terça-feira, fevereiro 22, 2022

Cobra Kai


Pratiquei caratê durante uns seis anos, dos 12 aos 18 (isso foi de meados dos anos 80 até o início dos 90), chegando à faixa verde, que é a terceira na categoria kyu ('discípulo'; a contagem é das mais altas para as mais baixas). A outra categoria chama-se dan ('mestre') e também tem suas graduações, embora todos os dan usem faixa preta. Como minha namorada, Cintia (neta de japoneses) já me ouviu recordar, receio que mais de uma vez, aprendi a contar até quatro em japonês graças a um dos vários exercícios que fazíamos no dojo ('academia'). Esse exercício era assim: obedecendo à contagem do sensei ('mestre'), dávamos um passo em frente, acompanhado do golpe que estivéssemos praticando no momento, a cada número que ele enunciava. Ao chegar à parede, fazíamos meia-volta e a contagem recomeçava. Ou seja, se a sala fosse maior, eu teria aprendido mais números!

Essa piadinha pueril que circulava no dojo ilustra bem o fato de que, ainda que o caratê nos desse um nível de foco e disciplina que a maioria não tem na nossa idade, mesmo assim éramos garotos (garotOs: em seis anos no dojo, acho que vi umas quatro ou cinco meninas, e uma era filha do professor), e, como nove entre dez garotos, adorávamos filmes de artes marciais. Entre os mais populares estava a trilogia Karate Kid, cujos filmes saíram em 1984, 86 e 89; vi o primeiro quando fazia cerca de um ano que treinava – passou na TV, que era como a gente via filmes na época, de modo que todo mundo viu ao mesmo tempo, e, a partir daí, ele foi o assunto forte na academia durante semanas. O segundo chegou aos cinemas pouco depois que o primeiro passou na TV, e o terceiro, alguns anos depois, e eles também causaram seu impacto, ainda que menor. Nosso sensei nunca disse uma palavra sobre esses filmes; pensando a respeito hoje, creio que ele apreciava a motivação que aquilo nos trazia, e preferia não nos desiludir explicando que muito do que os filmes mostravam era pura fantasia. De todo modo, descobriríamos isso mais cedo ou mais tarde, caso continuássemos treinando.

Acho difícil que alguém que esteja me lendo não tenha visto o primeiro Karate Kid, ou não teria se interessado em ler a respeito de Cobra Kai, então talvez eu nem precisasse falar sobre ele, mas não parece certo não dar ao menos um resumo básico (prometo tentar mantê-lo realmente básico). O jovem Daniel Larusso (Ralph Macchio) começa a frequentar uma nova escola depois de mudar-se, e nela conhece e se interessa por Alison "Ali" Mills (Elizabeth Shue), uma garota bonita, rica e popular que é animadora de torcida (é um filme para adolescentes, então relevem os clichês). Ela também gosta dele, embora Daniel seja apenas um calouro magrelo, pobre e sem nada de excepcional (relevem também as inverossimilhanças). Ocorre que Ali, até pouco tempo antes, namorava Johnny Lawrence (William Zabka), que por acaso é o campeão regional de caratê e não aceitou a decisão dela de terminar. Como resultado, Daniel passa a sofrer bullying violento com frequência – e nem sempre de forma inocente: por vezes ele bem que provoca. Quando está levando uma surra particularmente dura aplicada por Johnny e vários de seus amigos que também são lutadores, o garoto é salvo pelo Sr. Miyagi (Noriyuki "Pat" Morita), que trabalha como zelador e faz-tudo no condomínio modesto onde ele mora. Ao ver aquele japonês idoso e baixinho nocautear cinco atletas de caratê de uma vez só, Daniel percebe que o homem é muito mais do que aparenta, e o convence a lhe ensinar caratê para que possa se defender. Durante seu treinamento, ele recebe de Miyagi uma série de lições que, embora direcionadas ao caratê, encontram aplicação nas mais diferentes situações da vida. O filme termina com Daniel e Johnny se enfrentando no torneio regional, e o final dá a entender que a vitória (dramática, como teria que ser) alcançada pelo primeiro deve ter posto fim ao seu tormento.
 
