, esses indivíduos acreditavam em Satã e nos demônios como entidades reais, em vez de meramente os adotarem como símbolos de rebeldia, ou coisa que o valha – portanto, também acreditavam em Deus, donde o "teísta" no nome. E, já que as forças infernais realmente existiam, era um caminho curto para concluir que elas poderiam ser invocadas e, mediante os rituais e oferendas adequados, convencidas a prestar certos favores aos mortais, que podiam ir desde assegurar sucesso nos negócios ou ajudar a conquistar o coração da pessoa desejada, até causar a morte de um rival ou de outra maneira tirá-lo do páreo. Esse tema sinistro serve de eixo a Além, cuja primeira edição é de 1891, e que não sei por que ganhou esse título na tradução, já que originalmente chamava-se Là-Bas ('Lá Embaixo'), um título bem mais adequado, como se vê.

O protagonista do livro, Durtal, é um alter ego de Huysmans, que parece ter feito pouco ou nenhum esforço para disfarçar o fato. Um intelectual desgostoso com a época em que vive, ele escolheu isolar-se, e tem dedicado seus dias a trabalhar numa biografia de Gilles de Rais – uma obra tenebrosa sobre um homem de reputação tenebrosa. A única pessoa que Durtal vê regularmente é Des Hermies, médico de profissão e amante da literatura, com quem mantém longas e acaloradas discussões. Por intermédio do amigo, Durtal vem a conhecer Louis Carhaix, o sineiro da igreja de Saint-Sulpice, homem de considerável cultura e apaixonado por seu ofício. Sim, ser sineiro era verdadeiramente um ofício, e uma profissão que exigia dedicação: os sinos precisavam dobrar com pontualidade britânica (mesmo na França) várias vezes ao dia, começando na madrugada ainda escura e indo até a noite – vários sinos de diferentes tamanhos, e fazê-los soar (e soar da maneira correta) não é simples como pode parecer. Além disso, o trabalho do sineiro não consiste só em badalar os sinos: eles também precisam ser limpos e, numa cidade sujeita a extremos de temperatura como é o caso de Paris, untados com óleo para não racharem. Tudo isso para não mencionar as funções adicionais de zelador da igreja, já que Carhaix e sua esposa vivem num pequeno conjunto de cômodos junto às torres. A amizade se consolida, e Durtal, sempre em companhia de Des Hermies, torna-se razoavelmente assíduo em suas visitas ao casal, cuja sala de jantar nos altos da igreja passa a se revezar com seu próprio apartamento como cenário de longas e interessantes conversas.

Là-Bas, aliás, tem essa característica: em muitos momentos, a história parece ser principalmente um pretexto para debates (usando os personagens para dar voz aos diferentes argumentos e pontos de vista) e trechos expositivos. Em geral, mas nem sempre, os debates são sobre literatura, e as partes expositivas, sobre atividades satânicas. Para os fins de seu livro, Durtal tem pesquisado esse assunto, já que uma das muitas acusações que pesaram contra Gilles de Rais (e das quais ele se confessou culpado sem necessidade de tortura) foi a de praticar magia negra e satanismo. Parece, entretanto, que as pesquisas foram bastante além do que seria necessário para a obra, revelando um interesse do escritor pela coisa em si mesma (e aqui, "escritor" pode referir-se a Durtal, a Huysmans, ou a ambos). Os casos sobre os quais Durtal discorre de forma professoral cobrem um arco de tempo que vai desde a Idade Média até a época em que se ambienta o livro, em fins do século XIX, destacando episódios famosos como o do padre renegado Urbain Grandier, queimado na fogueira em 1634, ou o da marquesa de Montespan, amante do rei Luís XIV, que teria recorrido à magia satânica para afastar rivais e tentar renovar o interesse do rei nela, no que ficou conhecido como "o Caso dos Venenos", durante a década de 1670. Também nesse segundo exemplo, como em muitos, houve a participação de um sacerdote, o abade Étienne Guibourg, que teria sacrificado pelo menos uma criança numa missa negra, para tentar obter dos demônios o que a marquesa desejava.

É pertinente notar que o fato de a presença de padres renegados ser quase uma constante em casos desse tipo não ocorre sem bons (ou maus) motivos. Muitos teóricos da magia classificavam a missa católica como um ato de magia branca, capaz de canalizar o poder das hierarquias angélicas para um determinado objetivo: abençoar a comunidade, interceder por uma alma etc. É claro que, à luz da teologia, considerar essas coisas como magia, seja de que tipo for, é um completo disparate, mas muita gente não via dessa forma. Daí decorre que, se a missa, e, por consequência, seu oficiante, tinham poderes mágicos próprios, nada impedia que esses poderes fossem subvertidos e empregados em rituais distorcidos para se obter qualquer fim desejado, até mesmo os menos piedosos. Todo círculo satânico queria um padre em suas fileiras. Acrescente-se a isso que como, naquela época, o sacerdócio era uma posição que dava prestígio e garantia conexões úteis, muitas famílias nobres, ou de posses, ou ligadas à política, ou tudo isso, davam um jeito de encaminhar um de seus filhos para a carreira eclesiástica, o que resultava em haver muitos padres sem um pingo de vocação e com escassas qualidades morais, que podiam facilmente ser cooptados a participar de um desses grupos satânicos e oficiar suas missas negras, já que, pelo menos naquela época, elas eram geralmente celebradas com uma finalidade específica e costumavam ser encomendadas por alguém importante, que pagava alto – ou seja, era um negócio interessante para todos os envolvidos. Contar com a ajuda de um padre também facilitava enormemente o acesso a hóstias consagradas, pois, de outra forma, esse era um processo muito trabalhoso: era preciso que os fiéis satânicos fossem às missas normais, recebendo a comunhão e mantendo-a escondida na boca até o final do ofício, para depois levá-la para ser usada em suas próprias cerimônias, nas quais o pão sagrado era submetido a profanações que prefiro não detalhar. Já Huysmans não sofre do mesmo escrúpulo: se o leitor, como eu mesmo, for um católico devoto (e mesmo se não o for, mas prezar o respeito à fé alheia), terá de estar preparado para chocar-se. Além das preleções a respeito das práticas satânicas, vez por outra somos levados a acompanhar Durtal em suas pesquisas sobre Gilles de Rais, o que também é bastante perturbador.

