sábado, março 19, 2016

Dança Macabra

Embora eu seja um fã de Stephen King (como quem acompanha este blog, se é que alguém acompanha, já deve ter percebido), não tenho a pretensão de ser um grande conhecedor de sua obra… E vamos concordar, ser um grande conhecedor de King é uma empreitada que requer um tremendo investimento em termos de tempo, dinheiro e espaço na estante: vai ser prolífico assim lá no Maine! Portanto, não estou (muito) envergonhado de só agora ter lido Dança Macabra, cuja publicação original é de 1981.

Trata-se de uma leitura muito interessante, além de muito útil para todos os aficionados do terror em qualquer de suas apresentações: literatura, cinema, TV, quadrinhos e o que mais imaginarmos. H. P. Lovecraft escreveu O Horror Sobrenatural na Literatura, sobre o qual já falei aqui uma pá de vezes, mas que nunca me senti à vontade para transformar em assunto de um post próprio; já Dança Macabra, tão logo percorri suas 20 ou 30 primeiras páginas, já deixou claro o fato de que eu teria que escrever sobre ele. Por quê? Não sei. Talvez (e isso não passa de um palpite) porque já tenha lido mais coisas de King que de Lovecraft, e por isso tenha a sensação de entender melhor como funciona a cabeça do autor. No mais, acredito que o paralelo (não é uma comparação) procede: cada um procurou apresentar um panorama da tradição que o precedeu na ficção fantástica. Lovecraft, em sua época, praticamente só tinha a literatura da qual tratar, e, nesse campo, cobriu quase três séculos de obras e autores europeus e norte-americanos. Já King, escrevendo entre o fim da década de 70 e o começo da de 80, precisava cobrir uma gama muito maior de mídias, e, talvez por isso, optou por restringir o arco de tempo a ser abrangido pelo ensaio: seu assunto propriamente dito é a produção de terror das décadas de 50, 60 e 70, embora seja impossível evitar, vez por outra, uma incursão no passado em busca das origens de determinados horrores. Também à diferença de Lovecraft, King não se detém apenas em obras de terror, dando alguma atenção também à fantasia e à ficção científica, em especial a segunda, já que, durante o período que ele analisa, ficção científica e terror frequentemente interagiram, dialogaram e se interpenetraram, na literatura e sobretudo no cinema.

Já que estamos falando de gêneros, peço a indulgência de meus leitores para também expor um pouco de teoria de minha própria lavra. Gosto de agrupar ficção científica, terror e fantasia (na literatura, claro está) debaixo de um mesmo e enorme guarda-chuva que chamo de "literatura de imaginação". Os três têm em comum o fato de não terem suas temáticas limitadas pelas amarras do "possível" (para não falar no fato de, muitas vezes, serem produzidos e/ou consumidos pelas mesmas criaturas estranhas), mas também têm entre si grandes e importantes diferenças. Desse trio, a ficção científica é a que mantém maior distância em relação a seus "irmãos" terror e fantasia, os quais, por sua vez, são muito próximos um do outro – King chega a dizer que o terror não é propriamente um gênero, e sim um subgênero dentro da fantasia, uma asserção com a qual eu não sei se concordo. E o que é que causa essa distância? Bem, a ficção científica é um gênero jovem, não no sentido de atrair o público jovem, mas no de existir há pouco tempo mesmo: seus primeiros expoentes dignos de nota são do século XIX. O terror e a fantasia, por outro lado, são muito antigos; nem sequer é possível fixar um marco exato de onde começam, herdeiros diretos que são da mitologia e do folclore – coisas que acompanham nossa espécie desde que ela passou a merecer o nome de humana. E, se a ficção científica teve um início recente, isso foi porque ela só pôde aparecer quando a ciência em si já estava madura a ponto de poder servir de inspiração para um gênero literário. Temos, então, que histórias de ficção científica são aquelas baseadas na ciência, ou, ao menos, em uma imitação aceitável de ciência; é um gênero que precisa oferecer explicações. A fantasia e o terror não precisam de explicações: sua matéria é a magia, o misticismo e o sobrenatural. Numa palavra, o inexplicável.


