Mostrando postagens com marcador Robert W. Chambers. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Robert W. Chambers. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, fevereiro 22, 2018

Visões da Noite

Ambrose Bierce (1842-1914?) foi um sujeito de quem eu definitivamente não teria sido amigo, e parece que muita gente também não. Jornalista e crítico, ele tinha como uma de suas principais características um cinismo corrosivo e, não raras vezes, cruel, que não só o fez colecionar inimigos como também afastou vários amigos ao longo de sua vida. Por não poupar farpas contra (entre outros alvos) escritores – não importando o quão aclamados fossem pelo restante da crítica –, arrumou tretas memoráveis com mais de um nome de peso da literatura norte-americana, entre eles Jack London.

Nascido no estado americano de Ohio e criado em Indiana, Bierce começou no jornalismo na adolescência, tendo a carreira ainda incipiente interrompida em 1861 pela eclosão da Guerra Civil Americana, na qual lutou pelo exército da União, que reunia as forças dos estados do Norte contra os Confederados do Sul. Bierce participou de um punhado de batalhas importantes, destacou-se pela bravura e sofreu pelo menos um ferimento grave em ação. Galgou postos até tornar-se primeiro-tenente, graduação com a qual deu baixa, no início de 1865, meses antes do fim da guerra. Retornando à atividade jornalística, estabeleceu-se em San Francisco, Califórnia, onde atuou como repórter e editor em diversos periódicos, enquanto, paralelamente, escrevia trabalhos de ficção. Sua primeira história publicada foi O Vale Assombrado, em 1871. Viveu na Inglaterra durante alguns anos. Sua produção literária não foi muito extensa; além de narrativas realisticamente sangrentas sobre o que tinha visto na guerra, dedicou-se ao que hoje seria chamado horror psicológico, bem como ao conto sobrenatural. Chegou até a flertar com a ficção científica, gênero que mal existia em sua época. Seu fim foi digno de uma de suas histórias: nos últimos dias de 1913, já idoso e divorciado (parece que, como tanta gente, tampouco sua esposa o suportou), viajou para o México com o plano de fazer uma cobertura jornalística da revolução que o país então vivia; atravessou a fronteira sozinho no final de dezembro daquele ano e conseguiu permissão para acompanhar o exército de Pancho Villa na qualidade de observador neutro. Daí em diante, nada mais se soube dele; foi dado como desaparecido, o que explica o porquê do ponto de interrogação que acompanha o ano (presumido) de sua morte. Há quem ache que ele simplesmente continuou a exercer seu habitual sarcasmo agressivo ("Bierce sendo Bierce") e que os mexicanos tinham um pavio mais curto para esse tipo de coisa que os americanos, de modo que o escritor teria acabado fuzilado. Mas isso é só conjectura.

Esta edição da Record inclui uma introdução de Heloisa Seixas, também a responsável pela seleção e tradução dos textos; consiste basicamente de uma biografia do autor, resumida, embora muito mais detalhada que a versão acima, e de breves considerações sobre sua obra. Seixas observa, de passagem, que é um tanto surpreendente que Bierce tenha elegido o sobrenatural como tema de várias de suas histórias, já que, em nível pessoal, era "agnóstico, ateu, herege, ou como você queira chamar aqueles que descreem de tudo". Na verdade, agnóstico, ateu e herege são três coisas diferentes, e parece que, dos três conceitos, aquele no qual Bierce melhor se encaixava era o de agnóstico – do grego a, um prefixo de negação, e gnosis, conhecimento. Ou seja, um agnóstico é alguém que não crê nem descrê: diz "não sei", por ser da opinião de que é impossível provar quer a existência, quer a inexistência de Deus. Mas, mesmo que Bierce fosse decididamente um ateu, não vejo, a priori, nenhuma incompatibilidade entre isso e seus trabalhos de ficção. Sua possível descrença no sobrenatural não o impediria de usá-lo em histórias inventadas, tal como Tolkien certamente não acreditava na existência de elfos ou dragões, o que não o impediu de escrever sobre eles.

