quinta-feira, dezembro 19, 2019

O Manto Sagrado

Depois de os soldados crucificarem Jesus, tomaram as suas vestes e fizeram delas quatro partes, uma para cada soldado. O manto, porém, todo tecido de alto a baixo, não tinha costura. Disseram, pois, uns aos outros: Não o rasguemos, mas lancemos sorte sobre ele, para ver de quem será. Assim se cumpria a Escritura: Repartiram entre si as minhas vestes e lançaram sorte sobre o meu manto. Isso fizeram os soldados.

Jo 19, 23-24

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Todos os quatro Evangelhos mencionam o momento em que, tendo crucificado Jesus, os soldados romanos dividiram entre si as roupas que ele usava, mas apenas o de São João narra esse incidente com detalhes, talvez porque João, um adolescente na época, tenha sido o único dos evangelistas a ser testemunha ocular da crucificação do Filho de Deus. Lucas limita-se a um quase telegráfico "Eles dividiram as suas vestes e as sortearam", e Mateus e Marcos dizem o mesmo com pequenas variações. Só João se refere ao fato de que, depois de terem repartido entre si as peças menores usadas por Cristo, os soldados notaram que o item principal, o manto, era de boa qualidade, ainda que simples, e decidiram não fazer o óbvio, isto é, parti-lo em pedaços que também seriam distribuídos igualmente entre todos, para serem usados como pano para remendos, ou coisa parecida. Em vez disso, disputaram-no num jogo de dados.

Lloyd C. Douglas (1877-1951) contou certa vez que a ideia para escrever O Manto Sagrado surgiu quando, em 1940, já um escritor famoso (com obras, muitas vezes, de viés cristão), ele recebeu uma carta de uma leitora que perguntava se alguém sabia quem ganhou o manto naquele jogo ou o que foi feito dele. A questão é evidentemente complexa; consta que o manto que se supõe ter sido usado por Jesus esteve guardado em Constantinopla até o século IX, quando a imperatriz Irene o ofereceu de presente a Carlos Magno. A peça está hoje na basílica francesa de Saint-Denys de Argenteuil – quer dizer, temos a certeza de que se trata do mesmo manto que o rei dos francos recebeu; se é ou não o mesmo que teria um dia vestido Cristo, há controvérsia. Até o fiel mais devoto deve permitir-se uma dose de ceticismo quando se trata de relíquias: como dizia João Calvino, se se juntassem todos os supostos fragmentos da cruz de Jesus que eram venerados em igrejas Europa afora, o resultado seria madeira suficiente para construir um navio. E ainda que se trate mesmo do manto de Jesus, como saber por quais peripécias ele teria passado até chegar ao seu paradeiro atual? O Manto Sagrado trata-se, na maior parte, de ficção (sendo que o autor toma, inclusive, diversas liberdades históricas), mas, para sermos justos, existem poucos livros tão eficientes em capturar a atenção e a imaginação do leitor, em apresentar personagens cativantes e em fazer-nos mergulhar de cabeça em outra realidade a ponto de perder a noção do tempo. Enfim, um estupendo "virador de página", que, além disso, cumpre com louvor seu objetivo evangelizador (Douglas era pastor luterano) sem cair num didatismo tedioso que acabe afastando o leitor – pecado (ops…) que muitos romances inspirados na Bíblia cometem.

A história começa em Roma, seguindo o tribuno militar Marcelo Lucan Gallio. Como já mencionei em outros posts, os tribunos militares eram oficiais que se reportavam diretamente ao legado, ou seja, o comandante de uma legião, estando, por sua vez, acima dos centuriões. Em geral eram jovens de famílias abastadas e influentes, formados numa academia militar, mas sem experiência real de combate. Passando daí, havia tribunos e tribunos: enquanto alguns davam o seu melhor e arriscavam a vida participando ativamente de ações militares, outros apenas se aproveitavam das prerrogativas do posto. Marcelo, sinto dizer, tende mais para o segundo tipo; é filho de Marco Lucan Gallio, senador e homem de grande fortuna, e ainda mora na vasta e confortável villa da família, com os pais, a irmã adolescente, Lúcia, e um punhado de escravos. Está com 23 anos e, ao que tudo indica, articulando o início de sua carreira política, quando comete um infeliz deslize: num banquete, já com vinho demais na cabeça, ele cai no riso na hora errada e acaba ofendendo os brios do príncipe Gaio (ou Caio), enteado do imperador Tibério e responsável pela maior parte das decisões do governo desde que o imperador, já idoso, mudou-se de vez para seu palácio na ilha de Capri (já aí o autor tomou uma grande liberdade, mas voltarei a isso depois). Gaio já tinha queixas anteriores contra os Gallio, já que o pai de Marcelo, homem íntegro, por vezes o criticou em seus discursos no senado, por conta de suas extravagâncias e má administração. Ainda assim, a família possui muitas conexões e influência, de modo que o príncipe não pode permitir-se o tipo de vingança que teria preferido, mas faz o que está ao seu alcance: trança os pauzinhos para que o jovem tribuno perca a boa vida (e, mais importante, as possibilidades de ascensão política) que tem em Roma, destacando-o para comandar a guarnição de Minoa, uma cidade de pouca importância na Palestina. Marcelo, então, ruma para lá, acompanhado por Demétrio, seu escravo grego, que cumpre as funções de ajudante pessoal, guarda-costas, camareiro, leva-e-traz, e tudo o mais que for necessário.

Não dá para apontar um único protagonista em O Manto Sagrado; tanto Marcelo quanto Demétrio parecem se enquadrar nessa função. O tribuno já é um personagem interessante, mas o escravo é ainda mais. Filho de uma família próspera da cidade portuária grega de Corinto, é um rapaz instruído, criado para o orgulho, e agora reduzido à escravidão, depois que sua família caiu em desgraça devido ao envolvimento do pai com a resistência à ocupação romana. Ainda assim, ele teve mais sorte que muitos: o senador Gallio é um homem justo, e em sua casa os escravos são tratados de forma digna – sem prejuízo de uma disciplina rigorosa. Demétrio foi o presente que o senador deu ao filho quando este atingiu a maioridade (aos 17 anos, conforme a lei romana), e, nos seis anos que se passaram desde então, tem servido a seu jovem senhor com dedicação e lealdade. Marcelo, por outro lado, às vezes se esquece dos papéis de senhor e escravo: é nítido que Demétrio é seu melhor amigo.

Tenho escrito repetidamente, em diferentes posts, que o segredo do extraordinário sucesso do exército romano na grande maioria dos conflitos em que se envolveu em sua longa história era a sua disciplina férrea, e isso é fato, mas não significa que essa disciplina fosse igual sempre e em todo lugar, como Marcelo descobre. A guarnição de Minoa é uma espécie de depósito de inconvenientes, um bando desmazelado e indolente cujos oficiais tampouco têm moral ou sequer energia para tentar colocar as coisas nos devidos lugares – uma caricatura deprimente da eficiência e da ordem exemplares que caracterizam as outras guarnições romanas… Até a chegada do novo comandante. Mesmo sem experiência, Marcelo possui fibra, e não perde tempo para colocar a guarnição na linha.

O jovem Gallio, portanto, está desempenhando com excelência a missão que era para ser um castigo, quando chega a época da Páscoa judaica (lembrando que, naquele tempo, a Palestina era um país predominantemente judeu). Marcelo, sem dúvida, estudou História com seus tutores e depois na academia, mas os judeus eram um povo tão periférico na geopolítica da época, que aparentemente só foram vistos de passagem nas aulas. É seu segundo em comando, o centurião Paulo, que já está na região há muito mais tempo, quem lhe explica o que aquela festa significa no contexto da religião e dos costumes judaicos. Além de recordar sua libertação do cativeiro no Egito mais de mil anos antes, a Páscoa (palavra que vem de Pessach, 'passagem') é para os judeus um lembrete de que todo homem e mulher são peregrinos neste mundo, de que a vida material é algo passageiro, apenas um caminho que trilhamos rumo à eternidade – mas Marcelo foi educado conforme as correntes filosóficas mais em voga entre gregos e romanos cultos, e não acredita no sobrenatural ou em vida depois da morte. Para ele e seus pares, a fé nos deuses não passa de uma fantasia inofensiva que ajuda pessoas pobres e desfavorecidas a encarar as durezas da vida, algo que os "superiores" olham com indulgência e um certo divertimento. (O senador Gallio ensina ao filho que "há sempre alguma coisa de basicamente errado com um homem rico ou um rei que finge ser religioso"; ele está se referindo especificamente a Tibério, que, como já vimos em outro lugar, era adepto de todo tipo de crença e superstição esdrúxula – e, para homens como Gallio, religião é só uma superstição institucionalizada. Não há no livro menção à religião romana original, a do culto familiar – muito mais antiga, enraizada e importante para os romanos que a crença nos Olimpianos –, e é possível que Douglas, como quase todo mundo, nada soubesse a respeito; para sanar essa lacuna, recomendo o livro A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges.) A crença dos judeus, que adoram um Deus único, parece a Marcelo igualmente ingênua, com a desvantagem de não oferecer o mesmo campo fértil para a para a poesia, a literatura e as artes, como a religião greco-romana.

O importante no momento, porém, é que, durante a Páscoa (que, entre os judeus, dura toda uma semana), a cidade de Jerusalém recebe multidões de peregrinos, ficando apinhada, e, é claro, qualquer lugar onde se reúna muita gente torna-se propício a agitações, de modo que, enquanto dura a festa, todas as guarnições romanas da Palestina têm que deslocar parte de seus efetivos para a Cidade Santa, a fim de ajudar a manter a ordem e desencorajar tumultos. Ao aproximar-se a primeira Páscoa desde que assumiu seu posto, Marcelo quer incumbir Paulo de comandar o destacamento que irá a Jerusalém, mas o centurião sugere irem os dois, dizendo que é o único acontecimento interessante do ano naquelas paragens, e o jovem comandante concorda em acompanhá-lo, levando Demétrio consigo, naturalmente. Acontece então que, na chegada a Jerusalém, já durante a semana da Páscoa e poucos dias antes do sábado (o dia que os judeus consagram à oração e ao repouso), Demétrio vê uma movimentação estranha, uma multidão agitando ramos de palmeira e gritando aclamações enquanto um certo pregador da Galileia, um tal Jesus de Nazaré, entra na cidade cavalgando um humilde burrinho (conforme Mt 21, 8-11). Seu olhar cruza com o do estranho por apenas um instante, e isso basta para causar ao jovem grego uma impressão profunda, que não lhe sai da cabeça durante os dias seguintes. O que acontece a seguir, todos os que conhecem o Novo Testamento sabem: Jesus é preso, julgado e condenado à crucificação – uma das piores maneiras de morrer conhecidas na época. E quem, senão o destacamento de Minoa, sob o comando do legado Marcelo Lucan Gallio, recebe ordem de cumprir a sentença?

