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segunda-feira, julho 18, 2011

O Último Reino

Gênero popular no exterior há muito tempo, a ficção histórica só começou a receber investimento digno de nota das editoras nacionais há alguns anos. Por menos que o hábito de ler seja difundido no Brasil, ao olho do "consumidor" tudo indica que o setor editorial viveu uma evolução: os editores parecem ter parado de publicar só o que eles "achavam" que venderia, e procurado saber o que o público queria ler. O preconceito (que eu já ouvi ser expresso até mesmo por pessoas de quem, considerando a cultura que obviamente possuíam, eu não esperaria isso) de que o brasileiro só quereria narrativas que tivessem a ver com seu próprio cotidiano, e não teria o menor interesse por histórias sobre a Antiguidade ou a Idade Média – períodos históricos que nosso país não viveu – parece estar, felizmente, acabando.

E nessa "fase de transição", nada melhor que apostar no mais seguro: publicar primeiro as obras dos monstros sagrados do gênero, os que já tiveram seu desempenho testado e aprovado nas livrarias gringas. Um destes é o britânico Bernard Cornwell, autor de uma celebrada trilogia sobre o rei Artur e também desta "pentalogia" (essa palavra existe?) intitulada As Crônicas Saxônicas, da qual O Último Reino é o primeiro volume, sobre mais uma invasão nas Ilhas Britânicas: desta vez, a dos vikings.

Talvez meus leitores já saibam isso, mas a história dessas ilhas foi feita de invasões. Não há registro de quando seus primeiros habitantes chegaram lá (na verdade, nem sequer é conhecida a identidade exata desses primeiros habitantes), mas depois, onda sobre onda, vieram pictos, celtas, romanos, saxões, vikings e normandos. Cada povo subjugou (ou tentou subjugar) seus antecessores e controlou as ilhas à sua própria maneira enquanto pôde. Em seu tempo, o rei Artur, ou quem quer que tenha sido a figura histórica que deu origem à sua lenda, tentou defender a Bretanha de modo a preservar o modo de vida que então existia nela, oriundo da miscigenação das culturas celta e romana. Os invasores que ele teve que enfrentar eram diversas tribos germânicas que costumavam ser designadas, de forma genérica, pelo nome da mais poderosa e numerosa delas: os saxões, originários da região nordeste da atual Alemanha.

Esses bárbaros já cobiçavam as terras da Bretanha há muito tempo, mas, enquanto ela foi uma província do Império Romano, de um modo geral o poderio militar deste último a manteve a salvo. Quando, em 410, Roma oficialmente retirou-se da Bretanha, a oportunidade há tanto aguardada pelos saxões parecia finalmente ter chegado. O interessante é que, apesar disso, uma invasão em grande escala só foi acontecer cerca de um século depois!... O porquê desse fato não é claro, já que uma das consequências da saída dos romanos foi a interrupção de qualquer registro histórico confiável, mas é inevitável concluir que, para terem conseguido defender-se sozinhos por todo esse tempo, os bretões devem ter tido uma liderança forte, capaz de pacificar os conflitos internos e unir o país contra o inimigo comum. É aí que entra Artur, tenha ele sido um homem ou vários, que a lenda aglutinou numa única figura.

Seja como for, quem quer que Artur tenha sido, o que quer que ele tenha feito, o dia dos saxões tardou, mas chegou. Entre os séculos VI e VII, eles ocuparam toda a atual Inglaterra; como os romanos antes deles, os saxões pouparam a maior parte da Escócia e da Irlanda, por serem de acesso difícil e aparentemente não oferecerem recursos naturais ou terras férteis em quantidade suficiente para recompensar o esforço da conquista – motivo pelo qual, ainda hoje, grande parte das populações desses países continua a falar línguas de origem celta e a cultivar tradições culturais desse povo.

Ao chegarem à Bretanha, os saxões já encontraram grande parte da ilha cristianizada devido à influência romana – um fato que rapidamente trataram de "corrigir" a fio de espada. Em poucas décadas, o paganismo germânico predominava de modo absoluto na ilha, ainda que por pouco tempo: o esforço conjunto de monges irlandeses e de novos missionários enviados de Roma foi gradualmente fazendo com que os saxões fossem abraçando o cristianismo. De modo que é num país basicamente cristão, na segunda metade do século IX, que vive o herói de O Último Reino: Uhtred, filho de Uhtred, um ealdorman (chefe) saxão.