No meio de tudo isso, no começo é difícil entender por que Huysmans teria decidido enxertar na história um caso de amor ilícito, se é que dá para chamar assim – e a dúvida não é quanto ao "ilícito", e sim quanto ao "amor". À primeira vista, parece ser porque, na França da época, uma relação adulterina era ingrediente indispensável em todo romance que quisesse ter chance de vender, mais ou menos como, hoje em dia, uma subtrama amorosa (não necessariamente adulterina, é verdade) é obrigatória nos filmes de Hollywood. Porém, à medida em que continuamos lendo, a impressão vai mudando: passa a parecer que o autor pensou algo como "ah, já que preciso mesmo incluir um adultério, vou fazê-lo à minha maneira". Durtal começa a receber cartas de uma admiradora que escreve sob pseudônimo e que desenvolveu uma paixão platônica por ele a partir de seus livros; ela não se identifica, mas vai deixando escapar detalhes como os fatos de ser casada e de ser alguém que o escritor conhece (e conhece seu marido também), e cuja casa chegou a frequentar antes de adotar seu atual modo de vida recluso. Há um punhado de senhoras que poderiam encaixar-se nesses quesitos, e Durtal se vê torcendo ardorosamente para que a misteriosa autora das cartas seja uma das bonitas, e experimentando aquela ansiedade ao mesmo tempo aflitiva e deliciosa que costuma acompanhar situações semelhantes. Como se fosse um adolescente, por assim dizer – ele, homem de meia idade, que vez por outra frequenta bordéis para sossegar as exigências do corpo, mas que já dava como certo que o futuro não lhe reservasse qualquer novo envolvimento sentimental, fosse com quem fosse. Porém, verdade seja dita, o sujeito não é lá muito romântico: parece interessado, sobretudo, no tipo de experiência sexual que (acredita ele) apenas uma mulher apaixonada pode proporcionar, impossível de ser igualada pelas profissionais. Mesmo com expectativas tão mundanas, o caso acaba sendo essencialmente uma decepção. Durtal tem amplas oportunidades para se exasperar com a proverbial volubilidade feminina, e a dama, ciente disso, chega a citar para ele uma frase de um de seus próprios livros, que diz que "só são boas as mulheres que não tivemos". O escritor acaba dando razão a si próprio nesse ponto. Entretanto, os capítulos seguintes do livro revelam que o affair tinha uma razão de ser dentro da história, pois acarreta uma importante mudança de direção nela.

Disse acima que a introdução da edição de O Rei de Amarelo pela Intrínseca, escrita por Carlos Orsi, contribuiu com informações sobre a biografia de Huysmans e sobre o movimento decadentista; pois bem, é Orsi quem cita (sem nomeá-lo) certo crítico que teria escrito que, para o artista decadente, ao cabo de uma carreira gasta a retratar vícios, pecados, podridão e loucura, só dois caminhos eram possíveis: "o cano de uma arma ou o pé da cruz". Huysmans, felizmente, escolheu a conversão ao invés do suicídio. Durtal volta a ser o protagonista em dois outros livros, cujos títulos, assim como o de Là-Bas, são sugestivos, quase autoexplicativos: En Route ('A Caminho', de 1895) e La Cathédrale ('A Catedral', de 1898), que descrevem a trajetória do personagem rumo à conversão, trajetória essa paralela à do próprio autor. É interessante notar que, embora em Là-Bas ele ainda pareça, em linhas gerais, um cético, Durtal, em diversos momentos, demonstra um respeito instintivo, pode-se dizer, pela Igreja, além de achar difícil descrer totalmente de seus ensinamentos: em certo trecho, é dito que ele "não tem certezas absolutas" a respeito do dogma da transubstanciação; ora, quando alguém não tem certeza absoluta sobre algo, é porque existe um espaço para a dúvida. Um ateu de verdade teria simplesmente dito que a crença na transubstanciação não passava de uma sandice, e consideraria o assunto encerrado. A atitude de Durtal espelha, provavelmente, a do próprio Huysmans, que, em seus últimos anos de vida, voltou à comunhão da Igreja que havia abandonado quando rapaz, o que se refletiu em suas obras desse período e o levaria a ser citado com frequência como um nome de destaque entre a intelectualidade católica de seu tempo.

Huysmans celebrizou-se, entre outros motivos, pelo "uso idiossincrático" do vocabulário francês, o que eu entendo como uma tendência a utilizar certas palavras com um sentido um tanto diferente daquele que os dicionários lhes atribuem, permitindo ao leitor captar o novo significado, desde que invista nisso um pouco de esforço. Traduzir um texto assim deve ter sido desafiador para Aníbal Fernandes, e, na qualidade de leitor, digo que Além exigiu de mim muita atenção e apelou à minha capacidade de fazer conexões e de inferir o sentido a partir do contexto. Certamente não é para leitores iniciantes. Feitas essas advertências, o livro deverá interessar não somente aos cultores da literatura decadentista, mas aos apreciadores do romance francês do século XIX de forma geral, e, por conta da temática macabra que ocupa parte de suas páginas, é provável que também chame a atenção de alguns fãs de terror.

quinta-feira, junho 30, 2016

O Grande Deus Pã

É fato: apesar de o autor ter chegado às minhas mãos com as melhores recomendações, minha primeira experiência com a literatura de Arthur Machen não foi empolgante (detalhes aqui). Tudo parecia indicar que ele tivesse sido grandemente superestimado por H. P. Lovecraft, que, como vimos antes, tece rasgados elogios a suas obras no legendário ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, e até mesmo um mestre do terror como Lovecraft – que, ao que se espera, devia entender muito do gênero – pode, eventualmente, emitir uma avaliação não tão confiável, baseada em fatores subjetivos, pois a literatura tem dessas coisas. Ou isso, ou eu é que estava (ainda mais) míope, ao ponto de não enxergar as muitas e extraordinárias qualidades que Lovecraft apontava em Machen. Acabei decidindo tentar não me prender à primeira impressão: levado tanto pelas descrições fascinantes de outras obras de Machen fornecidas por Lovecraft, quanto pelo alto apreço que caras como Robert E. Howard, Stephen King e T. E. D. Klein também demonstravam, adiei o meu julgamento a respeito de Machen até que tivesse tido a oportunidade de ler mais de suas histórias. E, para grande satisfação minha, posso dizer agora que tomei a decisão correta: as quatro histórias presentes neste volume da editora portuguesa Saída de Emergência explicam, finalmente, o que todas essas figuras notáveis da literatura de terror e fantasia viam de tão admirável nos trabalhos do escritor galês, a ponto de não hesitarem em colocá-lo entre os melhores desses gêneros em todos os tempos, ou em citá-lo como um de seus favoritos e principais influências. Não dá para dizer que as características que me deixaram impaciente em O Terror estejam totalmente ausentes aqui, mas, quando elas despontam, é de forma muito mais branda, sem empanar o brilho das histórias… Para não falar do fato de que, neste livro, Machen trabalha com ideias e enredos muito melhores e mais interessantes. Custa-me entender por que, ao planejar aquele volume (que, como observei no outro texto, foi, sem dúvida, o primeiro contato que muitos leitores tiveram com Arthur Machen em suas vidas), a editora Iluminuras escolheu a história O Terror como texto principal, preterindo outras que são anos-luz superiores, como O Grande Deus Pã, O Povo Branco e as outras que integram o livro que agora me preparo para comentar.