A crucificação, ou crucifixão (as duas formas existem) foi um método de execução que os romanos aprenderam com os macedônios, que o aprenderam com os persas, a quem possivelmente cabe o "mérito" da sua invenção. É pouco provável que a cruz de Jesus tivesse a forma que estamos acostumados a ver: normalmente os madeiros utilizados tinham forma de T, às vezes de Y, não sendo raro, ainda, que o "crucificado" fosse pregado a um simples poste, com os dois braços para cima. E, por falar em pregar, uma observação é necessária. Embora a prática de fixar o sujeito à cruz usando enormes pregos seja, sem dúvida, o detalhe mais horripilante de todo o processo, eles, na verdade, eram um mero acessório, destinado a aumentar o sofrimento do condenado e a tornar a cena mais assustadora para quem a visse, a fim de desencorajar outros de incorrer no mesmo crime que havia levado o homem a terminar assim. Tanto os pregos não eram essenciais que, por vezes, eram dispensados: ao final da revolta de Espártaco, em 71 a.C., quando seis mil de seus seguidores foram crucificados ao longo da Via Ápia, a certa altura os pregos acabaram, mas os executores continuaram a crucificar, simplesmente amarrando os condenados às cruzes. Os pregos não eram o verdadeiro tormento. Acontece que, quando uma pessoa fica durante horas dependurada, com a maior parte do peso do corpo sendo sustentada pelos braços, a musculatura do tórax entra em fadiga, tornando o processo de expandir e contrair os pulmões cada vez mais difícil e doloroso, até o condenado morrer de exaustão lutando para respirar. No caso de Jesus, ele havia sido açoitado, o que causou uma severa perda de sangue, e depois obrigado a carregar a cruz num longo percurso, o que certamente o cansou muito, e foram esses fatores que levaram à sua morte em apenas três horas a partir da crucificação propriamente dita; há registros que dão conta de que, quando um homem vigoroso era crucificado descansado e sem ferimentos prévios, podia demorar até vários dias para morrer. A exposição aos rigores do clima e aos ataques de insetos e de aves carniceiras eram acréscimos terríveis a uma pena já tão cruel.

O jogo de dados mencionado por São João é vencido por Marcelo, que leva o manto. A partir daí, porém, o episódio todo passa a assombrar o jovem oficial e o lança numa depressão profunda. Sendo um homem essencialmente decente, Marcelo ficaria inevitavelmente chocado ao testemunhar os horrendos detalhes de uma crucificação, mesmo que fosse a de um criminoso de verdade – e, para piorar, ele sente no fundo da alma que Jesus não só era inocente, como era um homem extraordinário e único. A angústia e o desespero são tamanhos que nem mesmo a chegada, logo depois, de uma carta de Roma, encerrando seu desterro e autorizando-o a voltar, consegue animá-lo.

A ordem para que Marcelo deixe Minoa e volte para casa vem do próprio imperador, e isso acontece graças à intervenção de uma personagem importante, mas que ainda não tive a oportunidade de mencionar, a adolescente Diana, filha de um certo legado Asínio Galo – Diana é provavelmente fictícia, já seu pai, se não for histórico, ao menos tem um nome que o é: pesquisando a respeito, encontrei diversos Asínios Galos com variados graus de destaque na História romana; nenhum deles se encaixa perfeitamente no que é dito no livro sobre esse personagem, mas isso pode ser apenas resultado de outra liberdade do autor. Diana é amiga inseparável de Lúcia, a irmã de Marcelo, e tem uma paixão juvenil por ele, que, ao que parece, estava apenas começando a enxergá-la como mulher quando foi mandado para a Palestina. Ela é praticamente a única pessoa de quem o senil e rabugento Tibério parece gostar; trata-o de "vovô", embora na verdade seja neta de sua ex-esposa, de quem ele foi obrigado a divorciar-se, por motivos políticos, antes de ser imperador. Diana, então, habilmente tira proveito dessa proximidade com o velho monarca para conseguir que ele anule a ordem de Gaio, e Marcelo retorna a Roma – abatido e apático, uma sombra do homem que era. O senador Gallio, sempre sagaz, toma a correta iniciativa de chamar Demétrio para uma entrevista a portas fechadas. Dessa forma fica sabendo de todo o acontecido, e imediatamente conclui que, se alguém pode ajudar seu filho e talvez fazer com que ele volte a ser o que era, é seu fiel e esperto escravo, que talvez o conheça melhor que ninguém. E decide mandar os dois numa viagem para que Marcelo mude de ares…

A partir daí, enquanto Marcelo e Demétrio visitam a Grécia e depois novamente a Palestina, seus destinos se entrelaçam definitivamente com os dos homens e mulheres cujas vidas foram tocadas, e mudadas para sempre, pelo misterioso pregador galileu. Vários personagens já conhecidos por quem leu os Evangelhos vão aparecendo, criando uma teia fascinante de encontros, histórias e atos admiráveis que leva à conclusão inevitável de que tudo sempre foi parte de um grande plano divino. O Manto (que Douglas grafa com maiúscula, afinal não é um manto qualquer) funciona como um catalisador de tudo isso. Num de seus piores momentos, Marcelo, na ânsia de livrar-se de qualquer coisa que o relembre do homem a quem crucificou, ordena a Demétrio que o queime – e, por essa única vez, o fiel coríntio desobedece a seu amo. A verdade é que o contato com o Manto o conforta de uma forma inexplicável, enchendo-o de serenidade e coragem, e em nenhum momento Demétrio duvida de que esse poder vem daquele que uma vez o vestiu. E, embora não saiba ao certo como, ele tem uma intuição de que, apesar do horror que a veste do galileu crucificado inspira em seu senhor, ela poderá acabar tendo um papel-chave em sua recuperação. Tanto Demétrio quanto Marcelo são homens instruídos e esclarecidos, o que, na mentalidade da época (pelo menos entre as elites), não era considerado conciliável com qualquer tipo de crença em divindades ou no sobrenatural – mas ambos sentem e concordam que havia no tal Jesus alguma coisa de extraordinário, algo que é muito difícil não chamar de sobre-humano. Essa convicção só aumenta à medida que eles vão descobrindo mais coisas a respeito de Jesus.

Conversando com aqueles que conviveram com Jesus, Marcelo rapidamente se convence de que o carpinteiro de Nazaré possuía uma sabedoria muitíssimo além de sua jovem idade, o que, à primeira vista, parece-lhe contraditório com o fato de que ele evidentemente acreditava, de verdade, que sua mensagem – um apelo à honestidade, generosidade e gentileza de todos para com todos – poderia encontrar eco no mundo real, tão cheio de ganância e injustiças; mas ele começa a compreender quando passa a notar a marca que o Nazareno deixou nas pessoas em toda parte por onde passou. Na aldeia de Caná, por exemplo (o local do primeiro milagre de Jesus), Marcelo conversa com Míriam, uma moça inválida em consequência de uma paralisia, que canta com a voz de um anjo as tradicionais canções judaicas (creio que os trechos reproduzidos são dos Salmos); ela teve um encontro com Jesus e, mesmo não tendo sido curada de sua enfermidade como aconteceu com muitos, recebeu uma cura ainda mais importante, a do espírito, transformando-se de uma pessoa rabugenta, amargurada com sua sorte, em uma alma meiga e serena, que transmite paz a todos os que a conhecem. Cito apenas esse exemplo para não estender demais o texto, mas há outros.

Empenhado em seu objetivo de evangelizar por meio de histórias, Lloyd C. Douglas utiliza-se dos pensamentos e sentimentos de seus personagens, bem como de certas conversas entre eles, para dar ao leitor um panorama do terreno intelectual onde a semente dos ensinamentos de Cristo foi primeiramente lançada. Como já comentamos, as pessoas instruídas da época, em geral, tinham suas ideias influenciadas por filósofos que eram, em sua maioria, céticos, ou, na melhor das hipóteses, agnósticos – só que algumas dessas pessoas instruídas questionavam as concepções desses filósofos, sentindo que não respondiam a todas as suas indagações. Demétrio sente que tem que existir algo mais, mas não consegue conciliar a crença na existência de um Deus todo-poderoso e bom (como aquele de que falam os judeus em geral e os discípulos de Jesus em particular) com o fato de tantas coisas tristes acontecerem no mundo – coisas como a destruição de sua família e sua própria escravização. Marcelo acredita, como seu pai, num mundo lógico e previsível, no qual cada causa tem seu efeito e cada efeito, sua causa, e onde as leis naturais não abrem exceções; o próprio conceito de "milagre" ofende sua inteligência… e, mesmo assim, quando sua depressão é repentinamente curada, ele sente um desejo instintivo de render graças a alguma entidade superior, só que não acredita em nenhuma. Essas inquietações são como que o primeiro passo num longo caminho que os dois jovens vão trilhar ao longo do livro, e que os levará a passar por transformações que nunca teriam imaginado.

Essas transformações, porém, não afetam a todos por igual. Em Jerusalém, cerca de um ano depois da morte e ressurreição de Jesus, Demétrio faz amizade com um conterrâneo grego, Estêvão, um cristão que faz parte da primeira comunidade dos que creem na doutrina do Nazareno, comunidade essa à qual o próprio Estêvão deu o nome de Eclésia, palavra grega que significa 'assembleia' e daria origem ao nome "Igreja". E Estêvão confessa que, a despeito do ardor que as palavras e o exemplo de Jesus lhe inspiram, muitas vezes ele se sente decepcionado e desanimado ao ver as rivalidades mesquinhas e as brigas tolas que surgem a toda hora entre muitos daqueles que, para serem fiéis aos ensinamentos do Mestre, deveriam viver como irmãos. Além disso, essa primeira comunidade cristã tentou uma experiência que poderíamos chamar de "protossocialista": "Não havia uma só pessoa necessitada entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos, que, por sua vez, o repartiam conforme a necessidade de cada um." (At 4, 34-35) Assim como o socialismo, isso parecia uma boa ideia à primeira vista – mas, tal como o socialismo, só poderia funcionar (talvez) se todo mundo fosse trabalhador, honesto e comprometido com o bem comum, o que nunca será o caso, nem mesmo entre uma comunidade de seguidores de Jesus, quanto mais em todo um país. O resultado prático dessa experiência foi que aqueles que haviam doado mais dinheiro para a Eclésia ficavam achando que podiam mandar nela, e também que muita gente que não era chegada a trabalhar passou a se dizer cristã só porque assim teria um teto sobre a cabeça e comida na mesa sem precisar se esforçar (isso foi antes de começarem as perseguições). Esse sistema seria mais tarde abandonado, quando ficou evidente que era mais prejudicial que benéfico à causa de Cristo. Em tempo: Estêvão, ou melhor, Santo Estêvão, seria preso e condenado pelas autoridades judaicas à morte por apedrejamento (cena que Douglas descreve de forma resumida, mas nem por isso com menos impacto), e é considerado o primeiro cristão a ter dado a vida pela fé – o primeiro mártir. Sua história está contada nos capítulos seis e sete dos Atos dos Apóstolos.

O Manto Sagrado foi levado às telas em 1953, numa superprodução dirigida por Henry Koster, com Richard Burton no papel de Marcelo, Victor Mature como Demétrio e Michael Rennie como o apóstolo Pedro, entre outros nomes de peso do cinema da época… Mas, para ser franco, e apesar da minha simpatia a priori por esses velhos filmes épicos e/ou bíblicos, não posso dizer que o recomende, pois o roteiro desvirtuou completamente o caráter dos dois personagens principais, bem como a relação entre eles, além de, a meu ver, simplificar a trama de uma maneira descabida. Se quiserem conferir, fiquem espertos para esses problemas – e, é claro, se puderem, não deixem de ler o livro, que, por sinal, bem que podia ganhar uma nova edição. A que eu li, emprestada por minha mãe, é do início dos anos 80, e, mesmo na época, representou um esforço quase arqueológico por parte do pessoal da editora Record, pois antes disso o livro havia ficado fora de catálogo no Brasil durante décadas. Ainda a respeito do filme e "adjacências", curiosamente houve um spin-off, como diríamos hoje: Demétrio e os Gladiadores, dirigido por Delmer Daves, lançado apenas um ano depois do filme de Koster, e claramente feito para surfar no sucesso deste. Também estrelado por Victor Mature, o filme mostra Demétrio sendo preso devido a uma falsa acusação e sentenciado à arena, onde acaba alcançando sucesso como gladiador, apesar de atormentado por dilemas de consciência causados pela incompatibilidade entre seu novo modo de vida e sua fé cristã. O roteiro também inclui a sedução do coríntio por Messalina, a esposa de Cláudio, tio e mais tarde sucessor do imperador Calígula (que havia sucedido Tibério). Nada disso foi escrito por Lloyd C. Douglas.