E é esse país que hordas de vikings invasores, a maioria oriundos da Dinamarca, estão atacando. Por muito tempo a costa inglesa, assim como a de boa parte da Europa, já havia sofrido com as incursões piratas desse povo do norte, que combinava um gosto selvagem pela luta e pela carnificina com uma paixão pelo desbravamento – e, durante os últimos tempos, uma necessidade premente de expansão, já que a pouca terra fértil disponível em seus países gelados e montanhosos já não era capaz de sustentar sua população em crescimento. A diferença é que desta vez os homens do norte não iriam contentar-se em encher seus navios com o produto da pilhagem e ir embora: vinham para ficar, para tomar a terra e transformá-la em colônia sua. Era o ciclo se repetindo mais uma vez: os saxões, outrora invasores temidos, eram agora os habitantes estabelecidos na Inglaterra (nome esse, aliás, que o país havia ganho recentemente: vem dos anglos, outra tribo germânica que a invadira ao lado dos saxões) e precisavam defender-se contra novos invasores, tão brutais e sanguinários quanto eles próprios já tinham tido a fama de serem. E, embora os saxões, ao tempo em que invadiram a Bretanha romana, tivessem também outra fama, a de hábeis marinheiros (tradição que se perdeu com o tempo), os vikings os superavam de longe nessa parte: o mar era praticamente a vida deles. Seu tipo característico de navio, o drakkar ('dragão') era uma pequena maravilha de engenharia náutica: menor que os navios de outros povos da época, extremamente ágil e manobrável, capaz de navegar para a frente ou para trás, tinha no fundo achatado seu principal segredo, pois graças a ele gozava de extrema estabilidade (leia-se: era quase impossível virar um drakkar) e podia navegar até mesmo em águas muito rasas, o que permitia aos vikings subir rios com facilidade e desembarcar direto do navio para terra firme, sem necessidade de botes.

Quando a cidade inglesa de Eoferwic (que os romanos haviam antes chamado de Eboracum, e hoje tem o nome de York) é sitiada e invadida pelos dinamarqueses, Uhtred, o pai, tomba durante a batalha, e Uhtred, o filho, então com cerca de dez anos de idade, cai prisioneiro dos invasores. Um dos chefes vikings, Ragnar, simpatiza com ele e toma-o sob seus cuidados. Uhtred, que nunca recebeu muita atenção de seu pai verdadeiro, e não é, por natureza, muito propenso a qualquer tipo de lealdade, rapidamente toma gosto pelo modo de vida viking, afeiçoa-se ao pai adotivo e aos novos amigos que faz. E, acompanhando os nórdicos, é testemunha ocular da queda de três dos quatro reinos ingleses diante deles: Nortúmbria, Mércia e Ânglia do Leste, todas se rendem, entregando seus campos para serem tomados, as cidades para serem pilhadas, e o povo para ser trucidado ou escravizado. Até que só resta um reino que ainda resiste à sanha dinamarquesa: Wessex, governado primeiro pelo rei Æthelred e depois por seu irmão mais novo, Ælfred – que passaria à História como Alfredo, o Grande.

A região de Wessex, embora não mais seja um reino, ainda hoje conserva o mesmo nome, uma contração de West Saxons – os Saxões do Oeste. Parecia muito improvável que Alfredo algum dia chegasse ao trono, já que era o mais novo de seis irmãos, mas isso acaba acontecendo, e não pouca gente considera o fato um desígnio de Deus – o Deus cristão, que Alfredo cultua e que os dinamarqueses desprezam porque Seus mandamentos estimulam a piedade e a compaixão, que, para eles, são sinônimo de fraqueza. O primeiro contato que Uhtred tem com Alfredo não o impressiona muito: o então jovem príncipe parece ser um pateta que vive cedendo às tentações da carne para logo em seguida choramingar arrependido do pecado. Entretanto, o desígnio de Deus, se foi um desígnio, mostra-se acertado, pois, ao longo dos anos seguintes à sua coroação, Alfredo prova ser um líder sagaz, provavelmente o único dentre os reis possíveis que realmente tinha condições de frustrar o plano dos vikings de transformar a Inglaterra numa grande Dinamarca. Por esse tempo, Uhtred, já um jovem guerreiro, perdeu o pai adotivo dinamarquês, assassinado por um rival também dinamarquês, e acalenta o plano de vingá-lo e de recuperar o antigo domínio de seu pai verdadeiro, na Nortúmbria, agora nas mãos de um tio usurpador. Como um passo nessa direção, acaba pondo-se a serviço de Alfredo na luta contra os dinamarqueses (realmente, lealdade não é o forte desse sujeito), o que, embora ele não saiba, é apenas o começo de uma longa saga na qual não faltarão intriga, aventura e batalhas sangrentas.

Bernard Cornwell escreve magnificamente! Não deve nada a um Conn Iggulden, a um Steven Pressfield ou mesmo a uma Mary Renault, figuras coroadas da ficção histórica de língua inglesa. As Crônicas Saxônicas caíram do céu para quem tem curiosidade sobre a formação da Inglaterra moderna, mas ficava intimidado com o volume da informação, com a dificuldade de separar o essencial do secundário nos textos de História tradicionais, e com o conhecimento prévio que eles muitas vezes pressupõem – para não falar na necessidade de saber inglês. Apresentar fatos históricos usando-os como pano de fundo para a trajetória de um ou mais personagens fictícios é uma fórmula antiga, mas sempre foi e continua sendo eficiente, desde que o autor tenha duas habilidades em grau alto: a de um bom forjador de narrativas e a de um pesquisador, além do condão de fundir as duas coisas de forma convincente. E Cornwell passa no teste em todos os quesitos. Não acho que eu vá escrever um post sobre cada volume das Crônicas como fiz com O Imperador de Iggulden, mas que elas mereceriam isso, não há dúvida. Também há pouca dúvida de que terei coisas a dizer sobre outras obras do autor num futuro não muito distante. Por ora, adianto que As Crônicas Saxônicas pode ser amplamente recomendado a todos os leitores que se interessam pela cultura viking, pela história da Inglaterra e pelo mundo medieval de forma geral.

