Zumbis são provavelmente os menos glamourosos dentre os monstros que têm povoado histórias de terror em livros, quadrinhos e filmes já há décadas ou, em alguns casos, séculos. Não têm o charme sinistro dos vampiros, nem a aura de selvageria e mistério dos lobisomens, e tampouco consta que sofram com dilemas existenciais como os que afligiam o angustiado e carismático monstro de Frankenstein. Como são lentos e descoordenados, os zumbis nem mesmo costumam ser tão perigosos assim; quando eu jogava Neverwinter Nights, adorava quando apareciam zumbis, porque eles representavam uma boa chance de ganhar pontos de experiência correndo pouco risco: bastava ficar a uma distância segura e usar o arco ou a besta, enquanto os seres patéticos, com seu passo lerdo, tentavam inutilmente aproximar-se o suficiente para atacar. É verdade que, nesse jogo, isso era possível porque os zumbis eram vulneráveis a ataques comuns, o que em outros lugares não acontece: em geral, eles nem tomam conhecimento de tiros ou ataques com armas cortantes ou perfurantes: só podem ser destruídos com fogo e, às vezes, com um golpe certeiro na cabeça, que destrua o cérebro. Sem contar que, mesmo no Neverwinter Nights, se os zumbis aparecessem em grande número, ou em terreno que dificultasse a esquiva, meu personagem estaria em apuros…
Em sua origem, no folclore do Haiti (e, segundo algumas fontes, em certos fatos lá registrados), um zumbi é alguém que, enfeitiçado por um houngan (feiticeiro vodu), adoece e "morre, só que não": o sujeito parece morrer, porém, depois do sepultamento, quando os parentes do suposto defunto já foram embora, o feiticeiro abre o túmulo e retira a pessoa, que, reanimada, mas reduzida a um comportamento de autômato, pode ser, daí em diante, usada como escrava. Contam-se histórias sobre plantações inteiras de cana-de-açúcar que eram, e talvez ainda sejam, conduzidas exclusivamente com mão-de-obra zumbi!… A ciência já investigou e comprovou que a poção dos houngans, preparada com extratos de diversas plantas e o veneno de uma espécie de sapo encontrada no Haiti, pode induzir um tipo de transe, que, mediante a administração de novas doses periódicas, permitiria, em teoria, manter uma pessoa indefinidamente em estado "zumbificado". Como toda lenda, a dos zumbis tem seu fundo de realidade.
Quando os autores de terror, e particularmente o cinema, se apropriaram do conceito, naturalmente tiveram que fazer algumas adaptações. Os zumbis que viraram astros de produções como A Noite dos Mortos-vivos (1968) de George Romero, e de incontáveis outras que se seguiram, eram uma coisa diferente: mortos realmente mortos que se levantam e andam por aí em plena decomposição, fedendo e perdendo pedaços – porque isso tinha um potencial de horror muito maior que mostrar uma multidão de haitianos de aparência perfeitamente comum, só que abobados e de olhos vidrados. Não sei de quem foi a ideia de atribuir aos zumbis um apetite insaciável por carne humana ou em qual obra isso apareceu pela primeira vez, mas ficou quase tão obrigatório quanto o fato de os vampiros beberem sangue. E, tal como acontece com vampiros, lobisomens et alii, cada autor que decide incluir zumbis em sua obra tem liberdade para adotar a versão "clássica" ou para fazer as modificações que julgue necessárias. Não foi diferente com Rodrigo de Oliveira, autor paulista responsável pela série (mais uma série…) da qual O Vale dos Mortos é o piloto. Parece que a saga foi inspirada por um pesadelo que ele, fã confesso de filmes de terror, teve e nunca mais esqueceu.
Oliveira utiliza-se de um mix de profecias ligadas ao final dos tempos: o trecho do Apocalipse que fala de uma estrela chamada Absinto, e os escritos do guru gnóstico V. M. Rabolú sobre "Hercólubus", um suposto planeta gigante que, segundo ele, estaria em rota de colisão com a Terra. Absinto e Hercólubus seriam, então, o mesmo astro; naturalmente que o autor editou o texto bíblico para moldá-lo a suas necessidades, catando os versículos adequados e deixando o restante de fora, além de mudar alguns detalhes. A estrela citada no Apocalipse poderia, de fato, ser um planeta ou um cometa; é muito provável que no século II, quando esse último livro da Bíblia foi escrito, a maioria das pessoas se referisse a qualquer corpo celeste como sendo uma "estrela". No livro sagrado, o papel de Absinto consiste em contaminar as águas, tornando-as amargas (seria uma profecia sobre a poluição?). O simbolismo contido no nome revela-se quando se sabe seu significado: hoje em dia, quem ouve falar em "absinto" geralmente pensa numa bebida verde com um teor alcoólico absurdo, mas o nome pertenceu primeiro a uma erva, também conhecida como losna, cuja principal característica é o sabor amargo, e que está entre os ingredientes da tal bebida.
