quinta-feira, janeiro 17, 2019

O Mundo Perdido

O mundo da literatura tem seus paradoxos. Um deles é o que acontece quando um autor consegue o raríssimo feito de criar um personagem que se torna tão famoso que, de certa forma, acaba por ganhar vida própria: nesses casos, a fama da criação costuma ofuscar a do criador. Foi assim com Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e seu personagem mais conhecido, o detetive Sherlock Holmes. Todo mundo sabe quem é Holmes, mesmo que a vasta maioria das pessoas nunca tenha lido uma linha da obra de Conan Doyle, mas apenas os poucos que têm alguma intimidade com literatura conseguirão, se perguntados, dizer o nome do escritor que o criou, e receio que ainda menos serão capazes de citar algum trabalho seu que não sejam as aventuras do grande detetive. O que é bem injusto, já que, mesmo que ele nunca houvesse criado Sherlock Holmes, ainda restariam no currículo de Doyle obras em quantidade e qualidade mais que suficientes para fazer dele um escritor de respeito. Para completar, alguns elementos que estão ou já estiveram largamente presentes na ficção moderna devem a Doyle o pontapé inicial: foi dele a ideia de usar uma múmia reanimada como personagem num conto de terror (Lote 249, de 1892), fonte na qual o cinema viria a beber dezenas de vezes; e também foi ele o responsável por trazer os dinossauros para a ficção, com O Mundo Perdido (1912), que acaba de ganhar esta nova e caprichada edição nacional pela editora Todavia (eita… A portuguesa Saída de Emergência tem uma competidora no ranking das editoras com nomes estranhos).

Garimpando, tempos atrás, num dos diversos sebos da rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre, adquiri um exemplar da velha edição de O Mundo Perdido da Francisco Alves, editora que durante décadas fez por merecer a gratidão de todos os fãs brasileiros da literatura de imaginação; porém, o livro ainda aguardava na minha estante a sua vez de ser lido quando encontrei numa livraria esta nova edição, e, ao ver que incluía uma ampla seção de notas explicativas do tradutor Samir Machado, concluí que valia a pena: Conan Doyle tinha uma tendência a salpicar seu texto com referências a personalidades, instituições e costumes da Inglaterra vitoriana que podem soar bastante misteriosas para quem vive em outra época e outro país (e digo da Inglaterra porque, embora fosse escocês de nascimento e descendente de irlandeses, ele parecia ter em Londres seu habitat literário por excelência). E, de fato, as notas não apenas esclarecem sobre esses detalhes da realidade britânica da época, como corrigem e atualizam vários pontos nos quais as observações do autor sobre características e comportamento dos animais pré-históricos estão hoje ultrapassadas graças aos vastos progressos da paleontologia ao longo do último século. Contando com esse reforço, mergulhei na minha primeira leitura desse clássico.

Não foi pouca a minha surpresa ao perceber na estrutura de O Mundo Perdido uma série de semelhanças com Viagem ao Centro da Terra (1864), de Júlio Verne! É claro que o formato de ambas as histórias é comum a um sem-número de obras que tratam da descoberta de "mundos perdidos", o que alguns teóricos chegam a classificar como um subgênero específico dentro da literatura de aventura – a saber, uma expedição de intrépidos exploradores penetrando em alguma região isolada, desconhecida pelo resto da humanidade, e lá descobrindo todo tipo de maravilhas e surpresas – mas, mesmo assim, chamou-me a atenção que ambos os livros sejam narrados na primeira pessoa por jovens corajosos que deixam para trás suas respectivas amadas, cada um deles na esperança de retornar de sua aventura coberto de glória e assim merecer casar-se com sua musa. Ambos, também, seguem a liderança de um brilhante e excêntrico cientista. No livro de Verne, o jovem Áxel é sobrinho e discípulo do Prof. Otto Lidenbrock, e espera ganhar a mão de Grauben, afilhada do cientista; no de Conan Doyle, o protagonista Edward Malone é um jornalista jovem, mas que já granjeou certa reputação, e está irremediavelmente apaixonado por Gladys, uma moça que parece satisfeita de manter com ele uma relação de cordial amizade, situação sobre a qual o jovem repórter tem opiniões categóricas:

Éramos amigos, bons amigos, mas nunca consegui ir além do mesmo tipo de camaradagem que eu poderia ter com algum colega jornalista da Gazette – perfeitamente sincera, perfeitamente gentil e perfeitamente assexuada. Meus instintos iam contra a ideia de que uma mulher pudesse ser sincera e ficar à vontade comigo; para um homem, isso não é elogioso. Onde a verdadeira atração sexual começa, a timidez e a desconfiança são suas companheiras. (…) A cabeça baixa, o olhar arisco, a voz vacilante, os estremecimentos – esses são os verdadeiros sinais da paixão, não o olhar direto e a resposta franca. Mesmo em minha curta vida, esse tanto eu havia aprendido – ou herdado daquela memória que nossa raça chama de instinto. (…) Houvesse o que houvesse, essa noite eu precisava acabar com o suspense e levar o assunto adiante. Ela poderia até me rejeitar, mas era melhor ser repelido como amante que aceito como irmão.

Tudo pura verdade! Malone demonstra ser sábio para seus parcos 23 anos.

Ocorre que Gladys é uma jovem sonhadora, que tem absoluta certeza de que somente poderá amar um homem que tenha se destacado por algum feito grandioso. Diante disso, Malone pede a seu editor que lhe dê a pauta mais difícil e arriscada que tiver – e é assim que vem a conhecer seu próprio "Lidenbrock" na pessoa do Prof. George Challenger (sobrenome que significa literalmente 'desafiante'), cientista de renome, mas dotado de um gênio terrível. Dois anos antes, Challenger retornou de uma expedição à América do Sul com ideias estranhas, aparentemente convencido de que, em algum lugar isolado na selva amazônica, dinossauros e outras criaturas que deveriam estar extintas há eras continuam vivas e ativas. Suas afirmações são recebidas com compreensível ceticismo, e Challenger fica possesso sempre que é posto em dúvida, já tendo chegado a agredir fisicamente mais de uma pessoa por tal motivo – o que não é um risco a se desprezar, já que trata-se de um homem de força considerável. Malone encara o "desafio" e, depois de passar maus pedaços, acaba ganhando a confiança e até um pouco da simpatia do cientista, apesar da completa ojeriza que este dedica à imprensa e a todos os seus representantes diretos e indiretos. E assim o rapaz obtém o passe para a aventura heroica que procurava: torna-se membro da expedição que acompanhará Challenger à bacia do Amazonas em busca de provas concretas de tudo o que ele afirma. Também fazem parte do grupo Lorde John Roxton, experiente caçador e aventureiro, e o Prof. Summerlee, rival de Challenger no meio acadêmico britânico, que não esconde de ninguém que seu único objetivo naquela empreitada é desmascarar o que considera uma grande farsa.

O lugar onde o tempo parece ter parado (depois se descobrirá que não é bem assim) é um platô isolado, cercado em todas as direções por milhares de quilômetros quadrados de selva fechada e pouquíssimo explorada. A teoria de Challenger é a de que, durante alguma era antiga do planeta, atividade vulcânica violenta tenha erguido esse platô, rodeando-o de rochedos intransponíveis que cortaram completamente seu acesso ao resto do mundo. A não ser pelas criaturas aladas, nada entra e nada sai. Esse isolamento teria feito com que a fauna desse pedaço da selva não acompanhasse o processo de extinções e evolução pelo qual a vida na Terra passou desde então. Uma "terra que o tempo esqueceu" – por sinal, título de um livro de Edgar Rice Burroughs, publicado em 1924 e sobre o qual suspeito fortemente de que as semelhanças não sejam mera coincidência.