sexta-feira, julho 27, 2007

Lady of the Lake

(Blackmore/Dio)

There's a magical sound slidin' over the ground
Makin' it shiver and shake
And a permanent cry fallin' out of the sky
Slippery and sly like a snake

With a delicate move kind of shifty and smooth
A shadow has covered the light
Then a beam in the shade from a silvery blade
Has shattered the edge of the night

I know she waits below
Only to rise on command
When she comes for me
She's got my life in her hands

When a movement behind hit the side of my mind
I trembled and shook it away
Then another assault and I started to faulter
Fibres of steel turned to clay

With a bubbly turn now the water should churn
And push it way from the core
And a lady in white will bring sun to the night
Brighter than ever before

I know she waits below
Only to rise on command
When she comes to me
She's got my life in her hands
Lady of the lake

There's a magical sound slidin' over the ground
Makin' it shiver and shake
And a permanent cry fallin' out of the sky
Slippery and sly like a snake

With a delicate move kind of shifty and smooth
A shadow has covered the light
Then a beam in the shade from a silvery blade
Has shattered the edge of the night

Straight down I'm swirling around
Blinded and bruised by the strain
There must be some way to see
Diamonds out of the rain

I know she waits below
Only to rise on command
When she comes for me
She's got my life in her hands
Lady of the lake

* * *

Uma de minhas grandes frustrações é não conseguir fazer poesia. Sei que escrevo bem, e, por mais que isso seja inútil neste mundo onde o semianalfabetismo não é obstáculo para uma carreira "bem-sucedida" (conforme a noção corrente de "sucesso"), escrever acabou por tornar-se um dos maiores prazeres que encontro numa vida que oferece tão poucos motivos de satisfação. Mas não há nada como ser capaz de alinhar em versos, com ou sem rima, os nossos sentimentos mais pungentes, jogá-los numa folha de papel, onde já não nos podem machucar, e ali os olhar com a sensação de quem venceu uma luta. Transformar dor em beleza! Mesmo as horrendas tentativas que ocasionalmente já perpetrei fizeram-me um certo bem. Escrever um bom poema deve ser como arrancar um espinho do próprio coração.

Aos que não têm esse dom, resta ler os poemas daqueles que o têm - uma forma de catarse, penso eu. O poema que diz as coisas que gostaríamos de dizer se o conseguíssemos não precisa necessariamente estar em livros, nem num site de poesia. A letra de uma música também é poesia - boa ou ruim, mas poesia -, embora só em momentos especiais a percebamos como tal.

Conheço Lady of the Lake há uns 17 ou 18 anos - o Rainbow, grupo que a compôs e gravou, foi uma das primeiras bandas de rock que ouvi. Seu vocalista e letrista, Ronnie James Dio, passaria depois pelo Black Sabbath, além de fazer uma cultuada carreira solo, e hoje é tido como um dos maiores cantores da história do rock. O guitarrista Ritchie Blackmore, membro fundador do Deep Purple, não é uma figura menos lendária. Considero Lady of the Lake um dos mais belos produtos da breve parceria dos dois.

Lady of the Lake ('A Dama do Lago') é obviamente uma referência tomada às lendas do ciclo arturiano, adaptada por Dio à sua própria e muito particular maneira. São versos bastante obscuros, e, como dizia Renato Russo, qualquer tentativa de interpretação deve ser feita com cuidado, pois pode acabar revelando mais sobre a pessoa que tenta interpretá-la do que sobre a letra em si...

Sempre me pareceu que essa letra quer passar a mensagem de que, não importa que trevas e turbulências enfrentemos, há sempre uma luz para aqueles que sabem para onde olhar - uma luz que pode tornar o mundo (ao menos o mundo particular de cada um) mais belo e significativo, fazê-lo valer a pena. Talvez eu interprete dessa forma porque meu mundo interior sempre me foi muito caro. É muito mais fácil não se sentir sozinho quando se tem uma vida interior intensa, e isso depende apenas da vontade do indivíduo. É simples.

Porém, como às vezes acontece, esses versos ganharam novos significados para mim, num momento em que, ao ouvir a música (calculo que pela 1294.ª vez na minha vida, ou por aí), eu me encontrava num estado melancólico e sentimental, um daqueles momentos em que nem mesmo a vida interior intensa de que eu falava há pouco consegue evitar que um sujeito se sinta dolorosamente sozinho. Então, enquanto Blackmore tocava seu solo, pus-me a me perguntar quem era, afinal de contas, essa Dama do Lago - quem ela era para mim.

