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quarta-feira, agosto 11, 2010

Vlad: a Última Confissão

"(...) - Quanto ao contexto dos meus pecados, é simples. (...) Eu preciso governar.
- Você governa.
- Não. Eu me sento no trono. Ele está colocado no centro da terra mais sem lei do mundo. E fui colocado nele para mudar isso. Este é o meu kismet.
- Não conheço essa palavra.
- É uma palavra dos turcos. Uma tradução aproximada seria um 'destino inalterável'. Dado por Deus no nascimento. (...)
- Você está dizendo que não pode evitar o que faz?
- Sim.
- Este não é o ensinamento de nossa Igreja, de sua fé. Cada homem tem uma escolha, fazer o bem ou o mal.
- Então talvez eu tenha me desviado da Ortodoxa nesse ponto. Porque sei o que estou destinado a fazer e como fazê-lo. Não posso fazer outra coisa."

* * *

Vlad III Basarab (1431?-1476), príncipe da Valáquia, não é uma figura histórica como outras. É difícil obter alguma informação sobre ele além do que todo mundo sabe: que serviu de inspiração para que o escritor irlandês Bram Stoker criasse o mais famoso vampiro da literatura, Drácula. Experimentem uma busca rápida no Google com o nome dele, ou com qualquer de seus apelidos mais famosos, Vlad Tepes ou Vlad Drácula: praticamente só vão encontrar uma lista infindável de textos em sites sobre vampirismo, enfatizando o vasto derramamento de sangue que ele promoveu em sua terra (na época um principado subordinado ao reino da Hungria, hoje uma das províncias que formam a Romênia), e talvez mencionando o desconcertante fato de que, quando seu túmulo foi aberto, em 1933, só ossos de cavalo foram encontrados - o que, em se tratando de um homem sobre cujas supostas afinidades sobrenaturais já se cochichava desde quando ele era vivo, levantou as inevitáveis dúvidas sobre se ele teria realmente morrido, se, morrendo, teria permanecido morto, ou... Bem, vocês entenderam.

O que C. C. Humphreys faz neste livro é tentar encontrar o homem por trás do mito, reconstituindo a vida de Vlad desde sua juventude (boa parte da qual passada como refém dos turcos) para tentar entender os porquês de seus atos. Não há propriamente um juízo de valores nestas páginas, mas o autor consegue, sem formular a questão em termos explícitos, fazer com que o leitor se pergunte qual a explicação para que o mesmo homem considerado um herói em seu país (pois Vlad o é) seja visto no resto do mundo como um mero assassino psicótico que, para o azar da humanidade, herdou uma coroa e um trono, numa época em que os atos dos poderosos não eram contestados.

O romance começa em 1481, cinco anos após a morte de Vlad, quando o cavaleiro húngaro Janos Horvathy, ele próprio um membro da Ordem do Dragão (à qual também pertencia Vlad) chega à Valáquia com a missão de investigar e descobrir a verdade sobre o príncipe; se possível, tentar reabilitar seu nome, já que o excesso de sangue que manchou sua história acabou prejudicando a reputação dessa irmandade outrora venerável. Para tanto, ele reúne as últimas três pessoas vivas que privaram da intimidade de Vlad: Ion Tremblac, cavaleiro valáquio, que foi seu braço direito e melhor amigo; Ilona, amante do príncipe; e o ex-monge Vasilie, seu confessor. É através dos depoimentos deles que a extraordinária história de Vlad Drácula será recuperada.

A vida de Vlad desenrolou-se em situações limítrofes, tanto no tempo quanto no espaço. Em sua época, a Europa atravessava o traumático período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna - é possível que ele tenha sido testemunha ocular da queda de Constantinopla nas mãos dos turcos (1453), evento que, por convenção, costuma ser tomado como linha divisória entre as duas eras. Ao mesmo tempo, seu pequeno país estava cravado exatamente onde o Ocidente cristão encontrava o Oriente Médio muçulmano: onde dois mundos colidiam. E, a exemplo do que seus irmãos maometanos do norte da África - mouros, berberes - haviam feito na Península Ibérica séculos antes, os turcos do Império Otomano pretendiam agora expandir a influência do Islã pelo leste europeu. E a Valáquia estava em seu caminho.

