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quinta-feira, fevereiro 22, 2018

Visões da Noite

Ambrose Bierce (1842-1914?) foi um sujeito de quem eu definitivamente não teria sido amigo, e parece que muita gente também não. Jornalista e crítico, ele tinha como uma de suas principais características um cinismo corrosivo e, não raras vezes, cruel, que não só o fez colecionar inimigos como também afastou vários amigos ao longo de sua vida. Por não poupar farpas contra (entre outros alvos) escritores – não importando o quão aclamados fossem pelo restante da crítica –, arrumou tretas memoráveis com mais de um nome de peso da literatura norte-americana, entre eles Jack London.

Nascido no estado americano de Ohio e criado em Indiana, Bierce começou no jornalismo na adolescência, tendo a carreira ainda incipiente interrompida em 1861 pela eclosão da Guerra Civil Americana, na qual lutou pelo exército da União, que reunia as forças dos estados do Norte contra os Confederados do Sul. Bierce participou de um punhado de batalhas importantes, destacou-se pela bravura e sofreu pelo menos um ferimento grave em ação. Galgou postos até tornar-se primeiro-tenente, graduação com a qual deu baixa, no início de 1865, meses antes do fim da guerra. Retornando à atividade jornalística, estabeleceu-se em San Francisco, Califórnia, onde atuou como repórter e editor em diversos periódicos, enquanto, paralelamente, escrevia trabalhos de ficção. Sua primeira história publicada foi O Vale Assombrado, em 1871. Viveu na Inglaterra durante alguns anos. Sua produção literária não foi muito extensa; além de narrativas realisticamente sangrentas sobre o que tinha visto na guerra, dedicou-se ao que hoje seria chamado horror psicológico, bem como ao conto sobrenatural. Chegou até a flertar com a ficção científica, gênero que mal existia em sua época. Seu fim foi digno de uma de suas histórias: nos últimos dias de 1913, já idoso e divorciado (parece que, como tanta gente, tampouco sua esposa o suportou), viajou para o México com o plano de fazer uma cobertura jornalística da revolução que o país então vivia; atravessou a fronteira sozinho no final de dezembro daquele ano e conseguiu permissão para acompanhar o exército de Pancho Villa na qualidade de observador neutro. Daí em diante, nada mais se soube dele; foi dado como desaparecido, o que explica o porquê do ponto de interrogação que acompanha o ano (presumido) de sua morte. Há quem ache que ele simplesmente continuou a exercer seu habitual sarcasmo agressivo ("Bierce sendo Bierce") e que os mexicanos tinham um pavio mais curto para esse tipo de coisa que os americanos, de modo que o escritor teria acabado fuzilado. Mas isso é só conjectura.

Esta edição da Record inclui uma introdução de Heloisa Seixas, também a responsável pela seleção e tradução dos textos; consiste basicamente de uma biografia do autor, resumida, embora muito mais detalhada que a versão acima, e de breves considerações sobre sua obra. Seixas observa, de passagem, que é um tanto surpreendente que Bierce tenha elegido o sobrenatural como tema de várias de suas histórias, já que, em nível pessoal, era "agnóstico, ateu, herege, ou como você queira chamar aqueles que descreem de tudo". Na verdade, agnóstico, ateu e herege são três coisas diferentes, e parece que, dos três conceitos, aquele no qual Bierce melhor se encaixava era o de agnóstico – do grego a, um prefixo de negação, e gnosis, conhecimento. Ou seja, um agnóstico é alguém que não crê nem descrê: diz "não sei", por ser da opinião de que é impossível provar quer a existência, quer a inexistência de Deus. Mas, mesmo que Bierce fosse decididamente um ateu, não vejo, a priori, nenhuma incompatibilidade entre isso e seus trabalhos de ficção. Sua possível descrença no sobrenatural não o impediria de usá-lo em histórias inventadas, tal como Tolkien certamente não acreditava na existência de elfos ou dragões, o que não o impediu de escrever sobre eles.

A primeira história é Um Incidente na Ponte de Owl Creek, um drama e suspense ambientado durante a Guerra Civil, narrado de forma "nervosa", diria até que aos arrancos, o que, por alguma razão, parece ser comum em autores que adquiriram prática na escrita por meio do jornalismo (algo no conto me lembrou algum texto de Ernest Hemingway). Há grandes lacunas na narrativa, questões importantes com as quais o autor prefere deixar que o leitor "se vire". Um homem de nome Peyton Farquhar, fazendeiro no Alabama e apoiador fervoroso da causa do Sul na guerra, está prestes a ser enforcado na ponte mencionada no título do conto – e, para nossa surpresa, os militares que vão executá-lo são do exército confederado, ou seja, do lado que ele considera seu lado na guerra. Não é fornecida nenhuma explicação de como Farquhar terminou nessa situação; o mais próximo disso é um flashback no qual ele conversa com um soldado confederado que casualmente passa por sua casa, mas é tudo muito vago. De todo modo, o cerne da história está em como realidade e imaginação podem confundir-se em momentos de grande tensão emocional – uma coisa que, como veterano de guerra, Bierce devia conhecer bem.

Adendo, ou remendo, como preferirem: Descobri o que estava errado com Um Incidente na Ponte de Owl Creek, e minha primeira ideia foi reescrever o parágrafo anterior, mas optei por deixá-lo como está, só para ilustrar os graves problemas que uma tradução equivocada pode causar. Bem: uma vez que o fato de Peyton Farquhar ser levado à forca pelos soldados de seu próprio lado não parecia certo (ao menos, não sem uma explicação plausível), fui procurar o texto original do conto, para o caso de haver alguma falha na tradução. E não deu outra. Ocorre que a Sra. Heloisa Seixas, por alguma razão, traduziu "Federal army" por "exército confederado" em vez de "exército federal", como deveria ser – e exército federal, no contexto da Guerra Civil Americana, significava o exército da União, ou seja, do Norte, que eram os Estados Unidos propriamente ditos, já que o Sul tinha se declarado independente, com o nome de Estados Confederados da América, pretendendo formar um país separado. Traduzindo desse jeito, torna-se francamente impossível ao leitor distinguir os dois lados no conflito, o que resulta em confusão total, prejudicando gravemente a compreensão da história. Seixas caiu vários pontos no meu conceito depois dessa. Mas vamos em frente.

O próximo conto tem o curioso título de Naufrágio Virtual. Esse adjetivo, que hoje usamos a torto e a direito por causa da internet e dos games, é muito mais antigo que tudo isso e tem vários significados possíveis, sendo que, por vezes, a diferença entre eles é sutil. Talvez sua acepção mais comum seja "algo que existe como ideia ou ideal, mas sem existência objetiva". Isso poderia, muito pela tangente, se encaixar nesta narrativa, mas não é bem isso. A história é tão curta e, de um ponto de vista formal, tão simples, que qualquer tentativa minha de fornecer a vocês um esboço do enredo resultaria em spoiler, então direi apenas que gira em torno do fenômeno da "viagem do espírito", e que o tremendo impacto que consegue causar com seu final, depois de tão poucas páginas, é algo que praticamente obriga um leitor a admirar a habilidade do autor. Luar Sobre a Estrada narra um caso de assassinato sob três diferentes pontos de vista – um deles o da própria morta, que não se limita a contar como foi que se tornou um fantasma, mas também descreve como é a existência de quem "passou para o outro lado", embora essa não seja uma expressão adequada, pois, segundo a falecida Sra. Julia Hetman, essas almas não vão a parte alguma: elas ficam rondando aqueles a quem amaram ou odiaram em vida, e, embora normalmente sejam invisíveis, de vez em quando determinadas circunstâncias fazem com que os vivos consigam vê-los, o que, claro, costuma resultar num enorme medo. Para saber como os fantasmas se sentem em relação a tudo isso, leiam a história, que oferece esse "testemunho" junto com um enredo de mistério que vale a pena conhecer.