O conto que dá título ao livro foi publicado pela primeira vez em 1894, e parece compartilhar o ponto de vista do romance Frankenstein, de Mary Shelley: a ideia de que há coisas com as quais o homem não deve mexer, e de que o simples fato de a ciência moderna ser capaz de fazer algo não significa necessariamente que tal coisa deva ser feita – um pensamento que marca fortemente o Romantismo e os movimentos artísticos derivados ou influenciados por ele. O Dr. Raymond, um médico-cientista, pretende realizar uma experiência ousada e um tanto sinistra: por meio de uma sutil intervenção cirúrgica no cérebro, ele acredita ser possível fazer com que um ser humano passe a ver o mundo espiritual e as "coisas invisíveis", toda aquela realidade de cuja existência temos uma percepção intuitiva, mas que não pode ser apreendida pelos nossos sentidos físicos normais. Como cobaia, ele vai utilizar uma jovem de nome Mary, que, segundo conta, ele resgatou de uma vida miserável nas ruas quando era pequena – e, por esse motivo, acredita ter o direito de dispor dela como bem entender (!). Para servir de testemunha da experiência, Raymond chama seu amigo Clarke, que não é cientista, mas possui uma aguçada curiosidade sobre as ciências, bem como sobre ocultismo e todo tipo de conhecimento não convencional. Finalizado o procedimento, Raymond é da opinião de que a cirurgia foi um sucesso, mas Clarke nada mais fica sabendo sobre Mary durante muitos anos. Decorrido esse lapso de tempo, uma estranha mulher aparece na alta sociedade londrina; belíssima, ela apresenta uma perturbadora semelhança com a pobre jovem Mary, como se fosse sua filha – e, nesse caso, a identidade do pai é assunto que dá margem às mais macabras conjecturas, pois, a julgar por sua conduta e pela aura tenebrosa que a cerca, a tal mulher não deve ser de todo humana. Naturalmente que, com semelhante conjunto de atributos, ela desperta fascínio entre os jovens aristocratas ingleses, sempre sedentos de novas emoções, que passam, muitos deles, a frequentar-lhe a casa… E a cometer suicídio logo depois. Um personagem que investiga o que acontece na casa da Sra. Beaumont (esse o nome com que a mulher se apresenta, embora, enquanto solteira, tenha-se chamado Helen Vaughan) mostra a outro as descrições escritas de alguns dos entretenimentos que ela costuma oferecer a seus convidados, descrições essas que, por si sós, são capazes de deixar qualquer pessoa decente sem dormir durante dias. Participar de tais entretenimentos, então, deve ser mais que o suficiente para levar um homem a tirar a própria vida. É claro que não vou contar o final da história; direi apenas que ele é chocante.

(Para os fãs do cinema torture porn e curiosos por detalhes sórdidos em geral – e quem não o é, pelo menos um pouco? – cabe um aviso: se estiverem esperando ler essas descrições, vão decepcionar-se. Machen, filho de um ministro religioso, prezava um certo recato ao escrever, e preferiu deixar a exata natureza dessas diversões horripilantes para a imaginação sombria de seus leitores.)

Vocês devem estar se perguntando o que o deus Pã tem a ver com tudo isso; bem, o Dr. Raymond emprega uma metáfora ao descrever a visão que, espera ele, Mary terá depois da experiência: diz que ela poderá "ver o deus Pã". Quem conhece um pouco de mitologia sabe que Pã, para os antigos gregos, era o deus dos pastores, dos campos, dos bosques, e, por extensão, da natureza – e "natureza", ao contrário do que hoje estamos acostumados a pensar, não tem só conotações positivas. Pã tinha uma face alegre, que remetia à vida bucólica das regiões rurais, mas era também o deus dos terrores noturnos (a palavra pânico derivou de seu nome) e ligado à bruxaria. Não foi por acaso que, com o advento do cristianismo, ele passou a ser associado ao diabo, tendo sido, provavelmente, um dos principais responsáveis por conferir a este último sua aparência "clássica", com chifres e pés de bode, semelhança essa que o pintor espanhol Francisco de Goya fez questão de realçar em seu famoso quadro El Aquelarre, de 1798 – aquelarre é uma palavra espanhola para sabá de bruxas; o quadro também é conhecido como El Gran Cabrón ('O Grande Bode'), para distingui-lo de outro El Aquelarre, que Goya pintou 25 anos mais tarde. Confesso, aprecio a obra de Goya pelas qualidades artísticas (é claro), mas não menos por sua temática, essa inclinação natural que ele parecia ter para o fantástico e o macabro. Embora não haja conexão conhecida entre os dois, acho que suas imagens combinam muito com o clima das histórias de Arthur Machen – e parece que outros já pensaram o mesmo, pois El Gran Cabrón já serviu de ilustração de capa para mais de uma edição de O Grande Deus Pã. Voltando ao deus, é importante saber, por fim, que seu nome, em grego, significa tudo (é o mesmo radical que integra palavras como panamericano, pangermânico, panteísmo e tantas outras), e que, portanto, Pã personifica a natureza em sua totalidade, tanto seus aspectos belos e pacíficos quanto os mais assustadores, bem como aqueles mistérios que, se conhecidos, poderiam destruir a sanidade de uma pessoa. Para quem já conhece Lovecraft e está conhecendo Machen, não demoram a ficar claros os motivos da devotada admiração do primeiro pelo segundo.

Só para constar, nem tudo em O Grande Deus Pã é excelente. Tive um desagradável déjà vu da característica mais irritante de O Terror ao ler esta passagem:

– Mas será que ainda se lembra do que me escreveu? Pensei que fosse imprescindível que ela…
Murmurou então o resto da frase ao ouvido do médico.

Em resumo: manter certas informações ocultas ao leitor até que chegue o momento certo de revelá-las é uma arte; fazer isso de formas artificiais e ineptas, é de matar! Felizmente, aqui esse defeito é uma coisa menor, que podemos relevar, bem diferente do que acontecia em O Terror.