É claro que isso não significa que não possam ocorrer crossovers entre esses gêneros – e aqui devolvo o microfone a King. Obrigado, mestre. Logo no começo do livro, ele usa a miríade de filmes sobre invasões alienígenas que o cinema norte-americano produzia e exibia durante seus tempos de infância como ponto de partida para tecer uma reflexão. King, que nasceu em 1947, frequentemente se refere a sua própria geração como os "filhos da guerra" – a geração que colheu os frutos da vitória na Segunda Guerra Mundial. Todos os frutos. Por um lado, essa geração de norte-americanos cresceu em meio a uma prosperidade econômica com a qual seus pais e avós só poderiam ter sonhado; por outro, também cresceu em plena Guerra Fria, cercada pela paranoia constante da "ameaça comunista" (pois a União Soviética, outrora a mais importante aliada dos Estados Unidos contra as potências do Eixo, lideradas pela Alemanha nazista, era agora o inimigo a ser temido) e, pior ainda, convivendo com o fato de que uma guerra nuclear de extermínio total poderia estar à distância de um apertar de botão. A pergunta é inevitável: o que metia medo naquelas crianças e jovens? Por muito tempo, foram esses filmes (em geral toscos, é verdade) sobre invasores do espaço, que resultavam numa alegoria sobre a possível investida do inimigo – e, como bem observa o autor, a alegoria estava lá, pouco importa que o diretor tivesse feito a coisa de propósito ou que (nas palavras de King) o subtexto tivesse simplesmente acontecido. O resultado final de tudo era que, embora esses filmes partissem de elementos da ficção científica – civilizações extraterrestres, espaçonaves –, o efeito obtido era de terror. Em outro exemplo semelhante, King nos apresenta a lenda do "maníaco da mão de gancho", que era contada ao redor de muitas fogueiras de acampamento quando ele era garoto (e antes, e depois) e explica por que ela não deixaria de ser terror, mesmo que alguém decidisse recontá-la substituindo o maníaco por um ser de outro planeta ou de outra dimensão.

Continuando com suas teorizações, o autor apresenta a ideia – surpreendente de certa forma, mas que não deixa de fazer sentido – de que, por mais que o terror pareça um gênero transgressor (já que muitas vezes choca, seja com as alusões sexuais, ousadas para a época, de um Drácula, ou com o horror explícito de revirar o estômago de um Alien, o Oitavo Passageiro), o papel do escritor de terror, no fundo, é o de um agente do status quo, ou, se preferirem, o de um guardião da normalidade. Seguindo essa linha de raciocínio, a narrativa de terror não seria mais que uma variação da velha dicotomia "nós versus os outros". "Nós", nesse caso, significaria a sociedade e o modo de vida que conhecemos, e que talvez não propriamente amemos, mas com os quais, ao menos, nos sentimos confortáveis, rodeados pelo que nos é familiar; os "outros" seria qualquer tipo de criatura ou elemento que surgisse para subverter a ordem estabelecida dessa sociedade e desse modo de vida, quer falemos aqui de fantasmas, vampiros, serial killers ou alienígenas malvados – ou de qualquer das inúmeras coisas às quais esses seres podem servir de metáfora. Caberia ao autor, então, deixar bem marcada a distinção entre… Putz, eu estava pronto para escrever "entre o bem e o mal", mas isso é simplista demais. Talvez seja melhor dizer que o trabalho do autor de terror consiste em acumular sobre alguma figura, seja real ou imaginária, tudo aquilo que nos inquieta e atormenta, inclusive em nós mesmos, dando-nos, assim, um objeto conveniente ao qual direcionar nosso ódio, temor, ou nossa simples perplexidade. E, como o leitor mais perspicaz já deve estar pensando, isso pode ser usado de muitas maneiras. Pode nos proporcionar uma saudável catarse, permitindo que exorcizemos nossos impulsos violentos transferindo-os para um lobisomem fictício, ou pode ser usado com objetivos de controle social e político, com resultados catastróficos – vide o que aconteceu quando os nazistas conseguiram convencer o povo alemão de que eram os judeus o "monstro" que ele devia temer.

(Falar em lobisomem me fez lembrar de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, que King considera uma variação moderna do velho mito, e que mereceu uma análise detida e comentários elogiosos. Para o autor, o livro de Stevenson forma, com Drácula, de Bram Stoker, e Frankenstein, de Mary W. Shelley, a tríade das grandes obras da ficção gótica, sendo ainda, segundo ele, a mais bem escrita das três, por conta de sua narração fluente e concisa, o que não é uma característica das outras duas.)