Um lago, com suas profundezas sombrias, pode simbolizar muita coisa, desde o desconhecido infinito do universo que me cerca até o outro desconhecido infinito dentro de mim - ou qualquer coisa entre os dois. Quem seria então, quem poderia ser, essa Dama que surge de lá?... Minha intuição a respeito dela era de algo realmente grande e bom - o sol que ela traria para a minha noite, e que me faria ver tudo de uma maneira diferente e mais bela. Mas, independente do que pudesse ter nas mãos quando viesse, como seria ela? Não me pergunto que aparência teria, pergunto-me apenas como me sentiria ao reconhecê-la, ela que com apenas um olhar daria um sentido a tudo. E não precisaria trazer nas mãos a sagrada Excalibur para me entregar: ela, a Dama, sua presença, bastaria para que eu entendesse que a verdadeira Excalibur não precisava ser retirada de uma rocha, nem trazida das profundezas místicas de um lago qualquer - ela sempre teria estado na minha mão, desde o início, sem ser percebida. E a Dama estaria sempre ao meu lado e em meus pensamentos, sua suavidade amplificando minha força, a lembrança de seu sorriso bastando para curar qualquer ferida. Guiado pelo toque delicado de seus dedos, meu braço poderia abater gigantes.

Um belo sonho, e os sonhos são necessários - não importa se podem ou não se realizar. Eles são necessários porque são tudo o que impede que a brutalidade do mundo "real" seque nossa alma e nos transforme em seres triviais e mesquinhos. Porém, naquele momento, ao mesmo tempo em que pela primeira vez encontrava uma resposta, por nebulosa que fosse, sobre quem seria a minha Dama do Lago, também compreendi que ela não podia existir. Pois, a partir do momento em que ganhasse existência real, ela estaria maculada pelo mundo, e já não seria mais a Dama do Lago.

sábado, agosto 13, 2005

A Última Legião


O escritor italiano Valerio Massimo Manfredi escolheu como seu "chão" o mundo antigo, tendo-se notabilizado entre nós com sua belíssima trilogia Aléxandros (para quem não sabe, é sobre Alexandre, o Grande, sendo o título a forma original do nome do grande conquistador – a tônica é no e e o x pronuncia-se ks), sobre a qual ainda espero escrever meus comentários. Não obstante, foi com A Última Legião que tive meu primeiro contato com a obra de Manfredi, e foi este o livro que me levou a considerá-lo um nome no qual se deve prestar atenção entre os expoentes atuais no campo da ficção histórica.

Experimentem pegar diversos livros, ou, mais ainda, filmes, cuja ação seja ambientada na Roma antiga, e ler as sinopses nas orelhas e contracapas. Em quase todos se leem coisas como "um retrato vivo e marcante da Roma antiga da época da decadência". Isso me irrita profundamente, pois demonstra apenas que quem escreve essas sinopses não entende coisíssima alguma de História. Seja qual for o período que o livro ou filme focalize – as Guerras Púnicas, a época de Júlio César, a perseguição aos cristãos sob Nero ou o tempo de Marco Aurélio e Cômodo – as sinopses sempre falam em "época da decadência", como se a civilização romana jamais tivesse feito coisa alguma em toda a sua história a não ser "decair". E foi essa a ideia que se popularizou: Roma como uma civilização de bêbados, loucos e libertinos. Ninguém jamais ouviu falar em Horácio Cocles, que defendeu a Ponte Sublícia, sozinho, contra todo o exército etrusco, ou em Caio Cévola, que queimou a própria mão direita para não entregar ao inimigo informações que prejudicassem seus compatriotas. Mesmo no tempo de Calígula ou de Nero, as orgias e demências desses dois imperadores e de seus protegidos nenhuma diferença faziam para o legionário anônimo que arriscava a vida em alguma fronteira bárbara pela grandeza do Império.

Por outro lado, pode-se dizer que A Última Legião, sim, é um romance que realmente fala sobre a decadência do Império Romano. Não que retrate nobres embriagados ou funcionários corruptos: ele simplesmente narra os acontecimentos de 476 d.C. – ano em que foi deposto Rômulo Augusto, último imperador a governar o Império Romano do Ocidente, acontecimento esse que, por convenção, marca o fim da civilização romana e da Antiguidade, bem como o início da Idade Média (não custa lembrar que o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, com sede em Constantinopla, continuaria a existir por mais mil anos).

