terça-feira, abril 28, 2015

O Rei de Amarelo

Muito tempo atrás, escrevi pela primeira vez aqui no blog uma referência ao famoso ensaio de H. P. Lovecraft, O Horror Sobrenatural na Literatura (foi neste post, para ser exato), observando que era uma leitura curiosa, mas, no cômputo final, um tanto frustante, pois Lovecraft comenta, literalmente, dezenas de autores e obras que despertam interesse em qualquer fã do gênero, sendo que, no caso da grande maioria, é remota a possibilidade de que nós, brasileiros, venhamos algum dia a ter acesso a esse material (na verdade, a maior parte dessas obras, hoje, deve ser rara até em seus países de origem). Ao longo dos anos, mencionei o ensaio outras vezes, geralmente quando, contra as expectativas, conseguia ler algum dos livros ou contos nele comentados. O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, é mais um deles, mas possui certas características que são únicas… E, devo dizer, curiosíssimas.

O comentário de Lovecraft sobre O Rei de Amarelo é elogioso, mas breve e sem maior aprofundamento. O próprio Lovecraft ficaria surpreso se soubesse que, depois de sua morte, a obra de Chambers passaria a ser frequentemente citada em conexão com a sua. Isso foi graças a um de seus amigos escritores, August Derleth (1909‑1971), que decidiu assumir o encargo de organizar e sistematizar as informações dispersas sobre os Mitos de Cthulhu, e, entre outras coisas, criou uma ponte entre eles e a assim chamada "Mitologia Amarela" de Chambers. A validade disso é até hoje objeto de discussão entre os fãs de ambos os autores, mas sobretudo entre os de Lovecraft, muitos dos quais acham essa ligação arbitrária e forçada. Só há um único conto de Lovecraft que realmente faz referência a elementos do universo de Chambers, e a intenção pode ter sido a de uma simples homenagem. É verdade, entretanto, que muitas passagens dos contos de Chambers evocam um tipo de horror que quem está acostumado a ler Lovecraft irá reconhecer.

Pode-se dizer que a força de O Rei de Amarelo não está tanto naquilo que ele diz, e sim no que deixa de dizer. O livro "real", o que podemos ler, tem o mesmo título de uma outra obra que só existe em seu universo de ficção. O "outro" O Rei de Amarelo é uma peça de teatro, mencionada em vários dos contos de Chambers como sendo, ao mesmo tempo, uma obra aclamada e maldita. Ao contrário do Necronomicon de H. P. Lovecraft, livro raro e secreto, no qual apenas poucos estudiosos do oculto já tiveram oportunidade de pôr as mãos, O Rei de Amarelo de Chambers é facilmente encontrado em livrarias em seu mundo fictício, e saudado pela crítica como uma obra que atingiu o mais alto nível de excelência artística – mas seu conteúdo é tão perturbador, que leva à loucura quem ousar lê-lo. Seu autor nunca é nomeado, e, quanto a enredo e personagens, só há informações vagas. O que vemos descrito, isso sim, são seus efeitos sobre as mentes de algumas pessoas.

O Rei de Amarelo "real" é principalmente um volume de contos – digo "principalmente" porque ele contém nove contos e também O Paraíso do Profeta, que é uma coisa difícil de definir, uma coleção de pequenos "poemas em prosa", cujo real significado provavelmente só o autor conhecia. Dos nove contos, os quatro primeiros estão em conexão com a peça O Rei de Amarelo; são os que apresentam maior teor de elementos fantásticos, e, em minha opinião, formam a melhor parte do livro. 

A primeira história, intitulada O Reparador de Reputações, é uma coisa muito bizarra à primeira vista… Não que se torne menos bizarra em seu desenrolar, mas, aos poucos, vamos percebendo que talvez nem tudo o que é narrado mereça credibilidade, já que o protagonista/narrador, Hildred Castaigne, apesar de julgar-se muito são (o louco nunca se acha louco), tem as faculdades mentais seriamente comprometidas, o que se deve, ao menos em parte, à leitura de O Rei de Amarelo. Basta dizer que o personagem nutre a esdrúxula ambição de ser coroado "imperador" dos Estados Unidos, título ao qual acredita de todo o coração ter direito – mas, para isso (pensa ele), terá que tirar do caminho outro "herdeiro" em potencial, seu primo Louis, este um jovem oficial militar e homem totalmente comum. Os delírios monárquicos de Hildred não são apenas acalentados por ele, mas alimentados por um personagem bizarro, um certo Sr. Wilde (uma homenagem a Oscar Wilde?), que vem a ser o reparador de reputações do título. Não fica claro se Wilde é simplesmente tão doido quanto Hildred, ou se tem seus próprios motivos misteriosos para incentivar a loucura do rapaz. A história passa-se em 1920 (pelo menos, é a data que Hildred fornece), sendo, portanto, um exercício de futurologia, já que o livro foi publicado em 1895. Nela, os Estados Unidos saíram recentemente vitoriosos de uma guerra contra a Alemanha (!), e, talvez em decorrência disso, são agora uma sociedade fortemente militarista. Embora o protagonista ache que o país vive tempos prósperos e gloriosos, parece haver muita gente descontente. O dia em que Hildred inicia sua narrativa é também o da inauguração da primeira Câmara Letal na cidade de Nova York, uma medida adotada pelo governo para ajudar os numerosos candidatos a suicida a encontrarem seu fim de forma "ordeira" e "limpa".