O pai de Vlad, príncipe Vlad II, era conhecido tanto pela coragem em batalha quanto pela forma impiedosa como costumava tratar inimigos vencidos. E inimigos não faltavam, tanto externos - os turcos, cujo furor expansionista estava no auge nessa época - quanto internos: boa parte dos boiardos, isto é, dos nobres, não tinham nada contra cooperar com os invasores, desde que a margem de lucro fosse suficientemente alta, além de cobiçarem o trono e não recusarem qualquer ajuda para chegar a ele, viesse de onde viesse. Por sua participação na resistência contra o invasor muçulmano, Vlad II recebera do patriarca da Igreja Ortodoxa a alta honraria de ser nomeado membro da Draculea, a Ordem do Dragão, e por isso ficou conhecido como Dracul (dragão, em romeno), passando seus filhos homens a terem o direito de usar o epíteto de Dracula: os "filhos do dragão".

Vlad II acabou derrotado pelo sultão turco Murad na batalha de Galípoli, e, entre as concessões que teve de fazer, entregou os dois filhos mais jovens, Vlad e Radu, como reféns ao inimigo vitorioso, enquanto apenas o mais velho, Mircea, permanecia em sua companhia. O tratamento dispensado aos reféns segundo o romance faz lembrar o que os romanos davam aos filhos de chefes bárbaros sob sua tutela: confortos condizentes com sua posição social e, mais importante, a melhor educação possível - dentro da cultura do povo vitorioso, é claro. Vlad aprende várias línguas, poesia, literatura, matemática, além de ser iniciado naquela que se tornaria sua grande paixão, a falcoaria. Também estuda a fundo o Corão, o que não o leva a abraçar a fé islâmica, mas é de suma importância para que compreenda melhor os turcos, contra os quais não duvida em nenhum momento de que um dia terá de lutar. Até que um passo em falso dado por seu pai tem consequências terríveis: Vlad é transferido para a fortaleza de Tokat, onde amarga longas semanas num calabouço e depois é integrado à força a uma turma de estudantes que se dedicam a matérias bem menos edificantes que as que estudara até aí: métodos de tortura, alguns dos quais o jovem sente na própria pele. E é em Tokat que Vlad pela primeira vez vê um homem ser empalado, técnica que os turcos aprenderam com os saxões da Transilvânia e aperfeiçoaram.

Paradoxalmente, Vlad acaba contando com o favor de Murad para não só recuperar sua liberdade, como para conquistar seu direito: durante seu período como refém, seu pai e seu irmão mais velho haviam sido assassinados por uma liga de boiardos traidores, e aos 18 anos, à frente de um pequeno exército de valáquios fiéis e de tropas cedidas pelo sultão (que provavelmente imaginou que um príncipe coroado graças a sua benevolência se tornaria um fantoche útil), Vlad recupera o trono da Valáquia e senta-se nele pela primeira vez - ao longo de sua turbulenta carreira esse trono seria perdido e recuperado nada menos que três vezes. É só mais tarde, durante seu segundo e mais longo período de governo (1456-1462), que ele ganha a fama que o acompanharia até o túmulo e muito além: começa empalando os nobres que conspiraram contra seu pai e depois instaura a mesma pena para todos os crimes, de qualquer tipo, que venham a ser cometidos. Com isso, consegue transformar a Valáquia de uma terra sem lei, onde o enorme número de bandidos nas estradas havia inviabilizado o comércio, num país seguro e próspero, o que faz com que a população comum o veja com bons olhos. Isso, mais as diversas vitórias que obteve contra os turcos, mesmo em grande inferioridade numérica, valeu-lhe o status de herói nacional de que ainda hoje goza na Romênia. E no entanto...