Os outros dois filmes são apenas desdobramentos do primeiro. O segundo, ambientado na maior parte em Okinawa (a província natal do Sr. Miyagi, no sul do Japão, e provável local de origem do caratê) é legal; o terceiro é fraco, praticamente uma reciclagem do roteiro do primeiro, mudando apenas os detalhes. Existe um quarto filme que, apesar de contar com Morita novamente no papel de Miyagi, é considerado constrangedor por quase todos os fãs da saga; nele, o mestre treina uma nova aluna, interpretada por Hilary Swank. Ralph Macchio não participa – não que sua ausência seja o motivo da ruindade do filme, pois no terceiro ele está tão irritante que dá vontade de socá-lo, não fosse ele um lutador treinado. Esse quarto filme é solenemente ignorado nos roteiros de Cobra Kai, que têm sempre o maior cuidado em levar em consideração cada mínimo detalhe dos três primeiros.

A série estreou em 2018 no YouTube Premium, mas, depois de duas temporadas bem recebidas pelo público, foi adquirida pela Netflix. A terceira temporada saiu no início de 2021, e a quarta, no final do mesmo ano; a quinta já foi confirmada e é esperada para algum momento de 2022. A primeira coisa que chama atenção é o fato de os produtores terem conseguido trazer de volta praticamente todos os atores principais dos filmes (com exceção de Morita, que faleceu em 2005) e até mesmo muitos dos secundários. Os protagonistas são Daniel Larusso e Johnny Lawrence, novamente interpretados por Ralph Macchio e William Zabka, mas, diferente do que acontecia nos filmes, aqui a história é narrada, a priori, do ponto de vista do segundo. Isso fica evidente já no início do primeiro episódio, que exibe as cenas finais do primeiro Karate Kid, com Daniel nocauteando Johnny com o hoje clássico golpe do grou (ou garça), mas, depois do chute que decidiu a final do torneio em 1984, a câmera deixa de lado a comemoração de Daniel e seus amigos para focar em Johnny caído no tatami, atordoado e vencido. A seguir, corta para os dias atuais. Trinta e poucos anos depois de perder o título de campeão de caratê, Johnny sobrevive fazendo serviços de manutenção residencial e mora num condomínio humilde, muito parecido com aquele onde Daniel morava na adolescência – de certo modo, os papéis se inverteram, pois, na época, Johnny parecia ser um rapaz rico, que circulava numa imponente moto e frequentava o elitista country club local. Ficamos sabendo então que ele tem um padrasto rico, mas com quem nunca se deu bem e de quem não quer aceitar favores. Para piorar, tem uma tendência a beber demais. Daniel, em contrapartida, subiu na vida, e agora é dono de várias concessionárias de veículos espalhadas pelo Vale de San Fernando, um distrito de Los Angeles, bem perto de Hollywood e famoso por concentrar as produtoras de filmes adultos (não que isso tenha algo a ver com a história – risos). É casado com Amanda (Courtney Henggeler) e tem dois filhos, a patricinha Samantha (Mary Mouser) e o caçula Anthony (Griffin Santopietro), típico pré-adolescente pé-no-saco que sofre crise de abstinência se ficar uma hora sem celular ou videogame. Samantha, na infância, chegou a aprender caratê com o pai e com o Sr. Miyagi (agora já falecido), mas não pratica há anos, enquanto Anthony nunca teve o menor interesse na arte marcial.
 

Johnny encontra algum estímulo para sair de sua estagnação ao conhecer Miguel Diaz (Xolo Maridueña), filho de uma imigrante equatoriana, que acaba de se mudar para o mesmo condomínio junto com a mãe e a avó. Meio por acaso, salva-o de levar uma surra de um grupo de valentões da escola (é curioso como o mundo dá voltas), e nota-se sua satisfação, apesar de tudo, ao constatar que ainda é um excelente lutador. Começa por recusar os pedidos de Miguel para ensiná-lo, mas acaba não só aceitando, como decide recriar o Cobra Kai, nome do dojo no qual treinava na juventude. O Cobra Kai foi originalmente fundado por John Kreese (Martin Kove), um veterano da Guerra do Vietnã que, ao ensinar caratê, punha ênfase na agressão, inculcando em seus discípulos que "compaixão é para os fracos", o que explica, ao menos em parte, o comportamento truculento de Johnny e seus amigos nos velhos tempos. Portanto, as recordações de Johnny a respeito de seu mestre e do lugar onde aprendeu a lutar são ambivalentes: ali ele não aprendeu apenas como dar golpes e como defender-se deles – aprendeu também sobre disciplina e autoconfiança, lições que lhe podem ser úteis agora, que ele está novamente tentando dar um rumo a sua vida; por outro lado, sofreu uma lavagem cerebral que o transformou num indivíduo irracional e violento, um condicionamento do qual ele ainda luta para se livrar. Seu objetivo é passar aos jovens somente o que havia de bom nos ensinamentos que recebeu: como ele próprio diz, quer ensiná-los a "serem durões sem serem babacas". Infelizmente, nem todos os seus alunos assimilam essa lição, e alguns se aproveitam do fato de agora saberem lutar para virarem eles próprios os bullies.