Aparições é uma pequena coletânea de brevíssimas histórias, todas narradas de forma sóbria e econômica, a respeito de… bem, aparições. É notável como o estilo despojado, extremamente direto adotado consegue realçar o elemento sobrenatural – é como se o narrador fosse da opinião de que os fatos a serem apresentados são tão extraordinários em si mesmos, que ficar fazendo floreios seria nada mais que um desperdício de palavras. Meu palpite é que alguns desses causos tenham saído da imaginação de Bierce e alguns outros tenham sido ouvidos por ele em meio a rodas de conversa banal (é o que hoje chamaríamos de "lenda urbana", embora a maior parte tenha ambientação rural!) e adaptados para funcionarem bem na forma escrita – e funcionam muito bem.

E assim chegamos ao que considero, se não a melhor, pelo menos uma das duas ou três melhores histórias do livro – opinião, creio eu, partilhada por H. P. Lovecraft, que escreve sobre ela em tom admirativo no ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura. Trata-se de O Ambiente Adequado, que, como as outras, é breve e simples. James Colston, escritor de histórias de terror, encontra por acaso, num bonde, um conhecido, o Sr. Willard Marsh, que, também por acaso, está lendo no jornal o mais recente trabalho publicado de Colston. A conversa dos dois desemboca num desafio: Colston afirma que não é necessário nenhum grau extraordinário de coragem para ler suas histórias a bordo de um bonde, na luz da manhã, circulando por ruas movimentadas, mas pergunta se Marsh seria capaz de lê-las sozinho, à noite, numa velha casa abandonada e tendo apenas uma vela como iluminação. Mais uma vez, não há como dar mais detalhes sem estragar a leitura para vocês, mas acredito que essa premissa já deixe claro que temos aí um conto de terror um tanto diferente, explorando uma questão na qual todo leitor do gênero já pensou ao menos uma vez. E o final é terrível – no melhor dos sentidos.

A história Um dos Gêmeos é narrada por um homem de nome Henry Stevens, que tem, ou melhor, teve um irmão gêmeo, John. Gêmeos, em geral, têm uma relação curiosa e difícil de imaginar para quem é "um só", e que fica ainda mais peculiar se forem idênticos, mas parece que o caso de Henry e John é uns quantos graus mais extraordinário. Quando jovens (conta Henry), ambos moravam em San Francisco, mas viviam e trabalhavam em bairros diferentes e tinham poucos conhecidos em comum; como a cidade, na época, não era tão grande, era relativamente comum alguém encontrar um deles e pensar que era o outro – situação com a qual gêmeos idênticos estão acostumados a lidar desde a infância. O que há de diferente no caso dos irmãos Stevens é que sua conexão é tal que, em ocasiões assim, muitas vezes, qualquer um dos dois diz e faz exatamente o que o outro diria e faria, ainda que não conheça a pessoa com quem está interagindo e não tenha a menor ideia de por que determinadas palavras estão saindo de sua própria boca. Essa ligação inexplicável irá moldar a participação de cada um dos gêmeos numa trama de mistério e morte.

No Limiar do Irreal é sobre o poder da ilusão, prestidigitação e hipnotismo, o que se presta bem a uma história de terror, dependendo do tratamento dado, e, quando uma história tem esse mote, ela tende a ser tanto mais assustadora quanto mais verossímil. Não sei nada sobre o assunto, então não sei dizer se é plausível que uma pessoa permaneça sob o efeito de uma ilusão hipnótica por tanto tempo e de forma tão convincente quanto é descrito neste conto, mas não há dúvida de que o resultado para o leitor é inquietante. A seguir, temos outra coletânea, intitulada Casas Espectrais. As várias pequenas narrativas que a compõem apresentam as experiências de diferentes tipos de pessoas quando, sob circunstâncias também diferentes, vão parar em lugares assombrados. Assim como em Aparições, há aquela sensação de estarmos lendo histórias que devem ter sido contadas ao redor de muitas mesas de bar antes que Bierce as ouvisse e, fazendo as adaptações que julgou necessárias, pusesse por escrito, exceto no caso de Missão Não Cumprida, que é protagonizada por um jornalista e tenho o palpite de que seja cem por cento criação do autor.

Os Olhos da Pantera merece menção especial, e quem assistiu ao clássico de terror Sangue de Pantera (1942) ou ao seu remake mais safado, A Marca da Pantera (1982) entenderá logo por que – a propósito, ambos os filmes tinham o mesmo título original, Cat People, literalmente 'O Povo-gato'). O tema da mulher-fera é um arquétipo, talvez de origem pré-histórica, e tem sido retomado por uma série de autores desde os tempos antigos, mas apreciei muito o modo como Bierce soube adaptá-lo ao pano-de-fundo de seu país e época. Chega a ser uma pena que a história seja tão curta, pois seus desdobramentos e subentendidos poderiam render um conto bem mais longo ou até mesmo um pequeno romance, sem recair na encheção de linguiça. O protagonista, o advogado Jenner Brading, está apaixonado por Irene Marlowe, uma jovem tão notável pela beleza quanto por seu comportamento peculiar, mas ela lhe diz que não pode casar-se com ele porque é louca (geralmente, o fato de uma pessoa se considerar louca é um indício de que não o é, mas isso não vem ao caso aqui). Pelo que ela conta, seu pai era um desbravador que vivia, com a esposa e a filha (uma irmã mais velha de Irene que morreu pequena), numa cabana no meio de uma região selvagem, naquele ainda pouco explorado oeste dos Estados Unidos. Aconteceu que, tendo ele saído para caçar, uma pantera aproximou-se da casa e ficou espreitando a mulher e a criança que estavam indefesas lá dentro. A fera não chegou a atacar, mas a experiência daquelas longas horas de terror extremo fez a mãe de Irene perder a sanidade e afetou de forma insólita a própria jovem, que nasceria meses depois do episódio. Para saber mais, vocês terão que ler a história, é claro. A propósito, a palavra "pantera", a rigor, é sinônimo de leopardo, animal encontrado na África e Ásia, mas já foi usada nas Américas para designar tanto a onça-pintada (que, assim como o leopardo, ocasionalmente apresenta coloração preta ao invés da típica pelagem malhada) quanto a onça-parda, ou puma, ou ainda suçuarana. A pantera da história de Bierce poderia ser qualquer uma das duas, pois ambas as espécies eram encontradas em grande parte dos Estados Unidos até fins do século XIX.