O livro é apresentado como se fossem as memórias de Myrdin Emreis, que os romanos chamam de Meridius Ambrosinus – um druida da Bretanha, que no ano fatídico desempenhava as funções de preceptor do imperador, que tinha, à época, apenas 13 anos de idade. Rômulo é filho do general Flávio Orestes, que foi, em tempos, assessor de Átila, conseguindo amenizar, ao menos um pouco, o impulso destruidor que os hunos traziam ao invadirem o Império. Mais tarde, Orestes veio a derrubar o fraco imperador Júlio Nepote, mas, ao invés de colocar o manto imperial sobre os próprios ombros, preferiu nomear o filho, reservando para si o comando supremo do exército. Numa época em que o exército romano era formado basicamente por guerreiros bárbaros recrutados, Orestes decidiu (assim nos conta Manfredi) criar uma unidade especial, à qual chamou Legio Nova Invicta, treinada nos moldes das antigas legiões, cuja força e disciplina levaram Roma a dominar o mundo. Quando o chefe germânico Odoacro – que havia feito carreira servindo ao exército romano – decide se rebelar, a Nova Invicta, depois de lutar bravamente, é massacrada por uma multidão de guerreiros bárbaros sob as ordens do líder rebelde, quase ao mesmo tempo em que a casa de Orestes é atacada por outro bando. Quase todos são mortos, mas o jovem imperador e seu mestre Myrdin, por alguma razão, são poupados e conduzidos vivos ao exílio na ilha de Capri, onde a outrora suntuosa e agora decadente Villa Júpiter, residência de verão construída pelo imperador Tibério, torna-se seu cárcere. É historicamente sabido que Rômulo foi realmente poupado e exilado – mas essa é a última informação que os historiadores podem oferecer sobre ele. Nada mais se sabe sobre sua vida desse ponto em diante, e é precisamente esse momento nebuloso que Manfredi escolhe para começar sua narrativa.

Entre os poucos sobreviventes da Última Legião estão três bravos que ainda não desistiram de considerar a si próprios soldados romanos: o espanhol Rúfio Vatreno, o africano Cornélio Batiato, e o único italiano de nascimento entre eles, Aureliano Ambrósio, conhecido como Aurélio – e deve-se observar que as origens diversas dos três heróis lembram o fato de que ser romano não era realmente uma questão de nacionalidade, mas de cultura, de identificação com uma civilização e suas ideias. Surge então o audacioso plano de seguir o imperador até seu cativeiro em Capri e tentar libertá-lo. Ao destemido trio juntam-se os gregos Orósio e Demétrio, e a jovem Lívia Prisca, exímia arqueira vinda de uma cidade recém-fundada na laguna próxima de Ravena: uma cidade chamada Venetia (pronuncia-se Venécia), construída sobre as águas e onde o único meio de locomoção viável são os barcos. Isso lembra alguma coisa??

Está armado o palco para uma aventura de tirar o fôlego, onde lances de ação vertiginosa se revezam com passagens contemplativas em que os personagens (especialmente o jovem Rômulo, orientado por seu mestre bretão) procuram entender o que se passa com o mundo que os cerca, pois ninguém ainda conseguiu assimilar verdadeiramente a noção de que o Império Romano, que durante séculos pareceu tão perene quanto o céu, não existe mais. Myrdin conduz os companheiros à sua terra natal, na vasta e misteriosa ilha que foi outrora a província mais setentrional do Império, onde ainda os aguarda uma última batalha, e onde a memória de seus feitos, através da bruma dos séculos, irá dar origem a uma nova lenda.

Um detalhe desagradável, mas que não é culpa do autor, é o fato de que, na tradução brasileira, a tentativa de utilizar uma linguagem "de época", que correspondesse melhor ao clima da história, resultou numa infinidade de frases gramaticalmente defeituosas – a triste realidade é que, hoje em dia, praticamente ninguém mais sabe conjugar corretamente os verbos nas pessoas tu e vós.

Para finalizar, uma curiosidade: na nota de agradecimento no começo do livro, o autor "entrega" que já escreveu a história pensando numa futura adaptação para o cinema, o que torna muito lógicas as sequências de ação realmente "visuais" e "cinematográficas" de que o romance está repleto. E quando, meses depois de ter lido A Última Legião, vi no cinema o trailer de Rei Arthur, que estava prestes a ser lançado, confesso que, antes de ficar sabendo do que se tratava, pensei que já fosse o livro de Manfredi transformado em filme!... As paisagens britânicas, aquele guerreiro de elmo e armadura romanos, uma bela arqueira, tudo parecia bater. Leiam o livro e vejam se não me dão razão!... Por fim, faço votos de que o filme A Última Legião não tarde muito a surgir.

sábado, dezembro 25, 2004

Rei Art(h)ur

Para inaugurar este diário literário, vou falar do livro que estou acabando de ler agora: Rei Artur, de Allan Massie. Embora a Ediouro venha já há algum tempo investindo massivamente em Massie (perdoem esse trocadilho horroroso; não deu para resistir), publicando em rápida sucessão vários de seus romances, este foi o primeiro livro do autor que cheguei a ler, apesar de sua série sobre imperadores romanos já me haver atraído a atenção durante visitas a livrarias. Pelo que eu soube, Rei Artur está vendendo muito bem, obrigado - e posso apostar que a maior parte desses exemplares estão sendo comprados por pessoas equivocadas, que pensam estar adquirindo o livro que deu origem ao recente filme de mesmo nome. Aliás, seria um caminho interessante a adotar nesta resenha tentar traçar um paralelo entre ambos, deixando claro, desde já, que um não tem qualquer relação com o outro: são apenas duas visões diferentes, e totalmente independentes, de uma mesma lenda, ou melhor, conjunto de lendas.