Daniel fica inconformado ao saber que Johnny trouxe o Cobra Kai de volta e decide contra-atacar abrindo seu próprio dojo, o Miyagi-do, para ensinar caratê focado na autodefesa, tal como aprendeu com seu falecido sensei. Isso reacende a rivalidade entre os dois, mas nota-se que ambos amadureceram (embora nem sempre aparentem) e que têm respeito um pelo outro como lutadores, ainda que cada um ache que sua abordagem do caratê é superior. Em vários momentos chega a parecer que estão a ponto de se tornar amigos, mas, é claro, algo sempre acontece para estragar tudo.
 
 
Paralelamente ao conflito entre os dois senseis, a série também acompanha o que se passa com seus discípulos. Miguel, o primeiro aluno de Johnny, faz progressos impressionantes e torna-se um lutador de primeira linha, ao mesmo tempo que se envolve com Samantha, a filha de Daniel, que, por sua vez, redescobre o interesse pelo caratê e volta a treinar. Johnny, embora nunca tenha se casado, tem um filho com uma ex-namorada; o rapaz, Robby (Tanner Buchanan), tem a mesma idade de Miguel e Samantha e faz o tipo adolescente revoltado. Não quer ver o pai nem pintado e vive com a mãe, mas ela também não é nenhum grande exemplo de comportamento, nem se responsabiliza de fato por ele, de modo que Robby aprendeu a se virar sozinho desde muito cedo – a se virar do jeito errado, diga-se de passagem. Anda nas piores companhias, não estuda e se dedica a praticar pequenos furtos e outras contravenções. Consegue um emprego na concessionária de Daniel apresentando um currículo falso, e, na verdade, é tudo parte de um plano que fez com seus amigos pilantras para infiltrar-se no local e mais tarde roubá-lo, mas acaba se afeiçoando a seu chefe, que o trata de forma justa e lhe ensina muitas coisas – caratê inclusive – sem saber que ele é filho de seu velho rival, pois o garoto usa o sobrenome da mãe. Os ensinamentos de Daniel e o equilíbrio trazido pela prática do caratê vão gradualmente colocando Robby nos eixos; para Johnny, é como se Daniel estivesse roubando seu filho, tal como lhe "roubou" o título de campeão tanto tempo atrás. A certa altura, as coisas entre Miguel e Samantha desandam, e, por treinarem juntos no Miyagi-do, a garota já tinha proximidade com Robby, que sempre foi a fim dela (que é muito bonita, meiga, e ao mesmo tempo corajosa) e aproveita o afastamento entre ela e o namorado para "atacar"; esse triângulo amoroso está destinado a render muita história ao longo da série. Outros personagens jovens também têm lugar na trama, e a maior parte do elenco teen se sai surpreendentemente bem.

Sem dar muito spoiler, adianto que outros rostos do passado vão surgindo e trazendo reviravoltas que obrigam Johnny e Daniel a trabalharem juntos, o que, no entanto, nunca acontece sem atritos. A série tem roteiros ágeis, com as doses certas de ação e drama; as partes românticas não são exageradas a ponto de se tornarem enjoativas, nem as partes de luta a ponto de cansarem (há também momentos de humor aqui e ali). Como dito acima, muitos atores da trilogia de longas-metragens (muitos mesmo) vão reaparecendo um por um, dando vida novamente a seus antigos personagens, o que é empolgante e divertido – puro fan service da melhor qualidade! Para dar uma ideia, até Randee Heller, que interpretava Lucille Larusso, mãe de Daniel, está de volta, velhinha como sua personagem teria que estar depois de mais de 30 anos. Rob Garrison, que fazia o papel de Tommy, um dos lutadores do Cobra Kai original e amigo de Johnny, retorna num episódio que investe na nostalgia – já muito debilitado pela doença que o mataria pouco depois.
 