Como eu disse no começo, Douglas permitiu-se diversas liberdades históricas. O Tibério que ele pinta é supersticioso tal como informavam os historiadores antigos, mas aparenta ser meramente um velhinho caduco, um tanto desagradável por vezes, mas, de modo geral, inofensivo, que se transferiu de Roma para Capri a fim de aproveitar seus últimos anos num lugar de clima mais salubre, dedicando-se ao que realmente gosta, a arquitetura. Se formos ler a Vida dos Doze Césares, de Suetônio, ou algum romance que siga a História mais à risca, como Eu, Claudius, Imperador, o Tibério que ali encontramos retratado é sanguinário, frequentemente mandando prender e executar pessoas por conta de sua paranoia – para não falar em suas supostas preferências sexuais sádicas. Já o príncipe Gaio, enteado de Tibério, corresponde ao personagem histórico de nome Caio Vipsânio Agripa, filho do primeiro casamento de Júlia, esposa de Tibério e única filha do imperador Augusto. Adotado pelo avô materno, Gaio/Caio teve o nome mudado para Caio Júlio César Vipsaniano, e teria sucedido a Augusto como imperador, caso não tivesse morrido no ano 4 d.C., aos 23 anos de idade – portanto, já estava morto há cerca de 30 anos na época dos eventos de O Manto Sagrado. É possível que sua morte tenha sido encomendada por Lívia, mulher de Augusto e mãe de Tibério, para possibilitar a ascensão do filho ao trono, mas nada jamais foi provado. Há também o caso de Calígula, sobrinho-neto e sucessor de Tibério, cuja ascensão acontece já perto do final do romance. Em O Manto Sagrado, é dito que ele tinha apenas 16 anos nessa ocasião, mas na verdade Calígula, ou Caio Júlio César Augusto Germânico, nasceu no ano 12, e Tibério morreu em 37; portanto, Calígula já tinha 25 anos ao tornar-se imperador, e 29 quando foi assassinado, no ano 41.

Essas liberdades históricas, entretanto, são facilmente perdoáveis. Se vejo algum defeito em O Manto Sagrado, é a evidente má vontade que o autor demonstra para com a civilização romana, retratando-a sempre como tirânica, opressora, corrupta, e pouca coisa além disso – no máximo, admitindo que um ou outro romano pode ser uma pessoa decente. Claro que é ingenuidade canonizar qualquer povo ou cultura, mas é igualmente ingênuo demonizá-los: a meu ver, pintar Roma como "O Mal" é um erro tão grande quanto acreditar que as Américas eram um paraíso antes da chegada dos europeus. O Império Romano inúmeras vezes fez prevalecer sua vontade pela força das armas, escravizou populações inteiras, e, como todos os impérios, deu oportunidade a todo tipo de autoritarismo e abuso de poder, mas também alavancou a economia e a cultura em suas províncias (melhorando as condições de vida para milhões de pessoas), levou a civilização a lugares que nunca a tinham visto, e mostrou aos povos bárbaros que outro tipo de vida era possível, um em que havia leis, direito, e no qual um homem podia prosperar por meio do próprio trabalho e inteligência; além de tudo isso, os romanos aprenderam, por necessidade, a tolerar diferenças, o que era algo mais ou menos inédito até então. Nas preleções que faz a Marcelo, o senador Gallio declara, com ares proféticos, que Roma um dia sucumbirá à revolta dos povos conquistados e dos próprios escravos que importou, dando a impressão de pensar que isso pode acontecer a qualquer momento… quando sabemos que, na verdade, o Império ainda existiria por mais quatro séculos e meio e deixaria no mundo uma marca que, para o melhor e para o pior, jamais seria apagada. Roma fez grandes coisas – coisas maravilhosas e também coisas terríveis, pois, afinal, era feita de seres humanos – mas, em todo caso, grandes coisas.

O Manto Sagrado faz parte daquela categoria muito especial de livros que têm o dom de capturar o leitor logo nas primeiras páginas, mantê-lo hipnotizado até as últimas, e deixá-lo triste quando terminam. Na edição que li, o texto das orelhas reproduz trechos de uma entrevista com Lloyd C. Douglas, na qual ele contava que seu pai também era pastor e um grande contador de histórias, que "pensava em todas as pessoas da Bíblia como se estivessem vivas, e fazia com que parecessem vivas". Sendo assim, podemos atestar que o filho do Reverendo Douglas aprendeu bem as lições do pai, e que também fazia algo mais: misturava personagens bíblicos e/ou históricos com personagens de sua própria criação com tal habilidade que tudo parecia uma coisa só. Qualquer leitor cristão, não importa de qual denominação, fatalmente se emocionará com os exemplos de fé e heroísmo destas páginas, e qualquer leitor, seja cristão ou não, será inevitavelmente envolvido pela prosa fluente do autor.

quinta-feira, novembro 21, 2019

A Hora do Vampiro

Havia uma igreja em ruínas no caminho, um antigo centro de reuniões metodistas, que erguia seus destroços na extremidade de um gramado estragado pelas geadas e cheio de elevações, e quando alguém passava por suas janelas vazias e sem sentido, os passos soavam muito alto, e o que quer que se estivesse assobiando morria nos lábios, e podia-se pensar em como aquilo devia ser lá dentro – os bancos tombados, os hinários apodrecidos, o altar desmoronado, onde hoje só os camundongos guardavam o domingo, e ficava-se pensando, o que poderia haver ali além dos camundongos – que loucos, que monstros. Talvez estivessem olhando para a pessoa com seus olhos amarelos, de répteis. E talvez não bastasse espiar, uma noite; talvez uma noite qualquer aquela porta rachada, mal pendurada, se abriria repentinamente e o que se veria ali levaria à loucura, com um só olhar.

Não se poderia explicar isso à nossa mãe ou pai, que eram criaturas da luz. Assim como não se podia explicar-lhes que, aos três anos, o cobertor sobressalente ao pé do berço transformava-se numa coleção de serpentes que ficavam olhando para a gente com olhos planos e sem pálpebras. Nenhuma criança jamais vence esses medos, pensou ele. Se um receio não pode ser formulado, não pode ser vencido. E os medos trancados em cérebros pequeninos são grandes demais para passarem pelo orifício da boca. Mais cedo ou mais tarde, a gente encontrava alguém com quem caminhar por todas as casas de reunião desertas que se tem de passar entre a infância sorridente e a senilidade ranzinza. Até aquela noite. Até aquela noite, em que ele via que nenhum dos velhos receios fora vencido – apenas guardados em seus caixões pequeninos, de criança, com uma rosa silvestre espetada em cima.

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No post a respeito de Ao Cair da Noite, eu já havia dado breves pinceladas sobre o início da carreira de Stephen King, assinalando que, como muitos escritores de todos os gêneros, ele começou pelos contos, mais rápidos de escrever e mais fáceis de vender, somente passando aos romances quando já estava com o nome consolidado, com leitores fiéis e um currículo que obrigaria qualquer editor a, no mínimo, dar-lhe atenção. Carrie (1974) foi como que um trabalho de transição – um romance, mas relativamente curto, com menos de 200 páginas, como se o autor ainda estivesse se ajustando a escrever narrativas mais longas. Assim, podemos dizer que 'Salem's Lot (1975) foi seu primeiro romance "padrão": foi com ele que King deslanchou como romancista.

Quanto ao título nacional, bem… O exemplar que tenho, e cuja capa estou reproduzindo aqui, é da edição de 1991 da Nova Cultural, um livro barato vendido em bancas de jornal – o único tipo de livro que eu, adolescente, tinha condições de adquirir, e mesmo isso, só muito ocasionalmente; a maior parte do que eu lia na época era emprestado da biblioteca pública. O que eu ia dizer, entretanto, era que, como costuma acontecer com essas edições baratas, essa foi publicada mediante licença da editora que havia publicado o livro antes e que detinha os direitos da tradução, no caso a Record. Isso significa que a primeira edição brasileira de 'Salem's Lot saiu, provavelmente, alguns anos antes, portanto em meados dos anos 80, em plena febre dos filmes A Hora. Quem é macaco velho em matéria de cinema fantástico sabe do que estou falando; para os mais jovens, explico: durante boa parte daquela década mágica, existiu (no Brasil) uma convenção de que filme de terror, para fazer sucesso, tinha que ter o título começando com A Hora. Creio que isso tenha começado com A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), que inaugurou o que seria uma das franquias mais lucrativas do gênero, mas sobre a qual confesso que sei muito pouco. No ano seguinte surgiu A Hora do Espanto (Fright Night), de Tom Holland, por sinal um ótimo filme de vampiro. Depois que ambos os filmes foram sucessos de bilheteria no país, as distribuidoras nacionais passaram a rebatizar uma infinidade de produções de variados temas e qualidade ainda mais variada como A Hora disso e A Hora daquilo: tivemos A Hora dos Mortos-vivos, A Hora das Criaturas, A Hora da Zona Morta, A Hora do Lobisomem (os dois últimos baseados em livros de Stephen King), entre muitos outros. E o modismo, que surgiu no cinema, acabou respingando na literatura, o que valeu a 'Salem's Lot o pífio título pelo qual ficou conhecido no Brasil. A capa desta edição, apresentando uma espécie de Drácula genérico, também não ajuda, mas, felizmente, eu já conhecia um pouco de King na época (tinha lido Zona Morta e Sombras da Noite), e por isso não permiti que o título nem a capa me detivessem. E, com título ruim ou não, A Hora do Vampiro é um vigoroso exemplo de Stephen King no melhor de suas capacidades.

'Salem's Lot é uma contração de Jerusalem's Lot, nome da pequena cidade do Maine que serve de cenário à história. É bem claro que se trata da mesma cidade que aparece no conto A Saideira, presente na coletânea Sombras da Noite, mas fica-se em dúvida se será também a mesma de outro conto da mesma coletânea, intitulado Jerusalem's Lot. No livro de que estamos tratando, não há qualquer menção à amaldiçoada família Boone, ao livro profano De Vermis Mysteriis ou à sinistra mansão de Chapelwaite. Em vez dela, há outra mansão com reputação de assombrada, a Casa Marsten, cujo proprietário, então o homem mais rico de Lot e região, assassinou a esposa e logo em seguida suicidou-se, isso em 1939, décadas antes dos eventos narrados no livro, que se ambienta na mesma época em que foi publicado, meados dos anos 70. Benjamin Mears, escritor de certa fama, que morou na cidade durante parte de sua infância, decide passar uma temporada lá enquanto escreve um novo romance. Cerca de um ano antes, a fatídica Casa Marsten foi comprada, de forma sigilosa, por uma dupla de forasteiros que também adquiriram o prédio de uma lavanderia há muito fechada; sua intenção declarada é a de fixar residência na velha mansão e transformar a antiga lavanderia numa loja de móveis finos e antiguidades. Parece que os preparativos necessários foram demorados, pois, coincidência ou não, o homem que diz chamar-se Richard Straker e se apresenta como um dos sócios-proprietários da loja reaparece em Lot praticamente ao mesmo tempo em que Ben Mears chega. Straker, homem de aparência distinta, fala culta, modos misteriosos e calma imperturbável, diz a todos que seu sócio, Kurt Barlow, está em viagem de negócios, adquirindo itens para a loja, e só deverá aparecer na cidade dali a semanas.

