segunda-feira, novembro 22, 2021

O Ano em que a Terra Parou

Seguidor

Acalme-se e preste atenção
Faça o que disserem,
o que todos os outros fazem.
Vende seus olhos e pule de cabeça
Não questione, não pense
Não exista.

A verdade é real demais para você.
Ela estraga a imagem, não é?
Não queira acreditar, não queira ver,
pois a realidade é o inimigo.

Um cenário nascido de
imagens censuradas na TV
Um mundo construído a partir
de uma realidade censurada.

É tão simples apenas entrar na linha
Faça o que disserem,
o que todos os outros fazem.
Não conserte o que está errado,
apenas faça brilhar o que é legal.
Não questione, não pense
Nem mesmo abra a boca.

Cada história cortada para caber
na tela e nos olhos do público
Transformada para caber
na sua mente pequena e frágil.

É longe demais...

Certeza inquestionável,
uma fé cega na autoridade
e uma confiança que vai
mantê-lo subjugado.

É longe demais... 


                                        Machinae Supremacy
                                        Follower
                                        Álbum: Arcade (2003)

  *       *       *

Este blog sempre foi muito mais voltado para a literatura de ficção, e, embora algumas obras de não-ficção tenham eventualmente ganho espaço (como O Culto do Amador, de Andrew Keen, e, mais recentemente, os Manuais Politicamente Incorretos), procuro comentar temas ligados a política e sociedade apenas quando eles se imiscuem na literatura – o que inevitavelmente acontece: a coisa mais magnífica a respeito da literatura é sua capacidade de retratar (e transformar em objeto de reflexão) todo e qualquer aspecto da experiência humana, de modo que esses não seriam exceções. De qualquer forma, há momentos em que um tema se impõe, e assim foi com O Ano em que a Terra Parou, livro que praticamente me atropelou e me manteve num estado reflexivo durante vários dias. Preciso esclarecer, a priori, que meu conhecimento sobre os temas tratados pelo autor Luciano Trigo não é profundo, e estou ciente disso; na verdade, vai pouco além daquilo que qualquer pessoa minimamente bem informada e sem antolhos presos na cara pode ver todos os dias nesses tempos estranhos e ruins que atravessamos, mas concluí que escrever a respeito desse livro será bom para mim, porque me ajudará a organizar as ideias. É inevitável que em algum momento eu escreva alguma bobagem e/ou acredite ter entendido algo que, na verdade, é muito diferente de como eu imagino; tudo o que posso dizer em minha defesa é que mesmo esses tropeços terão sido motivados por um esforço sincero para entender uma realidade muito, muito confusa. Caso meus estudos posteriores me façam identificar algum erro, volto e corrijo. E, se por acaso alguém ler este post e se beneficiar de algum ponto dele, ou eventualmente chegar a ler o livro por causa do que vou dizer, melhor ainda.

Quem lê o título O Ano em que a Terra Parou pensa, é claro, em 2020, quando a explosão da pandemia de COVID-19 e suas consequências viraram de pernas para o ar a vida da maioria das pessoas em todos os países, e, de fato, o assunto é tratado nestas páginas, mas não é o assunto principal do livro, e também não será o meu aqui, pois não quero deixar o texto exageradamente longo e há outros pontos abordados por Trigo sobre os quais tenho bem mais a dizer. O subtítulo, Polarização da política e a escalada da insanidade, dá uma ideia de quais são. O livro, publicado no início de 2021, é baseado em vários artigos sobre política e sociedade que o autor escreveu ao longo do ano anterior.