No que diz respeito ao caratê em si, não sou um especialista, mas, como contei, cheguei a ter contato com a coisa e digo que, nesse quesito, Cobra Kai supera bastante os filmes que lhe deram origem. Nos filmes, sempre me incomodaram a falta de postura (postura mesmo, física) e os movimentos moles de Ralph Macchio; mesmo um aprendiz como eu podia ver que ninguém conseguiria lutar um caratê decente daquele jeito. Nosso sensei sempre nos cobrou energia e firmeza: cada movimento devia ser feito com força, os músculos precisavam funcionar. Em comparação com os filmes, a série cuidou muito melhor dessa parte; com certeza contou com mestres de artes marciais como consultores, e provavelmente os atores tiveram que treinar de verdade, o que não significa que tudo ali seja realista. Entre outras coisas (naturalmente), no mundo real ninguém se torna um lutador em questão de algumas semanas, como os alunos de Johnny e Daniel, mas, na minha opinião, dá para perdoar essa "licença poética" numa boa.
Vou confessar, tive um certo receio do que iria encontrar quando decidi assistir Cobra Kai; teria sido péssimo descobrir que o legado dos filmes Karate Kid só estava sendo usado como pretexto para empurrar um monte de lacração (o que não seria inesperado vindo do YouTube, e ainda menos da Netflix), mas, depois de ver alguns episódios e ter tempo de sentir a vibe da série, a sensação foi de alívio, além da empolgação. Pois Cobra Kai, surpreendentemente, não só nos poupa do insuportável discurso politicamente correto, como até mesmo tem a ousadia de tirar um leve sarro dele. Johnny é o próprio estereótipo do "macho hétero top" que, para os progressistinhas de Twitter, resume tudo o que há de errado no mundo (em muitos círculos, "hétero" virou pejorativo): gosta de cerveja, de rock das antigas (nada posterior aos anos 80), de carros, motos, filmes de ação (tem uma epifania ao assistir a uma reprise do clássico Águia de Aço), esportes de combate (claro!!) e não entende muito bem o mundo moderno com sua tecnologia e suas frescuras – e isso tudo rende momentos engraçados, mas não é apresentado de forma negativa. Mesmo com seu passado de vilão, Johnny é um personagem com quem nos importamos e por quem torcemos. Há uma cena impagável em que uma nova aluna se apresenta à turma e, depois de dar o nome, acrescenta que seus pronomes são "ela" e "dela". (Parêntese: para quem não sabe que besteira é essa, é costume na Lacrolândia colocar no seu perfil nas redes sociais os pronomes que você quer que as pessoas usem para falar de você, porque, no mundo do politicamente correto, é considerado violência presumir o sexo [ou "gênero", como eles dizem] de alguém mediante uma mera inspeção visual; se um sujeito barbudo, peludo e musculoso, cujo RG o identifica como Alcides, declarar que está se sentindo mulher, quiser ser chamado de Shirley e que se refiram a ele como "ela", todo mundo tem que fazer isso. Fim do parêntese.) Johnny replica que os únicos pronomes que importam ali são "sensei" e "aluno". A garota diz que esses são substantivos, e o mestre encerra o papo: "Oh, desculpe. Eu quis dizer CALE A BOCA!" Perfeito!! Ao longo da série, mais de um garoto moloide e cheio de não-me-toques se transforma depois de algum tempo no dojo – em qualquer dos dojos.

Colocando a questão em palavras simples, o fato é que o caratê e outras artes marciais são a antítese dessa cultura da glorificação da fraqueza que nos cerca hoje. O mundo está cheio de jovens "floquinhos de neve" – mimados, frágeis, hipersensíveis – que se ofendem e se magoam com tudo e são absolutamente incapazes de qualquer coisa que exija um mínimo de determinação ou sacrifício, e isso nem é o pior: o pior é que a mídia e grande parte da sociedade incentivam e recompensam esse tipo de atitude. No caratê, você precisa de força de vontade para obter qualquer progresso, precisa se acostumar à obediência pronta, a treinar sempre, não importa se está disposto ou não, a conviver com a dor, a esforçar-se pela vitória mas encarar serenamente a possibilidade da derrota, e precisa aprender a não se abalar com um corretivo severo aplicado pelo seu sensei; precisa fortalecer o corpo e o espírito. Enfim, ele desenvolve virtudes que aqueles que controlam a mídia atual não querem que as pessoas tenham. Portanto, apostar numa série com essa temática foi uma iniciativa corajosa, e a excelente recepção que ela vem tendo é um bem-vindo sinal de que ainda podemos ter alguma esperança de que a humanidade não acabe morrendo afogada num oceano de cancelamentos e pronomes neutros.