Ah, sim: há uma história chamada O Homem Saindo do Nariz, mas, ao contrário do que esse título sugere, não se trata de um texto surrealista. O "nariz" citado é apenas a porta de uma casa cuja fachada lembra toscamente um rosto, e a história fala de um homem, outrora rico e benquisto da sociedade, que foi arruinado por suas paixões e, o que é pior, arrastou consigo a família em sua queda. Há pouco ou nenhum elemento sobrenatural e, a meu ver, a história não tem maior relevância, a não ser pelo título curioso.

O restante do livro não é tão impressionante quanto algumas das histórias que já comentei; consiste basicamente em contos com algum elemento sobrenatural, mas que raramente causam ao leitor alguma sensação de verdadeira inquietação, com exceção de dois momentos. O primeiro é A Morte de Halpin Frayser, que lida com um tipo de ser sobrenatural que, pelo que o narrador dá a entender, é provavelmente ainda mais apavorante que o fantasma "comum": enquanto o fantasma é um "espírito sem corpo", essa outra entidade (à qual ele não chega a atribuir um nome) é um "corpo sem espírito". Talvez seja algo semelhante ao que hoje chamaríamos de zumbi, mas, lendo o conto, não parece ser bem isso. A história contém também a descrição de uma floresta assombrada por onde um personagem está vagando à noite, sem que ele, e tampouco o leitor, saiba ao certo se aquilo é sonho ou realidade; essa parte é de gelar a espinha.

O outro momento memorável aparece numa das pequenas narrativas que compõem Cruzando o Umbral, que é mais uma daquelas minicoletâneas; essa história específica chama-se Um Habitante de Carcosa, e aqui temos algo importante. Deixando de lado a marcada (e, por vezes, cansativa) ambientação norte-americana que predomina em quase todas as outras histórias, nessa, pela única vez em todo o livro, Bierce se permite entrar num mundo imaginário, ou, talvez, numa era imaginária do nosso próprio mundo: o personagem-narrador vive (ou viveu) na "antiga e famosa cidade de Carcosa", e agora encontra-se num lugar ermo e selvagem, sem saber onde está ou como chegou ali. Tudo o que lembra é de estar sofrendo de uma febre que, além de deixá-lo prostrado, afetou suas faculdades mentais, e supõe que, em meio ao delírio, tenha fugido de casa aproveitando uma distração de seus familiares e ido parar onde está, seja isso onde for. O desfecho é surpreendente e sinistro. Para reforçar a hipótese de que tudo acontece num mundo imaginário, ele menciona, de passagem, suas "mulheres e filhos", o que sugere que a tal Carcosa ficasse em alguma terra com costumes bem diferentes dos norte-americanos. Quanto ao nome, esse já intrigou muita gente; a teoria mais aceita é que Bierce tenha brincado com o nome da cidade francesa de Carcassone, que, nos tempos da dominação romana, chamava-se Carcasum. Robert W. Chambers, que sem dúvida leu Bierce em sua juventude, menciona Carcosa em alguns de seus contos de terror e fantasia, e, depois dele, outros escritores fizeram o mesmo, homenageando tanto a ele quanto a Bierce e contribuindo para o crescimento de uma espécie de mitologia, num fenômeno semelhante ao que acontece com a obra de H. P. Lovecraft, embora em escala menor.

Ambrose Bierce é certamente um autor importante, e ninguém que pretenda conhecer bem a história da literatura fantástica na América do Norte pode ignorá-lo; também não é possível negar que, entre os contos que compõem este livro, há um punhado que poderá, com justiça, merecer um lugar em qualquer boa antologia de terror – ou na lista pessoal dos mais assustadores de qualquer leitor experiente no gênero. Por outro lado, devo registrar, por questão de sinceridade, que a experiência como um todo (refiro-me à leitura deste volume de cabo a rabo) não foi assim tão prazerosa, talvez por causa da maneira como o autor escrevia: além de jornalista, ele era um cínico convicto, e a combinação das duas coisas parece resultar, durante noventa e nove por cento do tempo, numa linguagem extremamente seca, revelando uma quase obsessão pela objetividade, o que, ao final de algum tempo, torna-se cansativo, embora também tenha o efeito de realçar os raros e surpreendentes momentos de poesia. Em resumo, encarar um livro inteiro só com trabalhos dele talvez não seja a melhor maneira de ler Bierce, mas é indiscutível que o cara produziu um bocado de coisas que merecem ser conhecidas.

sábado, março 19, 2016

Dança Macabra

Embora eu seja um fã de Stephen King (como quem acompanha este blog, se é que alguém acompanha, já deve ter percebido), não tenho a pretensão de ser um grande conhecedor de sua obra… E vamos concordar, ser um grande conhecedor de King é uma empreitada que requer um tremendo investimento em termos de tempo, dinheiro e espaço na estante: vai ser prolífico assim lá no Maine! Portanto, não estou (muito) envergonhado de só agora ter lido Dança Macabra, cuja publicação original é de 1981.

Trata-se de uma leitura muito interessante, além de muito útil para todos os aficionados do terror em qualquer de suas apresentações: literatura, cinema, TV, quadrinhos e o que mais imaginarmos. H. P. Lovecraft escreveu O Horror Sobrenatural na Literatura, sobre o qual já falei aqui uma pá de vezes, mas que nunca me senti à vontade para transformar em assunto de um post próprio; já Dança Macabra, tão logo percorri suas 20 ou 30 primeiras páginas, já deixou claro o fato de que eu teria que escrever sobre ele. Por quê? Não sei. Talvez (e isso não passa de um palpite) porque já tenha lido mais coisas de King que de Lovecraft, e por isso tenha a sensação de entender melhor como funciona a cabeça do autor. No mais, acredito que o paralelo (não é uma comparação) procede: cada um procurou apresentar um panorama da tradição que o precedeu na ficção fantástica. Lovecraft, em sua época, praticamente só tinha a literatura da qual tratar, e, nesse campo, cobriu quase três séculos de obras e autores europeus e norte-americanos. Já King, escrevendo entre o fim da década de 70 e o começo da de 80, precisava cobrir uma gama muito maior de mídias, e, talvez por isso, optou por restringir o arco de tempo a ser abrangido pelo ensaio: seu assunto propriamente dito é a produção de terror das décadas de 50, 60 e 70, embora seja impossível evitar, vez por outra, uma incursão no passado em busca das origens de determinados horrores. Também à diferença de Lovecraft, King não se detém apenas em obras de terror, dando alguma atenção também à fantasia e à ficção científica, em especial a segunda, já que, durante o período que ele analisa, ficção científica e terror frequentemente interagiram, dialogaram e se interpenetraram, na literatura e sobretudo no cinema.