Vivemos tempos muito estranhos, mas não dá para dizer que não fomos avisados. George Orwell, em seu 1984 (cuja primeira edição é de 1949) previu uma sociedade na qual a simples constatação da realidade não seria mais permitida: nela, as coisas só teriam permissão de existir, ou de ser desta ou daquela forma, com a condição de se coadunarem com a ideologia dominante – e é exatamente o que acontece hoje. A diferença é que o mundo previsto por Orwell era mais sincero: a ideologia era imposta, na maior parte das vezes, de maneira franca, por meio de uma repressão violenta de qualquer visão discordante. Hoje, por outro lado, o que vemos é uma miríade de grupos e movimentos que invariavelmente apregoam defender a liberdade, o respeito, a democracia e o amor – e, em nome da liberdade, do respeito, da democracia e do amor estão sempre prontos a lançar ataques virulentos e covardes contra qualquer um que discorde deles, ou que simplesmente não seja como eles acham que deveria ser. Movimentos que afirmam defender a dignidade dos negros, na verdade só estimulam o ódio contra os brancos. O feminismo há muito tempo que deixou de lutar por igualdade de direitos para as mulheres (se é que esse já foi alguma vez seu objetivo); hoje só faz reclamar por privilégios e, talvez mais importante, tentar desmoralizar os homens e ensinar o maior número possível de garotas a odiá-los (dando lugar, entre outras coisas, ao curioso fenômeno das adolescentes ou jovens universitárias que dedicam seus dias a entupir as redes sociais com frases feitas de apelo misândrico como "morte ao pênis" e "abaixo o patriarcado", usando o smartphone que ganharam do papai). Grupos "LGBT" propagam (em geral de forma velada, mas às vezes nem se dão ao trabalho) que heterossexuais são escória. De tudo isso se conclui que, se você é homem, branco e heterossexual, já está errado pelo mero fato de existir, e sua única possibilidade de se redimir um pouco (porque totalmente é impossível) é pedir desculpas diariamente por ser o que é, reconhecer que nenhum homem branco hétero merece qualquer tipo de respeito ou consideração, e ainda ouvir quieto as pessoas papagaiarem que você é "privilegiado" e "opressor". E a grande mídia abraça com entusiasmo toda essa ideologia, o que explica por que já não se pode confiar nem mesmo em veículos de imprensa que tinham outrora uma reputação sólida. Hoje, noticiar a realidade já não tem importância; o que importa é corroborar as narrativas que estiverem na ordem do dia.

Em meio a esse cenário, a internet tem um papel ambivalente. Como não se pode mais confiar na mídia mainstream, o que nos resta é recorrer a sites, blogs e vídeos produzidos de maneira independente para buscar informações e interpretações menos tendenciosas (não que isso seja fácil, pois também não faltam produtores independentes de conteúdo alinhados com essa agenda "progressista"). Ao mesmo tempo, as redes sociais se transformaram no paraíso dos haters, pessoas cuja razão de viver consiste em destilar ódio contra qualquer um que seu movimento identitário favorito rotule como O Mal. E, é preciso reconhecer, esses movimentos sabem como explorar a necessidade básica que os seres humanos sentem de fazer parte de algo, de pertencer a uma "tribo". Como, ao longo das últimas décadas, instituições como religião e família, que, historicamente, sempre cumpriram o papel de ajudar o indivíduo a achar seu lugar no mundo, vêm sendo sistematicamente demolidas, a militância digital tornou-se, para muitas pessoas – quase sempre jovens – a única âncora que encontram, a única coisa que lhes proporciona um simulacro de sentido e evita que sintam que suas vidas são um completo desperdício. Escondidas por trás da tela de um computador (hoje em dia, aliás, quase sempre do celular), multidões de pessoas medíocres e covardes se deliciam a praticar o linchamento virtual de quem ousar levantar alguma objeção ao discurso hegemônico – discurso hegemônico esse que sempre se apoia no pretexto de defender as "minorias". O mais assustador é ver que um número enorme dessas pessoas realmente não percebem o absurdo da contradição em que caem: escrevem "textões" ou gravam longos vídeos pedindo por uma sociedade mais "plural" e "inclusiva", condenando os preconceitos e o "discurso de ódio", para, um instante depois, liberar todo o seu ódio contra qualquer um que pense diferente sobre qualquer assunto, ou que meramente não faça parte de nenhuma das "minorias" pelas quais essas pessoas acreditam estar lutando. Não basta, por exemplo, defender os negros: se você insinuar que os brancos também merecem respeito, você é um "racista" desgraçado e se transforma automaticamente num alvo; daí em diante, enxames de heroicos militantes, defensores incansáveis da liberdade e da democracia, começarão a bombardear suas redes sociais com milhares de mensagens xingando-o de tudo em que conseguirem pensar e desejando abertamente a sua morte – é o que chamam de "cancelamento". Para alguém que é apenas um cidadão anônimo, com um trabalho comum, pode parecer que esse tipo de perseguição cibernética não tem um potencial de dano tão grande assim (desde que você seja adulto e tenha uma cabeça forte): basta esperar que a "galera do bem" se canse de ofendê-lo e ameaçá-lo e parta em busca do próximo alvo. Já para pessoas públicas, que dependem de sua imagem para sobreviver, o buraco é bem mais embaixo, já que o "cancelamento" não move apenas indivíduos isolados: não faltam exemplos de atores, músicos, jornalistas etc. que perderam contratos e patrocínios, ficando, na prática, impossibilitados de trabalhar, simplesmente por terem expressado alguma opinião conservadora ou de outra forma impopular, o que os grandes conglomerados de mídia não podem tolerar, para não ficarem mal na foto com o pessoal lacrador, que será sempre uma fatia expressiva de seu público, e, dependendo do segmento, forma com frequência a maioria dele. Pensando bem, dependendo de onde aquele cidadão anônimo de que eu falava há pouco trabalhe (leia-se: dependendo de quem seja o seu empregador), virar alvo da militância pode acabar em desastre também para ele.