É difícil separar fato de ficção em relação a qualquer vulto histórico, e talvez nenhum outro seja tão difícil nesse ponto quanto Vlad. Pode-se (e isso já foi feito) retratá-lo simplesmente como um patriota obstinado que desejava o melhor para seu país e para isso estava disposto a tudo - inclusive a atos brutais e chocantes - ou como um perfeito monstro, que se deliciava com o derramamento de sangue e aproveitava qualquer pretexto que se apresentasse para ordenar verdadeiros holocaustos. Os romenos gostam de acreditar que seu antigo príncipe sabia usar o terror como uma arma para alcançar objetivos válidos: punir com brutalidade exemplar qualquer criminoso apanhado era uma maneira de fazer outras pessoas pensarem mil vezes antes de cometer crimes, enquanto, para os soldados turcos, marchar por uma estrada ladeada pelos cadáveres empalados de centenas de seus camaradas era sem dúvida um golpe severo no moral, o que só podia beneficiar os valáquios. E, para quem quiser entrar nesse mérito, o que não farei aqui, é interessante lembrar que, além de todos os outros motivos de notoriedade, Vlad provavelmente foi o primeiro governante da História a ter o poder da imprensa mobilizado contra si: a então recente invenção de Gutenberg permitiu que panfletos narrando seus crimes fossem copiados aos milhares e amplamente distribuídos em vários países. Tenha isso sido um golpe de difamação orquestrado por seus inimigos, ou mero resultado do faro comercial de alguns indivíduos que perceberam que podiam lucrar com a curiosidade do público por histórias assustadoras (ei, isso não é uma maravilha? A imprensa marrom nasceu praticamente junto com a própria imprensa!), o fato é que fica praticamente impossível saber quanto do que dizem esses folhetos é verdade e quanto é fantasia.

Humphreys parece ser o tipo de escritor que gosta de personagens complexos e contraditórios, e soube fazer de "seu" Vlad um exemplo perfeito e completo disso: ora ele ganha nossa admiração, ora nos causa horror. As qualidades que o autor atribui ao príncipe são aquelas que já eram imaginadas por quem conhecia um pouco mais sobre ele do que apenas seus atos sanguinolentos: qualquer um que tenha tido a trajetória de vida que Vlad teve só podia tratar-se de um homem com uma vontade de ferro e uma coragem inabalável. Além disso, ele tem facetas diferentes: pode ser incrivelmente cruel, mas também gentil - enfim, é humano. E o melhor é que há no livro vários outros personagens fascinantes, além de uma narrativa vigorosa, envolvente, como há tempos eu não via. Pena que o autor ponha tudo isso a perder com um final que tenta ser surpreendente, mas só consegue parecer absurdo: no lugar de Humphreys, eu teria terminado o livro no capítulo 50, pois os dois últimos e o epílogo são um delírio só. Não que eu seja um daqueles chatos que ficam cobrando "verossimilhança" em obras de ficção (e Vlad: a Última Confissão é ficção, mesmo que baseada em fatos históricos), mas há ficções que convencem e outras que soam artificiais. Até o capítulo 50, o livro de Humphreys se enquadra no primeiro tipo; daí para diante, cai no segundo.

domingo, setembro 27, 2009

O Culto do Amador

Qualquer pessoa que já haja experimentado manter comigo alguma conversação de pelo menos 15 minutos sobre temas culturais (como é o caso de todos os leitores deste blog - toda a meia dúzia, quero dizer) já me ouviu esbravejar ardorosamente contra o que considero uma das maiores pragas da modernidade: aquilo que chamo de fragmentação do conhecimento, fruto de uma supervalorização da especialização, que, por sua vez, é fruto dos antolhos que o mundo capitalista pós-moderno prendeu na cara do cidadão mediano do fim do século XX, início do XXI. Em bom português, a ideia geral é que você não precisa (e, para muitos, nem deve) conhecer, saber ou se interessar por coisa alguma que não tenha diretamente a ver com sua profissão ou área de atuação: se você é um técnico em informática, não tem que saber nada de biologia, se você é um administrador, não deve perder tempo com literatura, se você é um advogado, não deve se ocupar de nada que não seja jurídico, e por aí afora. Para mim, isso é a receita mais garantida para criar uma multidão de pessoas burras (diploma e sucesso profissional não são antídoto contra a burrice, nunca foram), rasas, tapadas, desumanas e materialistas. Mesmo que eu esteja sozinho no mundo, sem ninguém que compartilhe de tal opinião, continuo acreditando que devemos saber um pouco de tudo, sim: não necessariamente ser um multi-homem como Leonardo da Vinci, mas saber uma infinidade de pequenas e grandes coisas sobre os mais variados assuntos, saber o que é fotossíntese, quem foi Péricles, no que acreditam os muçulmanos, onde fica o deserto de Gobi, o que são placas tectônicas, como se sopra vidro, como os samurais obtinham a liga de aço que lhes permitia fabricar as melhores espadas do mundo, saber que baleia não é peixe, saber o que é o teorema de Pitágoras, saber qual a função dos metais semicondutores na eletrônica... SABER! Não importa se esses conhecimentos irão lhe ser "úteis" algum dia ou não: saber, simplesmente (parafraseando Ítalo Calvino) porque saber é melhor que não saber. É preciso conhecer muitas coisas, sobre muitos assuntos diferentes, para chegar a alguma percepção - nunca à percepção completa - de que todas as áreas do conhecimento humano estão interligadas, de que todas as ciências e artes interagem e se interpenetram, de que tudo faz parte de um grande todo. Estou convencido de que o único motivo porque algumas pessoas são curiosas e sedentas de saber, enquanto outras são apáticas e não se interessam por coisa alguma, é que as primeiras compreenderam isso, e as outras não.