A segunda história é A Novela da Chancela Negra – a palavra "chancela" é uma daquelas de uso comum em Portugal, mas pouco conhecidas entre nós; em textos de referência que encontramos por aí, quando essa história é mencionada, fala-se em "Sinete Negro", ou mesmo "Selo Negro". Enfim, chancela, sinete ou selo, aí, referem-se todos a um instrumento que pode ser considerado um ancestral dos atuais carimbos: pressionado sobre cera quente, argila úmida ou outro material de plasticidade semelhante, ele imprimia imagens ou caracteres (geralmente um timbre, brasão ou símbolo equivalente), após o que esperava-se o material endurecer. Seu uso mais conhecido era para lacrar cartas ou documentos. A chancela da história é um pequeno artefato de pedra negra, encontrado pelo Prof. Gregg, uma autoridade eminente no campo da etnologia, e que ele acredita ter pelo menos quatro mil anos de idade. Para manter o mistério, o autor vale-se do recurso de não usar o próprio professor como narrador, nem contar a história a partir do ponto de vista dele; em vez disso, a narradora é Miss Lally, contratada, a princípio, como governanta, responsável por supervisionar os cuidados e a educação dos dois filhos de Gregg – mas, por tratar-se de uma jovem de bastante cultura, acaba por assumir as funções de secretária dele, ajudando-o com seus trabalhos acadêmicos. Depois de ter-se dedicado durante décadas a estudos "sérios", que lhe granjearam uma sólida reputação, o professor decide aventurar-se investigando a possível realidade por trás de certos relatos do folclore das Ilhas Britânicas – em especial do País de Gales e do oeste da Inglaterra –, que sempre foram considerados por todos os pesquisadores "respeitáveis" como mero produto da fantasia popular. O pequeno sinete de pedra é a mais importante dentre um conjunto de pistas que ele reuniu ao longo de anos, e agora, finalmente, considera-se em condições de descobrir a possível verdade concreta que poderia ter dado origem às histórias milenares sobre o "povo pequeno" – fadas, duendes e outros seres misteriosos, sempre mencionados pela gente das ilhas com um misto de fascínio e temor. Há sugestões de que essas criaturas talvez não sejam tão brincalhonas e benévolas quanto as histórias infantis levam a crer… Para dar prosseguimento a sua pesquisa, Gregg aluga uma velha mansão rural perto da fronteira anglo-galesa, para onde se transfere com os filhos, Miss Lally e alguns criados. Lá, mesmo sem necessidade alguma de mais mão de obra, ele faz absoluta questão de contratar um adolescente local, um rapaz com leve retardo mental e uma propensão a sofrer ataques – e, quando isso acontece, seus aparentes gemidos desconexos começam a soar como palavras de alguma língua desconhecida, de pronúncia sibilante… A possibilidade de existir alguma ligação entre esse estranho garoto e o objeto dos estudos obscuros do professor é estabelecida de uma forma sutil – e, na minha opinião, brilhante –, contribuindo para a atmosfera cada vez mais sinistra da história. As descrições de Miss Lally da sensação aflitiva de ter medo sem saber do que, estão entre as passagens literárias mais sufocantes que meus olhos já percorreram.

A Luz Mais Interior (no original, The Innermost Light) é a história mais curta e mais fraquinha, mas de forma alguma é ruim. Sua organização inicial lembra um pouco a de The Great God Pan: também aqui há dois amigos, um mais visionário e dado a especulações fantásticas, Dyson, e outro mais cético (pero no mucho), Salisbury. Encontrando-se por acaso nas ruas de Londres, os dois decidem jantar juntos – e os pormenores a respeito da refeição, que Machen poderia ter deixado subentendidos, mas fez questão de incluir, sugerem que o autor também era, entre outras coisas, um apreciador da boa mesa. Durante esse jantar, Dyson conta ao amigo um estranho caso que chegou ao seu conhecimento, o do Dr. Black, um conceituado médico que morava e clinicava num bairro afastado e que, aparentemente, assassinou sua jovem e bela esposa. Poderia não ser mais que um crime passional de algum tipo, não fosse o parecer do legista que fez autópsia da Sra. Black e manifesta a opinião de que o cérebro da mulher não era humano. Dyson, levado por sua curiosidade por assuntos insólitos, decide investigar. Usando mais uma vez um recurso do qual Machen parecia gostar muito (e, na verdade, muito popular entre autores de ficção gótica do século XIX e início do XX), a resposta do mistério é encontrada num manuscrito, um caderno de anotações deixado pelo Dr. Black – e trata-se de uma resposta horripilante. Ao terminar de ler a história, tive a sensação de que o horror central dela pode ter sido sugerido por um sonho (foi a mesma sensação causada pelo conto A Máscara, de Robert W. Chambers) e de que, ao redor disso, o autor pode ter construído todo o resto.

O livro termina com O Povo Branco, história que Lovecraft considerava, no balanço final, superior a O Grande Deus Pã. Não tenho certeza se concordo, mas posso assegurar que não vou me esquecer de O Povo Branco. Sua mistura atordoante do terno com o terrível, do ingênuo com o monstruoso, confere-lhe um sabor pungente que poucas outras histórias já tiveram – e, para ser franco, no momento não lembro de nenhuma. Também aqui a parte mais importante da narrativa é encontrada num manuscrito; na prática, é uma história dentro de outra história. O conto começa com um diálogo entre Cotgrave, um jovem cavalheiro curioso, e Ambrose (homenagem a Ambrose Bierce? Hum…), um homem recluso e excêntrico, dado a filosofias não convencionais. Nesse diálogo inicial, Ambrose está expondo a Cotgrave sua teoria de que o bem e o mal não são realidades tão claras e distintas como geralmente acreditamos; segundo ele, um homem pode tornar-se um pecador de primeira grandeza sem jamais praticar qualquer crime, ou, de forma inversa, fazer-se santo sem realizar boa ação alguma que a sociedade reconheça como tal. Para ilustrar o que está dizendo, Ambrose empresta a Cotgrave um caderno manuscrito, recomendando-lhe que o leia cuidadosamente – e o trate mais cuidadosamente ainda, pois o eremita faz absoluta questão de que seja devolvido intacto. O caderno está preenchido com aquele tipo de letra redonda e caprichada que poderia pertencer a uma menina… E é esse o caso, como descobrimos a seguir, ao termos acesso à totalidade do texto do manuscrito através dos olhos de Cotgrave. São 25 páginas (na edição impressa; no manuscrito seriam bem mais) de texto praticamente corrido, isto é, quase sem mudança de parágrafos; para ser exato, ao longo de todas essas páginas são feitos apenas cinco novos parágrafos, sem considerar os trechos em que a autora reproduz versos. E a autora em questão é uma garota órfã de mãe, com um pai rico e ocupado que ela pouco via. Criada em outra dessas mansões rurais em algum lugar do interior do Reino Unido, que são uma constante na obra de Arthur Machen, ela tinha como principal companhia uma jovem ama, que, em meio a brincadeiras e passeios pelos bosques, iniciou-a nos segredos da feitiçaria.