Em diferentes momentos ao longo do livro, King deixa-se arrastar (de forma deliberada, não tenho dúvida) para reminiscências autobiográficas. Na época, embora já se tivesse firmado como um escritor de sucesso, ele não tinha como saber que viria um dia a ser considerado um nome-chave na história da literatura fantástica, de modo que, ao partilhar essas reminiscências, ainda não sabia da importância que elas viriam a ter, e, então, apresenta-as somente como uma espécie de testemunho pessoal – valioso, de qualquer forma. Embora o gosto pela fantasia, e, em particular, pelo seu lado mais sinistro, pareça ter feito parte dele desde sempre, o autor arrisca apontar alguns acontecimentos de sua infância que podem ter tido sua parcela de culpa. Muito para minha surpresa, fiquei sabendo que o pai de King (que abandonou a família quando o pequeno Stephen tinha dois anos de idade e nunca mais foi visto pelos filhos), marinheiro de profissão, era um fã de ficção científica e terror, gêneros que lia avidamente e nos quais chegou a tentar a sorte como escritor, embora nunca tenha conseguido publicar nada. King, que não lembra de nada sobre o pai, acredita que seu definitivo "despertar" para o terror aconteceu quando, aos dez ou onze anos, encontrou, num sótão empoeirado, um caixote contendo alguns livros que haviam pertencido a ele, com destaque para uma coletânea dos contos de H. P. Lovecraft. Anos antes disso, porém, outra "epifania" já havia acontecido, numa ocasião em que um namorado de sua mãe levou toda a família para ver O Monstro da Lagoa Negra, filme que, hoje em dia, dificilmente ainda conseguiria meter medo em alguém (os sereianos de Harry Potter são, de longe, bem mais assustadores que o tal monstro, e isso para ficar só nas criaturas aquáticas), mas que deixou uma impressão profunda na imaginação de um garoto de sete anos naqueles meados da década de 50. E antes, ainda, outro evento pode ter deixado sua marca: aos quatro anos, King talvez tenha sido testemunha ocular da morte de um vizinho da mesma idade com quem costumava brincar, e que foi atropelado por um trem (digo "talvez” porque ele afirma não se lembrar de nada, sabendo do caso somente pelo relato da mãe, que não estava presente no momento do acidente; pode ser que, afinal de contas, ele não estivesse na companhia do amigo quando o fato aconteceu, mas também é possível que sua mente tenha simplesmente bloqueado essa memória, como dizem que acontece em casos de grandes traumas). King considera rematada tolice atribuir toda uma carreira literária a um trauma de infância, como alguns tentaram fazer desde que ele contou esse caso numa palestra, mas o episódio parece ter dado origem a uma história em particular: levante a mão aí quem lembrou do belíssimo filme Conta Comigo (Stand by Me), baseado em seu conto The Body, que, no Brasil, pode ser lido na coletânea Quatro Estações.

Outra obra que sem dúvida teve o seu peso na formação de King foi Além da Imaginação (The Twilight Zone), série criada por Rod Serling e exibida pela rede de TV americana CBS de 1959 a 1964. King dedica um bom espaço a essa série, e, mesmo que o tom no qual se refere a ela nem sempre possa ser considerado reverente (ele não hesita em apontar o que considera ruim), nota-se que, de modo geral, lembra dela com carinho. Além da Imaginação tinha formato de antologia, apresentando em cada episódio uma história fechada, independente das demais, com a temática variando entre terror, fantasia e ficção científica. No começo, quase todos os roteiros levavam a assinatura de Serling, às vezes adaptando contos de autores consagrados da literatura de imaginação, como Manly Wade Wellman, Richard Matheson e Ray Bradbury, entre outros menos famosos. Ainda durante a primeira temporada, o próprio Matheson, fisgado pelo projeto, passou a colaborar, de forma mais ou menos regular, com roteiros originais. Cancelada ao final de sua quinta temporada, Além da Imaginação seria, mais tarde, retomada por duas vezes. A primeira foi na década de 80, poucos anos depois da publicação de Dança Macabra; ainda lembro de muitos episódios dessa versão, à qual assistia na adolescência. Stephen King em pessoa escreveu ao menos um episódio, Gramma ('Vovó'), estrelado pelo garoto Barret Oliver, de A História Sem Fim, e os nomes de um punhado de outros escritores de peso também podem ser encontrados nos créditos: Harlan Ellison, Theodore Sturgeon, Ray Bradbury e George R. R. Martin. O segundo revival teve 44 episódios, exibidos entre 2002 e 2003, e é considerado pelos fãs a menos inspirada das três encarnações da série. Existe, ainda, um longa-metragem de 1983, intitulado Twilight Zone: the Movie, lançado no Brasil como No Limite da Realidade. O filme traz quatro histórias independentes, cada uma com cerca de 30 minutos de duração; três são remakes de episódios da série original, e uma é inédita. A produção é de Steven Spielberg, que também dirigiu um dos segmentos. Vários atores que participaram da série reaparecem. Note-se, de passagem, que esse formato de filme (longa-metragem composto de várias histórias mais curtas, quase sempre de terror) andou bastante em voga durante os anos 80 – posso lembrar de pelo menos mais dois exemplos: Nightmares ('Pesadelos Diabólicos'), de 1987, e Tales from the Darkside ('Contos da Escuridão'), de 1990. E deve haver outros. Puxa, que nostalgia bateu agora…