Antes de tornar-se conhecido como escritor, Robert W. Chambers já havia construído certa fama como desenhista e pintor, tendo contribuído com ilustrações para diversos jornais e revistas conhecidas da época. Sua educação nas artes visuais teve lugar em Paris, onde estudou de 1886 a 1893, morando no famoso Quartier Latin, o bairro boêmio, de estudantes e artistas, que teria um papel relevante em muitas de suas histórias. Fica evidente o quanto esse período de sua vida foi marcante para o autor: muitos de seus personagens são justamente jovens americanos, artistas ou estudantes de arte, que moram no Quartier Latin. O segundo conto de O Rei de Amarelo, A Máscara, é o primeiro a fazer uso dessa ambientação. É um texto dolorosamente lindo, cujo mote parece algo sugerido por um sonho. Boris e Alec, jovens estudantes americanos, moram no Quartier Latin e são amigos inseparáveis; Alec, pintor, é o narrador da história. Seu amigo Boris, escultor, de forma não explicitada, descobriu uma espantosa fórmula alquímica que transforma os seres vivos que nela são mergulhados em uma bela pedra semelhante ao mármore. Flores, pequenos peixes e um coelho servem de cobaias para essa curiosa experiência, e todos se convertem em maravilhosas "esculturas" ― mas, é claro, Boris está brincando com algo que não compreende, o que não pode terminar bem. Para tornar a trama mais complexa e mais humana, existe a paixão platônica que Alec nutre por Geneviève, a companheira de Boris. É um conto mais sereno, que cai bem depois da agitação febril que caracteriza O Reparador de Reputações, e sua força dramática é inegável.


(É curioso lembrar que, quando Hildred Castaigne descreve o prédio da Câmara Letal em O Reparador de Reputações, ele menciona que sua fachada é ornada por um conjunto de esculturas representando as Parcas, entidades da mitologia grega que controlavam a duração da vida dos mortais; as estátuas são "obra de um jovem escultor americano, Boris Yvain, que morrera em Paris com apenas 23 anos". Em A Máscara, ao entrarmos no estúdio de Boris, podemos ver lá as Parcas, ainda inacabadas. Esse é o primeiro de vários exemplos de como Chambers gostava de entrelaçar suas histórias, sugerindo que todas tinham lugar num mesmo universo.)

Na sequência, temos No Pátio do Dragão, cujo protagonista, ainda abalado pela leitura de O Rei de Amarelo, busca o conforto e a estabilidade oferecidos pela religião – mas, dentro da própria igreja onde assiste à missa, descobre-se sendo observado por um organista de aparência estranha e olhar maligno. Saindo da igreja, o personagem tenta voltar para a segurança de seu apartamento, que fica no "Pátio do Dragão", assim chamado por localizar-se na Rue du Dragon (tanto o pátio quanto a rua existiam mesmo), mas o organista macabro o persegue (ou seria tudo coisa de sua mente perturbada?). Há sugestões veladas de que esse organista é, na verdade, um ente demoníaco. Acredito, ainda, que o autor tenha-se aproveitado do curioso nome do logradouro para dar um duplo sentido ao título do conto, que, no original, era In the Court of the Dragon: court pode significar tanto pátio quanto corte, e o dragão é um dos símbolos usados na Bíblia para representar o diabo. "Na corte do diabo", então? Sinistro…

O último conto da primeira parte, e também o último a mencionar explicitamente a peça O Rei de Amarelo, é O Emblema Amarelo, considerado por muitos críticos como a história de Chambers com maior carga de elementos sobrenaturais. Novamente, o protagonista é um artista americano vivendo em Paris, um pintor que é chamado apenas de "Sr. Scott", e que pode, ou não, ser Jack Scott, que aparecia como coadjuvante em A Máscara (de novo, eis o entrelaçamento). Da janela de seu estúdio, Scott consegue avistar uma igreja próxima, com seu pequeno cemitério ao lado… E o guarda do cemitério é um sujeito anormalmente pálido e de olhar mortiço, cuja cara branca e balofa lembra ao pintor um verme de sepultura (provavelmente, não é coincidência que a descrição do guarda do cemitério lembre a do organista de No Pátio do Dragão). O repulsivo personagem começa a aparecer recorrentemente nos pesadelos de Scott, perguntando-lhe com insistência a respeito de um tal "Emblema Amarelo", que parece simbolizar algum mal antigo e inimaginável (Hum… Pensando bem, a conexão com Lovecraft não é tão absurda), ligado de alguma forma a O Rei de Amarelo, livro que Scott, até então, evitara a todo custo. Até então.