Já que estamos falando de gêneros, peço a indulgência de meus leitores para também expor um pouco de teoria de minha própria lavra. Gosto de agrupar ficção científica, terror e fantasia (na literatura, claro está) debaixo de um mesmo e enorme guarda-chuva que chamo de "literatura de imaginação". Os três têm em comum o fato de não terem suas temáticas limitadas pelas amarras do "possível" (para não falar no fato de, muitas vezes, serem produzidos e/ou consumidos pelas mesmas criaturas estranhas), mas também têm entre si grandes e importantes diferenças. Desse trio, a ficção científica é a que mantém maior distância em relação a seus "irmãos" terror e fantasia, os quais, por sua vez, são muito próximos um do outro – King chega a dizer que o terror não é propriamente um gênero, e sim um subgênero dentro da fantasia, uma asserção com a qual eu não sei se concordo. E o que é que causa essa distância? Bem, a ficção científica é um gênero jovem, não no sentido de atrair o público jovem, mas no de existir há pouco tempo mesmo: seus primeiros expoentes dignos de nota são do século XIX. O terror e a fantasia, por outro lado, são muito antigos; nem sequer é possível fixar um marco exato de onde começam, herdeiros diretos que são da mitologia e do folclore – coisas que acompanham nossa espécie desde que ela passou a merecer o nome de humana. E, se a ficção científica teve um início recente, isso foi porque ela só pôde aparecer quando a ciência em si já estava madura a ponto de poder servir de inspiração para um gênero literário. Temos, então, que histórias de ficção científica são aquelas baseadas na ciência, ou, ao menos, em uma imitação aceitável de ciência; é um gênero que precisa oferecer explicações. A fantasia e o terror não precisam de explicações: sua matéria é a magia, o misticismo e o sobrenatural. Numa palavra, o inexplicável.


É claro que isso não significa que não possam ocorrer crossovers entre esses gêneros – e aqui devolvo o microfone a King. Obrigado, mestre. Logo no começo do livro, ele usa a miríade de filmes sobre invasões alienígenas que o cinema norte-americano produzia e exibia durante seus tempos de infância como ponto de partida para tecer uma reflexão. King, que nasceu em 1947, frequentemente se refere a sua própria geração como os "filhos da guerra" – a geração que colheu os frutos da vitória na Segunda Guerra Mundial. Todos os frutos. Por um lado, essa geração de norte-americanos cresceu em meio a uma prosperidade econômica com a qual seus pais e avós só poderiam ter sonhado; por outro, também cresceu em plena Guerra Fria, cercada pela paranoia constante da "ameaça comunista" (pois a União Soviética, outrora a mais importante aliada dos Estados Unidos contra as potências do Eixo, lideradas pela Alemanha nazista, era agora o inimigo a ser temido) e, pior ainda, convivendo com o fato de que uma guerra nuclear de extermínio total poderia estar à distância de um apertar de botão. A pergunta é inevitável: o que metia medo naquelas crianças e jovens? Por muito tempo, foram esses filmes (em geral toscos, é verdade) sobre invasores do espaço, que resultavam numa alegoria sobre a possível investida do inimigo – e, como bem observa o autor, a alegoria estava lá, pouco importa que o diretor tivesse feito a coisa de propósito ou que (nas palavras de King) o subtexto tivesse simplesmente acontecido. O resultado final de tudo era que, embora esses filmes partissem de elementos da ficção científica – civilizações extraterrestres, espaçonaves –, o efeito obtido era de terror. Em outro exemplo semelhante, King nos apresenta a lenda do "maníaco da mão de gancho", que era contada ao redor de muitas fogueiras de acampamento quando ele era garoto (e antes, e depois) e explica por que ela não deixaria de ser terror, mesmo que alguém decidisse recontá-la substituindo o maníaco por um ser de outro planeta ou de outra dimensão.

Continuando com suas teorizações, o autor apresenta a ideia – surpreendente de certa forma, mas que não deixa de fazer sentido – de que, por mais que o terror pareça um gênero transgressor (já que muitas vezes choca, seja com as alusões sexuais, ousadas para a época, de um Drácula, ou com o horror explícito de revirar o estômago de um Alien, o Oitavo Passageiro), o papel do escritor de terror, no fundo, é o de um agente do status quo, ou, se preferirem, o de um guardião da normalidade. Seguindo essa linha de raciocínio, a narrativa de terror não seria mais que uma variação da velha dicotomia "nós versus os outros". "Nós", nesse caso, significaria a sociedade e o modo de vida que conhecemos, e que talvez não propriamente amemos, mas com os quais, ao menos, nos sentimos confortáveis, rodeados pelo que nos é familiar; os "outros" seria qualquer tipo de criatura ou elemento que surgisse para subverter a ordem estabelecida dessa sociedade e desse modo de vida, quer falemos aqui de fantasmas, vampiros, serial killers ou alienígenas malvados – ou de qualquer das inúmeras coisas às quais esses seres podem servir de metáfora. Caberia ao autor, então, deixar bem marcada a distinção entre… Putz, eu estava pronto para escrever "entre o bem e o mal", mas isso é simplista demais. Talvez seja melhor dizer que o trabalho do autor de terror consiste em acumular sobre alguma figura, seja real ou imaginária, tudo aquilo que nos inquieta e atormenta, inclusive em nós mesmos, dando-nos, assim, um objeto conveniente ao qual direcionar nosso ódio, temor, ou nossa simples perplexidade. E, como o leitor mais perspicaz já deve estar pensando, isso pode ser usado de muitas maneiras. Pode nos proporcionar uma saudável catarse, permitindo que exorcizemos nossos impulsos violentos transferindo-os para um lobisomem fictício, ou pode ser usado com objetivos de controle social e político, com resultados catastróficos – vide o que aconteceu quando os nazistas conseguiram convencer o povo alemão de que eram os judeus o "monstro" que ele devia temer.

(Falar em lobisomem me fez lembrar de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, que King considera uma variação moderna do velho mito, e que mereceu uma análise detida e comentários elogiosos. Para o autor, o livro de Stevenson forma, com Drácula, de Bram Stoker, e Frankenstein, de Mary W. Shelley, a tríade das grandes obras da ficção gótica, sendo ainda, segundo ele, a mais bem escrita das três, por conta de sua narração fluente e concisa, o que não é uma característica das outras duas.)