Como foi dito, Ben está escrevendo um novo livro, que, diferente dos anteriores, terá uma pegada sobrenatural (olha a metalinguagem!), e, nas raras ocasiões em que consente em comentar algo sobre seu trabalho, confessa que parte da inspiração para ele veio da Casa Marsten e de experiências que teve quando garoto, ali em Jerusalem's Lot. Na biblioteca pública local, ele faz extensas pesquisas em jornais antigos, e, além das informações que procurava, acaba descobrindo algo inesperado e que pode ter implicações macabras: parece que desaparecimentos periódicos de crianças foram registrados em Lot sempre coincidindo com épocas em que a Casa estava habitada – e isso volta a acontecer agora. Os irmãos Glick, Danny, de 12 anos, e Ralphie, de nove, são surpreendidos por "alguma coisa" enquanto percorrem uma trilha na mata à noite; Ralphie desaparece e Danny volta para casa num estado de confusão mental, incapaz de dizer o que aconteceu ou que fim levou seu irmão. Poucos dias mais tarde, o garoto mais velho morre de algo diagnosticado como anemia perniciosa, embora nada em seu histórico médico sugerisse esse quadro ou qualquer tendência para ele. Todos sabemos que anemia significa, em linguagem médica, uma quantidade insuficiente de glóbulos vermelhos no sangue, geralmente devido à carência de ferro no organismo, mas é interessante atentar para a etimologia da palavra, que, se traduzida literalmente de sua origem grega, exprime um conceito bem mais simples: an (sem) + hema (sangue). Uma vez que sabemos isso, a coisa torna-se autoexplicativa.

Danny Glick é a primeira peça derrubada num tenebroso efeito dominó. Poucas pessoas sabem o que realmente está acontecendo em Jerusalem's Lot, e essas precisam lutar sozinhas, pois, se revelarem ao resto da sociedade local o que sabem, só conseguirão ser trancadas num manicômio. Impossível não lembrar de uma cena do filme 30 Dias de Noite e de uma coisa que o líder de um grupo de vampiros diz ao repreender um de seus comandados por ter feito algo que punha em risco o segredo em torno da existência de sua raça: "Levou séculos para convencermos os humanos de que somos apenas uma lenda!" Na verdade, a mais clássica de todas as histórias de vampiro (Drácula, é claro) já trazia algo parecido, quando o Dr. Van Helsing declara que o maior trunfo do vampiro é que ninguém acredita em sua existência.

King não faz qualquer tentativa de "modernizar" o mito: seus vampiros temem crucifixos, água benta, luz do sol, talvez até alho, e não podem entrar numa casa a menos que sejam convidados. Muitos autores desprezam tais noções, especialmente as que atribuem a objetos sagrados o poder de repelir os sanguessugas; no entendimento desses autores, isso tudo é fruto da ideia popular e antiga de que os vampiros estariam necessariamente relacionados às forças do mal, quiçá ao diabo em pessoa. Bem, parece que, para Stephen King, essas ideias, pouco importa o quão populares ou antigas, podem conter um fundo de verdade: não pode ser coincidência que, num romance sobre vampiros, haja tantas menções às ligações do falecido Hubert Marsten com cultos profanos e sacrifícios de crianças.

O pequeno grupo de heróis, capitaneado por Ben Mears, conta também com Susan Norton, uma jovem que ele conheceu ao chegar à cidade e com quem rapidamente se envolveu; Matt Burke, um veterano professor de inglês e literatura; Jimmy Cody, ex-aluno de Matt e hoje médico (que sempre me fazia pensar no Dr. Jack Seward, de Drácula); o padre Donald Callahan, vigário da paróquia católica de Jerusalem's Lot; e Mark Petrie, um garoto de 12 anos cuja coragem, força de vontade e autodomínio deixariam muitos adultos envergonhados. Mark desempenha o papel que crianças frequentemente têm em histórias fantásticas: sua mente, não limitada pelas amarras do "racional", aceita os fatos (por mais bizarros que sejam) quando eles se apresentam, e reage imediatamente, em vez de perder um tempo precioso tentando negar a realidade ou procurando "explicações plausíveis". Se é com vampiros que estamos lidando, vamos preparar as cruzes e as estacas! Ficar repetindo como um idiota que "vampiros não existem" não vai manter as presas deles longe do seu pescoço. Mark conta, ainda, com uma vantagem: conhecimento. Sendo um garoto de muita imaginação e com um gosto natural por coisas soturnas e misteriosas, é um ávido leitor de terror e, por isso, é quem melhor conhece as particularidades e os pontos fortes e fracos dos vampiros. Nesse quesito, supera Ben e Matt, embora ambos sejam homens cultos e já tenham lido a sua quota de histórias sobrenaturais.

Kurt Barlow, como se descobre, é apenas o nome atual de um ser que provavelmente já usou muitos outros ao longo dos séculos. Trata-se de um vampiro muito velho e muito poderoso; em certo capítulo, os caçadores invadem seu covil durante o dia, apenas para descobrir que ele antecipou seu movimento e foi esconder-se em outro lugar, deixando para eles uma carta muito polida e ligeiramente irônica. A carta é para o grupo, mas há algumas linhas dirigidas especificamente a cada um, e, na parte dedicada ao Pe. Callahan, Barlow revela que, embora há muito tempo ele tenha suas "diferenças" com a Igreja Católica, ela não é seu inimigo mais antigo: "Eu já era velho quando ela ainda era nova, quando seus membros se escondiam nas catacumbas de Roma e desenhavam peixes no peito, para poderem distinguir-se entre os outros. Eu já era forte quando esse clube lamuriento de comedores de pão e bebedores de vinho, que veneram o seu salvador-cordeiro, ainda era fraco." Portanto, estamos falando de um ser com mais de dois mil anos de idade – bem mais, se ele já se considerava velho quando a Igreja dava seus primeiros passos, pois sabemos que a palavra velho tem um significado diferente para um vampiro do que tem para um humano. Perto de Barlow, Drácula, com os quinhentos e poucos anos que teria se ainda fosse "vivo" nos anos 70, não passaria de um aprendiz. Do alto dessa vasta experiência acumulada, Barlow conhece bem a natureza humana, e sabe onde deve atacar primeiro ao fechar o cerco sobre Jerusalem's Lot. Qual o seu objetivo com isso? Mistério. Tudo o que podemos depreender é que tem a ver com Hubert Marsten, com quem o velho vampiro tinha ligações e, provavelmente, algum tipo de acordo. E ele ataca primeiro onde vê fragilidade: às vezes visa crianças, como no caso dos irmãos Glick, outras vezes pessoas que estejam emocionalmente abaladas, como Floyd Tibbets, o ex-namorado rejeitado de Susan, ou Corey Bryant, logo depois de ser pego em flagrante pelo marido de sua amante. Sendo um vampiro clássico, Barlow deve possuir todos os poderes que as lendas antigas atribuem a sua raça, ou, pelo menos, aos representantes mais poderosos dela: força descomunal, capacidade de controlar animais e sabe-se lá o que mais; Bram Stoker insinua que Drácula era capaz de controlar até mesmo as condições meteorológicas. Porém, ele prefere, sempre que possível, utilizar métodos mais sutis, em especial a hipnose. Depois de um instante de medo extremo, suas vítimas experimentam uma sensação de conforto e paz, uma noção de que basta entregarem-se para que todo o medo e sofrimento acabem. Para resistir a isso, é necessária uma tremenda força de vontade.

Vou admitir, 'Salem's Lot tem trechos deprimentes, sem relação direta com nada sobrenatural; o autor se permite explorar (nunca muito longamente, graças a Deus) a sordidez que constitui uma faceta inseparável da natureza humana – embora a natureza humana não se resuma só a sordidez, como certa classe de chatos parece sentir prazer em papagaiar. Uma jovem mãe que alivia sua frustração com a vida batendo no filho pequeno; uma anciã cuja razão de viver é conhecer segredos escabrosos dos outros habitantes da cidade e espalhá-los para o maior número de ouvintes que puder; um homem de negócios que suborna sem hesitar um de seus trabalhadores para que ele fique calado a respeito de possíveis evidências de um crime, e por aí vai. Outros trechos retratam momentos depressivos vividos por um ou outro personagem, como o Pe. Callahan, que enfrenta problemas com álcool e uma crise de fé. Pelo menos na minha leitura, as páginas dedicadas a isso tudo são necessárias: parece haver nas entrelinhas do romance como um todo uma insinuação de que, se todas as pessoas fossem fortes, íntegras, saudáveis e felizes, seres como Kurt Barlow não teriam poder, e talvez nem conseguissem sobreviver. Para se fortalecer e exercer seu poder, ele precisa das trevas – tanto as da noite quanto as da alma humana. Entretanto, o saldo final da história não é de puro pessimismo, já que existem pessoas corajosas dispostas a arriscar tudo para deter o mal. Ainda há esperança para nossa pobre espécie.

Mesmo nessa fase inicial de sua carreira, King já demonstrava uma compreensão muito precisa de como o medo funciona, e também do fato de que existem diferentes tipos de medo. Há medos que são socialmente aceitos, porque considerados racionais, como o medo da violência urbana, do futuro incerto, da guerra, de doenças; esses são temores que as pessoas confessam com relativa facilidade, porque sabem que encontrarão empatia. Porém, há outros medos, como aquele que experimentamos tarde da noite, sozinhos em casa, deitados na cama, no escuro, incapazes de dormir, quando temos a sensação inexplicável de uma presença sombria no canto do quarto, ou poderíamos jurar ter ouvido algo se mover na peça ao lado – e não temos coragem sequer de esticar o braço para acender a luz, quanto mais de ir averiguar a origem do barulho. Horas depois, à luz do dia, esses temores parecem tolos, e a maioria de nós acharia muito embaraçoso confessá-los a qualquer outra pessoa, mas isso não muda o fato de que aquele momento de medo e suor frio durante a madrugada parece durar um século, e de que, enquanto dura, esse medo sem nome é absolutamente real. Racionalmente, eu sei que o medo do escuro nada mais é que uma herança dos nossos ancestrais primatas, que, nas savanas e florestas onde viviam, estavam sempre expostos aos ataques de predadores de olhos brilhantes e presas afiadas que preferiam caçar à noite. Sendo assim, e continuando a ser racional, reconheço que esse medo está obsoleto, já que dificilmente algum leopardo ou hiena vai invadir meu apartamento – e, não obstante, algo em mim parece impermeável a toda essa racionalidade, e, como resultado, o velho medo do escuro continua a dar as caras de vez em quando. Muito menos que quando eu era criança, é verdade, mas ele ainda aparece. Talvez as únicas pessoas imunes a isso sejam as totalmente desprovidas de imaginação, e isso não é coisa que se possa escolher… E, para ser franco, ainda que fosse possível, eu não escolheria. Como dizia Jorge Luís Borges, não se pode matar os demônios sem matar junto as fadas.