Ocorre que o "jogo" (na falta de palavra melhor...) do conhecimento tem ainda outra particularidade tão fascinante quanto aflitiva: toda moeda tem dois lados. Este livro de Andrew Keen me mostrou esse fato na prática. Tendo sido um figurão dentro de mais de uma grande empresa norte-americana de internet, Keen não apenas testemunhou a assim chamada "revolução da informação" nos anos 90, mas ajudou a fazê-la. Agora, nos anos 2000, alarmado com os rumos que a coisa tomou, escreveu este livro para chamar a atenção para o grande problema deste mundo onde temos toda a informação que desejarmos sempre à mão, acessível com poucos cliques: quem é que garante a qualidade dessa informação? Essa já era uma das grandes questões relacionadas à internet desde que ela se popularizou e passou a ser acessível a muita gente, e tornou-se ainda mais crucial nos dias de hoje, quando literalmente qualquer um pode escrever e publicar qualquer coisa que deseje.

Não se trata de questionar o princípio da liberdade de expressão, e não mudei de ideia sobre o bem que faz à mente humana interessar-se por muitas coisas diferentes, mas é preciso reconhecer que algo está errado quando não se faz mais distinção entre boato e realidade, entre opinião e fato, entre amador e especialista. Eu me irrito com a conversa de executivos que são totalmente analfabetos sobre qualquer outra coisa que não seja o mundo "business", mas reconheço a importância do que fazem e jamais me meteria a entender mais que eles sobre esse mundo, assim como consideraria ridículo que um deles pretendesse saber mais que eu sobre língua ou literatura. O que me distingue desses executivos é apenas que, enquanto eles não sabem nem querem saber nada que não se relacione ao seu campo profissional, eu, embora tenha estudado e me formado em língua e literatura, não me contento em viver num mundo onde só exista isso: quero conhecer física, química, biologia, ocultismo, matemática, zoologia, medicina, geografia, história, religião, arte, filosofia e (por que não?) também economia e administração, ou seja, "business"... Não me tornarei um expert em nenhuma dessas disciplinas como o sou (espero) em língua e literatura, mas, poxa, eu quero saber! Saber, sem perder de vista que você tem que estudar uma coisa durante longos anos se quiser ser algo mais que um curioso sobre ela. Quando um especialista em qualquer um desses campos estiver falando, eu humildemente murcharei a minha orelha. Isso requer apenas bom senso.

Bom senso esse que, como nos mostra Keen, anda em falta no mundo pós-revolução da informação: qualquer pessoa, por menos credenciais que tenha, pode discorrer sobre qualquer assunto, e 99% dos eventuais leitores irão atribuir ao material produzido por essas pessoas sem credenciais o mesmo peso que aos trabalhos de doutores na matéria, simplesmente por não terem maturidade intelectual para separar o que merece credibilidade do que não merece. Na verdade, talvez a maioria dos leitores-internautas dê mais valor ao que é escrito por amadores, por ser mais próximo do seu nível de entendimento e de seus pontos de vista como leigos - ainda que o que está sendo dito seja uma asneira digna de participante de reality show.

Tudo o que escrevi até agora pode ser assim resumido: um sujeito contentar-se em ser especialista em algo e pensar que não precisa saber mais nada é ruim, mas muito pior é não saber nada e pensar que pode falar como um especialista - e vira uma calamidade se houver outras pessoas ainda mais desinformadas que o aceitem como se fosse um.



Infelizmente, o que não falta neste mundo - ou nestes mundos: o real e o virtual - é gente desinformada.