Há hoje uma tendência politicamente correta a apresentar a feitiçaria de forma simpática, como sendo tão somente os inofensivos remanescentes de benévolas (sempre benévolas) crenças pré-cristãs, nada mais que a veneração da natureza e a transmissão de saberes práticos como o da medicina herbal; afirma-se frequentemente que o famigerado sabá das bruxas medievais nunca existiu, seria apenas uma ficção inventada pela "maligna" Igreja Católica para assustar o povo e instigar o ódio contra os que praticavam essa religião ancestral… E, como todas as ideias politicamente corretas, também essa teve origem em escusas intenções ideológicas, e ganhou livre curso graças à ingenuidade de inúmeras pessoas que, é claro, julgam-se as mais inteligentes e "críticas". Para começar, não havia uma única religião pré-cristã, mas muitas, sendo que a maioria delas estava longe de ser inofensiva ou inocente. Em segundo lugar, podia haver, e havia, grupos de feiticeiros que efetivamente não faziam mal a ninguém e só queriam continuar com seus ritos em paz – mas é tolice achar que todos eram assim. O culto deliberado aos poderes do mal e a prática de malefícios existiam na Idade Média, existiam no século XIX, e existem hoje. Arthur Machen, detentor que era de consideráveis conhecimentos no campo do ocultismo, sabia disso, e soube explorar o assunto com extrema competência. A ama, iniciada nesses mistérios tenebrosos por sua bisavó bruxa, ensina a sua pequena senhora diferentes rituais para conseguir diversos objetivos, nem todos muito louváveis; leva-a a reuniões secretas em lugares ermos; e revela-lhe a existência de povos misteriosos, dotados de poderes sobrenaturais e que vivem escondidos, como o "Povo Branco" do título. Compreende-se que, quando a jovem escreveu seu relato, já era quase adolescente (a ama já não trabalhava mais em sua casa), mas o relato em si cobre um período de vários anos – ou seja, a menina foi iniciada nesses conhecimentos quando ainda era muito pequena. É aí que reside a maior parte do encanto e, ao mesmo tempo, do horror da história: em sua inocente tagarelice infantil, ela descreve aquilo que viu sem realmente compreender muitas coisas, o que confere ao texto esse contraste desconcertante entre a pureza e o horror. Nada é muito explícito, mas, mesmo assim, talvez a história choque mais hoje que na época em que foi escrita, se considerarmos o quanto o nosso jeito de encarar a infância mudou ao longo deste último século.

Não há como finalizar estes comentários sobre O Povo Branco sem lembrar novamente de T. E. D. Klein e seu Cerimônias Satânicas. Várias histórias de Arthur Machen (e ouso dizer que sua obra como um todo) foram uma forte influência para Klein, como estou percebendo agora, mas foi, sem dúvida, a partir das menções casuais a "cerimônias brancas, verdes e vermelhas", encontradas em O Povo Branco, que ele veio a desenvolver a ideia central de seu livro. Por sinal, deve ter sido uma boa coisa, para ele, que tais menções sejam tão breves e reticentes, pois isso lhe permitiu exercer sua liberdade criativa sem romper os vínculos com a fonte original de sua inspiração. Por fim, como não surpreenderá a quem já conhece o perfil de Machen, O Povo Branco, assim como O Grande Deus Pã e A Novela da Chancela Negra, entrega a paixão do autor pela beleza melancólica e repleta de História dos rincões solitários do interior do País de Gales, com sua natureza rústica e vestígios de seu passado celta e romano. Somente A Luz Mais Interior, por causa de sua ambientação toda urbana, não oferece espaço para tanto.

Demorou, mas por fim posso dizer que compreendo por que Arthur Machen é considerado um mestre da narrativa de terror e fantasia, e uma influência para os que vieram depois dele, inclusive aqueles que, por sua vez, também chegariam a ser considerados mestres, e isso foi possível graças a uma seleção inteligente das histórias incluídas neste livro (desculpe, pessoal da Iluminuras…). A propósito, encomendei o livro direto de Portugal, através da Fnac de lá, e aproveitei para comprar junto o único outro título de Machen que estava em catálogo, um pequeno volume chamado A Pirâmide de Fogo. Quando o ler, ele certamente também será objeto de comentários aqui.

quinta-feira, junho 19, 2014

O Vale dos Mortos

Zumbis são provavelmente os menos glamourosos dentre os monstros que têm povoado histórias de terror em livros, quadrinhos e filmes já há décadas ou, em alguns casos, séculos. Não têm o charme sinistro dos vampiros, nem a aura de selvageria e mistério dos lobisomens, e tampouco consta que sofram com dilemas existenciais como os que afligiam o angustiado e carismático monstro de Frankenstein. Como são lentos e descoordenados, os zumbis nem mesmo costumam ser tão perigosos assim; quando eu jogava Neverwinter Nights, adorava quando apareciam zumbis, porque eles representavam uma boa chance de ganhar pontos de experiência correndo pouco risco: bastava ficar a uma distância segura e usar o arco ou a besta, enquanto os seres patéticos, com seu passo lerdo, tentavam inutilmente aproximar-se o suficiente para atacar. É verdade que, nesse jogo, isso era possível porque os zumbis eram vulneráveis a ataques comuns, o que em outros lugares não acontece: em geral, eles nem tomam conhecimento de tiros ou ataques com armas cortantes ou perfurantes: só podem ser destruídos com fogo e, às vezes, com um golpe certeiro na cabeça, que destrua o cérebro. Sem contar que, mesmo no Neverwinter Nights, se os zumbis aparecessem em grande número, ou em terreno que dificultasse a esquiva, meu personagem estaria em apuros…

Em sua origem, no folclore do Haiti (e, segundo algumas fontes, em certos fatos lá registrados), um zumbi é alguém que, enfeitiçado por um houngan (feiticeiro vodu), adoece e "morre, só que não": o sujeito parece morrer, porém, depois do sepultamento, quando os parentes do suposto defunto já foram embora, o feiticeiro abre o túmulo e retira a pessoa, que, reanimada, mas reduzida a um comportamento de autômato, pode ser, daí em diante, usada como escrava. Contam-se histórias sobre plantações inteiras de cana-de-açúcar que eram, e talvez ainda sejam, conduzidas exclusivamente com mão-de-obra zumbi!… A ciência já investigou e comprovou que a poção dos houngans, preparada com extratos de diversas plantas e o veneno de uma espécie de sapo encontrada no Haiti, pode induzir um tipo de transe, que, mediante a administração de novas doses periódicas, permitiria, em teoria, manter uma pessoa indefinidamente em estado "zumbificado". Como toda lenda, a dos zumbis tem seu fundo de realidade.

Quando os autores de terror, e particularmente o cinema, se apropriaram do conceito, naturalmente tiveram que fazer algumas adaptações. Os zumbis que viraram astros de produções como A Noite dos Mortos-vivos (1968) de George Romero, e de incontáveis outras que se seguiram, eram uma coisa diferente: mortos realmente mortos que se levantam e andam por aí em plena decomposição, fedendo e perdendo pedaços – porque isso tinha um potencial de horror muito maior que mostrar uma multidão de haitianos de aparência perfeitamente comum, só que abobados e de olhos vidrados. Não sei de quem foi a ideia de atribuir aos zumbis um apetite insaciável por carne humana ou em qual obra isso apareceu pela primeira vez, mas ficou quase tão obrigatório quanto o fato de os vampiros beberem sangue. E, tal como acontece com vampiros, lobisomens et alii, cada autor que decide incluir zumbis em sua obra tem liberdade para adotar a versão "clássica" ou para fazer as modificações que julgue necessárias. Não foi diferente com Rodrigo de Oliveira, autor paulista responsável pela série (mais uma série…) da qual O Vale dos Mortos é o piloto. Parece que a saga foi inspirada por um pesadelo que ele, fã confesso de filmes de terror, teve e nunca mais esqueceu.