Novamente é inevitável pensar em George Orwell. Winston Smith, o protagonista de 1984, tem um diário no qual registra pensamentos esparsos – muitos deles, coisas que o Partido consideraria subversivas, e por isso ele mantém o segredo. Espero que não se importem se não cito com exatidão literal, pois li o livro há mais de 30 anos e nunca o reli (por sinal, talvez esteja na hora), mas lembro que uma das anotações de Winston é, na ideia geral, assim: "Liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isso, tudo o mais decorre." Para a minha versão adolescente, o sentido dessas palavras não era muito claro; hoje é, graças, em parte, a um outro autor, Michael Ende, que escreveu que "os homens vivem de ideias, e as ideias podem ser dirigidas". Se isso é verdade para o indivíduo, também o é para a sociedade, que é feita de indivíduos. E hoje vivemos um tempo em que a liberdade de dizer que dois e dois são quatro nos foi tirada. Não se pode mais olhar para as coisas, analisá-las por meio dos sentidos e da razão, e concluir "isto é assim". Agora, é a ditadura do politicamente correto que decide como as coisas são e como não são, e, se os fatos refutarem a ideologia, então "cancelam-se" os fatos; simples assim. Dentre inúmeros exemplos possíveis, virou "fascismo" e "discurso de ódio" afirmar que um ser humano com pênis e testículos é um homem, e um ser humano com vagina e ovários é uma mulher. Agora cada um decide o que quer ser, e todo o restante da sociedade precisa acatar sua doideira em vez de acatar a realidade – e, se você não aceita, merece ser "cancelado", porque é um "fascista", o que virou um xingamento-padrão, sempre na ponta da língua de milhões de pessoas que não têm a menor ideia do que essa palavra significa. Chamam de fascista qualquer um de quem não gostem por qualquer motivo; é o equivalente pós-moderno de "feio e bobo".


Isso me leva a outro ponto abordado por Trigo: a total dominação do ambiente universitário pela esquerda, que abandonou o discurso clássico da "luta de classes" (que não cola mais, nem mesmo no meio acadêmico) para adotar as pautas identitárias mencionadas acima. Dizendo de outro modo, as faculdades se tornaram essencialmente antros de lacração – todas elas, mas em especial as de ciências humanas, cuja esfera de estudos oferece mais espaço a essas pautas – e, hoje em dia, são pouca coisa além disso, o que vem agravar um problema que já existia antes: o baixíssimo nível de conhecimento com que a maior parte dos alunos do ensino superior sai das faculdades. Pode não ser politicamente correto dizer isso, mas o fato é que nem todo mundo nasceu para o trabalho intelectual; porém, ao longo dos últimos dois séculos mais ou menos, um diploma universitário passou a ser um acessório indispensável para que uma pessoa alcançasse sucesso profissional e financeiro (é verdade que hoje em dia um diploma não garante mais nada, mas funcionava assim até recentemente). Isso fazia com que milhares de pessoas sem qualquer talento para trabalhos acadêmicos, ou sequer interesse por eles, seguissem qualquer caminho torto que fosse necessário para obter o famigerado diploma; adquirir conhecimento não era uma preocupação. E hoje está ainda pior: com uma ou outra exceção, o universitário brasileiro (e os de outros países) sai da faculdade sem saber interpretar um texto simples, que dirá escrevê-lo, mas plenamente capacitado para repetir um discurso pronto cheio de palavras compridas e levantar mil e uma bandeiras "em prol das minorias", sem enxergar que está agindo como um idiota útil para movimentos que na verdade nunca ligaram a mínima para mulheres, negros, homossexuais ou o que for, e sim para seus próprios objetivos puramente políticos. E o problema nem é o fato de o estudante ser exposto a pautas esquerdistas – é o fato de ele ser exposto exclusivamente a pautas esquerdistas, sem nenhum contraponto, nenhuma possibilidade de comparar ideias e informações para formar a própria opinião. Há todo um aparato cultural, dentro e fora das universidades, dedicado a inculcar nas cabeças ainda em formação dos jovens a noção de que essa é a única forma aceitável de pensar e que, se alguém vier com qualquer discurso diferente, a coisa certa a fazer é tapar os ouvidos e xingar (aos berros, de preferência) essa pessoa de fascista, sem nem querer saber o que ela tem a dizer e se faz algum sentido ou não. É claro que jovens assim sempre existiram, pois a juventude é, por definição, uma fase da vida em que sabemos pouco e temos um monte de certezas (quanto mais uma pessoa sabe, menos certezas ela tem, mas isso é algo que ela só compreende quando fica mais velha; algumas, nem mesmo então), mas talvez seja a primeira vez na História que vemos isso numa escala tão absurdamente grande e com tal potencial destrutivo.