A primeira história é Um Incidente na Ponte de Owl Creek, um drama e suspense ambientado durante a Guerra Civil, narrado de forma "nervosa", diria até que aos arrancos, o que, por alguma razão, parece ser comum em autores que adquiriram prática na escrita por meio do jornalismo (algo no conto me lembrou algum texto de Ernest Hemingway). Há grandes lacunas na narrativa, questões importantes com as quais o autor prefere deixar que o leitor "se vire". Um homem de nome Peyton Farquhar, fazendeiro no Alabama e apoiador fervoroso da causa do Sul na guerra, está prestes a ser enforcado na ponte mencionada no título do conto – e, para nossa surpresa, os militares que vão executá-lo são do exército confederado, ou seja, do lado que ele considera seu lado na guerra. Não é fornecida nenhuma explicação de como Farquhar terminou nessa situação; o mais próximo disso é um flashback no qual ele conversa com um soldado confederado que casualmente passa por sua casa, mas é tudo muito vago. De todo modo, o cerne da história está em como realidade e imaginação podem confundir-se em momentos de grande tensão emocional – uma coisa que, como veterano de guerra, Bierce devia conhecer bem.

Adendo, ou remendo, como preferirem: Descobri o que estava errado com Um Incidente na Ponte de Owl Creek, e minha primeira ideia foi reescrever o parágrafo anterior, mas optei por deixá-lo como está, só para ilustrar os graves problemas que uma tradução equivocada pode causar. Bem: uma vez que o fato de Peyton Farquhar ser levado à forca pelos soldados de seu próprio lado não parecia certo (ao menos, não sem uma explicação plausível), fui procurar o texto original do conto, para o caso de haver alguma falha na tradução. E não deu outra. Ocorre que a Sra. Heloisa Seixas, por alguma razão, traduziu "Federal army" por "exército confederado" em vez de "exército federal", como deveria ser – e exército federal, no contexto da Guerra Civil Americana, significava o exército da União, ou seja, do Norte, que eram os Estados Unidos propriamente ditos, já que o Sul tinha se declarado independente, com o nome de Estados Confederados da América, pretendendo formar um país separado. Traduzindo desse jeito, torna-se francamente impossível ao leitor distinguir os dois lados no conflito, o que resulta em confusão total, prejudicando gravemente a compreensão da história. Seixas caiu vários pontos no meu conceito depois dessa. Mas vamos em frente.

O próximo conto tem o curioso título de Naufrágio Virtual. Esse adjetivo, que hoje usamos a torto e a direito por causa da internet e dos games, é muito mais antigo que tudo isso e tem vários significados possíveis, sendo que, por vezes, a diferença entre eles é sutil. Talvez sua acepção mais comum seja "algo que existe como ideia ou ideal, mas sem existência objetiva". Isso poderia, muito pela tangente, se encaixar nesta narrativa, mas não é bem isso. A história é tão curta e, de um ponto de vista formal, tão simples, que qualquer tentativa minha de fornecer a vocês um esboço do enredo resultaria em spoiler, então direi apenas que gira em torno do fenômeno da "viagem do espírito", e que o tremendo impacto que consegue causar com seu final, depois de tão poucas páginas, é algo que praticamente obriga um leitor a admirar a habilidade do autor. Luar Sobre a Estrada narra um caso de assassinato sob três diferentes pontos de vista – um deles o da própria morta, que não se limita a contar como foi que se tornou um fantasma, mas também descreve como é a existência de quem "passou para o outro lado", embora essa não seja uma expressão adequada, pois, segundo a falecida Sra. Julia Hetman, essas almas não vão a parte alguma: elas ficam rondando aqueles a quem amaram ou odiaram em vida, e, embora normalmente sejam invisíveis, de vez em quando determinadas circunstâncias fazem com que os vivos consigam vê-los, o que, claro, costuma resultar num enorme medo. Para saber como os fantasmas se sentem em relação a tudo isso, leiam a história, que oferece esse "testemunho" junto com um enredo de mistério que vale a pena conhecer.