Dança Macabra, vamos admitir, parece ter uma organização um tanto caótica ("organização caótica"… Isso não é uma contradição?), fato para o qual o autor, de forma absolutamente honesta, já nos havia advertido em sua introdução; parece uma mistura de caderno pessoal de anotações, trechos de roteiros de palestras, e até mesmo apontamentos de tópicos levantados em conversas com amigos que também estavam envolvidos, de uma forma ou de outra, com a ficção de terror. Há, é claro, capítulos dedicados à ficção impressa, ao cinema, à TV e até ao rádio, mas o autor parece ter achado impossível se restringir, em cada um deles, àquele que deveria ser seu assunto específico: fazer isso implicaria em perder inúmeras oportunidades de traçar paralelos e construir ligações interessantes. E, para falar a verdade, essa ligeira balbúrdia acaba por ter um efeito positivo: dá ao produto final um ar mais informal e simpático, evitando o ranço de academicismo que poderia facilmente se formar num trabalho desse tipo.

A prosa ágil e por vezes irônica de King é tão agradável de acompanhar neste ensaio quanto em qualquer de seus trabalhos de ficção, mas não dá para fechar os olhos aos defeitos, e o maior deles, ou, ao menos, eu senti assim, é algo que talvez só seja um defeito para leitores estrangeiros como nós: o tom excessivamente norte-americano do texto, em geral concretizado nas constantes menções a coisas e principalmente pessoas que não temos ideia de quem sejam. Não me refiro a escritores ou cineastas, pois, embora muitos dos autores e obras dos quais o autor fala sejam mesmo desconhecidos para nós, eles são pertinentes ao assunto, e acabam se tornando parte do nosso acervo de referências, mesmo que não os tenhamos lido ou assistido e, por consequência, só os conheçamos por meio do que King diz; o que por vezes incomoda são as pencas e mais pencas de nomes de esportistas, políticos, cantores, apresentadores, celebridades locais e outros tipos que só um norte-americano, e digo mais, em muitos casos só um norte-americano daqueles dias, poderia saber quem eram. (Calma! Eu sei quem foram Eddie Cochran e John F. Kennedy, mas há nomes muito mais obscuros que esses, que não consigo me sentir culpado por não conhecer.) Além disso, noto em King uma dificuldade que eu também tenho: é duro resistir à tentação de incluir uma informação interessante ou um comentário mordaz quando eles nos vêm à cabeça no meio de uma frase, mesmo sabendo que, por amor à concisão e à clareza, deveríamos fazer o sacrifício. Isso resulta em longas interpolações que, não raro, fazem com que o leitor perca completamente o fio da meada e precise voltar atrás, reler a parte da frase que estava antes dessa intromissão, e pular para o que está depois, para conseguir juntar os sentidos. Esse cacoete, por sua própria natureza, aparece com muito mais frequência num ensaio que num texto de ficção; felizmente, a estrutura do ensaio permite o uso de notas de rodapé (às quais King, por sinal, recorre a toda hora), o que minimiza o problema. É preciso lembrar, também, que Dança Macabra foi escrito quando King tinha apenas 33 anos – e, como escritor não é jogador de futebol, essa era uma idade bastante jovem. Mais tarde, ao longo do tempo, ele iria lixando essa aresta.

Dança Macabra é interessante por ao menos duas boas razões: além de nos levar a uma compreensão mais profunda do fenômeno do terror na cultura popular do século XX, também traz informações sobre o próprio King que todos os fãs do escritor certamente vão apreciar conhecer – tanto informações sobre seu background por meio das partes autobiográficas, quanto sobre seu modus operandi e o porquê de algumas características que são indissociáveis de sua obra. Pena que a qualidade da edição nacional deixe tanto a desejar: há muitos erros de concordância, e inúmeros nomes próprios estão grafados errado (o escritor de ficção científica Poul Anderson virou "Paul Andersen", e Robert W. Chambers, o autor de O Rei de Amarelo, virou "Chalmers", entre muitos outros exemplos); além de tudo, até mesmo a fonte usada não é das que tornam a leitura mais confortável, sinto dizer. Na época desta edição (2003), as obras de King eram publicadas no Brasil pela Objetiva; não sei qual é a relação entre essa editora/selo e a Suma de Letras, que as publica atualmente, mas, por ocasião da transição, vários dos livros continuaram a ser impressos com as mesmas capas e o mesmo visual, mudando apenas o selo na lombada e no canto inferior direito de cada capa. Em todo caso, tenho a impressão de que as edições mais recentes são mais bem cuidadas. Espero não me decepcionar! Bons pesadelos a todos.

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