A saga do Rei Artur sempre foi um de meus ambientes lendários preferidos, talvez perdendo apenas para o ciclo da Guerra de Tróia. Um dos primeiros livros que lembro de ter lido na vida foi um volume de bolso intitulado Os Cavaleiros da Távola Redonda: acredito que era uma adaptação para o público juvenil de La Morte d’Arthur, de Sir Thomas Mallory. E uma coisa curiosa de se observar a respeito das lendas arturianas é o campo praticamente infinito que elas oferecem para variações, recriações, releituras.

Posso ilustrar isso com exemplos. Depois de ver o filme Tróia, saí do cinema com uma vontade incontrolável de torcer o pescoço do diretor. O motivo? Simplesmente que a Ilíada, na qual o filme pretende estar baseado, talvez tenha sido o livro que mais me marcou e emocionou até hoje, e que o que se viu na tela não foi uma "adaptação" dela, e sim uma grosseira deturpação. Só quem não conhece Homero pode ter gostado desse filme. Felizmente para os interesses comerciais de Hollywood, e infelizmente para a cultura da humanidade, quase todo mundo hoje em dia preenche esse requisito. Chega a me enfurecer pensar que, por causa desse filme, agora milhões de pessoas acreditam piamente que Heitor matou Menelau, que Aquiles morreu durante a tomada de Tróia, e que Agamenon era um rei covarde que morreu apunhalado por uma escrava!...

Mas vejam o que aconteceu quando fui ver Rei Arthur... Se Tróia tem pouco a ver com a Ilíada, esse outro filme não tem praticamente nada a ver com qualquer uma das (várias) versões da história de Artur que li desde que, ainda garoto, abri pela primeira vez aquele livrinho de bolso. E no entanto, e apesar de alguns furos que o filme tem, eu gostei!... Como é possível?

A explicação, na realidade, é bem simples. A história da Guerra de Tróia, apesar de, como quase todas as lendas, ter muitas variações, tem na Ilíada uma espécie de versão oficial. O poema não narra toda a guerra, na verdade focaliza apenas um curto período do décimo ano do cerco de Tróia, e não inclui o início nem o final do conflito; porém, os eventos desse período, somados a outros narrados em flashback na própria Ilíada e em seu poema-irmão, a Odisséia, compõem um painel, mesmo que fragmentário, da história da guerra, que poetas posteriores se encarregaram de completar e enriquecer; mas esse assunto posso desenvolver em outra ocasião.

O que pretendia dizer era que, embora nos detalhes haja variações para todos os gostos, naquilo que é principal a história da Guerra de Tróia tem em Homero e em seus sucessores um roteiro bem traçado, e que as pessoas que conhecem esses autores tendem a considerar suas obras como a "versão oficial" da lenda, e, por conseguinte, também tendem a se irritar com deturpações como as que citei acima. Já com a história de Artur, isso não acontece. Como existem tantas versões, e nenhuma delas é oficial, o autor que quiser recontar a lenda pode tomar liberdades sem ferir os brios de ninguém - desde que, é claro, saiba fazer isso atendo-se aos princípios mais óbvios do bom senso e do bom gosto, questões essas a respeito das quais tenho uma ou duas coisas a dizer ao Massie... Mas vou chegar lá no devido tempo.


Rei Arthur, o filme, tem como subtítulo "A verdadeira história por trás da lenda". Disse e repito que gostei do filme, mas esse slogan não passa de marketing. O máximo que se pode dizer é que esse filme possui mais embasamento histórico que produções anteriores, e, mesmo assim, mistura elementos de épocas diferentes. Geralmente se aceita que o personagem que deu origem à lenda de Artur (quem quer que tenha sido) deve ter vivido nos séculos V e/ou VI, logo depois da queda do Império Romano, e liderado os bretões romanizados na resistência contra os saxões e outros povos bárbaros que estavam se aproveitando do desaparecimento do poder romano para invadir as terras civilizadas. Mas uma teoria recente baseada em elementos arqueológicos leva as origens da lenda para o distante século II - a era de ouro do Império -, na pessoa de um certo Lucius Artorius Castus, herói romano que comandava cavaleiros sármatas - bárbaros das planícies da Rússia - recrutados para servir a Roma. O filme, como sabe quem o viu, mistura as duas idéias: resgata Artorius como o verdadeiro Artur, mas ambienta a história no século V mesmo. Nas legendas do filme, os cavaleiros são chamados de "sarmatians", como no original inglês, o que não é tão ruim: quando a gente não sabe traduzir uma palavra, o melhor é mesmo deixá-la como está. Seria bem pior se o tradutor tivesse decidido chamá-los de "samaritanos", como fez o autor de certo comentário que li sobre o filme. A mistura vai mais além: é óbvio que bárbaros russos não teriam nomes como Tristan, Gawaine, Galahad, e muito menos Lancelot; os nomes clássicos dos supostos cavaleiros de Artur foram mantidos apenas para permitir ao público estabelecer alguma relação entre a história contada no filme e as que eventualmente já conhecesse.