Aparições é uma pequena coletânea de brevíssimas histórias, todas narradas de forma sóbria e econômica, a respeito de… bem, aparições. É notável como o estilo despojado, extremamente direto adotado consegue realçar o elemento sobrenatural – é como se o narrador fosse da opinião de que os fatos a serem apresentados são tão extraordinários em si mesmos, que ficar fazendo floreios seria nada mais que um desperdício de palavras. Meu palpite é que alguns desses causos tenham saído da imaginação de Bierce e alguns outros tenham sido ouvidos por ele em meio a rodas de conversa banal (é o que hoje chamaríamos de "lenda urbana", embora a maior parte tenha ambientação rural!) e adaptados para funcionarem bem na forma escrita – e funcionam muito bem.

E assim chegamos ao que considero, se não a melhor, pelo menos uma das duas ou três melhores histórias do livro – opinião, creio eu, partilhada por H. P. Lovecraft, que escreve sobre ela em tom admirativo no ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura. Trata-se de O Ambiente Adequado, que, como as outras, é breve e simples. James Colston, escritor de histórias de terror, encontra por acaso, num bonde, um conhecido, o Sr. Willard Marsh, que, também por acaso, está lendo no jornal o mais recente trabalho publicado de Colston. A conversa dos dois desemboca num desafio: Colston afirma que não é necessário nenhum grau extraordinário de coragem para ler suas histórias a bordo de um bonde, na luz da manhã, circulando por ruas movimentadas, mas pergunta se Marsh seria capaz de lê-las sozinho, à noite, numa velha casa abandonada e tendo apenas uma vela como iluminação. Mais uma vez, não há como dar mais detalhes sem estragar a leitura para vocês, mas acredito que essa premissa já deixe claro que temos aí um conto de terror um tanto diferente, explorando uma questão na qual todo leitor do gênero já pensou ao menos uma vez. E o final é terrível – no melhor dos sentidos.

A história Um dos Gêmeos é narrada por um homem de nome Henry Stevens, que tem, ou melhor, teve um irmão gêmeo, John. Gêmeos, em geral, têm uma relação curiosa e difícil de imaginar para quem é "um só", e que fica ainda mais peculiar se forem idênticos, mas parece que o caso de Henry e John é uns quantos graus mais extraordinário. Quando jovens (conta Henry), ambos moravam em San Francisco, mas viviam e trabalhavam em bairros diferentes e tinham poucos conhecidos em comum; como a cidade, na época, não era tão grande, era relativamente comum alguém encontrar um deles e pensar que era o outro – situação com a qual gêmeos idênticos estão acostumados a lidar desde a infância. O que há de diferente no caso dos irmãos Stevens é que sua conexão é tal que, em ocasiões assim, muitas vezes, qualquer um dos dois diz e faz exatamente o que o outro diria e faria, ainda que não conheça a pessoa com quem está interagindo e não tenha a menor ideia de por que determinadas palavras estão saindo de sua própria boca. Essa ligação inexplicável irá moldar a participação de cada um dos gêmeos numa trama de mistério e morte.

No Limiar do Irreal é sobre o poder da ilusão, prestidigitação e hipnotismo, o que se presta bem a uma história de terror, dependendo do tratamento dado, e, quando uma história tem esse mote, ela tende a ser tanto mais assustadora quanto mais verossímil. Não sei nada sobre o assunto, então não sei dizer se é plausível que uma pessoa permaneça sob o efeito de uma ilusão hipnótica por tanto tempo e de forma tão convincente quanto é descrito neste conto, mas não há dúvida de que o resultado para o leitor é inquietante. A seguir, temos outra coletânea, intitulada Casas Espectrais. As várias pequenas narrativas que a compõem apresentam as experiências de diferentes tipos de pessoas quando, sob circunstâncias também diferentes, vão parar em lugares assombrados. Assim como em Aparições, há aquela sensação de estarmos lendo histórias que devem ter sido contadas ao redor de muitas mesas de bar antes que Bierce as ouvisse e, fazendo as adaptações que julgou necessárias, pusesse por escrito, exceto no caso de Missão Não Cumprida, que é protagonizada por um jornalista e tenho o palpite de que seja cem por cento criação do autor.