Keen prossegue seu raciocínio mostrando que há muito mais em jogo do que apenas a qualidade da informação que estamos digerindo e assimilando: o desenfreado faça-você-mesmo da internet dos anos 2000 está aterrando o fosso que sempre separou o palco da plateia, gerando uma oferta torrencial de conteúdo gratuito criado pelos próprios usuários, e que, por ser gratuito, está usurpando o mercado que sempre pertenceu a profissionais ou empresas que se dedicavam a produzir esse conteúdo - e que, por só fazerem isso, podiam especializar-se e atingir a excelência em seus respectivos campos. Se a visão (muitas vezes tola e desinformada) de um sujeito que durante o dia trabalha em qualquer outra coisa e posta textos num site depois do jantar, vale para o público o mesmo que a de um jornalista profissional com décadas de experiência, por quanto tempo ainda será compensador para um jornal ou uma emissora de TV continuar pagando um salário a esse jornalista? O oba-oba dos downloads gratuitos de música destruiu a indústria fonográfica, que atualmente está em seus estertores (não vou bancar o único inocente e dizer que nunca baixei música da internet: só posso dizer em meu favor que não parei de comprar CDs por causa disso). Sem gravadoras, quem irá investir dinheiro e trabalho em descobrir e alavancar novos talentos musicais? E quanto tempo levará para que a indústria do cinema e a do livro tenham o mesmo destino? Conclusão: o atual modelo de utilização da internet está promovendo o fim das próprias fontes de conteúdo das quais depende.

Um velho adágio existente em várias línguas diz que o que vem fácil, vai fácil; embora tenha sido criado para referir-se a dinheiro, ele é igualmente verdadeiro no que toca ao conhecimento. Quando eu e as pessoas da minha geração frequentávamos a escola, um trabalho de história, por exemplo, demandava horas na biblioteca, pesquisando em enciclopédias - ao contrário da maioria dos colegas, eu gostava disso, mas não vem ao caso: gostando ou não, o próprio esforço despendido em encontrar e processar as informações de que precisávamos fazia com que ao menos uma parte daquilo tudo se cristalizasse em nossos cérebros em formação, de modo que sei até hoje quem foram Maurício de Nassau e o padre Anchieta; já os estudantes de hoje, tudo o que precisam fazer é acessar o Google ou o Yahoo! e digitar no mecanismo de busca o tema do trabalho, para instantaneamente terem dezenas ou centenas de textos prontos à disposição. Aí temos que perguntar: o que essa garotada está realmente aprendendo? Alguns anos atrás, essa suprema facilidade para se obter informação era o sonho de quem desejava um mundo onde a cultura estivesse ao alcance de todos; hoje, quando muitos professores se veem obrigados a proibir seus alunos de entregar trabalhos impressos, tendo que exigir que sejam manuscritos, para tentar evitar que eles simplesmente imprimam qualquer coisa achada na internet e entreguem sem ler, somos forçados a reconhecer que parece ter havido algum desvio no caminho trilhado entre o sonho e sua transformação em realidade.

Talvez o maior exemplo do "culto do amador" na era da internet seja a famigerada Wikipédia, a "enciclopédia livre que todos podem editar" - que ostenta esse slogan com orgulho, como se conhecimento fosse uma questão de democracia. E não é: sinto muito, mas não é. Nas enciclopédias tradicionais, podemos ter a certeza de que as informações que encontraremos serão fidedignas: o verbete sobre o padre Anchieta foi escrito por um historiador, o sobre José Saramago, por um doutor em Letras, o sobre dicotiledôneas, por um botânico, o sobre vulcões, por um geólogo, e assim por diante. Naturalmente que todo esse pessoal não é infalível, mas são eles os que, por todo o estudo e experiência que acumularam, têm maiores possibilidades de deter informação correta sobre seus respectivos campos. Na Wikipédia, por tudo o que se sabe, qualquer verbete pode ter sido escrito por um adolescente de bermudão e boné de beisebol virado para trás, já que ninguém lhe pediu credenciais mesmo. Conforme conta Keen:

"O dr. William Connolley, um modelador climático no British Antarctic Survey em Cambridge, especialista em aquecimento global e autor de muitas publicações profissionais, recentemente entrou em confronto direto com um editor da Wikipédia particularmente agressivo em torno do verbete 'aquecimento global' do site. Após tentar corrigir imprecisões que percebera no verbete, foi acusado de 'impor fortemente seu ponto de vista, com a remoção sistemática de todo ponto de vista que não coincidia com o seu'. Connolley, que não estava impondo nada além da precisão factual, foi submetido a restrições editoriais pela Wikipédia e limitado a fazer apenas uma adição por dia. Quando contestou a decisão, o comitê de arbitragem da Wikipédia não deu nenhum peso à sua expertise, tratando-o, um especialista internacional em aquecimento global, com a mesma deferência e atribuindo-lhe o mesmo nível de credibilidade que a seu adversário anônimo – o qual, pelo que se sabia, podia ser um pinguim na folha de pagamento da Exxon Mobil." (pp. 44-5)

Exxon Mobil é uma grande companhia petrolífera norte-americana, que, é claro, não deve ter entre suas prioridades a correta informação da opinião pública sobre a questão do aquecimento global.