Os "furos" a que já me referi e que consegui identificar são coisas que apenas quem está ligado no aspecto histórico notaria. São os seguintes:
  • Primeiro, na seqüência inicial, Lancelot conta como foi que os cavaleiros sármatas vieram a entrar para o serviço de Roma, o que teria acontecido por volta do ano 300, mas os soldados romanos que aparecem usam nos escudos e estandartes o monograma de Cristo, formado pelas letras gregas khi (X) e (P), sobrepostas. No ano 300 o Império Romano ainda não era cristão.
  • Segundo, a ação propriamente dita do filme transcorre no ano 452. Na verdade, os romanos se retiraram oficialmente da Bretanha em 410. Isso não significou o fim da influência da cultura romana sobre a vida dos bretões, mas uma missão militar oficial ordenada por Roma já não teria como acontecer no país em 452.
  • Terceiro, os saxões vieram da região que corresponde hoje à Alemanha, de modo que invadiram a Bretanha pelo leste e sudeste, e não pelo norte, como aparece no filme. A região ao norte da Muralha de Adriano (a atual Escócia) era realmente controlada pelos pictos (chamados no filme de "woads"), de modo que os bretões estavam encurralados entre duas invasões potenciais. Isso ajuda a entender por que aqueles tempos eram tão desesperadores para quem os viveu.
  • Quarto, por que diabos uma família romana nobre viveria ao norte da Muralha, em pleno território inimigo?
Rei Artur, o livro, foi concebido por Allan Massie como o segundo volume de uma trilogia sobre a Idade Média, que começa com O Crepúsculo do Mundo. Não li esse, mas sei que se trata da história de um nobre romano, Marcos, que vive no século V e testemunha o desmoronamento do Império. O título, inegavelmente, é bem dado: as pessoas da época, ao verem ruir a única instituição que fora capaz de garantir aos povos do Ocidente algum nível de direito, ordem e civilização, devem ter tido a nítida sensação de que o mundo estava mesmo acabando. O personagem criado por Massie faz, ou tenta fazer, um contraponto ao cenário de decadência geral, recordando os tempos mais gloriosos da história romana: ele se diz descendente de Júlio César, e, através dele, de Enéias, o herói troiano que, de acordo com a lenda, teria sido o ancestral dos fundadores de Roma. Não sei quais são as peripécias pelas quais o tal Marcos passa em O Crepúsculo do Mundo, mas no começo de Rei Artur vamos encontrá-lo governando a Bretanha, tido e havido pelos bretões romanizados como verdadeiro imperador.

Antes de continuar, é preciso fazer duas observações. A primeira é que neste livro é importante distinguir "Britânia" de "Bretanha". Massie chama de Britânia a moderna Inglaterra, e de Bretanha a região do norte da França que em outras versões é conhecida como Bretanha Menor ou Bretanha Armoricana (a pátria de Sir Lancelot). Pessoalmente, sempre preferi a designação de Bretanha para a Inglaterra, mas, doravante, enquanto estiver escrevendo sobre o livro de Massie, utilizarei a terminologia dele. A outra observação é sobre uma particularidade da estrutura narrativa: Massie finge estar reproduzindo um manuscrito medieval, supostamente redigido no século XIII por um tal Michael Scott, um erudito escocês que teria sido professor do então adolescente Frederico de Hohenstaufen, neto de Frederico Barba-roxa e futuro imperador do Sacro Império Romano-Germânico. E Scott teria escrito essa narrativa sobre Artur para a diversão e ilustração de seu nobre discípulo.