O platô onde se localiza a Terra de Maple White – assim nomeada em homenagem ao desafortunado explorador norte-americano que foi seu descobridor original – não tem uma extensão muito grande: é descrito como uma área em forma de elipse, com aproximadamente 50 quilômetros de comprimento por 30 de largura máxima. A população animal que uma região desse tamanho poderia sustentar seria pouco numerosa, ainda mais em se tratando de animais de grande porte como era o caso de muitas espécies de dinossauros, mas o leitor com algum conhecimento de paleontologia (mesmo que seja apenas um conhecimento nascido da curiosidade, como no meu caso) perceberá logo que não se deve esperar muito apuro científico nas descrições que Doyle faz da fauna do lugar. A ideia em si do motivo para que os dinossauros tenham sobrevivido ali é até plausível, ainda que improvável, mas é difícil explicar que, além deles, também sejam encontrados exemplos do que hoje chamamos de megafauna, mamíferos de grande porte que dominaram a Terra durante o período Pleistoceno, entre 1,8 milhão e cerca de 12 mil anos atrás – dezenas de milhões de anos depois da extinção dos dinossauros e preenchendo os nichos ecológicos outrora ocupados por eles (é importante lembrar que foi durante o Pleistoceno que se deu o surgimento do homem, cuja atividade como caçador pode ter contribuído para a extinção de certas espécies da megafauna). O autor chega a mencionar o toxodonte, o gliptodonte (este sem citar o nome, falando apenas em “seres semelhantes a tatus”), e, com destaque, o alce-gigante, também conhecido como alce-irlandês, cervo-gigante ou megalocero, talvez o maior cervídeo de que se tem notícia. Não se tratava realmente de um alce, estando geneticamente muito mais próximo do wapiti, ou cervo-canadense (que às vezes é equivocadamente chamado de alce, o que causa confusão) e do veado-vermelho do hemisfério norte, embora seus formidáveis chifres espalmados lembrassem, de fato, os do alce que conhecemos. Era um bicho enorme, que chegava a pesar 700 quilos. O registro fóssil indica que viveu na Europa e na Ásia; sua presença na Amazônia é mera licença poética. A espécie extinguiu-se há uns sete mil anos.

(Na verdade, o uso do nome alce é problemático. Em português, essa palavra refere-se à espécie cujo nome científico é Alces alces, o maior cervídeo vivo nos dias de hoje, encontrado na América, Europa e Ásia, mas somente em latitudes bem ao norte. Quando os romanos, que nunca tinham visto semelhante animal, travaram conhecimento com ele na Germânia, adotaram [numa forma latinizada] o nome que as tribos locais lhe davam, o que veio dar na palavra latina alces, origem tanto do nome científico quanto do nome em português. Na Europa, essa espécie é chamada em inglês de elk, em alemão de Elch, em norueguês e dinamarquês de elg – todas com origem na antiga palavra elgr, que era igual em protogermânico e em nórdico antigo. Na América do Norte, os colonizadores ingleses encontraram alces iguais aos que já conheciam, mas também outra espécie de cervo de grande porte, que os índios chamavam de wapiti e era ligeiramente menor; começaram por chamar ambas, indistintamente, de elk, mas acabaram adotando moose [também de origem indígena] para a espécie maior, deixando elk para a outra, uso que se manteve nos Estados Unidos e Canadá. Na Europa, onde o wapiti não é encontrado, elk continua designando o Alces alces.)

A pergunta inevitável é: se a Terra de Maple White foi isolada do resto do mundo devido à atividade sísmica ou vulcânica na época em que os dinossauros reinavam, como foi que esses grandes mamíferos, que só surgiram em estágios muito posteriores da história da vida na Terra, foram parar lá? O Prof. Challenger tem uma teoria:

Minha própria leitura da situação (…) é que a evolução tem avançado sob as condições peculiares desta terra até o estágio vertebrado, e os tipos antigos sobrevivem e vivem em companhia dos mais novos. Por isso encontramos criaturas modernas como a anta, um animal com uma linhagem e tanto, o grande veado e o tamanduá, em companhia de formas reptilianas do tipo jurássico.

Sim, eu sei: isso não é apenas superficial – é vago demais para podermos dizer que explica alguma coisa. É claro que, num simples livro de aventuras que fala de um lugar totalmente fictício, explicar cientificamente as características de tal lugar não seria uma prioridade nos planos do autor, nem há motivo para que o fosse, mas, como estou escrevendo por prazer, eu também vou me "aventurar" e alongar um pouco mais o assunto.