Os Olhos da Pantera merece menção especial, e quem assistiu ao clássico de terror Sangue de Pantera (1942) ou ao seu remake mais safado, A Marca da Pantera (1982) entenderá logo por que – a propósito, ambos os filmes tinham o mesmo título original, Cat People, literalmente 'O Povo-gato'). O tema da mulher-fera é um arquétipo, talvez de origem pré-histórica, e tem sido retomado por uma série de autores desde os tempos antigos, mas apreciei muito o modo como Bierce soube adaptá-lo ao pano-de-fundo de seu país e época. Chega a ser uma pena que a história seja tão curta, pois seus desdobramentos e subentendidos poderiam render um conto bem mais longo ou até mesmo um pequeno romance, sem recair na encheção de linguiça. O protagonista, o advogado Jenner Brading, está apaixonado por Irene Marlowe, uma jovem tão notável pela beleza quanto por seu comportamento peculiar, mas ela lhe diz que não pode casar-se com ele porque é louca (geralmente, o fato de uma pessoa se considerar louca é um indício de que não o é, mas isso não vem ao caso aqui). Pelo que ela conta, seu pai era um desbravador que vivia, com a esposa e a filha (uma irmã mais velha de Irene que morreu pequena), numa cabana no meio de uma região selvagem, naquele ainda pouco explorado oeste dos Estados Unidos. Aconteceu que, tendo ele saído para caçar, uma pantera aproximou-se da casa e ficou espreitando a mulher e a criança que estavam indefesas lá dentro. A fera não chegou a atacar, mas a experiência daquelas longas horas de terror extremo fez a mãe de Irene perder a sanidade e afetou de forma insólita a própria jovem, que nasceria meses depois do episódio. Para saber mais, vocês terão que ler a história, é claro. A propósito, a palavra "pantera", a rigor, é sinônimo de leopardo, animal encontrado na África e Ásia, mas já foi usada nas Américas para designar tanto a onça-pintada (que, assim como o leopardo, ocasionalmente apresenta coloração preta ao invés da típica pelagem malhada) quanto a onça-parda, ou puma, ou ainda suçuarana. A pantera da história de Bierce poderia ser qualquer uma das duas, pois ambas as espécies eram encontradas em grande parte dos Estados Unidos até fins do século XIX.

Ah, sim: há uma história chamada O Homem Saindo do Nariz, mas, ao contrário do que esse título sugere, não se trata de um texto surrealista. O "nariz" citado é apenas a porta de uma casa cuja fachada lembra toscamente um rosto, e a história fala de um homem, outrora rico e benquisto da sociedade, que foi arruinado por suas paixões e, o que é pior, arrastou consigo a família em sua queda. Há pouco ou nenhum elemento sobrenatural e, a meu ver, a história não tem maior relevância, a não ser pelo título curioso.

O restante do livro não é tão impressionante quanto algumas das histórias que já comentei; consiste basicamente em contos com algum elemento sobrenatural, mas que raramente causam ao leitor alguma sensação de verdadeira inquietação, com exceção de dois momentos. O primeiro é A Morte de Halpin Frayser, que lida com um tipo de ser sobrenatural que, pelo que o narrador dá a entender, é provavelmente ainda mais apavorante que o fantasma "comum": enquanto o fantasma é um "espírito sem corpo", essa outra entidade (à qual ele não chega a atribuir um nome) é um "corpo sem espírito". Talvez seja algo semelhante ao que hoje chamaríamos de zumbi, mas, lendo o conto, não parece ser bem isso. A história contém também a descrição de uma floresta assombrada por onde um personagem está vagando à noite, sem que ele, e tampouco o leitor, saiba ao certo se aquilo é sonho ou realidade; essa parte é de gelar a espinha.