Em diferentes momentos ao longo do livro, King deixa-se arrastar (de forma deliberada, não tenho dúvida) para reminiscências autobiográficas. Na época, embora já se tivesse firmado como um escritor de sucesso, ele não tinha como saber que viria um dia a ser considerado um nome-chave na história da literatura fantástica, de modo que, ao partilhar essas reminiscências, ainda não sabia da importância que elas viriam a ter, e, então, apresenta-as somente como uma espécie de testemunho pessoal – valioso, de qualquer forma. Embora o gosto pela fantasia, e, em particular, pelo seu lado mais sinistro, pareça ter feito parte dele desde sempre, o autor arrisca apontar alguns acontecimentos de sua infância que podem ter tido sua parcela de culpa. Muito para minha surpresa, fiquei sabendo que o pai de King (que abandonou a família quando o pequeno Stephen tinha dois anos de idade e nunca mais foi visto pelos filhos), marinheiro de profissão, era um fã de ficção científica e terror, gêneros que lia avidamente e nos quais chegou a tentar a sorte como escritor, embora nunca tenha conseguido publicar nada. King, que não lembra de nada sobre o pai, acredita que seu definitivo "despertar" para o terror aconteceu quando, aos dez ou onze anos, encontrou, num sótão empoeirado, um caixote contendo alguns livros que haviam pertencido a ele, com destaque para uma coletânea dos contos de H. P. Lovecraft. Anos antes disso, porém, outra "epifania" já havia acontecido, numa ocasião em que um namorado de sua mãe levou toda a família para ver O Monstro da Lagoa Negra, filme que, hoje em dia, dificilmente ainda conseguiria meter medo em alguém (os sereianos de Harry Potter são, de longe, bem mais assustadores que o tal monstro, e isso para ficar só nas criaturas aquáticas), mas que deixou uma impressão profunda na imaginação de um garoto de sete anos naqueles meados da década de 50. E antes, ainda, outro evento pode ter deixado sua marca: aos quatro anos, King talvez tenha sido testemunha ocular da morte de um vizinho da mesma idade com quem costumava brincar, e que foi atropelado por um trem (digo "talvez” porque ele afirma não se lembrar de nada, sabendo do caso somente pelo relato da mãe, que não estava presente no momento do acidente; pode ser que, afinal de contas, ele não estivesse na companhia do amigo quando o fato aconteceu, mas também é possível que sua mente tenha simplesmente bloqueado essa memória, como dizem que acontece em casos de grandes traumas). King considera rematada tolice atribuir toda uma carreira literária a um trauma de infância, como alguns tentaram fazer desde que ele contou esse caso numa palestra, mas o episódio parece ter dado origem a uma história em particular: levante a mão aí quem lembrou do belíssimo filme Conta Comigo (Stand by Me), baseado em seu conto The Body, que, no Brasil, pode ser lido na coletânea Quatro Estações.

Outra obra que sem dúvida teve o seu peso na formação de King foi Além da Imaginação (The Twilight Zone), série criada por Rod Serling e exibida pela rede de TV americana CBS de 1959 a 1964. King dedica um bom espaço a essa série, e, mesmo que o tom no qual se refere a ela nem sempre possa ser considerado reverente (ele não hesita em apontar o que considera ruim), nota-se que, de modo geral, lembra dela com carinho. Além da Imaginação tinha formato de antologia, apresentando em cada episódio uma história fechada, independente das demais, com a temática variando entre terror, fantasia e ficção científica. No começo, quase todos os roteiros levavam a assinatura de Serling, às vezes adaptando contos de autores consagrados da literatura de imaginação, como Manly Wade Wellman, Richard Matheson e Ray Bradbury, entre outros menos famosos. Ainda durante a primeira temporada, o próprio Matheson, fisgado pelo projeto, passou a colaborar, de forma mais ou menos regular, com roteiros originais. Cancelada ao final de sua quinta temporada, Além da Imaginação seria, mais tarde, retomada por duas vezes. A primeira foi na década de 80, poucos anos depois da publicação de Dança Macabra; ainda lembro de muitos episódios dessa versão, à qual assistia na adolescência. Stephen King em pessoa escreveu ao menos um episódio, Gramma ('Vovó'), estrelado pelo garoto Barret Oliver, de A História Sem Fim, e os nomes de um punhado de outros escritores de peso também podem ser encontrados nos créditos: Harlan Ellison, Theodore Sturgeon, Ray Bradbury e George R. R. Martin. O segundo revival teve 44 episódios, exibidos entre 2002 e 2003, e é considerado pelos fãs a menos inspirada das três encarnações da série. Existe, ainda, um longa-metragem de 1983, intitulado Twilight Zone: the Movie, lançado no Brasil como No Limite da Realidade. O filme traz quatro histórias independentes, cada uma com cerca de 30 minutos de duração; três são remakes de episódios da série original, e uma é inédita. A produção é de Steven Spielberg, que também dirigiu um dos segmentos. Vários atores que participaram da série reaparecem. Note-se, de passagem, que esse formato de filme (longa-metragem composto de várias histórias mais curtas, quase sempre de terror) andou bastante em voga durante os anos 80 – posso lembrar de pelo menos mais dois exemplos: Nightmares ('Pesadelos Diabólicos'), de 1987, e Tales from the Darkside ('Contos da Escuridão'), de 1990. E deve haver outros. Puxa, que nostalgia bateu agora…

Dança Macabra, vamos admitir, parece ter uma organização um tanto caótica ("organização caótica"… Isso não é uma contradição?), fato para o qual o autor, de forma absolutamente honesta, já nos havia advertido em sua introdução; parece uma mistura de caderno pessoal de anotações, trechos de roteiros de palestras, e até mesmo apontamentos de tópicos levantados em conversas com amigos que também estavam envolvidos, de uma forma ou de outra, com a ficção de terror. Há, é claro, capítulos dedicados à ficção impressa, ao cinema, à TV e até ao rádio, mas o autor parece ter achado impossível se restringir, em cada um deles, àquele que deveria ser seu assunto específico: fazer isso implicaria em perder inúmeras oportunidades de traçar paralelos e construir ligações interessantes. E, para falar a verdade, essa ligeira balbúrdia acaba por ter um efeito positivo: dá ao produto final um ar mais informal e simpático, evitando o ranço de academicismo que poderia facilmente se formar num trabalho desse tipo.

A prosa ágil e por vezes irônica de King é tão agradável de acompanhar neste ensaio quanto em qualquer de seus trabalhos de ficção, mas não dá para fechar os olhos aos defeitos, e o maior deles, ou, ao menos, eu senti assim, é algo que talvez só seja um defeito para leitores estrangeiros como nós: o tom excessivamente norte-americano do texto, em geral concretizado nas constantes menções a coisas e principalmente pessoas que não temos ideia de quem sejam. Não me refiro a escritores ou cineastas, pois, embora muitos dos autores e obras dos quais o autor fala sejam mesmo desconhecidos para nós, eles são pertinentes ao assunto, e acabam se tornando parte do nosso acervo de referências, mesmo que não os tenhamos lido ou assistido e, por consequência, só os conheçamos por meio do que King diz; o que por vezes incomoda são as pencas e mais pencas de nomes de esportistas, políticos, cantores, apresentadores, celebridades locais e outros tipos que só um norte-americano, e digo mais, em muitos casos só um norte-americano daqueles dias, poderia saber quem eram. (Calma! Eu sei quem foram Eddie Cochran e John F. Kennedy, mas há nomes muito mais obscuros que esses, que não consigo me sentir culpado por não conhecer.) Além disso, noto em King uma dificuldade que eu também tenho: é duro resistir à tentação de incluir uma informação interessante ou um comentário mordaz quando eles nos vêm à cabeça no meio de uma frase, mesmo sabendo que, por amor à concisão e à clareza, deveríamos fazer o sacrifício. Isso resulta em longas interpolações que, não raro, fazem com que o leitor perca completamente o fio da meada e precise voltar atrás, reler a parte da frase que estava antes dessa intromissão, e pular para o que está depois, para conseguir juntar os sentidos. Esse cacoete, por sua própria natureza, aparece com muito mais frequência num ensaio que num texto de ficção; felizmente, a estrutura do ensaio permite o uso de notas de rodapé (às quais King, por sinal, recorre a toda hora), o que minimiza o problema. É preciso lembrar, também, que Dança Macabra foi escrito quando King tinha apenas 33 anos – e, como escritor não é jogador de futebol, essa era uma idade bastante jovem. Mais tarde, ao longo do tempo, ele iria lixando essa aresta.