Rabolú publicou um livro a respeito de Hercólubus em 1998, mas
já discorria sobre o assunto em suas conferências anos antes. Ele o descreveu como sendo 20 vezes maior que a Terra (para efeitos de comparação, Júpiter, o maior planeta do nosso sistema solar, tem 11 vezes o diâmetro e 318 vezes a massa da Terra) e decidiu (essa é bem a palavra) que ele iria colidir com o nosso pobre planeta em fins do século XX. Claro que, nessa teoria, faltava uma explicação plausível para o fato de que o tal Hercólubus, sendo tão grande e estando relativamente próximo, a ponto de poder nos abalroar apenas alguns anos depois de feito o anúncio, nunca tivesse sido descoberto pelos astrônomos, que já observaram e estudaram astros muito menores, situados a distâncias enormemente maiores. Porém, é bem sabido que falta de coerência científica nunca foi impedimento para que previsões catastróficas ganhassem popularidade (na verdade, boa parte do apelo do movimento gnóstico junto ao seu público está justamente em pintar todos os cientistas como crianções que não sabem de nada). Na ficção de Rodrigo de Oliveira, Hercólubus, ou Absinto, como queiram, é por fim descoberto pela ciência em 2017, vindo, de fato, em nossa direção, o que gera pânico em escala mundial. Depois de meses de cálculos, entretanto, os astrônomos tranquilizam a população, declarando que o gigantesco viajante espacial irá passar próximo, mas sem colidir com a Terra ou causar-lhe qualquer perturbação significativa. Além disso, dará um espetáculo nunca visto, mostrando-se visível no céu a olho nu. O momento de maior proximidade é previsto para 14 de julho de 2018, quando o planeta poderá ser visto com um diâmetro aparente duas vezes maior que o da lua cheia. E, agora que se sabe (ou, ao menos, se acredita) que não há perigo, o estranho visitante celeste passa a causar curiosidade e fascínio.
A parte sobre Absinto serve como uma espécie de introdução. Para começar a história propriamente dita, Oliveira vale-se de um recurso que, por mais que seja utilizado, parece não perder a eficácia: apresentar alguns fatos comuns da vida de pessoas comuns. O contraste funciona como uma lente de aumento para potencializar o horror quando ele finalmente começa, além de deixar subentendida aquela indagação inquietante: se esse horror pegou de surpresa essas pessoas que lembram tanto nós mesmos, o que garante que algo igualmente terrível não possa acontecer perto de nós?
E as pessoas comuns em O Vale dos Mortos são o casal Ivan e Estela. Os dois trabalham na área de tecnologia da informação e moram com seus dois filhos pequenos em São José dos Campos, uma das maiores cidades do estado de São Paulo, a apenas 80 quilômetros da capital. Tudo começa num sábado, 14 de julho de 2018, que, exceto pela previsão astronômica da máxima aproximação de Absinto, parece ter tudo para ser apenas mais um sábado na vida dessa família. Por algumas páginas, a sensação é a de que poderíamos estar lendo sobre nossas próprias vidas, ou sobre as de inúmeras pessoas que conhecemos: o casal e as crianças acordam em seu confortável apartamento, tomam seu café da manhã e saem – sábado é o dia de fazer compras para a casa e passear. Quem conhece ou já passou por São José dos Campos reconhecerá as ruas e os lugares mencionados: tudo existe mesmo.
Quando os quatro estão se preparando para almoçar na praça de alimentação do shopping Centervale, o mundo que conhecem repentinamente se desintegra. Sem mais nem menos, a maior parte das pessoas no local perde os sentidos, para logo em seguida despertar – ou assim parece. A reação inicial de alívio dos demais ao verem seus parentes e amigos voltarem a se mover é rapidamente substituída pelo horror, quando fica evidente que aquilo que se levantou não são mais as pessoas que eles conheciam, e sim zumbis desprovidos de mente, cujo único impulso é o de atacar e devorar não apenas seres humanos, mas qualquer criatura viva que encontrem pela frente; por alguma razão, eles não atacam uns aos outros, mas quem for mordido por um deles se transforma em zumbi também. Ivan e Estela fazem o óbvio: pegam os filhos (por sorte, ou por outro motivo mais misterioso, nenhum membro da família foi afetado pelo fenômeno) e caem fora daquele lugar, mas logo descobrem que a catástrofe não é só lá. A cidade toda, e, como fica-se sabendo depois, o país e o mundo, estão do mesmo jeito.
Depois de vagarem desesperados pela cidade durante algum tempo (pois, como descobrem, voltar para casa não só é impossível como seria provavelmente inútil), eles decidem buscar abrigo no shopping Colinas, que estava fechado naquele fim de semana para reparos, de modo que é possível que esteja relativamente livre de zumbis, além de garantir um suprimento de alimentos e outros itens básicos para a sobrevivência naquele mundo que enlouqueceu de repente. Lá, Ivan e sua família têm seu primeiro contato com outros sobreviventes, formando o que se tornará a semente de uma comunidade de refugiados. Com o tempo, o grupo compreende que, embora ali no shopping eles disponham de comida, conforto e de uma relativa segurança, não podem permanecer entocados para sempre: têm o dever de procurar por outros sobreviventes, para prestar a ajuda que puderem e começar, aos poucos, a tentar reconstruir algo que se assemelhe a uma sociedade. Ivan descobre que é um líder natural, mas descobre também que sua tarefa, que ele nunca esperou que fosse ser fácil, será muito mais complicada do que poderia ter imaginado, pois, além de todos os desafios oferecidos por aquele cenário apocalíptico, precisa também lidar com conflitos internos e com a personalidade difícil de alguns membros do grupo.