O outro momento memorável aparece numa das pequenas narrativas que compõem Cruzando o Umbral, que é mais uma daquelas minicoletâneas; essa história específica chama-se Um Habitante de Carcosa, e aqui temos algo importante. Deixando de lado a marcada (e, por vezes, cansativa) ambientação norte-americana que predomina em quase todas as outras histórias, nessa, pela única vez em todo o livro, Bierce se permite entrar num mundo imaginário, ou, talvez, numa era imaginária do nosso próprio mundo: o personagem-narrador vive (ou viveu) na "antiga e famosa cidade de Carcosa", e agora encontra-se num lugar ermo e selvagem, sem saber onde está ou como chegou ali. Tudo o que lembra é de estar sofrendo de uma febre que, além de deixá-lo prostrado, afetou suas faculdades mentais, e supõe que, em meio ao delírio, tenha fugido de casa aproveitando uma distração de seus familiares e ido parar onde está, seja isso onde for. O desfecho é surpreendente e sinistro. Para reforçar a hipótese de que tudo acontece num mundo imaginário, ele menciona, de passagem, suas "mulheres e filhos", o que sugere que a tal Carcosa ficasse em alguma terra com costumes bem diferentes dos norte-americanos. Quanto ao nome, esse já intrigou muita gente; a teoria mais aceita é que Bierce tenha brincado com o nome da cidade francesa de Carcassone, que, nos tempos da dominação romana, chamava-se Carcasum. Robert W. Chambers, que sem dúvida leu Bierce em sua juventude, menciona Carcosa em alguns de seus contos de terror e fantasia, e, depois dele, outros escritores fizeram o mesmo, homenageando tanto a ele quanto a Bierce e contribuindo para o crescimento de uma espécie de mitologia, num fenômeno semelhante ao que acontece com a obra de H. P. Lovecraft, embora em escala menor.

Ambrose Bierce é certamente um autor importante, e ninguém que pretenda conhecer bem a história da literatura fantástica na América do Norte pode ignorá-lo; também não é possível negar que, entre os contos que compõem este livro, há um punhado que poderá, com justiça, merecer um lugar em qualquer boa antologia de terror – ou na lista pessoal dos mais assustadores de qualquer leitor experiente no gênero. Por outro lado, devo registrar, por questão de sinceridade, que a experiência como um todo (refiro-me à leitura deste volume de cabo a rabo) não foi assim tão prazerosa, talvez por causa da maneira como o autor escrevia: além de jornalista, ele era um cínico convicto, e a combinação das duas coisas parece resultar, durante noventa e nove por cento do tempo, numa linguagem extremamente seca, revelando uma quase obsessão pela objetividade, o que, ao final de algum tempo, torna-se cansativo, embora também tenha o efeito de realçar os raros e surpreendentes momentos de poesia. Em resumo, encarar um livro inteiro só com trabalhos dele talvez não seja a melhor maneira de ler Bierce, mas é indiscutível que o cara produziu um bocado de coisas que merecem ser conhecidas.

terça-feira, abril 28, 2015

O Rei de Amarelo

Muito tempo atrás, escrevi pela primeira vez aqui no blog uma referência ao famoso ensaio de H. P. Lovecraft, O Horror Sobrenatural na Literatura (foi neste post, para ser exato), observando que era uma leitura curiosa, mas, no cômputo final, um tanto frustante, pois Lovecraft comenta, literalmente, dezenas de autores e obras que despertam interesse em qualquer fã do gênero, sendo que, no caso da grande maioria, é remota a possibilidade de que nós, brasileiros, venhamos algum dia a ter acesso a esse material (na verdade, a maior parte dessas obras, hoje, deve ser rara até em seus países de origem). Ao longo dos anos, mencionei o ensaio outras vezes, geralmente quando, contra as expectativas, conseguia ler algum dos livros ou contos nele comentados. O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, é mais um deles, mas possui certas características que são únicas… E, devo dizer, curiosíssimas.

O comentário de Lovecraft sobre O Rei de Amarelo é elogioso, mas breve e sem maior aprofundamento. O próprio Lovecraft ficaria surpreso se soubesse que, depois de sua morte, a obra de Chambers passaria a ser frequentemente citada em conexão com a sua. Isso foi graças a um de seus amigos escritores, August Derleth (1909‑1971), que decidiu assumir o encargo de organizar e sistematizar as informações dispersas sobre os Mitos de Cthulhu, e, entre outras coisas, criou uma ponte entre eles e a assim chamada "Mitologia Amarela" de Chambers. A validade disso é até hoje objeto de discussão entre os fãs de ambos os autores, mas sobretudo entre os de Lovecraft, muitos dos quais acham essa ligação arbitrária e forçada. Só há um único conto de Lovecraft que realmente faz referência a elementos do universo de Chambers, e a intenção pode ter sido a de uma simples homenagem. É verdade, entretanto, que muitas passagens dos contos de Chambers evocam um tipo de horror que quem está acostumado a ler Lovecraft irá reconhecer.