Não vou resumir o roteiro do romance, para não estragar a diversão de quem quiser lê-lo, mas há alguns comentários que considero necessários. Primeiramente, senti-me incomodado pela insistência irritante com que Scott (Massie?) repete sem parar que aquela é a "verdadeira" história de Artur, pois um leitor desavisado e sem muito conhecimento é capaz de acreditar. A impressão que fica é de que o autor se esconde por trás de um narrador imaginário para poder fazer suas afirmações terminantes e categóricas sem ter que arcar com a responsabilidade por elas. Do ponto de vista histórico, há diversas incoerências e alguns absurdos: ao longo do livro fala-se várias vezes em milho - planta nativa das Américas, e que, portanto, era totalmente desconhecida pelos europeus, fosse nos tempos de Artur ou nos de Michael Scott. Em certo ponto, diz-se que a rainha Guinevere, entediada, "fazia as aias lhe lerem romances sobre cavaleiros errantes e damas a quem eles professavam devoção"; na realidade, essa espécie de romance de cavalaria só surgiria na Idade Média tardia, por volta dos séculos XIV e XV, quando a cavalaria em si já estava caindo em desuso. O cavaleiro Lancelot, que não existia nas versões mais antigas da lenda, deve ter sido criado por volta dessa época, quando as narrativas arturianas eram passadas adiante por trovadores franceses, que devem ter se ressentido com a índole excessivamente "britânica" da história e por isso decidiram introduzir um personagem que fosse francês como eles. Também a suposta traição de Artur por Guinevere e Lancelot foi inventada por esses mesmos trovadores, que acreditavam que amor era incompatível com casamento, de modo que amor verdadeiro só existiria no adultério (essa idéia é a base da temática do "amor cortês", que serviu de tema principal aos trovadores não só franceses, mas de quase toda a Europa, durante séculos; de qualquer forma, isso nada tem a ver com a lenda de Artur).

Resumindo: essa história "real" de Artur está repleta dos mesmos clichês medievais que recheiam quase todas as outras versões, e que nada têm de "reais", o que é bem curioso, já que, segundo o suposto Michael Scott, Artur seria neto daquele mesmo Marcos e teria como principal objetivo a reconstrução do Império Romano. Sendo assim, não seria preferível retratar o herói e sua época de uma maneira mais romana, o que, além disso, teria sido mais coerente com a realidade histórica por trás da lenda? Também é preciso destacar o gosto do autor por tramas ao estilo Teoria da Conspiração, o que ele demonstra neste romance criando uma história absurda na qual o papado da época teria conspirado para impedir que Artur obtivesse sucesso em seu plano imperial, e teria conseguido isso apoiando Mordred.

A origem de Mordred, aliás, é um ponto que muda um pouco neste romance. Massie fundiu em uma única personagem, que ele chama de Morgan, as duas meias-irmãs mais velhas de Artur: Morgana e Morgause (e antes que os leitores de As Brumas de Avalon me escrevam dizendo que Morgause era tia de Artur, esclareço que nas obras clássicas de Thomas Mallory e Chretién de Troyes, ela era realmente filha de Igraine e de Gorlois, duque da Cornualha, portanto irmã de Morgana e meia-irmã de Artur. Quem decidiu convertê-la em irmã de Igraine e tia de Morgana e Artur foi Marion Zimmer Bradley, autora de As Brumas..., usando de licença poética). Essa Morgan seria irmã de Artur por parte de pai, e não de mãe, como nas outras versões, e teria sido confiada por Merlin à guarda da superiora de um convento, de onde mais tarde o mesmo Merlin a tirou para entregá-la ao rei Lot de Orkney, com quem ela se casaria (tudo tramado por Merlin) e teria os filhos Gawaine, Agravaine e Gaheris - além de Mordred, nascido de uma relação incestuosa entre Morgan e Artur, que se encontram por acaso (será?) e sem saber que são irmãos.

Talvez a personagem cujas modificações de uma versão para outra são mais curiosas de observar e comparar seja a rainha Guinevere. Na maioria das versões ela é filha de Leodegranz, um rei bretão menor, vassalo e aliado de Artur; no filme recente, é uma guerreira picta, ou "woad"; e no livro de Massie, é uma princesa saxã (!), cujo pai, derrotado em combate por Artur, aceita uma aliança com ele e, para selar o acordo, dá-lhe a filha em casamento.

Enfim, Rei Artur de Allan Massie é uma versão toda modificada (até aí, nada de errado...), narrada com pedantismo, e que raramente chega a prender o leitor. De bom, tem a interessante descrição da organização da Távola Redonda e da estrutura de governo implantada por Artur na Britânia, e que, enquanto dura seu reinado, dá ao país um período de prosperidade comparável ao do tempo dos romanos. Além disso, o autor, talvez sem querer, proporciona aos leitores um pouco mais instruídos uma oportunidade de refletir sobre o valor da cultura e da erudição, valor esse tão menosprezado no mundo moderno, onde o único tipo de conhecimento considerado importante é o conhecimento técnico. A grande maioria das pessoas jamais chegará a compreender por que é importante conhecer a história dos povos antigos e as obras dos grandes autores da literatura universal, nem saberá o prazer todo especial que há, por exemplo, em ler sobre Artur dizendo a Gawaine que "a arte de governar consiste em impor o costume da paz, poupar os conquistados e subjugar os orgulhosos", e saber que ele está citando Virgílio. E isso, permitam-me dizer, é lamentável. A supervalorização da técnica em detrimento do conhecimento humanístico é sem dúvida a grande responsável pelo empobrecimento cultural que hoje atinge a maior parte da humanidade, incluindo as pessoas que têm estudo, mas simplesmente não conseguem entender qual o sentido de gastar tempo lendo coisas que não têm relação com sua profissão - ou, em bom português, coisas que não servem para ganhar dinheiro.