Dança Macabra é interessante por ao menos duas boas razões: além de nos levar a uma compreensão mais profunda do fenômeno do terror na cultura popular do século XX, também traz informações sobre o próprio King que todos os fãs do escritor certamente vão apreciar conhecer – tanto informações sobre seu background por meio das partes autobiográficas, quanto sobre seu modus operandi e o porquê de algumas características que são indissociáveis de sua obra. Pena que a qualidade da edição nacional deixe tanto a desejar: há muitos erros de concordância, e inúmeros nomes próprios estão grafados errado (o escritor de ficção científica Poul Anderson virou "Paul Andersen", e Robert W. Chambers, o autor de O Rei de Amarelo, virou "Chalmers", entre muitos outros exemplos); além de tudo, até mesmo a fonte usada não é das que tornam a leitura mais confortável, sinto dizer. Na época desta edição (2003), as obras de King eram publicadas no Brasil pela Objetiva; não sei qual é a relação entre essa editora/selo e a Suma de Letras, que as publica atualmente, mas, por ocasião da transição, vários dos livros continuaram a ser impressos com as mesmas capas e o mesmo visual, mudando apenas o selo na lombada e no canto inferior direito de cada capa. Em todo caso, tenho a impressão de que as edições mais recentes são mais bem cuidadas. Espero não me decepcionar! Bons pesadelos a todos.

quarta-feira, dezembro 12, 2012

Chamado Selvagem

Jack London (1876-1916) foi mais um autor que marcou minha infância, embora eu tenha lido realmente pouca coisa de sua obra naquela época - que me lembre, este próprio livro e uma história curta chamada Luta com os Dentes, que aparecia numa antologia intitulada Animais Selvagens: aventuras e histórias famosas, e que, como mais tarde descobri, era na verdade um trecho de seu romance Caninos Brancos (menos mal que, sendo assim, London é inocente desse título pra lá de ruim dado a uma boa história). Já adulto, li O Andarilho das Estrelas, um de seus últimos livros, e que me pareceu ser uma coisa um tanto à parte do resto de sua obra, embora também seja uma derivação natural dos interesses e convicções que o autor cultivou durante os últimos anos de sua curta vida. Mas poderei retornar oportunamente a esse livro. Por hoje, vamos focar em Chamado Selvagem - e um pouco em seu autor.

John Griffith Chaney nasceu em San Francisco, Califórnia, e compartilhou muitas características com outros grandes escritores norte-americanos, antes e depois dele: como Herman Melville, foi um jovem irrequieto, que correu o mundo e viu com os próprios olhos as coisas e os lugares que depois retrataria em romances de aventuras que empolgariam gerações; como Ernest Hemingway, celebrou em seus escritos a força, a coragem, a virilidade, e a natureza no que ela tinha de mais grandioso e indomável... E, como Edgar Allan Poe, morreu aos 40 anos de idade, no auge de suas capacidades, privando seus fãs das muitas obras memoráveis que ainda poderia ter produzido. Fãs, aliás, ao contrário de Poe, ele tinha muitos: foi um dos raros escritores a gozarem de popularidade ainda em vida. Seus romances e os contos publicados em revistas de grande circulação fizeram-no rico e admirado - um notável progresso de vida para alguém que teve um início difícil. Filho de um astrólogo itinerante e de uma professora de música, nunca conheceu o pai. Quando o pequeno John ainda não tinha um ano, sua mãe casou-se com John London, um veterano da Guerra Civil, que daria ao enteado tanto seu sobrenome quanto o apelido de Jack. Depois de uma adolescência que teve de tudo, de um prosaico emprego numa fábrica (no regime semiescravo de 16 horas por dia, seis dias por semana, como era comum naqueles tempos pós-Revolução Industrial) até perigosas pescarias de ostras, além de um único ano na Universidade da Califórnia, em 1897 decidiu juntar-se à Corrida do Ouro no Alasca, onde conheceria todas as durezas da vida no Ártico, travando contato na prática com aquela que seria a ambientação de pelo menos dois de seus livros mais famosos: The Call of the Wild (Chamado Selvagem, 1903) e White Fang (Caninos Brancos, 1906).

Embora seja geralmente citado como um romance, Chamado Selvagem não seria assim definido pela Teoria Literária, por ter um único núcleo narrativo; é mais como se fosse um longo conto. A história é a de um cão, Buck, que leva uma vida de rei no sítio do Juiz Miller, na ensolarada Califórnia, até estourar a notícia da descoberta de ouro na região de Klondike, na fronteira Alasca/Canadá. Com milhares de homens deslocando-se para o norte em busca do sonho da riqueza, a demanda por cães grandes, fortes e peludos torna-se frenética, e, para azar de Buck, ele possui todas essas características: mestiço de um pai são-bernardo e de uma mãe collie, é um animal magnífico. E por ser assim, acaba sendo roubado e vendido por um dos próprios empregados de seu dono, levado para San Francisco e, de lá, direto para o norte, onde mergulha numa nova e brutal existência na qual o carinho e a consideração com que era tratado em seu antigo lar transformam-se apenas em vagas lembranças que parecem vir de outra vida. Sua "doma" por um sinistro "homem de suéter vermelho" é uma passagem dolorosa de ser lida, embora o autor demonstre, ao final dela, que esse homem não é realmente cruel: há método e objetivo por trás de sua brutalidade, e os cães que passam por suas mãos têm a chance, se forem espertos, de aprender uma ou duas coisas que talvez os ajudem a sobreviver nas condições inclementes sob as quais terão de trabalhar.

E inclemente é sem dúvida a palavra que melhor descreve o mundo no qual Buck está entrando. Uma vez chegado às geladas terras do norte, bem depressa ele compreende que não deve esperar misericórdia dos que ali encontrará, sejam homens ou cães - e que tampouco deve oferecê-la, caso pretenda ser respeitado. Um gesto casual qualquer, que, entre os cães de sua terra natal, seria visto como uma tentativa de contato cordial, é muitas vezes interpretado pelos cães de trilha do Alasca (mais próximos de lobos que dos cães que Buck até então conhecia) como uma provocação, que pode levar a uma luta de consequências fatais. Ao mesmo tempo em que sua inexperiência o coloca em desvantagem, Buck tem a seu favor o tamanho e a força: pesando 63 quilos - dado esse que o autor parece considerar muito importante, pois repete-o diversas vezes -, ele é consideravelmente maior que um lobo, e também que os cães nativos. Isso faz com que algumas brigas sejam evitadas.

É verdade que nem tudo nesse mundo é violência. Os primeiros amos a quem Buck serve são François e Perrault, experimentados agentes do governo canadense e calejados viajantes das trilhas árticas, que, sempre incumbidos do transporte de importantes documentos oficiais, não podem abrir mão da celeridade, e por isso precisam sempre certificar-se de ter a melhor equipe de cães que lhes seja possível reunir e treinar. Nas mãos dos dois homens, Buck conhece uma disciplina dura, mas justa, e começa a aprender todo o necessário para ser um bom cão de trenó. As lições vêm tanto dos dois condutores quanto de seus novos companheiros, principalmente Dave e Sol-leks, cães mais velhos, com longa experiência como puxadores. Com o líder Spitz, em compensação, a coexistência não é tão harmônica: entre ele e Buck instala-se logo uma inimizade instantânea e irreconciliável.