Oliveira utiliza-se de um mix de profecias ligadas ao final dos tempos: o trecho do Apocalipse que fala de uma estrela chamada Absinto, e os escritos do guru gnóstico V. M. Rabolú sobre "Hercólubus", um suposto planeta gigante que, segundo ele, estaria em rota de colisão com a Terra. Absinto e Hercólubus seriam, então, o mesmo astro; naturalmente que o autor editou o texto bíblico para moldá-lo a suas necessidades, catando os versículos adequados e deixando o restante de fora, além de mudar alguns detalhes. A estrela citada no Apocalipse poderia, de fato, ser um planeta ou um cometa; é muito provável que no século II, quando esse último livro da Bíblia foi escrito, a maioria das pessoas se referisse a qualquer corpo celeste como sendo uma "estrela". No livro sagrado, o papel de Absinto consiste em contaminar as águas, tornando-as amargas (seria uma profecia sobre a poluição?). O simbolismo contido no nome revela-se quando se sabe seu significado: hoje em dia, quem ouve falar em "absinto" geralmente pensa numa bebida verde com um teor alcoólico absurdo, mas o nome pertenceu primeiro a uma erva, também conhecida como losna, cuja principal característica é o sabor amargo, e que está entre os ingredientes da tal bebida.

Rabolú publicou um livro a respeito de Hercólubus em 1998, mas já discorria sobre o assunto em suas conferências anos antes. Ele o descreveu como sendo 20 vezes maior que a Terra (para efeitos de comparação, Júpiter, o maior planeta do nosso sistema solar, tem 11 vezes o diâmetro e 318 vezes a massa da Terra) e decidiu (essa é bem a palavra) que ele iria colidir com o nosso pobre planeta em fins do século XX. Claro que, nessa teoria, faltava uma explicação plausível para o fato de que o tal Hercólubus, sendo tão grande e estando relativamente próximo, a ponto de poder nos abalroar apenas alguns anos depois de feito o anúncio, nunca tivesse sido descoberto pelos astrônomos, que já observaram e estudaram astros muito menores, situados a distâncias enormemente maiores. Porém, é bem sabido que falta de coerência científica nunca foi impedimento para que previsões catastróficas ganhassem popularidade (na verdade, boa parte do apelo do movimento gnóstico junto ao seu público está justamente em pintar todos os cientistas como crianções que não sabem de nada). Na ficção de Rodrigo de Oliveira, Hercólubus, ou Absinto, como queiram, é por fim descoberto pela ciência em 2017, vindo, de fato, em nossa direção, o que gera pânico em escala mundial. Depois de meses de cálculos, entretanto, os astrônomos tranquilizam a população, declarando que o gigantesco viajante espacial irá passar próximo, mas sem colidir com a Terra ou causar-lhe qualquer perturbação significativa. Além disso, dará um espetáculo nunca visto, mostrando-se visível no céu a olho nu. O momento de maior proximidade é previsto para 14 de julho de 2018, quando o planeta poderá ser visto com um diâmetro aparente duas vezes maior que o da lua cheia. E, agora que se sabe (ou, ao menos, se acredita) que não há perigo, o estranho visitante celeste passa a causar curiosidade e fascínio.

A parte sobre Absinto serve como uma espécie de introdução. Para começar a história propriamente dita, Oliveira vale-se de um recurso que, por mais que seja utilizado, parece não perder a eficácia: apresentar alguns fatos comuns da vida de pessoas comuns. O contraste funciona como uma lente de aumento para potencializar o horror quando ele finalmente começa, além de deixar subentendida aquela indagação inquietante: se esse horror pegou de surpresa essas pessoas que lembram tanto nós mesmos, o que garante que algo igualmente terrível não possa acontecer perto de nós?

E as pessoas comuns em O Vale dos Mortos são o casal Ivan e Estela. Os dois trabalham na área de tecnologia da informação e moram com seus dois filhos pequenos em São José dos Campos, uma das maiores cidades do estado de São Paulo, a apenas 80 quilômetros da capital. Tudo começa num sábado, 14 de julho de 2018, que, exceto pela previsão astronômica da máxima aproximação de Absinto, parece ter tudo para ser apenas mais um sábado na vida dessa família. Por algumas páginas, a sensação é a de que poderíamos estar lendo sobre nossas próprias vidas, ou sobre as de inúmeras pessoas que conhecemos: o casal e as crianças acordam em seu confortável apartamento, tomam seu café da manhã e saem – sábado é o dia de fazer compras para a casa e passear. Quem conhece ou já passou por São José dos Campos reconhecerá as ruas e os lugares mencionados: tudo existe mesmo.

Quando os quatro estão se preparando para almoçar na praça de alimentação do shopping Centervale, o mundo que conhecem repentinamente se desintegra. Sem mais nem menos, a maior parte das pessoas no local perde os sentidos, para logo em seguida despertar – ou assim parece. A reação inicial de alívio dos demais ao verem seus parentes e amigos voltarem a se mover é rapidamente substituída pelo horror, quando fica evidente que aquilo que se levantou não são mais as pessoas que eles conheciam, e sim zumbis desprovidos de mente, cujo único impulso é o de atacar e devorar não apenas seres humanos, mas qualquer criatura viva que encontrem pela frente; por alguma razão, eles não atacam uns aos outros, mas quem for mordido por um deles se transforma em zumbi também. Ivan e Estela fazem o óbvio: pegam os filhos (por sorte, ou por outro motivo mais misterioso, nenhum membro da família foi afetado pelo fenômeno) e caem fora daquele lugar, mas logo descobrem que a catástrofe não é só lá. A cidade toda, e, como fica-se sabendo depois, o país e o mundo, estão do mesmo jeito.


Depois de vagarem desesperados pela cidade durante algum tempo (pois, como descobrem, voltar para casa não só é impossível como seria provavelmente inútil), eles decidem buscar abrigo no shopping Colinas, que estava fechado naquele fim de semana para reparos, de modo que é possível que esteja relativamente livre de zumbis, além de garantir um suprimento de alimentos e outros itens básicos para a sobrevivência naquele mundo que enlouqueceu de repente. Lá, Ivan e sua família têm seu primeiro contato com outros sobreviventes, formando o que se tornará a semente de uma comunidade de refugiados. Com o tempo, o grupo compreende que, embora ali no shopping eles disponham de comida, conforto e de uma relativa segurança, não podem permanecer entocados para sempre: têm o dever de procurar por outros sobreviventes, para prestar a ajuda que puderem e começar, aos poucos, a tentar reconstruir algo que se assemelhe a uma sociedade. Ivan descobre que é um líder natural, mas descobre também que sua tarefa, que ele nunca esperou que fosse ser fácil, será muito mais complicada do que poderia ter imaginado, pois, além de todos os desafios oferecidos por aquele cenário apocalíptico, precisa também lidar com conflitos internos e com a personalidade difícil de alguns membros do grupo.