Seria preciso muita boa vontade para dizer que O Vale dos Mortos é um livro bem escrito: há um inconfundível ar geral de amadorismo, o que é natural, considerando que se trata do romance de estreia do autor. Oliveira bem que tenta dar alguma complexidade a seus personagens, procurando fazer com que demonstrem diferentes facetas de suas personalidades de acordo com a situação, e sofram transformações ao longo da narrativa, mas não obtém muito sucesso nisso. Há várias partes – umas curtas, outras longas – que poderiam ser reescritas, e, em alguns casos, suprimidas, sem prejudicar a história. Só para dar um exemplo, quando os protagonistas ainda estão no shopping Centervale, bem na hora em que fenômeno mundial acontece, há um trecho que imagino que pretenda ser trágico, sobre uma jovem sendo atacada pelo zumbi que até há pouco era seu noivo:
Uma moça de cabelos lisos e loiros, de uns vinte anos de idade, estava caída no chão, se debatendo, com um homem sobre ela. Ele tinha sangue nos lábios e mastigava um pedaço de carne humana, que arrancara do antebraço da jovem.
– Vítor, não! Sou eu, sua noiva! Pare com isso, por favor! – ela gritava, desesperada, tentando empurrar o homem com quem pretendia se casar, ter filhos, construir uma vida, e a quem procurara ajudar apenas alguns segundos antes.
(…) Vítor pareceu indeciso por um instante sobre o que fazer, mas decidiu rápido. Levou as duas mãos à camisa da noiva e puxou para os dois lados de uma vez, arrancando todos os botões, deixando os seios fartos e brancos à mostra. Ato contínuo, mordeu o mamilo esquerdo, arrancando um naco de carne, destruindo um seio que ela sonhava que um dia serviria para alimentar uma vida. Dia esse que nunca chegaria. Aquele corpo jamais geraria um bebê. Ela nunca entraria numa igreja vestida de branco, nunca mais faria amor com seu noivo. Todos os sonhos daquela mulher foram ceifados naquela tarde.
Terei sido o único leitor a ter a forte sensação de que essa cena poderia funcionar muito melhor sem o melodrama barato?
Ainda focando nos aspectos estruturais, eu passei o livro todo esperando pela explicação de que cargas d'água a chegada de Absinto teve a ver com a transformação de dois terços da população mundial em zumbis, e, não menos inquietante que isso, do motivo pelo qual o terço restante foi poupado. A espera foi em vão: explicação alguma é oferecida, apenas uma cena misteriosa na qual sugere-se que o planeta gigante, de alguma forma, "sugou" as almas das pessoas transformadas. Quanto ao porquê e ao como, só nos resta especular, ou então acreditar que as respostas virão no próximo volume, que nem tenho tanta certeza assim de que eu vá querer ler. De qualquer forma, para não ser injusto, é preciso reconhecer que o livro tem pelo menos uma grande sacada: o autor teve uma excelente ideia quando pensou em incluir as cenas que mostram chefes de governo de vários países (detalhe: todos pessoas reais) sendo vitimados pelo apocalipse zumbi, o que deixa claro para os leitores que o colapso da sociedade foi total, que todas as instituições ruíram, e que, portanto, é inútil esperar por qualquer tipo de socorro por parte dos governos, das forças armadas ou de qualquer órgão público. Tirando isso, não há nada de muito diferente de várias outras obras que retratam catástrofes semelhantes.
(E convenhamos: ler sobre o ex-presidente Lula, transformado em zumbi, devorando – literalmente – Dilma Rousseff, ainda presidenta em 2018, é, no mínimo, bizarro.)
O livro apresenta muitos problemas de português, o que não é responsabilidade apenas do autor, mas também da editora, uma desconhecida Faro Editorial. Talvez ela nos surpreenda positivamente, fazendo uma boa revisão no texto antes de lançar a próxima edição, o que as editoras em geral não fazem: novas edições, via de regra, são na verdade meras reimpressões, pois é raro alguma falha ser corrigida de uma edição para a seguinte.
Por último, e para crédito do autor estreante, é preciso reconhecer que O Vale dos Mortos, apesar de todos os defeitos, não se sai mal no quesito entretenimento, que, no fim das contas, é o mais importante. A leitura flui bem e o leitor, ao virar cada página, quer realmente saber o que vai acontecer a seguir, então eu diria que o essencial foi alcançado, e não há razão para duvidar de que Rodrigo de Oliveira ainda possa se aprimorar bastante como escritor e produzir outras histórias bem superiores a esta primeira.
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