É a princípio um tanto chocante (e provavelmente o será mais se o leitor for um amante de cães) ver como Perrault e François se abstêm de tentar apartar as brigas entre os animais, salvo quando elas ocorrem durante o trabalho; mais tarde compreendemos que os condutores agem assim porque estão cientes de estarem lidando com animais apenas precariamente domesticados, de modo que não podem esperar ter sobre eles o mesmo grau de controle que têm os donos ou tratadores que lidam com outros tipos de cachorros. A definição da cadeia de comando da matilha é assunto a ser decidido exclusivamente entre os cães, só cabendo aos homens o papel de observadores neutros das acirradas "disputas políticas" que ocorrem entre os animais. Também não escapará aos leitores mais atentos que, à semelhança de Rudyard Kipling e outros escritores que costumam colocar em cena personagens animais, Jack London é um mestre em usá-los para retratar comportamentos humanos: Buck acaba mostrando talento para a sedição, encorajando os companheiros a desafiar a autoridade de Spitz, a fim de desestabilizar o rival - mas, quando por fim o derrota e conquista a liderança, ele não tolera qualquer insubordinação. Isso lembra certas pessoas que vocês conhecem, ou sobre as quais já leram? Qualquer semelhança não é mera coincidência.

De qualquer forma, a carreira de Buck como cão-líder pouco dura. Trocar de condutores com frequência parece fazer parte da sina dos cães de trilha a serviço do governo, e, depois de deixarem François e Perrault, ele e os companheiros sobreviventes passam às mãos de outro agente, que, embora também se mostre um patrão justo e sensato, vê-se obrigado por ordens superiores a forçá-los em duas longas e exaustivas viagens, quase sem descanso. Ao final desse périplo, os cães esgotados são descartados, postos à venda. A partir daí, ainda que apenas por um breve período, as coisas ficam realmente feias. Buck e os outros têm o azar de ser comprados por Hal e Charles - dois personagens nos quais London retrata um tipo que, sem dúvida, conheceu bem durante sua própria aventura no Alasca: o dos que achavam que meter-se pelo norte em busca de ouro era para qualquer um. Os dois não sabem coisa alguma sobre viagens no Ártico, nem parecem dispostos a "perder tempo" aprendendo. Depois de passar maus, aliás, péssimos pedaços com esses sujeitos, Buck tem a vida salva por aquele que se tornará seu verdadeiro dono: John Thornton.

Thornton é um minerador como tantos outros, mas, além disso, é também um homem que realmente entende e gosta de cães; trata os seus como amigos, não como meros instrumentos de trabalho, e Buck logo toma-se de uma adoração por ele que toca as raias da idolatria, algo que não sentira nem mesmo no sítio do Juiz Miller. Com Thornton, conhece uma vida diferente, na qual a tração do trenó é apenas um dos papéis que desempenha; também lhe cabe acompanhar o dono na caça, guardar o acampamento, e, principalmente, ser um amigo e companheiro. Mesmo com tudo isso, Buck dispõe de tempo livre pela primeira vez desde sua chegada ao norte: enquanto John Thornton e seus sócios estão prospectando ouro num local, os cães têm pouco o que fazer. Com isso, Buck começa a passar cada vez mais tempo a vagar solitário pela floresta, chegando a ficar fora dias a fio, sem qualquer contato humano. Do fundo da mata (ou seria das profundezas de si próprio?) vem um chamado que ele não tem certeza se ouve ou apenas sente, mas que intensifica a atração pela vida selvagem que já vinha experimentando desde que deixou as terras civilizadas onde nasceu. Em momentos entre a vigília e o sono, Buck chega a ter visões de outro tempo e outro lugar, enxergando através dos olhos de um ancestral distante, que foi provavelmente um dos primeiros cães a andarem em companhia humana: no caso, a trêmula companhia de um assustado homem primitivo que ainda não aprendera a encarar a natureza tal como um monarca olhando para seu reino, vendo-a, em vez disso, com medo, muito medo - e encontrando certo conforto na presença do cão, por saber que os sentidos aguçados, os instintos e a coragem do aliado de quatro patas podem contribuir para sua sobrevivência.

O desejo de Buck de unir-se à floresta passa por momentos de euforia e de melancolia, pontuados por uma estranha saudade de algo que nunca conheceu - ao menos, não por experiência própria. Além disso, existe a ligação de afeto e lealdade que o prende a John Thornton, e que ele se sente incapaz de romper. Devo dizer, aliás, que sempre achei muito intrigante essa devoção de vida e morte, de um cão para com seu dono. De onde viria tamanha dedicação? Em geral, todo comportamento de um animal doméstico é uma adaptação de algum hábito ou tendência que seus ancestrais selvagens já tinham, e é claro que já se tentou dar uma explicação desse tipo para o caso: mais de um livro sobre cães que li quando garoto dizia que o cão simplesmente transfere para o dono a lealdade que o lobo dedica ao líder da alcateia, mas essa versão desmorona quando se sabe como são as coisas entre os lobos. Esses animais estão sempre muito atentos às fraquezas uns dos outros, e sua lealdade é relativa e frágil; se o lobo-líder piscar um olho na hora errada, está morto. Portanto, não é aí que se encontra a explicação, se alguma explicação existir, da proverbial fidelidade canina, essa dedicação incondicional que faz um cão ser capaz de dar a própria vida por seu dono, a mesma que mantém Buck vinculado a John Thornton até o desfecho dramático de sua história.

Não sei ao certo se Chamado Selvagem é considerado pela maioria da crítica como a obra-prima de Jack London - e, quando se fala de um autor dessa importância e reconhecida qualidade, é difícil apontar uma obra que esteja indisputavelmente acima das outras -, mas não há dúvida de que é uma magnífica introdução para quem ainda não conhece seu trabalho. Creio que a melhor maneira de sintetizar toda a sua mensagem é dizer que o livro nos põe ante os olhos um fato básico, o de que vivemos num mundo sem misericórdia, um mundo violento e cruel, no qual quem quiser sobreviver e prosperar precisa, antes de mais nada, ser forte, mas, ainda assim, um mundo com espaço para a beleza e onde a verdadeira amizade é possível.

sexta-feira, janeiro 13, 2012

Queda de Gigantes

Vou confessar: eu tinha um certo preconceito com Ken Follett. Não sei por que, mas ele sempre me pareceu ser um outro Sidney Sheldon - que, por sua vez, embora não seja o melhor escritor do mundo, está longe de ser o pior: como já escrevi antes, é incomparavelmente melhor ler Sidney Sheldon do que não ler coisa nenhuma. Em todo caso, neste momento estou dando a mão à palmatória: como sempre acontece com os preconceitos, esse ruiu assim que travei verdadeiro conhecimento com a coisa sobre a qual pensava saber algo. Queda de Gigantes é um livraço, e não só por ter mais de 900 páginas. Aliás, se não fosse um livraço também no outro sentido, chegar ao fim de um livro dessa extensão seria praticamente impossível.