Seria preciso muita boa vontade para dizer que O Vale dos Mortos é um livro bem escrito: há um inconfundível ar geral de amadorismo, o que é natural, considerando que se trata do romance de estreia do autor. Oliveira bem que tenta dar alguma complexidade a seus personagens, procurando fazer com que demonstrem diferentes facetas de suas personalidades de acordo com a situação, e sofram transformações ao longo da narrativa, mas não obtém muito sucesso nisso. Há várias partes – umas curtas, outras longas – que poderiam ser reescritas, e, em alguns casos, suprimidas, sem prejudicar a história. Só para dar um exemplo, quando os protagonistas ainda estão no shopping Centervale, bem na hora em que fenômeno mundial acontece, há um trecho que imagino que pretenda ser trágico, sobre uma jovem sendo atacada pelo zumbi que até há pouco era seu noivo:

Uma moça de cabelos lisos e loiros, de uns vinte anos de idade, estava caída no chão, se debatendo, com um homem sobre ela. Ele tinha sangue nos lábios e mastigava um pedaço de carne humana, que arrancara do antebraço da jovem.
– Vítor, não! Sou eu, sua noiva! Pare com isso, por favor! – ela gritava, desesperada, tentando empurrar o homem com quem pretendia se casar, ter filhos, construir uma vida, e a quem procurara ajudar apenas alguns segundos antes.
(…) Vítor pareceu indeciso por um instante sobre o que fazer, mas decidiu rápido. Levou as duas mãos à camisa da noiva e puxou para os dois lados de uma vez, arrancando todos os botões, deixando os seios fartos e brancos à mostra. Ato contínuo, mordeu o mamilo esquerdo, arrancando um naco de carne, destruindo um seio que ela sonhava que um dia serviria para alimentar uma vida. Dia esse que nunca chegaria. Aquele corpo jamais geraria um bebê. Ela nunca entraria numa igreja vestida de branco, nunca mais faria amor com seu noivo. Todos os sonhos daquela mulher foram ceifados naquela tarde.

Terei sido o único leitor a ter a forte sensação de que essa cena poderia funcionar muito melhor sem o melodrama barato?

Ainda focando nos aspectos estruturais, eu passei o livro todo esperando pela explicação de que cargas d'água a chegada de Absinto teve a ver com a transformação de dois terços da população mundial em zumbis, e, não menos inquietante que isso, do motivo pelo qual o terço restante foi poupado. A espera foi em vão: explicação alguma é oferecida, apenas uma cena misteriosa na qual sugere-se que o planeta gigante, de alguma forma, "sugou" as almas das pessoas transformadas. Quanto ao porquê e ao como, só nos resta especular, ou então acreditar que as respostas virão no próximo volume, que nem tenho tanta certeza assim de que eu vá querer ler. De qualquer forma, para não ser injusto, é preciso reconhecer que o livro tem pelo menos uma grande sacada: o autor teve uma excelente ideia quando pensou em incluir as cenas que mostram chefes de governo de vários países (detalhe: todos pessoas reais) sendo vitimados pelo apocalipse zumbi, o que deixa claro para os leitores que o colapso da sociedade foi total, que todas as instituições ruíram, e que, portanto, é inútil esperar por qualquer tipo de socorro por parte dos governos, das forças armadas ou de qualquer órgão público. Tirando isso, não há nada de muito diferente de várias outras obras que retratam catástrofes semelhantes.

(E convenhamos: ler sobre o ex-presidente Lula, transformado em zumbi, devorando – literalmente – Dilma Rousseff, ainda presidenta em 2018, é, no mínimo, bizarro.)

O livro apresenta muitos problemas de português, o que não é responsabilidade apenas do autor, mas também da editora, uma desconhecida Faro Editorial. Talvez ela nos surpreenda positivamente, fazendo uma boa revisão no texto antes de lançar a próxima edição, o que as editoras em geral não fazem: novas edições, via de regra, são na verdade meras reimpressões, pois é raro alguma falha ser corrigida de uma edição para a seguinte.

Por último, e para crédito do autor estreante, é preciso reconhecer que O Vale dos Mortos, apesar de todos os defeitos, não se sai mal no quesito entretenimento, que, no fim das contas, é o mais importante. A leitura flui bem e o leitor, ao virar cada página, quer realmente saber o que vai acontecer a seguir, então eu diria que o essencial foi alcançado, e não há razão para duvidar de que Rodrigo de Oliveira ainda possa se aprimorar bastante como escritor e produzir outras histórias bem superiores a esta primeira.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

O Marechal das Trevas

Gilles de Rais (1404-1440), barão de Laval, é um dos personagens mais curiosos – e mais assustadores – da história da França. Seus feitos medonhos, ecoando pelo universo da cultura popular através de histórias contadas em tabernas e ao pé do fogo, deram origem à lenda que o grande escritor Charles Perrault (1628-1703) poria por escrito em seu clássico livro Histórias ou Contos de Outrora, com o título A História de Barba-Azul – uma nota tenebrosa em meio a histórias encantadoras ou engraçadas, como A Bela Adormecida do Bosque ou O Gato de Botas. Se bem que tanto Perrault quanto os irmãos Grimm, e outros autores que recolheram e redigiram tais contos populares, suavizaram grandemente essas histórias, muitas das quais, tal como eram na origem, seriam consideradas hoje pouco apropriadas para se contar a crianças... Mas isso é assunto para outro artigo.

Em O Marechal das Trevas, o jornalista e escritor espanhol Juan Antonio Cébrian, usando de uma prosa ágil em tom de reportagem – que ele prova ser compatível com uma análise histórica apurada, ainda que não tão aprofundada – reconstrói a trajetória do "verdadeiro" Barba-Azul, tendo o cuidado de situar o leitor por meio de uma breve história da Guerra dos Cem Anos, conflito no qual De Rais se destacou como soldado antes de ganhar reputação bem mais sombria graças a seus crimes.

O autor nos informa, por exemplo, dos feitos do rei inglês Henrique V, que, aparentado com os reis franceses (depois de séculos de casamentos políticos, quase todas as famílias reais da Europa eram aparentadas entre si), decidiu fazer valer seu suposto direito ao trono da França e, em 1415, invadiu o país, derrotando o exército francês na histórica batalha de Azincourt. Henrique obrigou o então rei da França, Carlos VI, a reconhecer seus direitos de herdeiro e a dar-lhe sua filha em casamento, de modo que, se Carlos morresse, Henrique seria o próximo a ocupar o trono francês, acumulando-o com o da Inglaterra (o que praticamente faria dele um imperador) e preterindo o direito do filho do rei, o delfim, também chamado Carlos. A propósito desse episódio da Guerra dos Cem Anos, vejam o magnífico filme Henrique V (1989), baseado na peça homônima de Shakespeare, e dirigido e estrelado por Kenneth Branagh.