Pode-se dizer que a força de O Rei de Amarelo não está tanto naquilo que ele diz, e sim no que deixa de dizer. O livro "real", o que podemos ler, tem o mesmo título de uma outra obra que só existe em seu universo de ficção. O "outro" O Rei de Amarelo é uma peça de teatro, mencionada em vários dos contos de Chambers como sendo, ao mesmo tempo, uma obra aclamada e maldita. Ao contrário do Necronomicon de H. P. Lovecraft, livro raro e secreto, no qual apenas poucos estudiosos do oculto já tiveram oportunidade de pôr as mãos, O Rei de Amarelo de Chambers é facilmente encontrado em livrarias em seu mundo fictício, e saudado pela crítica como uma obra que atingiu o mais alto nível de excelência artística – mas seu conteúdo é tão perturbador, que leva à loucura quem ousar lê-lo. Seu autor nunca é nomeado, e, quanto a enredo e personagens, só há informações vagas. O que vemos descrito, isso sim, são seus efeitos sobre as mentes de algumas pessoas.

O Rei de Amarelo "real" é principalmente um volume de contos – digo "principalmente" porque ele contém nove contos e também O Paraíso do Profeta, que é uma coisa difícil de definir, uma coleção de pequenos "poemas em prosa", cujo real significado provavelmente só o autor conhecia. Dos nove contos, os quatro primeiros estão em conexão com a peça O Rei de Amarelo; são os que apresentam maior teor de elementos fantásticos, e, em minha opinião, formam a melhor parte do livro. 

A primeira história, intitulada O Reparador de Reputações, é uma coisa muito bizarra à primeira vista… Não que se torne menos bizarra em seu desenrolar, mas, aos poucos, vamos percebendo que talvez nem tudo o que é narrado mereça credibilidade, já que o protagonista/narrador, Hildred Castaigne, apesar de julgar-se muito são (o louco nunca se acha louco), tem as faculdades mentais seriamente comprometidas, o que se deve, ao menos em parte, à leitura de O Rei de Amarelo. Basta dizer que o personagem nutre a esdrúxula ambição de ser coroado "imperador" dos Estados Unidos, título ao qual acredita de todo o coração ter direito – mas, para isso (pensa ele), terá que tirar do caminho outro "herdeiro" em potencial, seu primo Louis, este um jovem oficial militar e homem totalmente comum. Os delírios monárquicos de Hildred não são apenas acalentados por ele, mas alimentados por um personagem bizarro, um certo Sr. Wilde (uma homenagem a Oscar Wilde?), que vem a ser o reparador de reputações do título. Não fica claro se Wilde é simplesmente tão doido quanto Hildred, ou se tem seus próprios motivos misteriosos para incentivar a loucura do rapaz. A história passa-se em 1920 (pelo menos, é a data que Hildred fornece), sendo, portanto, um exercício de futurologia, já que o livro foi publicado em 1895. Nela, os Estados Unidos saíram recentemente vitoriosos de uma guerra contra a Alemanha (!), e, talvez em decorrência disso, são agora uma sociedade fortemente militarista. Embora o protagonista ache que o país vive tempos prósperos e gloriosos, parece haver muita gente descontente. O dia em que Hildred inicia sua narrativa é também o da inauguração da primeira Câmara Letal na cidade de Nova York, uma medida adotada pelo governo para ajudar os numerosos candidatos a suicida a encontrarem seu fim de forma "ordeira" e "limpa".