De acordo com a introdução de Carlos Orsi, os quatro contos de que acabo de falar formam a primeira parte de O Rei de Amarelo, e, como foi dito, apresentam elementos fantásticos. À guisa de transição para a segunda parte, de cunho mais realista, há dois textos "soltos", que não se enquadram em nenhum dos dois conjuntos. Um deles é O Paraíso do Profeta, que já descrevi, e o outro, o belo A Demoiselle d'Ys. Neste, o jovem protagonista americano está caçando sozinho nas charnecas do norte da França quando se perde, e, em meio à natureza selvagem, é salvo e acolhido por uma linda mocinha que se dedica à arte medieval da falcoaria. Aliás, tudo parece medieval nesse mundo isolado onde o jovem entrou, mas, apesar da estranheza geral, ele não pensa muito a respeito, pois sua atenção está toda voltada para sua bela anfitriã – mas surpresas o aguardam (e ao leitor) antes do fim da história. É um conto encantador sobre amor, nostalgia, e sobre a fragilidade da "realidade".

Talvez não seja mesmo por acaso que A Demoiselle d'Ys esteja onde está: um lembrete de que a realidade pode não ser tão certa nem tão sólida quanto achamos que ela é, vem a calhar antes de entrarmos na parte "realista" do livro. Essa parte também é conhecida como o "Quarteto das Ruas", porque consta das histórias A Rua dos Quatro Ventos, A Rua da Primeira Bomba, A Rua de Nossa Senhora dos Campos, e Rue Barrée. Também aqui, Chambers faz de sua juventude em Paris a fonte de inspiração mais frequente, mas, embora devesse ser uma coisa extraordinária estudar arte em uma das cidades mais bonitas e de vida cultural mais intensa do mundo, os contos não têm a mesma força sem o toque sobrenatural da primeira parte. O destaque, creio, fica com A Rua da Primeira Bomba, que descreve as durezas do cerco de Paris durante a Guerra Franco-Prussiana: o horror da escassez de alimentos ganha um eficiente símbolo na figura de um personagem em especial, um menino de espírito empreendedor que se especializa em ficar de tocaia junto aos bueiros, para matar os ratos e vendê-los aos cidadãos esfomeados. Chambers (para sua sorte!) não testemunhou esses eventos, já que o cerco teve lugar durante o inverno de 1870-71, anos antes de sua chegada a Paris, mas, sem dúvida, ouviu muitas histórias a respeito.

Os outros três contos da segunda parte tratam de aspectos do cotidiano dos moradores do Quartier Latin, embora com enfoques diferentes: A Rua dos Quatro Ventos tem um clima melancólico e fala sobre solidão, enquanto A Rua de Nossa Senhora dos Campos e Rue Barrée são simples histórias juvenis sobre paixões e descobertas. Com um detalhe revelador: uma das questões centrais dessas histórias é o choque entre os costumes liberais (dissolutos talvez fique mais próximo da realidade) dos estudantes veteranos, já plenamente adaptados ao estilo de vida parisiense, e a visão de mundo inocente, até simplória, de um jovem recém-chegado, ainda com as marcas de uma educação tradicional em alguma cidadezinha do interior dos Estados Unidos. Robert W. Chambers talvez estivesse retratando a si próprio em personagens como o veterano Foxhall Clifford, que aparece nas duas últimas histórias e, ao olhar para os calouros Hastings e Selby, parece sentir um misto de pena de sua ingenuidade e inveja de sua pureza.

Em tempo: essas duas últimas histórias de O Rei de Amarelo prefiguram o rumo que a carreira literária de Chambers tomaria a seguir – ele se rendeu às pressões do mercado e passou a dedicar-se ao tipo de literatura que vendia, o que, na época, significava romance-para-moças, gênero com o qual acabou ficando rico. H. P. Lovecraft nunca o perdoou por isso, e, em O Horror Sobrenatural na Literatura, lamenta pelos bons trabalhos de terror que Chambers nunca produziu.

Como observação final, quero registrar que achei muito boa a edição da Intrínseca. Só há uma coisa que eu teria feito diferente: as notas. Se ter as notas no final do livro já é pouco prático, imaginem no final de cada conto!… O resultado é uma constante, incômoda e desnecessária interrupção no fluxo da leitura, o que poderia ser evitado mediante o simples expediente de colocar as notas no rodapé das páginas.

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