Mas chega de poesia. Não há muito mais que eu possa dizer sobre 'Salem's Lot sem dar spoiler, exceto que, como narrativa de terror, é de uma eficiência implacável. Além disso, como acontece com quase todos os trabalhos de Stephen King, é um texto de leitura fluente, que você percorre sem sentir, o que favorece enormemente a imersão do leitor na história. Esta edição da Nova Cultural tem alguns pequenos problemas, erros que provavelmente não devem ser creditados à tradutora Luzia Machado da Costa, mas à revisão e/ou ao pessoal da composição – confesso que não faço ideia de como era o passo a passo da produção de um livro no início dos anos 90. A respeito da tradução, eu gostei dela de modo geral, tenho a impressão de que preservou bem o sabor original da prosa de King, embora haja alguns detalhes meio estranhos, em especial o fato de que nomes de lugares ou estabelecimentos comerciais são quase sempre mantidos "inteiros" como no original; por exemplo, a colina onde fica a Casa Marsten também leva o nome dos antigos proprietários, e a tradutora a chama de "Marsten's Hill" – por que não Colina Marsten? Ao chegar a Lot, Ben aluga um quarto numa pensão cuja proprietária chama-se Eva, e mais tarde diz a Susan que está hospedado em "Eva's Rooms" (!). Um senhor de nome Milt Crossen possui um bar, açougue e mercearia ao qual a tradutora se refere como "Crossen’s Store"; a meu ver, seria muito mais natural dizer "Loja Crossen", ou "a loja do Crossen", já que o texto, depois de traduzido, está em português. Também é engraçado que os personagens chamem uma menina ou moça de "pequena": isso me faz lembrar as dublagens de certos filmes do tempo do onça (creio que a maioria era dos anos 50, e as dublagens devem ter sido feitas logo depois) que eram reprisados à exaustão na Sessão da Tarde quando eu era garoto. Pode ter sido proposital, uma tentativa de reproduzir na tradução uma linguagem meio arcaica que talvez ainda fosse ouvida em lugarejos interioranos dos EUA naqueles tempos sem internet e quando rádios e TVs eram basicamente regionais. De qualquer forma, quem for adquirir o livro agora encontrará a edição da Suma de Letras, que provavelmente tem uma tradução diferente.

Curiosidade 1: Quando Ben e seus companheiros invadem a Casa Marsten e encontram certo personagem morto, pendurado de cabeça para baixo, Stephen King se engana ao colocar na boca do Pe. Callahan que "São Paulo foi crucificado assim, numa cruz em forma de X, com as pernas quebradas". São Paulo não foi crucificado de nenhuma maneira, porque, embora de origem judaica, possuía cidadania romana, e nenhum cidadão romano podia ser crucificado, já que esse método de execução era tido como aviltante. Em vez disso, ele foi decapitado, o que, em comparação, era considerado uma morte misericordiosa e, se não propriamente digna, ao menos decente. Quem morreu da forma que King descreve (com a possível exceção das pernas quebradas, pois não encontrei referência a isso) foi Santo André, o padroeiro da Escócia – é por isso que a bandeira desse país ostenta uma cruz em forma de X, a "Cruz de Santo André". Segundo a tradição da Igreja, André, condenado à morte no ano 60, teria pedido a seus carrascos para crucificá-lo de cabeça para baixo, porque não se achava digno de morrer do mesmo modo que Jesus Cristo. Idêntico pedido fez seu irmão, São Pedro (o primeiro papa), ao chegar sua vez, sete anos depois. A Cruz de São Pedro tem a mesma configuração da cruz comum, só que invertida, e já era reconhecida como o emblema do santo séculos antes que os satanistas decidissem adotá-la como símbolo de oposição a Cristo.

Curiosidade 2: Depois do prólogo e antes de começar a primeira parte de 'Salem's Lot, intitulada A Casa Marsten, encontramos, como epígrafe, uma citação do livro The Haunting of Hill House, de Shirley Jackson, publicado em 1959 e que recentemente ganhou uma adaptação para a TV, produzida pela Netflix. A citação é aquela que ouvimos logo no início do primeiro episódio, na voz do mais velho dos irmãos Crain, o escritor Steven: começa com "Nenhum organismo vivo pode continuar a existir por muito tempo num estado de realidade total", e termina com "o que quer que caminhasse ali, caminhava só". Stephen King visivelmente segue seu próprio conselho, o que ele sempre oferece aos aspirantes a escritor: ler muito, e parece que dedica especial atenção aos autores que escrevem o mesmo gênero que ele.

'Salem's Lot foi filmado em 1979 como uma minissérie de TV em seis episódios, totalizando cerca de três horas de duração, e dirigida por Tobe Hooper, mais conhecido por causa do filme "ame-ou-odeie" O Massacre da Serra Elétrica, e que também dirigiu ao menos um episódio de Contos da Cripta. Alguns anos mais tarde, apareceu nas videolocadoras uma versão editada de duas horas, apresentada como um filme único, com o título A Mansão Marsten. Em 2004 saiu um remake, desta vez feito para o cinema, com direção de Mikael Salomon, Rob Lowe no papel de Ben Mears, Rutger Hauer (de Blade Runner e O Feitiço de Áquila) como Kurt Barlow, e Donald Sutherland (de Jogos Vorazes) como Richard Straker. Confesso que não vi nenhum deles (assim como no caso de Christine, preferi preservar minhas próprias imagens da história), mas, enquanto procurava na internet por ilustrações para este post, encontrei fotos do ator Reggie Nalder caracterizado como Barlow para a antiga minissérie… O visual foi obviamente inspirado em Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau: assim como Nosferatu, o Barlow de Nalder tem os dentes incisivos centrais em forma de presas, ao invés dos caninos, como é o comum em representações de vampiros – o que lhe dá uma aparência asquerosa lembrando um rato. Além disso, é calvo e tem a pele azul (!). Nada a ver com a descrição que King faz de Barlow, que deveria ter um aspecto aristocrático e atraente, podendo aparentar a idade que preferisse. Optei por não usar nenhuma dessas imagens, já que se afastam tanto da visão do autor, mas, se tiverem curiosidade, é bem fácil achá-las no Google.

quarta-feira, maio 22, 2019

O Cemitério

Exatos 30 anos depois de ser adaptado para o cinema pela primeira vez, um dos melhores e mais assustadores romances de Stephen King retorna às telas numa nova versão, que tem suscitado polêmica entre os fãs do mestre do Maine e entre os apreciadores de terror em geral. Há quem considere a versão de 1989, dirigida por Mary Lambert, superior, há quem prefira o remake que acaba de estrear, assinado pela dupla Kevin Kölsch e Dennis Widmyer, e também há quem não aprove nenhuma das duas versões e só recomende o livro. Certo, eu já escrevi sobre muitos filmes, quase sempre explorando suas conexões com a literatura, mas não sou um comentarista de cinema – para isso, precisaria fazer as coisas numa velocidade vertiginosa, de preferência através de um canal no YouTube em vez de um blog. Ocorre que, além de eu não gostar de falar para a câmera, ter que lidar com prazos exíguos tiraria a diversão da coisa, pelo menos para mim, sem contar que sou apenas um apreciador de cinema, não um profundo conhecedor do assunto. Por tudo isso, nunca pensei a sério na possibilidade. Entretanto, não poderia deixar de ir ao cinema conferir pessoalmente o novo filme, e, enquanto assistia, uma série de possíveis comentários foi vindo espontaneamente à minha cabeça, de modo que, ao sair da sessão, já estava mais ou menos óbvio que eu teria que escrever um texto (há textos que eu decido escrever ou não escrever, e há outros que simplesmente se impõem). Então, revi o filme de Lambert, reli trechos-chave do livro, que li há anos, e lá vamos nós.

Louis Creed, médico, está se mudando com sua família para uma grande e acolhedora casa de subúrbio no município de Ludlow, no Maine (é claro!), pois vai assumir a chefia dos serviços médicos no campus da universidade desse estado, que fica em Bangor, relativamente perto. A casa fica à beira de uma rodovia por onde caminhões pesados trafegam velozmente dia e noite, o que faz Louis e sua esposa, Rachel, adquirirem o hábito de manter sempre um olho nos filhos, Ellie, de cinco anos, e Gage, um bebê que há pouco começou a andar. O quinto membro da família é o gato de Ellie, de nome Winston Churchill, mas que, no dia a dia, é chamado de "Church" – uma abreviação de Churchill e que, convenientemente, também significa 'igreja', assim como não terá escapado ao leitor atento e conhecedor da língua inglesa que o sobrenome da família pode ser traduzido por 'credo', com o sentido de fé ou sistema de crenças. King não escolheu esses nomes por acaso. Na época em que O Cemitério teve origem, o escritor atravessava uma crise em sua vida pessoal por conta de sua dependência do álcool (e, segundo certas fontes, de outras drogas também), correndo o risco de a esposa deixá-lo e levar os filhos consigo. O medo da perda o levou a refletir sobre outras maneiras pelas quais uma pessoa pode perder seus entes queridos, sendo a morte, é claro, a maneira mais comum e também a mais dolorosa, por representar uma perda definitiva e irreversível. Qual seria (ele deve ter-se perguntado) a verdadeira relação da fé e da religião com tudo isso? Elas oferecem conforto diante da perda, mas aquilo tudo que ensinam sobre Deus e sobre a morte não ser o fim, seria real, ou apenas algo que a humanidade criou para suavizar a própria dor? E, em crise ou não, King continuava a ser um escritor, que é um tipo de criatura que nunca realmente para: esses questionamentos se misturaram com algumas outras ideias e, a partir disso, uma nova história começou a tomar forma. O resultado está nestas páginas, que estão, sem dúvida, entre as mais poderosas, sombrias e angustiantes já escritas pelo cara.

Em sua nova residência, os Creed têm como vizinhos mais próximos um homem de nome Judson Crandall ("Jud" para os amigos) e sua esposa, Norma, um casal idoso que morou toda a vida naquela região. É Jud, profundo conhecedor dos caminhos e das histórias locais, quem mostra a Louis e sua família o "simitério de bichos" (no original, pet sematary), como diz a placa toscamente pintada por alguma das crianças que têm usado o local já há décadas para sepultar seus animais de estimação, muitos deles vítimas do tráfego na estrada. O próprio Jud, em criança, enterrou um cachorro ali… Ou essa é a versão que ele conta, um pouco diferente da realidade, como o leitor descobrirá depois.

A visita ao local acaba por causar na cabecinha da pequena Ellie sua primeira reflexão para valer a respeito da morte. Ela fica angustiada ante a ideia de um dia ter que dar adeus a seu querido Church, o que obriga Louis a ter com ela aquela conversa, sempre complicada, que todos os pais, mais dia, menos dia, precisam ter com as crianças sobre esse assunto. O médico lida com o problema de maneira bastante sensata, na minha opinião, mas sua esposa não parece pensar o mesmo… Na verdade, para ela, não há uma maneira sensata de encarar essa questão. Rachel tem uma fobia anormal à simples ideia da morte, e, se dependesse só dela, seus filhos cresceriam ignorando tudo a respeito. Mais adiante, descobriremos que esse medo irracional teve origem num episódio de sua infância – um episódio terrível.


Outro episódio terrível é o que tem lugar na universidade, bem no primeiro dia de Louis no novo emprego: um jovem estudante sofre um acidente de moto e tem a cabeça praticamente destruída ao colidir com o tronco de uma árvore. Quando o levam ao ambulatório chefiado por Louis, o médico percebe na hora que não há nada que possa ser feito para salvar a vida do rapaz, mas, ainda assim, ele e sua equipe se esforçam o quanto podem. Antes de exalar sua última respiração, o jovem, de nome Victor Pascow, sussurra para Louis algumas frases perturbadoras a respeito do simitério de bichos, em especial sobre ele "não ser o verdadeiro cemitério". Mais ainda: de alguma forma, Victor chama Louis pelo nome, embora os dois nunca se tivessem visto antes. O médico racionaliza tentando convencer-se de que Pascow apenas emitiu gemidos desconexos, e de que sua própria mente, perturbada pelo estresse extremo daquela situação, fez o resto, levando-o a acreditar ter ouvido palavras que na verdade não existiam. Naquela noite, ele tem um sonho (pelo menos, tenta acreditar que foi um sonho) no qual o fantasma de Victor aparece e o guia até o simitério, onde lhe mostra uma barreira de troncos que delimita o lugar e o adverte de que ela nunca, jamais deve ser transposta, por maior vontade que ele tenha de fazê-lo. Na hora, mesmo em meio à lógica toda peculiar dos sonhos, Louis pergunta-se qual o sentido de tal aviso: por que cargas d'água haveria ele de querer transpor a barreira? A resposta virá mais tarde, e não o deixará feliz.