Inesperadamente, porém, Carlos VI sobreviveu a Henrique V, ainda que por um espaço de poucos meses: o rei inglês faleceu em agosto de 1422, e o francês, em outubro do mesmo ano. Isso criou um impasse: os ingleses, e parte da França que estava do seu lado, coroaram como novo rei (da Inglaterra e da França) o filho de Henrique, então ainda uma criança de colo, com o nome de Henrique VI; já os franceses nacionalistas queriam declarar rei o delfim, como Carlos VII. Havia um empecilho: por uma tradição de séculos, todo rei francês deveria ser coroado na catedral da cidade de Reims, sob pena de não ter sua legitimidade reconhecida pelo povo e pelos nobres – e Reims, como várias outras partes da França, estava nas mãos dos ingleses. O delfim, então, aquartelou-se em seu castelo na cidade de Chinon, juntamente com todo o exército que pôde reunir e os nobres ainda dispostos a lutar por ele – e entre estes, estava Gilles de Rais.

De Rais, durante alguns anos, foi um dos cavaleiros mais admirados da França, e parecia um homem destinado à grandeza. Bonito, culto, guerreiro formidável (com apenas 25 anos de idade, alcançou o altíssimo posto de Marechal da França) e dono de uma das maiores fortunas pessoais da Europa, celebrizou-se pela bravura demonstrada no campo de batalha e ganhou um lugar de honra na corte do delfim. E foi na corte, em Chinon, num dia qualquer de 1429, que Gilles e os outros nobres viram aparecer uma camponesa analfabeta de 17 anos chamada Joana d'Arc, declarando-se enviada pelo próprio Deus para garantir que o delfim fosse coroado rei como era seu direito. Por mais absurdo que isso parecesse, Joana já havia feito profecias que deram certo, o que impediu que suas pretensões fossem sumariamente rejeitadas.

Entre os que desde o início acreditaram nela esteve Gilles de Rais, que mais tarde, em seu julgamento, contaria que só enquanto esteve junto de Joana conheceu a paz de espírito e sentiu a presença de Deus; a pureza e a fé inquebrantável da donzela trouxeram alívio à alma do marechal, já então ensombrecida pelo mal. Gilles lutou ao lado de Joana na batalha de Orléans, pouco depois, e foram as mãos dele que, diante dos olhos dela, puseram a coroa da França na cabeça do delfim, um mês mais tarde, em Reims, recuperada dos ingleses graças ao inexplicável ardor que a liderança daquela garota inspirava aos soldados.

De Rais foi seguidor e protetor de Joana por mais algum tempo, até que o recém-coroado Carlos VII os separasse, designando a cada um diferentes missões. A verdade é que, depois de ter retomado Orléans, tornado possível a coroação do rei, e causado uma reviravolta na guerra a favor da França, Joana tornou-se um incômodo para Carlos e sua corte, de modo que, quando ela foi capturada pelos borgonheses (da região francesa de Borgonha, aliada à Inglaterra), em maio de 1430, o rei não esboçou nenhum esforço para salvá-la, nem mesmo diante da enérgica intercessão do marechal Gilles de Rais. Embora tenha-se tentado dar ao julgamento e à execução de Joana d'Arc a aparência de um processo por crimes religiosos, a verdade é que a Donzela de Domrémy morreu por razões políticas. Depois de um ano de julgamento sob acusação de heresia, a pressão da coroa inglesa fez com que Joana fosse condenada à morte na fogueira, sentença que foi executada na cidade de Rouen, em 30 de maio de 1431. Tinha 19 anos de idade.

Isso foi, de certa forma, o fim para Gilles de Rais; qualquer chance que ele tivesse de dar à sua vida um rumo positivo morreu com Joana. De acordo com o levantamento biográfico feito por Cébrian, Gilles era filho de um casamento político: seus pais nunca coabitaram de fato e deram pouquíssima atenção a ele e a seu irmão, René. Ambos foram criados pelo avô materno, o conde Jean de Craon, que lhes incutiu a noção de que a crueldade era parte integrante da força e da masculinidade. Isso, somado à falta de uma verdadeira família, pode em parte explicar, embora nunca justificar, sua conduta posterior.

Desgostoso após o destino que tivera Joana d'Arc, Gilles abandonou as armas e passou a dividir seu tempo entre os vários castelos que possuía, espalhados pelo interior da França, levando uma vida de luxo excessivo e promovendo quase diariamente festas suntuosas para centenas de convidados. Nem mesmo sua enorme fortuna poderia arcar indefinidamente com tais exageros, e o barão passou a enfrentar problemas financeiros. Sabe-se que procurou renovar sua riqueza tentando obter ouro por meio da alquimia, que ele próprio estudou e praticou, além de empregar especialistas, notadamente o italiano Francesco Prelati, que também se dedicava à feitiçaria. Infelizmente para De Rais, a transformação de metais comuns em ouro era algo que vinha sendo tentado desde a Antiguidade sem sucesso – e não foi com ele que essa história mudou. Chegou-se a aventar a hipótese de que as práticas alquímicas e mágicas teriam levado ao início da carreira de assassino do barão, já que o sangue de crianças era um ingrediente mencionado em inúmeras fórmulas da época, mas sua própria confissão descarta essa ideia: ele já matava por prazer bem antes de dedicar-se a tais práticas.

A última parte de O Marechal das Trevas é uma leitura penosa, pois conta sobre a prisão e o julgamento de De Rais, reproduzindo os depoimentos dele e dos criados que o assistiam em seus crimes, com fartura de detalhes capazes de causar horror até a Jack, o Estripador, que, comparado ao barão de Laval, não passava de um aprendiz. Desconhece-se o número exato de vítimas – na maioria crianças de 8 a 12 anos, de ambos os sexos – que foram raptadas, violentadas e mortas entre os anos de 1431 e 1440; sabe-se que não foram menos de 140, provavelmente cerca de 200, e há cronistas que elevam a conta até perto dos mil. O marechal confessou sem a necessidade de tortura (que na época era considerada um método legítimo de interrogatório em qualquer julgamento, e não apenas nos de bruxaria, como muita gente pensa), demonstrando arrependimento que foi considerado sincero por seus juízes, e pediu um padre para ouvi-lo em confissão, no que foi atendido. Foi levado à forca em 26 de outubro de 1440, e, antes de morrer, dirigiu suas últimas palavras à multidão que comparecera para ver sua execução, e que incluía os pais de muitas crianças que ele assassinara. Suplicou-lhes perdão e pediu que rezassem por sua alma, o que todos fizeram.

O livro tem ainda um apêndice que reproduz A História de Barba-Azul de Perrault e fornece breves resumos a respeito de alguns serial killers modernos que Cébrian considera "herdeiros" de De Rais. A meu ver, O Marechal das Trevas vale a leitura principalmente pela informação histórica que oferece (e ultimamente, não sei por que, ando com uma curiosidade louca a respeito da Guerra dos Cem Anos, de modo que veio a calhar), mas, claro, também é recomendável para os que se interessam pelo estudo dos distúrbios mentais e suas manifestações, inclusive as mais violentas e assustadoras. Mas mesmo esses precisarão ser fortes para encarar a última parte do livro.