Esse excerto ilustra o quanto a distinção entre fato e opinião torna-se a cada dia mais nebulosa nessa nova cultura que está se formando entre as malhas da "rede". "Pontos de vista", meus amigos, não têm o poder de mudar fatos, mas parece que, no mundo da cultura pós-moderna, ninguém sabe ou se importa com isso. Dar a mesma importância às palavras de um especialista e às de um diletante sem qualquer instrução formal na matéria que se mete a discutir, é reconhecer que estamos pouco ligando para a qualidade da informação que consumimos.

Disse acima que conhecimento não é uma questão de democracia. Explico-me: não quero com isso dizer que ele não deve ser democratizado - ele deve, claro, ser democratizado, no sentido de estar acessível a todos, e para isso a internet poderia (eu disse poderia) ser uma ferramenta maravilhosa. Porém, a veracidade de um fato não depende da "opinião" de uma ou de milhões de pessoas, e não deveria ser tratada como se dependesse, que é o que vem acontecendo na sociedade pós-revolução da informação. Há assuntos onde existe espaço para opiniões divergentes; em outros não. Num fórum sobre telenovelas, um participante pode declarar que acha Caminho das Índias ridícula, enquanto outro pode considerá-la uma obra definitiva da teledramaturgia brasileira - cada um tem suas razões para pensar como pensa, e, concordando ou não, devemos respeitar essas razões. Mas, se em vez de telenovela o assunto em pauta for de natureza científica, como no caso do Dr. Connolley versus o "pinguim", aí não se pode dar-se ao luxo de entrar no terreno do "eu acho". Em ciência não existem "opiniões": existem teorias, que, para adquirirem o status de fatos, precisam ser provadas.

Percebo que me foquei na questão que mais me chamou a atenção no livro, porque isso tudo me fez repensar a minha velha antipatia a priori pela noção de especialista, o que significou a necessidade de remodelar diversas ideias que eu tinha há bastante tempo, mas Keen não para por aí. Ele dedica um capítulo todo ao desmoronamento da indústria da música graças à pirataria digital, outro ao perigo do jogo de azar online (potencialmente ainda mais pernicioso que o jogo tradicional em cassinos, por estar acessível 24 horas por dia e a partir de qualquer lugar), e outro, ainda, aos males causados pelo livre acesso de crianças e adolescentes à pornografia na rede (já que nenhum controle parental é cem por cento seguro, e na maioria dos sites a única exigência feita ao usuário é clicar num botão que diz "sou maior de 18 anos"...). O capítulo final chama-se Soluções, e tem exatamente o conteúdo que o título sugere, mas, sem querer ser muito apocalíptico, a maior parte das saídas propostas por Keen para os problemas discutidos nos capítulos anteriores soa-me um tanto ingênua: algumas passam pela adaptação da legislação existente e pela criação de uma nova, capaz de ser aplicável ao meio amorfo e em constante mutação que é a internet - o que, concordo, é da maior importância -, mas a maior parte das soluções sugeridas parecem depender de que o público em geral caia em si e mude de atitude - uma circunstância que tenho dificuldade em acreditar que se concretize. Historicamente, situações extremas somente foram revertidas após terem chegado ao ponto de ruptura - e não me perguntem o que pode representar o "ponto de ruptura" para um mundo onde uma gorda fatia do dinheiro e toda a informação passam por uma internet que lembra muito o Velho Oeste sem lei. Mas uma coisa é possível dizer: ao contrário do que acontece com os grandes problemas ecológicos, por exemplo, onde é lugar comum dizer que "nossos filhos e netos sofrerão as consequências", no mundo da web tudo é tão rápido que não poderemos sequer contar com a chance de passar a bola para as gerações seguintes: a maioria de nós ainda estará por aqui para ver o fim. Seja ele qual for.