Quando O Mundo Perdido foi publicado, fazia pouco mais de 50 anos que Charles Darwin havia apresentado a teoria da evolução, e, embora ela já fosse aceita pela maior parte do meio científico e acadêmico, não sei o suficiente sobre história da ciência para poder dizer até onde haviam progredido os estudos sobre o assunto, ou qual a compreensão que se tinha do funcionamento da evolução na prática, então não sei se o esboço de teoria do Prof. Challenger está de acordo com o que se pensava ou o que se sabia na época, mas, à luz da biologia atual, pode-se apontar pelo menos um grande problema: sabe-se hoje que é muito improvável (para dizer o mínimo) que populações de uma mesma espécie, isoladas umas das outras, evoluam exatamente da mesma maneira – ainda que expostas a idênticas condições ambientais. Em outras palavras, vamos admitir que, quando a Terra de Maple White se formou, tenham ficado presos lá, junto com os dinossauros, alguns dos pequenos mamíferos primitivos que já existiam nos períodos Jurássico e/ou Cretáceo: a probabilidade de que esses animais dessem origem, milhões de anos depois, a antas ou alces-gigantes iguais aos do mundo exterior seria, a bem dizer, inexistente. Teriam, certamente, evoluído para novas espécies, mas estas seriam únicas, endêmicas do platô e diferentes das encontradas em qualquer outro lugar – e é provável que fossem todas pequenas, já que os nichos ecológicos disponíveis para espécies de grande porte estariam ocupados pelos dinossauros. E tem mais: por que os mamíferos teriam evoluído, enquanto os dinossauros permaneciam tal como eram? Mas não vamos julgar Doyle: premissas mais esdrúxulas que a de O Mundo Perdido já renderam boas histórias. O livro foi escrito para divertir, e não há dúvida de que o faz muito bem.

Esta edição termina com Grandes, Assustadores e Extintos, artigo de autoria de Samir Machado, tradutor e responsável pelas notas, como dito no início. Mesmo com um perceptível ranço politicamente correto, é um texto interessante, cheio de curiosidades sobre a longa e profícua carreira dos dinossauros no imaginário e na cultura popular, com ênfase em suas aparições no cinema, desde a primeira filmagem do próprio O Mundo Perdido, em 1925 (ainda nos tempos do cinema mudo), até a franquia Jurassic Park, criada por Steven Spielberg com base em um livro de Michael Crichton e cujo mais recente episódio foi lançado em 2018. Entretanto, a influência dos dinossauros sobre a imaginação humana não começou no cinema e nem mesmo na literatura escrita (lembrem-se de que narrativas orais também são uma forma de literatura): é fascinante pensar que fósseis de dinossauros, encontrados por acaso séculos antes que esses animais fossem conhecidos pela ciência, foram a provável origem dos mitos não só sobre dragões, mas também sobre outros seres fantásticos. Esqueletos de protocerátops – um ancestral da linhagem dos famosos tricerátops e estiracossauro –, que eram achados em quantidade na Ásia central, podem ter dado origem à lenda do grifo, um animal com quatro patas e bico de ave!… Voltando por um instante à primeira adaptação cinematográfica de O Mundo Perdido, descobri no artigo de Machado que os dinossauros desse filme foram criados por um cidadão chamado Willis O'Brien, um dos pioneiros da animação stop motion e, mais tarde, mentor do jovem Ray Harryhausen, por sua vez responsável por dar vida a tantas criaturas extintas ou fantásticas, em filmes inesquecíveis inspirados na mitologia grega e em As 1001 Noites, tais como Fúria de Titãs, Jasão e os Argonautas, Sinbad e o Olho do Tigre e tantos outros… Para mim e outros da minha geração, a menção desses títulos é suficiente para fazer bater aquela nostalgia. Harryhausen teve o privilégio de ser amigo de infância de outro Ray – Ray Bradbury, e os fãs de ficção científica conhecem bem o peso desse nome. Os dois Rays uniram forças num filme lançado em 1953, com o título The Beast from 20000 Fathoms; uma tentativa de tradução direta resultaria em algo tão horroroso quanto A Fera que Veio de 20000 Braças de Profundidade (arre!), motivo pelo qual, ao chegar ao Brasil, o filme foi rebatizado como O Monstro do Mar. Há mais curiosidades desse tipo esperando pelos leitores nesse artigo.

Para concluir, quero prestar o devido reconhecimento à editora Todavia, já que O Mundo Perdido há muito andava ausente das livrarias nacionais, e o retorno deu-se de maneira digna, com esta edição agradável e bem cuidada. O único senão é o mesmo do qual já me queixei uma vez aqui no blog, a coisa de terem decidido colocar as notas no final em vez de no rodapé das páginas, o que compromete o dinamismo da leitura. Sugiro rever isso nas próximas edições.