É fácil notar, olhando-se para o passado e o presente, que, enquanto muitas coisas mudam constantemente de uma época para outra, algumas permanecem sempre iguais, e uma destas é o fato de que, quando algum projeto social mal-intencionado precisa de uma numerosa massa de manobra, são sempre os jovens o alvo preferencial. Eles têm uma tendência natural ao entusiasmo (que pode facilmente se converter em fanatismo), e, como ainda estão construindo suas identidades, também têm inseguranças; o anódino mais comum para essa sensação angustiante e crônica consiste em se verem aceitos num grupo – e, se o grupo que encontrarem for alguma militância progressista, está feita a porcaria. Em geral eles são presas fáceis, já que esses movimentos, além de tudo, dão ao jovem a sensação de ter o poder de fazer alguma diferença no mundo. Além disso, por ainda não terem tido tempo de adquirir um grande conhecimento do mundo, os jovens tendem a não enxergar a complexidade das coisas e a ver tudo de maneira binária: tudo é preto ou branco, bom ou mau, "nós" ou "os outros"; ou seja, é mais fácil convencê-los a aderir a uma determinada visão de mundo (por mais incoerente e estúpida que seja) do que seria convencer um adulto. É claro que mesmo um adolescente pode já ter princípios firmados e conceitos morais bem definidos, dependendo da educação que tenha recebido. No passado, movimentos como o nazismo e o comunismo precisaram de muito trabalho para remodelar todas aquelas mentes jovens; já para os movimentos esquerdistas identitários de hoje, está muito mais fácil, porque a maioria da juventude atual recebeu pouca ou nenhuma formação moral e só tem noções vagas e "elásticas" a respeito de certo e errado. Também há o fato de que, graças à educação "inclusiva" e à tecnologia que nos dá tudo fácil e na hora, no século XXI estamos testemunhando um fenômeno inédito na história: crianças e jovens com QI mais baixo que o de seus pais e avós. Esse conjunto de fatores talvez explique a aparente incapacidade de muitos militantes de rede social para compreender, por exemplo, que não apoiar o Black Lives Matter, que promove terrorismo e incita a violência, não faz de ninguém um racista; que ser contra o feminismo, que tem como único resultado prático transformar mulheres em criaturas azedas e histéricas, cheias de ódio, não significa ser machista; que não é preciso ser socialista ou comunista para se preocupar com os pobres. Não: se tecer a menor crítica a qualquer um desses movimentos, você é um "fascista" e merece a morte. Enquanto isso, naturalmente, eles podem dizer o que quiserem de quem quiserem, pois, afinal, a liberdade de expressão é sagrada – a deles, é claro. E essas são as pessoas que estarão conduzindo o mundo daqui a alguns anos… Sem querer ser apocalíptico demais (mas já sendo), acho que estamos vendo o palco armado para a instauração de uma nova forma de totalitarismo que o próprio Orwell provavelmente nunca imaginou, nem em seus piores pesadelos.