Antes de tornar-se conhecido como escritor, Robert W. Chambers já havia construído certa fama como desenhista e pintor, tendo contribuído com ilustrações para diversos jornais e revistas conhecidas da época. Sua educação nas artes visuais teve lugar em Paris, onde estudou de 1886 a 1893, morando no famoso Quartier Latin, o bairro boêmio, de estudantes e artistas, que teria um papel relevante em muitas de suas histórias. Fica evidente o quanto esse período de sua vida foi marcante para o autor: muitos de seus personagens são justamente jovens americanos, artistas ou estudantes de arte, que moram no Quartier Latin. O segundo conto de O Rei de Amarelo, A Máscara, é o primeiro a fazer uso dessa ambientação. É um texto dolorosamente lindo, cujo mote parece algo sugerido por um sonho. Boris e Alec, jovens estudantes americanos, moram no Quartier Latin e são amigos inseparáveis; Alec, pintor, é o narrador da história. Seu amigo Boris, escultor, de forma não explicitada, descobriu uma espantosa fórmula alquímica que transforma os seres vivos que nela são mergulhados em uma bela pedra semelhante ao mármore. Flores, pequenos peixes e um coelho servem de cobaias para essa curiosa experiência, e todos se convertem em maravilhosas "esculturas" ― mas, é claro, Boris está brincando com algo que não compreende, o que não pode terminar bem. Para tornar a trama mais complexa e mais humana, existe a paixão platônica que Alec nutre por Geneviève, a companheira de Boris. É um conto mais sereno, que cai bem depois da agitação febril que caracteriza O Reparador de Reputações, e sua força dramática é inegável.


(É curioso lembrar que, quando Hildred Castaigne descreve o prédio da Câmara Letal em O Reparador de Reputações, ele menciona que sua fachada é ornada por um conjunto de esculturas representando as Parcas, entidades da mitologia grega que controlavam a duração da vida dos mortais; as estátuas são "obra de um jovem escultor americano, Boris Yvain, que morrera em Paris com apenas 23 anos". Em A Máscara, ao entrarmos no estúdio de Boris, podemos ver lá as Parcas, ainda inacabadas. Esse é o primeiro de vários exemplos de como Chambers gostava de entrelaçar suas histórias, sugerindo que todas tinham lugar num mesmo universo.)

Na sequência, temos No Pátio do Dragão, cujo protagonista, ainda abalado pela leitura de O Rei de Amarelo, busca o conforto e a estabilidade oferecidos pela religião – mas, dentro da própria igreja onde assiste à missa, descobre-se sendo observado por um organista de aparência estranha e olhar maligno. Saindo da igreja, o personagem tenta voltar para a segurança de seu apartamento, que fica no "Pátio do Dragão", assim chamado por localizar-se na Rue du Dragon (tanto o pátio quanto a rua existiam mesmo), mas o organista macabro o persegue (ou seria tudo coisa de sua mente perturbada?). Há sugestões veladas de que esse organista é, na verdade, um ente demoníaco. Acredito, ainda, que o autor tenha-se aproveitado do curioso nome do logradouro para dar um duplo sentido ao título do conto, que, no original, era In the Court of the Dragon: court pode significar tanto pátio quanto corte, e o dragão é um dos símbolos usados na Bíblia para representar o diabo. "Na corte do diabo", então? Sinistro…

O último conto da primeira parte, e também o último a mencionar explicitamente a peça O Rei de Amarelo, é O Emblema Amarelo, considerado por muitos críticos como a história de Chambers com maior carga de elementos sobrenaturais. Novamente, o protagonista é um artista americano vivendo em Paris, um pintor que é chamado apenas de "Sr. Scott", e que pode, ou não, ser Jack Scott, que aparecia como coadjuvante em A Máscara (de novo, eis o entrelaçamento). Da janela de seu estúdio, Scott consegue avistar uma igreja próxima, com seu pequeno cemitério ao lado… E o guarda do cemitério é um sujeito anormalmente pálido e de olhar mortiço, cuja cara branca e balofa lembra ao pintor um verme de sepultura (provavelmente, não é coincidência que a descrição do guarda do cemitério lembre a do organista de No Pátio do Dragão). O repulsivo personagem começa a aparecer recorrentemente nos pesadelos de Scott, perguntando-lhe com insistência a respeito de um tal "Emblema Amarelo", que parece simbolizar algum mal antigo e inimaginável (Hum… Pensando bem, a conexão com Lovecraft não é tão absurda), ligado de alguma forma a O Rei de Amarelo, livro que Scott, até então, evitara a todo custo. Até então.