Todo aquele território pertenceu, em tempos, aos índios Micmac, tribo que ocupava partes do que são hoje a Nova Inglaterra (região nordeste dos Estados Unidos) e o sudeste do Canadá. Não se enganem com o nome "engraçadinho": os Micmac eram guerreiros violentos, temidos pelos colonizadores e por outras tribos. Contudo, por mais ferozes que fossem, não eram adeptos do canibalismo – pelo menos, não sob condições normais. Quando, durante invernos especialmente longos e penosos (e os invernos daquela região não são brincadeira), eram forçados a isso, também eles recorriam a racionalizações: diziam que o wendigo, uma entidade maligna de seu folclore, os havia tocado, despertando um apetite incontrolável por carne humana. Os restos das vítimas dessas refeições macabras eram enterrados no alto de uma colina rochosa que – adivinhem – fica poucos quilômetros além do que é agora o simitério de bichos, em terra selvagem e onde só se pode chegar transpondo a tal barreira de troncos. Ao longo do tempo, os Micmac deixaram de usar o cemitério e passaram a evitá-lo, dizendo que o wendigo tinha azedado a terra e tornado aquele um lugar ruim. Porém, o velho cemitério indígena parece ter ganho um poder que não tinha nos tempos antigos. Louis descobre isso quando Church, no que pode ser considerado uma espécie de tragédia anunciada, morre atropelado na estrada. Por sorte (bem, pelo menos é o que parece), Rachel e as crianças estão viajando, o que lhe deixa algum tempo para pensar sobre como dar a notícia a Ellie. Mas Jud tem outra ideia. Ele guia Louis numa exaustiva jornada noturna até o cemitério Micmac, e é ali que, por razões que se recusa a explicar, ele insiste para que o médico enterre o gato da filha.

Louis, homem sem qualquer inclinação para o misticismo, sente com toda a clareza alguma coisa diferente e sinistra naquele lugar e na mata que o rodeia, e, uma ou duas vezes, a coisa não fica só no nível das sensações: desafio qualquer um a não ter calafrios ao ler o trecho em que ele e Jud ouvem "alguma coisa grande" se movimentando bem perto deles, sem que cheguem a ver seja o que for… Mas ouvem uma gargalhada louca, carregada de um triunfo maligno, soar ensurdecedora pela floresta escura. Palavra de honra, essa parte é assustadora até para quem está acostumado a ler Stephen King!… Naturalmente, na manhã seguinte, Louis terá se convencido de que o que ouviu se mover no mato era apenas um alce ou talvez um urso, animais que por vezes ainda aparecem nos bosques da região. E quanto à gargalhada? O grito de algum pássaro noturno, na certa. São mesmo incríveis os contorcionismos lógicos que as pessoas "racionais" são capazes de fazer para não enxergar os fatos, quando estes não se encaixam na maneira como elas acreditam que a realidade deva se comportar.


Mais difícil é achar uma explicação "racional" quando Church reaparece em casa – vivo, ou assim parece – no dia seguinte. Porém, o gato está mudado: seu comportamento, seu jeito de mover-se, seu olhar, tudo está diferente e um tanto desagradável. Inquirido por Louis, Jud revela o segredo do velho cemitério Micmac: ele realmente tem o poder de trazer de volta à vida as criaturas que são enterradas ali, mas elas voltam mudadas, e não para melhor. Jud nem tem certeza se fez a coisa certa ao levar Louis lá, pois, como ele diz, às vezes é melhor estar morto. Conhecer uma maneira de (tentar) enganar a morte faz, inevitavelmente, com que as pessoas pensem em coisas que não devem ser pensadas… E, em momentos de grande sofrimento, um homem pode cometer grandes erros. Parece haver algum tipo de consciência maligna, sem forma, envolvendo o antigo cemitério, uma consciência que, segundo Jud, já teve grande poder, e ele receia que esteja refazendo suas forças, explorando as fraquezas dos seres humanos, que, tendo visitado o lugar uma vez, acabam achando razões para voltar… E para levar outros até lá.

O Cemitério, na minha opinião, pertence ao tipo de terror mais aflitivo. Envolve elementos sobrenaturais, sim, mas também nos coloca cara a cara com o que há de tenebroso e aterrador dentro de nós mesmos. Seja lá o que for a mente sem corpo que habita o cemitério Micmac, ela não teria poder se não encontrasse nas mentes das pessoas o material de que precisa para trabalhar: o medo da morte e o impulso irracional de fazer tudo, qualquer coisa, para escapar da dor – e, para seres como nós, capazes de amar, poucas dores podem ser maiores que a da perda de um ente querido. A "coisa" sabe disso muito bem.

Os Filmes

Até aqui, eu estava falando sobre o livro. Agora, quando me preparo para entrar no assunto dos filmes, percebo que será inevitável dar alguns spoilers. Portanto, se vocês estiverem lendo isto antes de terem lido e/ou assistido, sugiro que parem aqui mesmo, leiam, assistam, e depois voltem (voltem mesmo!) para ler o restante do post (deixar um comentário também não dói nada!). Ou continuem por sua conta e risco, como preferirem. Vocês foram avisados! Vamos em frente.

A primeira versão de Pet Sematary para o cinema não é nenhum portento, mas tem o grande ponto positivo de ser bem mais fiel ao livro que essa nova – e tem excelentes razões para ser, já que o próprio Stephen King adaptou o romance para a tela e acompanhou de perto toda a produção, além de, como era seu costume em filmes baseados em obras suas, fazer uma ponta: aqui, ele interpreta o ministro religioso (metodista, provavelmente) que aparece oficiando um funeral. Por outro lado, não é um filme de atuações brilhantes. A melhor é provavelmente a do veterano Fred Gwynne como Jud Crandall; o restante do elenco exibe variados graus de canastrice, embora seja um tanto penoso para um fã de longa data de Jornada nas Estrelas dizer isso: no papel de Rachel está ninguém menos que Denise Crosby, crush de nove entre dez trekkers quando interpretava a tenente Tasha Yar, oficial de segurança da Enterprise em Jornada nas Estrelas: a Nova Geração (e só não o era de todos os dez porque a tripulação também incluía a conselheira Deanna Troi, interpretada por Marina Sirtis). Caramba… Isso já faz cerca de 30 anos e Denise é hoje uma senhora de 61!… Mais uma coisa para acrescentar às reflexões sombrias de Louis Creed sobre a passagem implacável do tempo e a brevidade da vida humana.


Isso, por sinal, já é um exemplo do quanto literatura e cinema são mesmo linguagens diferentes: nenhum dos dois filmes inclui as reflexões de Louis, nem poderia, já que a única maneira de fazê-lo no cinema seria por meio de longos trechos discursivos, o que afetaria o ritmo e seria tedioso. No livro, as numerosas passagens que reproduzem os pensamentos do protagonista são essenciais para entrarmos no clima e adquirirmos a compreensão dos problemas que vão ser tratados – e, pelo menos para mim, essas passagens não se tornam entediantes em momento algum. Entediantes, não… Já quanto a deixarem o leitor um tanto down, é outra conversa. Quando Louis percebe que seu filho de um ano e pouco está finalmente começando a ter cabelo de verdade, deixando para trás aquela fase de penugem que a maioria dos bebês tem no início da vida, isso, claro, é motivo de comemoração… mas, nas profundezas de seu íntimo, uma parte sua chora, porque o cabelo de Gage é mais um dentre tantos lembretes de que a areia na ampulheta está correndo para Louis tal como para o garoto… Com a diferença de que Gage está crescendo, indo rumo ao auge de sua vida, enquanto Louis, nos seus 30 e poucos anos, já entrou na espiral de decadência que, mais dia, menos dia, terminará num túmulo.

Outra coisa que os espectadores de qualquer um dos filmes jamais saberão até que leiam o livro é que, ao contrário de sua esposa, Louis tem um background que deveria (ou, ao menos, isso seria de se esperar) torná-lo mais apto a encarar a ideia da morte de uma maneira serena e natural: seu tio, Carl Creed, era agente funerário, e Louis passou alguns períodos trabalhando com ele, durante suas férias do colegial e início da faculdade (o famoso "emprego de verão" dos estudantes americanos). Carl era, antes de tudo, um homem prático, o que deve ser imprescindível nesse ramo de trabalho, e Louis, como seu aprendiz, assimilou um pouco do feeling da coisa: é preciso ter sensibilidade para lidar com uma família enlutada, mas, ao mesmo tempo, suficiente frieza para não se deixar abalar – duas capacidades tão úteis a um médico quanto a um agente funerário. Não que isso tudo deixe alguém preparado para sentir a perda na própria carne, como Carl e Louis perceberam quando Ruthie, filha do primeiro e prima favorita do segundo, morreu num acidente em plena adolescência. Tudo isso nos é revelado por meio dos pensamentos e lembranças de Louis. Mas já chega de falar do que os filmes não têm: vamos ver o que cada um deles tem.

Spoiler número um: no primeiro filme, tal como acontecia no livro, Gage, pouco tempo depois de seu segundo aniversário, morre atropelado na estrada, e Louis, transtornado pelo sofrimento, decide violar seu túmulo e enterrar o menino no cemitério Micmac, na esperança de "tê-lo de volta". Mais uma vez, o livre acesso à cabeça do protagonista, que temos no livro e não nos filmes, faz uma falta incrível. Um dos pontos-chave da história, talvez até o mais importante de todos, é a maneira como a influência daquela presença sombria no cemitério afeta a mente das pessoas, e, por consequência, a lenta, gradual e inexorável transição da sanidade para a loucura. Louis já fora severamente advertido por Jud de que não deveria nem pensar nessa possibilidade, e ouvira dele a história da única vez (pelo menos, até onde ele sabe) em que um ser humano foi enterrado no local: um jovem da cidade que morreu na França durante a Segunda Guerra Mundial, e cujo pai, incapaz de aceitar a perda, foi em frente e realizou o ato blasfemo. O morto, que em vida fora um bom rapaz, normal sob todos os aspectos, voltou transformado numa coisa maligna e odiosa, que o próprio pai, arrependido, acabou por matar de novo. O filme de Mary Lambert, aliás, estraga completamente o efeito dessa história ao pintar o soldado ressuscitado como um zumbi sem inteligência, perigoso, sem dúvida, mas da mesma forma como um animal irracional é perigoso: sem dolo, sem intenção maligna, apenas agindo de acordo com sua "natureza", se é que algo nisso pode ser considerado natural. No livro, ele era muito racional, e demoníaco, cruel. Há também o caso de Church, agora um bicho estranho cujo simples olhar causa calafrios, e que seus donos sentem repugnância de tocar. Em resumo, ninguém pode dizer que Louis não foi avisado, mas ele encontra mil e uma desculpas e racionaliza o impulso insano que está sentindo, convence-se de que, mesmo que Gage volte "um pouco diferente", ainda será seu filho, e assim por diante. Fica no ar a mórbida sugestão de que Louis, que, por tudo o que sabemos sobre ele, é e sempre foi um homem sensato, nunca faria o que acaba fazendo se não fosse pela influência daquilo que habita o antigo cemitério indígena – mas, ao mesmo tempo, a entidade sombria não poderia manipulá-lo se já não houvesse uma brecha por onde conseguisse entrar. Tudo isso é perdido nos filmes, assim como as visões fugidias e apavorantes de uma coisa inominável que habita os pântanos entre o simitério de bichos e o cemitério Micmac. Inominável?… Não para os índios, que tinham, sim, um nome para ela: wendigo.