(Como seria inevitável acontecer num quadro como o já descrito, os vários discursos "em prol das minorias" volta e meia entram em colisão, o que coloca as militâncias numa sinuca de bico. O movimento negro [esse sim, racista até não poder mais] e o feminismo, por exemplo, deveriam ser aliados naturais, já que ambos têm os mesmos objetivos – fomentar a discórdia e criar conflitos –, mas como se supõe que eles devam se posicionar num caso como o da mulher que deu piti dentro de uma daquelas megapadarias de São Paulo e, durante seu surto, ofendeu e agrediu, fisicamente inclusive, vários funcionários, alguns deles negros e/ou gays? Havia seguranças e policiais no local, mas nenhum se atreveu a fazer nada, pois sabiam que poderiam ser presos por encostar a mão numa mulher, não importa o que ela estivesse fazendo [ela também sabia disso, como se nota no registro em vídeo que um funcionário fez do incidente – confiram este vídeo do Canal Tragicômico, que, além do registro em si, traz comentários pertinentes sobre o caso e sobre os absurdos da cultura da lacração em geral; por sinal, esse canal é excelente, considerem a possibilidade de inscrever-se]. Nessa situação, o que um militante que honra sua conta no Twitter deve fazer? Por um lado, ela é mulher e, portanto, é intocável e está sempre certa. Por outro, está tendo condutas racistas e homofóbicas! Apesar de tudo, não deixa de ser engraçado ver as múltiplas cabeças da hidra identitária lutando entre si.)

(Por mais que eu fosse adorar receber o crédito por bolar essa magnífica imagem comparando a esquerda identitária a uma hidra com várias cabeças, preciso assinalar, por uma questão de honestidade, que não fui eu o autor da façanha, e também não lembro quem foi: ouvi isso em algum outro vídeo no YouTube.)

Não será novidade para ninguém que siga este blog (ou que tenha, no mínimo, dado uma olhadela nele) a minha admiração pela civilização romana, mas nem por isso fecho os olhos ao fato de que muitas de suas conquistas só foram possíveis graças ao expediente maquiavélico (palavra que não existia naquele tempo, mas que serve bem) do divide et impera – dividir para dominar. Em geral não era preciso fazer muita coisa para promover a divisão entre os povos da época, que, em sua maioria, se organizavam em tribos, frequentemente inimigas entre si, mas, quando necessário, os romanos eram hábeis em achar maneiras de jogar essas tribos umas contra as outras, sabendo que assim seria muito mais fácil conquistá-las do que se todas elas se pusessem lado a lado contra o invasor. A esquerda do século XXI (ironicamente, financiada pelo grande capital internacional, aquele mesmo que os marxistas abominavam e queriam combater) também conhece esse método, conta com todo o poder da mídia a seu favor, e é isso o que ela tem feito e continua fazendo: criar o máximo possível de divisões dentro da sociedade, jogando negros contra brancos, mulheres contra homens, gays contra héteros e assim por diante, pois, dessa forma, a sociedade como um todo tem muito menos condições de oferecer resistência a um plano de dominação cultural em grande escala. Os movimentos que compõem essa esquerda identitária não têm o menor interesse no fim do racismo, do sexismo ou da homofobia, porque, se essas formas de segregação e discriminação desaparecessem, os tais movimentos perderiam sua justificativa para existir. O que eles realmente fazem é açular cada vez mais os conflitos, a fim de sempre terem munição para seus discursos e transformar isso em ganho político – da mesma forma como não é do interesse da maioria dos políticos do Brasil erradicar a miséria em meio à população, e sim administrá-la, de modo a sempre contar com uma massa de eleitores pobres e desesperados que vendam facilmente seus votos em troca de qualquer pequeno benefício financeiro que lhes permita sobreviver por mais um mês. Trigo dedica algumas páginas a isso também.

O Ano em que a Terra Parou é leitura altamente recomendável para todos os que já perceberam o quanto o mundo mudou nos últimos poucos anos, notaram que essa mudança não foi para melhor, mas ainda estão tentando entender o que aconteceu, o que ainda está acontecendo, e como as coisas ficaram e podem ficar nos próximos anos. Ou seja, é recomendável para muita gente. Para mim, ajudou muito a interpretar certos fenômenos que eu já tinha observado, mas ainda não tinha compreendido completamente o que podiam significar, e também a fazer as ligações entre certas coisas e certas outras – e sempre entendemos melhor a situação geral quando conseguimos estabelecer ligações entre fatos que, à primeira vista, podem parecer não ter nada em comum. Naturalmente que não concordo com todos os pontos do autor (com a grande maioria, mas não com tudo), mas, concordando ou não, posso atestar que ele nunca falha em estimular o leitor a refletir. Há muito mais que eu poderia comentar sobre os assuntos em que já toquei acima e sobre outros que estão presentes no livro, mas o texto já está mais longo do que eu pretendia. Além disso, creio que não faltarão oportunidades de abordar esses assuntos – mais oportunidades do que eu gostaria, já que, para infelicidade nossa, esses fenômenos estão aí, e ignorá-los é inútil.