De acordo com a introdução de Carlos Orsi, os quatro contos de que acabo de falar formam a primeira parte de O Rei de Amarelo, e, como foi dito, apresentam elementos fantásticos. À guisa de transição para a segunda parte, de cunho mais realista, há dois textos "soltos", que não se enquadram em nenhum dos dois conjuntos. Um deles é O Paraíso do Profeta, que já descrevi, e o outro, o belo A Demoiselle d'Ys. Neste, o jovem protagonista americano está caçando sozinho nas charnecas do norte da França quando se perde, e, em meio à natureza selvagem, é salvo e acolhido por uma linda mocinha que se dedica à arte medieval da falcoaria. Aliás, tudo parece medieval nesse mundo isolado onde o jovem entrou, mas, apesar da estranheza geral, ele não pensa muito a respeito, pois sua atenção está toda voltada para sua bela anfitriã – mas surpresas o aguardam (e ao leitor) antes do fim da história. É um conto encantador sobre amor, nostalgia, e sobre a fragilidade da "realidade".

Talvez não seja mesmo por acaso que A Demoiselle d'Ys esteja onde está: um lembrete de que a realidade pode não ser tão certa nem tão sólida quanto achamos que ela é, vem a calhar antes de entrarmos na parte "realista" do livro. Essa parte também é conhecida como o "Quarteto das Ruas", porque consta das histórias A Rua dos Quatro Ventos, A Rua da Primeira Bomba, A Rua de Nossa Senhora dos Campos, e Rue Barrée. Também aqui, Chambers faz de sua juventude em Paris a fonte de inspiração mais frequente, mas, embora devesse ser uma coisa extraordinária estudar arte em uma das cidades mais bonitas e de vida cultural mais intensa do mundo, os contos não têm a mesma força sem o toque sobrenatural da primeira parte. O destaque, creio, fica com A Rua da Primeira Bomba, que descreve as durezas do cerco de Paris durante a Guerra Franco-Prussiana: o horror da escassez de alimentos ganha um eficiente símbolo na figura de um personagem em especial, um menino de espírito empreendedor que se especializa em ficar de tocaia junto aos bueiros, para matar os ratos e vendê-los aos cidadãos esfomeados. Chambers (para sua sorte!) não testemunhou esses eventos, já que o cerco teve lugar durante o inverno de 1870-71, anos antes de sua chegada a Paris, mas, sem dúvida, ouviu muitas histórias a respeito.

Os outros três contos da segunda parte tratam de aspectos do cotidiano dos moradores do Quartier Latin, embora com enfoques diferentes: A Rua dos Quatro Ventos tem um clima melancólico e fala sobre solidão, enquanto A Rua de Nossa Senhora dos Campos e Rue Barrée são simples histórias juvenis sobre paixões e descobertas. Com um detalhe revelador: uma das questões centrais dessas histórias é o choque entre os costumes liberais (dissolutos talvez fique mais próximo da realidade) dos estudantes veteranos, já plenamente adaptados ao estilo de vida parisiense, e a visão de mundo inocente, até simplória, de um jovem recém-chegado, ainda com as marcas de uma educação tradicional em alguma cidadezinha do interior dos Estados Unidos. Robert W. Chambers talvez estivesse retratando a si próprio em personagens como o veterano Foxhall Clifford, que aparece nas duas últimas histórias e, ao olhar para os calouros Hastings e Selby, parece sentir um misto de pena de sua ingenuidade e inveja de sua pureza.

Em tempo: essas duas últimas histórias de O Rei de Amarelo prefiguram o rumo que a carreira literária de Chambers tomaria a seguir – ele se rendeu às pressões do mercado e passou a dedicar-se ao tipo de literatura que vendia, o que, na época, significava romance-para-moças, gênero com o qual acabou ficando rico. H. P. Lovecraft nunca o perdoou por isso, e, em O Horror Sobrenatural na Literatura, lamenta pelos bons trabalhos de terror que Chambers nunca produziu.

Como observação final, quero registrar que achei muito boa a edição da Intrínseca. Só há uma coisa que eu teria feito diferente: as notas. Se ter as notas no final do livro já é pouco prático, imaginem no final de cada conto!… O resultado é uma constante, incômoda e desnecessária interrupção no fluxo da leitura, o que poderia ser evitado mediante o simples expediente de colocar as notas no rodapé das páginas.