Se eu for considerar apenas o apuro técnico e a qualidade geral da produção, terei que dizer que o filme de Kölsch e Widmyer é superior, pois demonstra mais senso de cena e de ritmo, a narrativa na tela flui melhor, e os atores manjam bem mais da arte de representar que os do filme anterior, além, é claro, de tudo o que se pode fazer com toda a tecnologia de que o cinema não dispunha em 1989 e da qual dispõe hoje… Também gostei muito da ideia de fazer com que o ronco do motor dos caminhões na estrada pareça o rugido de alguma enorme fera, pois cai muito bem no papel que eles terão a desempenhar. Por outro lado, confesso que me irritam esses cineastas que fazem mudanças absurdas nas histórias, não aquelas mudanças necessárias e inevitáveis quando se está adaptando um livro para a tela, mas mudanças sem qualquer justificativa possível, parecendo motivadas tão somente pela vontade de ser diferente, de "imprimir uma marca autoral" e outras estultices desse gênero. O que nos leva ao spoiler número dois: no filme novo, é Ellie (que, por sinal, virou uma garota bem mais velha, de nove anos) quem é atropelada, e não Gage. Agora me digam: o que essa mudança acrescenta? Trabalhar com criança em filme de terror deve ser extremamente difícil, mas, quando é bem feito, o resultado é horripilante, e, quanto menor a criança, maior o impacto. Uma menina de nove anos agindo de forma demoníaca não tem o mesmo efeito que um bebê de dois anos fazendo o mesmo, isso para não mencionar o fato irritante de terem mexido na história sem a menor necessidade. É verdade que o novo filme tem vários acertos, um deles a cena em que Louis, interpretado pelo ator Jason Clarke, deita-se ao lado da filha (ou da coisa que parece ela) para "fazer companhia até que adormeça". Nesse momento, ele já começou a perceber o tamanho do erro que cometeu, e ver um homem adulto morrendo de medo da garotinha cujas fraldas trocou é, sem dúvida, bastante perturbador. O final também não me agradou, pois o filme termina com a família novamente reunida – de uma forma grotesca e macabra, é verdade, mas, ainda assim, reunida, o que põe a perder a mensagem mais pungente que havia na obra original, a de que a separação imposta pela morte é dolorosa, mas é algo com que precisamos aprender a conviver, pois nada de bom pode vir da sua não aceitação.

Enfim, não tenho como dizer que nenhum dos dois filmes é excelente, mas as broncas que tenho do de Mary Lambert são de relevância muito menor: basicamente deficiências técnicas e coisas do tipo, como o fato de pelo menos duas cenas importantes, que, no livro, aconteciam à noite, se passarem em plena luz do dia – obviamente porque filmá-las à noite seria muito mais trabalhoso e caro. Já meu descontentamento com o filme de Kölsch e Widmyer é mais profundo, ligado a questões da própria estrutura da história. Por isso, se vocês só quiserem ver um filme baseado em Pet Sematary, minha sugestão é que escolham o primeiro, que, com todos os problemas que possa ter, ao menos tem o mérito de tentar ser fiel à história que lhe deu origem. E, independentemente do que decidam em relação aos filmes, não deixem de ler o livro, que é nada mais nada menos que Stephen King em sua melhor forma.

segunda-feira, abril 29, 2019

A Noite dos Tempos

René Barjavel (1911-1985) é um autor pouco conhecido entre nós, embora seja considerado um nome-chave da ficção científica não só em seu país de origem, a França, mas em toda a Europa continental, onde esse gênero nunca chegou a ter a mesma força que nos países de língua inglesa. Foi provavelmente o primeiro a formular o célebre "problema do avô", que ilustra bem o paradoxo envolvido na teoria das viagens no tempo: se um homem viajar para o passado e matar o próprio avô (ou outro ancestral) antes que ele gere uma descendência, esse homem nunca existirá – mas então, quem foi que matou o tal avô? A questão aparece no livro Le Voyageur Imprudent ('O Viajante Imprudente', de 1944). Algumas das obras de Barjavel foram publicadas no Brasil durante os anos 70 pela editora Artenova, e foi por meio de uma dessas edições que, já no início dos 90, eu travei conhecimento com A Noite dos Tempos, isso na biblioteca do SESI, a mesma à qual já prestei tributo aqui antes. O exemplar que tenho hoje, e no qual acabo de reler a história, foi adquirido numa daquelas caixas de saldos, na última ou penúltima Feira do Livro de Porto Alegre a que compareci, e é da edição do Círculo do Livro (que, curiosamente, não datava suas publicações), aproveitando a mesma tradução, com algumas adaptações. A capa que aqui reproduzo é a dessa edição.

Embora parte de seus primeiros anos tenham coincidido com a Primeira Guerra Mundial, parece que a infância de Barjavel foi relativamente tranquila, vivida em sua cidade natal, a pequena Nyons, perto de Marselha. Era filho de um padeiro, e sua admiração pela maestria do pai em seu ofício o influenciaria para sempre: em diferentes trechos de suas obras, o escritor demonstra a convicção de que mesmo as profissões mais humildes são motivo de orgulho, se exercidas com dedicação e excelência. Apesar disso, nunca quis seguir os passos do pai: leitor voraz que era, desde muito cedo almejou fazer carreira no jornalismo e na literatura, como de fato aconteceria. Durante o início da Segunda Guerra Mundial, serviu como despenseiro do exército, sendo desmobilizado em 1942. Publicou seus primeiros trabalhos durante os anos seguintes, enquanto a França ainda estava ocupada pelos alemães; depois do fim da guerra, chegou a ser apontado como colaboracionista, por ter tido textos publicados num jornal pró-nazista que tinha o sugestivo e vagamente ameaçador nome de Je Suis Partout (literalmente, 'Eu Estou em Toda Parte'), mas acabou inocentado, e vamos concordar que o escritor não tinha muita opção, se é que tinha alguma: durante aquele período, era muito difícil publicar o que quer que fosse na França sem passar pelo crivo dos nazistas. Durante os 40 anos seguintes, Barjavel publicou 16 romances, além de contos, crônicas e ensaios, tudo paralelamente a sua atividade como jornalista. Também teve envolvimento com o cinema, tendo sido amigo do famoso diretor André Cayatte, cujo filme Les Chemins de Katmandou ('Os Caminhos de Katmandu', de 1969) teve por base o romance homônimo de Barjavel. Aliás, A Noite dos Tempos, publicado originalmente em 1968, é dedicado a Cayatte, e lembro que, na edição que li primeiro, o texto da orelha referia, de passagem, que, ao tempo em que saiu essa edição (1975), o escritor e o diretor estavam trabalhando juntos em sua adaptação para o cinema. Pelo visto, o projeto não foi para a frente: não há nenhum filme que pareça corresponder ao livro, seja na filmografia de Cayatte ou no extenso rol dos trabalhos de Barjavel para o cinema.

A Noite dos Tempos tem um enredo fascinante, que evoca mistérios de um passado desconhecido, perdido para a memória humana há centenas de milhares de anos, que, inopinadamente, vem à tona. Tudo começa quando a base francesa de pesquisa científica na Antártida recebe um novo tipo de sonda destinada a fazer levantamentos do relevo subglacial, ou seja, descobrir como é o solo do continente antártico, sepultado há milênios debaixo de centenas de metros de gelo e neve. O novo aparelho, bem mais sensível que seus congêneres tradicionais, detecta algo de inacreditável: sob quase mil metros de gelo, ele encontra estruturas que não podem ser naturais, pois possuem formas regulares, geométricas. São colunas, escadas, cúpulas, em sua maioria quebradas e desmoronadas, mas ainda reconhecíveis. Numa palavra, ruínas. Ruínas de construções que só podem ser obra de homens (ou de algum tipo de criatura inteligente e habilidosa), mas que, pela profundidade onde se encontram, devem datar de pelo menos 900 mil anos, época em que, por tudo o que se sabe, o hominídeo mais sofisticado existente era o Homo erectus, cuja tecnologia não ia além de algumas ferramentas e armas simples de pedra, osso e madeira. A sonda descobre também outra coisa: um sinal de rádio cuja origem parece estar em algum lugar em meio às tais ruínas.

A descoberta, que revoluciona tudo o que se sabia sobre o passado da espécie humana e do próprio planeta, causa o alvoroço que seria de se esperar. A França, sozinha, não dispõe dos recursos e da tecnologia que serão necessários para uma escavação desse porte e a exploração do que quer que venha a ser encontrado, então a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) convoca uma Expedição Polar Internacional (EPI) reunindo, além dos franceses, delegações dos Estados Unidos, União Soviética, Japão e demais potências, de modo que o empreendimento passa a contar com a última palavra em equipamento, maquinário e pessoal especializado, oriundos de todas as partes do mundo.

(Uma pessoa fica pensativa e um tanto melancólica ao dar-se conta de que, no tempo em que Barjavel escrevia, a UNESCO ainda devia ser de fato uma instituição que trabalhava seriamente pela ciência e pela cultura, em vez de pôr-se a serviço de estranhos projetos de engenharia social idealizados por grandes fundações internacionais, sabe-se lá com que objetivos tenebrosos.)

Conforme as escavações progridem, o que vai sendo encontrado (construções, artefatos, máquinas) é de uma estranheza quase alienígena. A civilização que criou tais coisas era, indubitavelmente, humana, mas não parece ter vínculo algum com nada que a História ou a arqueologia conheçam. Aquele povo antigo parece ter alcançado conquistas tecnológicas com as quais a civilização contemporânea apenas sonha, ou nem isso. Seguindo o sinal de rádio, os exploradores da EPI descobrem uma gigantesca esfera feita de ouro maciço, que parece ser uma espécie de cápsula e apresenta um novo desafio, pois, embora o metal amarelo nunca tenha sido notório por sua resistência, aquele parece quase indestrutível. Quando finalmente conseguem abrir a esfera (usando uma nova e revolucionária ferramenta que utiliza laser e plasma ao mesmo tempo), o que encontram supera a imaginação mais extravagante: um homem e uma mulher, congelados em hélio sólido à temperatura do zero absoluto (273 graus centígrados negativos, a temperatura mais baixa possível segundo as leis da física, e que a tecnologia moderna nunca conseguiu atingir). E, por tudo o que se sabe, podem estar vivos e talvez seja possível reanimá-los.

Tanto na época em que A Noite dos Tempos foi escrito quanto hoje, o congelamento de um ser humano vivo e sua posterior reanimação eram, e são, meras possibilidades teóricas; nada do tipo jamais foi efetivamente feito. Sendo assim, os médicos responsáveis pelo ousado procedimento decidem começar pela mulher, porque ela parece estar em perfeitas condições de saúde, enquanto o homem apresenta diversas lesões semelhantes a escoriações e queimaduras; logo, a mulher, provavelmente, suportará melhor o processo. Mais tarde, com a experiência ganha na primeira reanimação, eles esperam poder acordar o homem com maior segurança.

E a mulher desperta. A primeira e óbvia coisa a impressionar a todos é sua beleza, uma beleza na qual existe mais que a simples perfeição de formas: há nela algum tipo de viço indefinível que parece remeter ao fato de ela ser uma reminiscência de um tempo em que a própria espécie humana era jovem, o que traz aos seres humanos de hoje a compreensão do quanto a humanidade atual está velha e cansada. Quando ela fala, é numa língua que não tem qualquer semelhança, por longínqua que seja, com nenhuma outra, viva ou extinta, que se conheça. Isso, é claro, não é surpresa, dadas as circunstâncias, mas acaba por causar um grave e imprevisto problema: a mulher vinda do passado não consegue alimentar-se de nada do que lhe é oferecido, seu organismo não parece capaz de processar nutriente algum, e, por causa do abismo linguístico, é impossível perguntar a ela o que se pode fazer a respeito. Para tentar salvá-la antes que morra de inanição, a EPI pede ajuda a todas as empresas, universidades e governos que possuem grandes computadores (lembrem-se, isso foi escrito nos anos 60, quando computadores eram coisas enormes, intimidadoras e de custo proibitivo, de cuja existência as pessoas comuns tinham, no máximo, uma vaga noção) para decifrar a língua do passado. O esforço é bem-sucedido, o que, além de salvar a vida de Elea (pois é assim que a mulher se apresenta), permite, daí em diante, que ela se comunique. Depois de se recuperar, pelo menos tanto quanto possível, do choque terrível de descobrir durante quanto tempo dormiu, e de dar-se conta de que não sobrou absolutamente nada do mundo que conhecia, ela, por fim, consegue contar sua história e tentar satisfazer a enorme curiosidade que sua civilização agora desaparecida desperta entre os que a resgataram.

A Noite dos Tempos é narrado, mais ou menos, sob o ponto de vista de Simon (não é "Sáimon", é Simon mesmo: o personagem é francês como o autor), um jovem médico que fazia parte da equipe original da base francesa e estava com o grupo que fez a descoberta. Quando digo mais ou menos, é porque a maior parte do livro não é na primeira pessoa, apenas alguns trechos o são; esses trechos, impressos em itálico, são intercalados entre as partes narrativas, como se fossem comentários a elas, e parecem ter sido escritos, ou talvez apenas pensados, por Simon depois que a aventura já teve seu desfecho, como se o que lemos fosse ele recordando como tudo aconteceu. À parte o natural fascínio que aquela descoberta desperta em todos, o médico toma-se de um interesse muito pessoal e particular por Elea – um interesse que, como até mesmo o leitor menos perspicaz não teria dificuldade em prever, rapidamente se converte em paixão. Elea, mesmo sem nenhuma intenção, perturba a todos os homens, por causa da combinação intoxicante de beleza e mistério, mas a preocupação constante de Simon com seu bem-estar ultrapassa em muito o mero zelo do médico para com a paciente, e não esconde seus verdadeiros sentimentos.


Entre muitas outras coisas, Elea revela a identidade do homem na esfera de ouro: ele é Coban, o mais renomado cientista da poderosa nação de Gondawa – nome claramente inspirado em Gondwana, o supercontinente que reunia as atuais massas de terra do hemisfério sul, inclusive a Antártida, centenas de milhões de anos atrás; em todo caso, como o tempo de Elea e Coban foi há "apenas" 900 mil anos, os continentes já tinham uma configuração semelhante, em linhas gerais, à de hoje, e, pela descrição feita por Elea, Gondawa ocupava somente a Antártida, que, na época, estava em outra latitude e tinha um clima de temperado a tropical. E Gondawa era uma das duas grandes potências de então, sendo a outra Enisorai, que ocupava as atuais Américas do Norte e do Sul.

Embora os gondas tivessem alcançado progressos notáveis nos campos científico e social, e sua população desfrutasse de uma vida confortável, seria um grande erro pensar que aquele era um mundo paradisíaco. Algum tempo antes do nascimento de Elea (não é dito ao certo quanto tempo), as duas potências travaram uma série de guerras de grandes proporções, nas quais usaram armas terríveis criadas pela mesma tecnologia que tornara possível a tal vida confortável. Como resultado, a superfície de Gondawa tinha-se tornado inabitável, e, por isso, seu povo vivia em cidades subterrâneas.

O drama pessoal da heroína vem agora: ela havia atingido sua plenitude adulta e levava uma vida feliz com seu companheiro, Paikan, quando uma nova guerra sobreveio – a pior de todas. Coban, sabendo que a destruição que estava por vir seria numa escala nunca vista, podendo acarretar até mesmo o fim de sua civilização, pensou num meio de evitar que a ruína fosse completa. Projetou e fez construir um abrigo subterrâneo – a esfera de ouro – onde ele próprio, que, como bem sabia, era o mais importante cérebro de seu tempo, ficaria em animação suspensa, protegido da radiação e dos demais efeitos danosos da guerra, pelo tempo que fosse necessário. Quando as condições no exterior o permitissem, sairia e, com seu conhecimento, trabalharia para reconstruir o mundo. Algumas das maravilhosas máquinas criadas pela ciência gonda, capazes de funcionar pela eternidade afora sem precisar de manutenção ou reparo, conservariam as condições controladas dentro do abrigo e monitorariam as coisas do lado de fora, prontas para reanimar o cientista quando concluíssem que a sobrevivência já era possível… O que, de acordo com as previsões mais cautelosas de Coban, poderia demorar desde alguns anos até um século ou dois. O que nem mesmo ele poderia prever era que os efeitos das armas seriam tão tremendos, que tirariam o próprio planeta do prumo, alterando seu eixo e deslocando os pólos, o que mergulhou Gondawa num inverno eterno. As pobres máquinas, fiéis às instruções recebidas, só podiam concluir que as condições na superfície continuavam inóspitas… E assim continuaram durante 900 mil anos.

Porém, eu ia falar sobre o drama de Elea; tudo está interligado. Para sua missão de reconstruir a civilização, Coban precisaria de uma companheira, uma mulher que sobressaísse pela inteligência, capacidade, e também por uma genética privilegiada, traduzida nos quesitos saúde e beleza, pois não se podia excluir a possibilidade de que os dois tivessem que repovoar Gondawa sozinhos. Dentre milhões de mulheres em todo o continente, a escolha recaiu em Elea, que foi chamada a abandonar Paikan, a quem amava de uma forma que as línguas modernas não possuem palavras capazes de expressar, para cumprir seu "dever patriótico". Acho que já cheguei até onde podia sem prejudicar a experiência de quem for ler o livro (na verdade, meu objetivo foi atiçar a vontade de fazê-lo!), mas saibam, por último, que Elea não atendeu pacificamente a esse chamado, e que, desse momento em diante, é impossível não ficarmos penalizados com a avalanche de desventuras que se abatem uma após outra sobre a pobre moça. No final, uma reviravolta para ninguém botar defeito espera pelo fascinado leitor.

O que mais posso dizer sobre este livro extraordinário? Barjavel não acreditava na teoria da evolução; tal fato, apenas sinalizado em A Noite dos Tempos, é declarado com todas as letras no ensaio A Fome do Tigre (1966), que não é só sobre esse assunto: trata-se de um apanhado das reflexões do autor a  respeito de diversas grandes questões que, levantadas na adolescência, ainda o inquietavam aos 55 anos, questões sobre a vida, a morte, o destino, Deus e assim por diante. Muitas dessas reflexões são intrigantes e dão o que pensar, mas, no trecho em que o autor tenta expor as razões de sua descrença em relação aos postulados de Darwin, dá para perceber, pelos argumentos usados, que, como noventa e nove por cento dos que dizem não acreditar na teoria da evolução, ele nunca chegou a entendê-la, embora provavelmente pensasse que sim. A Noite dos Tempos, portanto, é um exercício de imaginação no qual o autor explora uma possível versão não-darwiniana para a origem da espécie humana – ou, pensando melhor, não é assim, pois tudo o que o romance nos mostra é o mundo de 900 mil anos atrás já ocupado por civilizações avançadas e poderosas, sem se aprofundar em explicar como elas surgiram ou como foi a gênese dos homens que as criaram. O importante é notar que, na visão de Barjavel, não é plausível que o homem tenha gradualmente emergido da animalidade: ele já teria surgido (como quer que isso tenha acontecido) plenamente inteligente, autoconsciente, capaz e belo.

Mesmo assim, o autor não se alinha com a visão que encontramos na maioria dos mitos de criação contados pelos mais diferentes povos, nos quais, quase sempre, o mundo, ao ser criado, era perfeito, livre do mal e da morte, mas decaiu, fosse gradualmente ou de uma só vez, por culpa do homem ou de algum outro ser autoconsciente. O mundo antigo de Barjavel até corresponde a alguns sonhos do homem moderno, mas não é perfeito de forma alguma: nele já existiam ganância, violência e ambição pelo poder, o que acabou causando seu colapso. O conflito entre Gondawa e Enisorai, que, pelo que nos é contado, alternava períodos de guerra declarada com outros de paz tensa, é um paralelo da situação do nosso próprio mundo na época em que o livro foi escrito, em plena Guerra Fria, e do desastre de proporções globais no qual ela poderia facilmente desembocar. E, já que falamos sobre poder e ganância, não deixem que o estilo poético e sonhador que a escrita de Barjavel não raro assume os engane: ele era também um experiente jornalista, e não era nada ingênuo. Sendo assim, não poderia deixar de abordar no livro um aspecto da realidade que fatalmente estaria presente, caso uma descoberta do porte da que ele imaginou realmente acontecesse: a cobiça que os valiosíssimos conhecimentos guardados no cérebro de Coban despertariam no mundo moderno. Assim, A Noite dos Tempos tem também o seu quantum satis de maquinações e intrigas.

Entre várias outras coisas, A Noite dos Tempos é uma história sobre amor, reunindo as características de um bom romance de ficção científica com uma parábola poética e bela sobre a convicção de que o amor, quando verdadeiro, resiste ao tempo, assim como a tudo o mais. E por ser, no fim das contas, sobre o amor entre um homem e uma mulher, bem… Barjavel era francês, lembram? Tem partes eróticas, sim – nada que vá sequer ruborizar um leitor do século XXI, mas esses trechos bem que mexeram com os hormônios do adolescente que eu era no distante 1990, época em que não havia esse negócio de qualquer criança poder ver todo tipo de cena de sexo imaginável ou inimaginável, tendo apenas que digitar duas ou três palavras num mecanismo de busca. E, a meu ver, era melhor assim: o sexo era muito mais excitante quando vinha envolto num certo mistério.

Foi especial ter um novo encontro com este livro tanto tempo depois de nosso primeiro contato, e, por mais que eu tenha mudado nesse intervalo, o efeito dele sobre mim permaneceu quase o mesmo, o que é uma proeza e tanto para qualquer livro: tenho certeza de que muitos de vocês, como eu, já passaram pela experiência de reler na idade adulta alguma obra que marcou sua infância ou adolescência e achar difícil compreender o que nela pareceu tão extraordinário naquela primeira leitura. Não foi o caso aqui. A Noite dos Tempos me fascinou quando eu tinha 15 anos e continua a fascinar agora. Bem que mereceria uma nova edição, mas, como isso é muito pouco provável, recomendo que, se tiverem a escolha, leiam a versão da Artenova, pois esta do Círculo do Livro, como observei no início, teve o texto revisado, e algumas das "mexidas" feitas não foram felizes. Porém, em se tratando de um livro que só existe em edições tão antigas, já vai ser muita sorte conseguir um exemplar, de qualquer edição que seja. Então, leiam do jeito que puderem, e conheçam a capacidade que René Barjavel tinha de tornar impossível ao leitor largar o livro depois de ter começado a lê-lo.