Este é o primeiro volume de uma trilogia intitulada O Século, que, conforme informações presentes nas orelhas do livro, prosseguirá com outro a respeito da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, e um terceiro sobre a Guerra Fria. Queda de Gigantes está ambientado durante a segunda década do século XX, e seu título, muito bem dado, refere-se ao colapso dos impérios coloniais europeus que haviam ditado as regras ao resto do planeta durante os dois séculos anteriores. Embora esses impérios já mantivessem seu equilíbrio com dificuldade há décadas, um evento específico precipitou o fim quase simultâneo de todos eles e redesenhou de forma radical o mapa geopolítico da Europa. Esse evento foi a Primeira Guerra Mundial, que serve de eixo à narrativa de Follett.

O livro não tem propriamente um protagonista, pois não há um personagem único que capitalize as ações mais importantes da narrativa. Ao invés disso, a história foca os acontecimentos da vida de cinco diferentes famílias: os Williams, galeses; os Peshkov, russos; os Fitzherbert, ingleses; os Von Ulrich, alemães; e os Dewar, norte-americanos. Enquanto as duas primeiras famílias são das classes trabalhadoras, as três últimas são privilegiadas: tanto os Fitzherbert quanto os Von Ulrich, além de ricos, fazem parte das aristocracias seculares de seus respectivos países; já os Dewar, embora sem origens ilustres, são igualmente abastados. Como romance histórico extremamente bem escrito, Queda de Gigantes leva a um alto grau de maestria aquilo que define esse gênero: uma história dentro da História, personagens ficcionais movendo-se sobre um pano de fundo real, reconstituído com base numa pesquisa extensa e minuciosa, que englobou desde táticas e armamentos de guerra até o que era servido tanto nas mesas humildes quanto nas mais luxuosas, e o que estava na moda em matéria de música e vestuário na época - além, é claro, da intrincada situação política que o mundo vivia.

A princípio, o leitor pode até achar cansativo o grande número de personagens cujas características, backgrounds e atos é preciso lembrar e concatenar a fim de compreender o desenvolvimento do romance, mas, aos poucos, o próprio entrelaçamento de todas essas vidas vai tornando essa tarefa mais fácil: um personagem está ligado a outro, que está ligado a outro, e assim sucessivamente, numa cadeia que abrange vários países. O galês Billy Williams, um jovem mineiro e mais tarde soldado, é o que de mais próximo do ideal heroico encontramos no livro: corajoso, gentil, dono de um caráter irrepreensível, Billy é filho de David Williams, líder sindical na pequena cidade mineradora de Aberowen, no país de Gales, e irmão de Ethel, uma jovem bonita, inteligente e ambiciosa que trabalha como criada na mansão dos Fitzherbert, donos das minas onde trabalha quase toda a população da cidade. O atual chefe da rica família é o jovem conde Edward Fitzherbert, chamado pelos amigos de "Fitz", um homem vaidoso e arrogante, como seria de se esperar de alguém de sua posição social; apesar de não ser desprovido de bons sentimentos, Fitz parece ter um caráter demasiado fraco para agir de acordo com sua consciência, quando isso significar desafiar convenções e talvez perder o apreço de seus pares. Em compensação, sua irmã, lady Maud, é uma feminista convicta, que, ao invés de gastar seus dias no absoluto ócio que era considerado a "atividade" normal para as mulheres da aristocracia inglesa de então, dedica-se com ardor à causa do voto feminino, que era uma das grandes lutas sociais e políticas em andamento na época. Maud acaba apaixonando-se pelo jovem diplomata Walter Von Ulrich, antigo colega de colégio de Fitz e filho de Otto Von Ulrich, também da carreira diplomática, amigo e conselheiro direto do Kaiser alemão Wilhelm (ou Guilherme) II. Ainda falando em Fitz, o conde é casado com Elizaveta, apelidada de "Bea", uma princesa russa, que, juntamente com seu irmão, o príncipe Andrei, tem um histórico de anos de abusos e arbitrariedades para com camponeses e operários em seu país natal. Entre esses, estão os irmãos Grigori e Lev Peshkov, atualmente trabalhando numa metalúrgica em São Petersburgo, que perderam o pai na infância, enforcado por ordem de Andrei, e a mãe na adolescência, morta pelos guardas do czar ao participar de uma manifestação da classe operária. Com cinco anos de diferença, e tão parecidos fisicamente que as pessoas chegam a confundi-los, os dois irmãos são personalidades opostas: Grigori é um sujeito tranquilo, sério e responsável, acostumado a fazer as vezes de pai e mãe para o irmão mais novo - que, por sua vez, é um boêmio e mulherengo incorrigível, chegado ao jogo e à vodka. Grigori sonha em emigrar para os Estados Unidos, que ele e muitos outros russos da época veem como uma espécie de terra prometida, pelo simples fato de que lá não existe czar nem nobreza, e de que os donos de terras ou de indústrias não podem mandar açoitar ou enforcar seus trabalhadores a seu bel-prazer (!). Só que, quando ele finalmente consegue juntar dinheiro suficiente para sua passagem de navio, devido a um imprevisto quem acaba viajando é Lev, deixando o pobre Grigori sem nada e, de quebra, responsável pela namorada grávida que o irmão deixou para trás.


E, como Grigori acaba descobrindo, se fosse só isso ele ainda não teria do que se queixar... É 1914 e o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-húngaro, é assassinado na cidade bósnia de Sarajevo, pelo estudante e nacionalista sérvio Gavrilo Princip. Em represália, os austríacos e seus aliados alemães invadem a Sérvia, que está sob a proteção da Rússia... Inicia-se uma reação em cadeia que mexe com antigos rancores e interesses políticos e econômicos de todas essas e de outras nações, como a França e a Grã-Bretanha, ambas aliadas à Rússia. A Europa entra em guerra, desta vez uma guerra de proporções jamais imaginadas antes, devido aos avanços tecnológicos e ao encurtamento das distâncias pelos novos meios de transporte e de comunicação. Das consequências dessa guerra, ninguém é poupado: Grigori Peshkov, Billy Williams, Walter Von Ulrich e o conde Fitzherbert, todos se veem às voltas com o perigo e o terror dos campos de batalha, sem ao menos a chance de escolherem ao lado de quem preferem estar: Billy serve sob as ordens de Fitz, a quem detesta por ter seduzido e engravidado sua irmã, levando ao rompimento dela com a família, enquanto Walter se vê diante da possibilidade muito concreta de precisar atirar no conde, seu amigo desde a adolescência e, ainda por cima, cunhado.

Enquanto o exército russo invade a região alemã da Prússia, do outro lado do continente os alemães enfrentam britânicos e franceses. A Primeira Guerra Mundial forçou uma transição brusca entre as formas de guerrear antigas e modernas: nas primeiras batalhas ainda se tentou utilizar a cavalaria, que desde a Antiguidade era considerada uma arma decisiva na maioria das guerras, mas que logo se mostrou impotente diante de tanques e metralhadoras. Pela primeira vez foram usados aviões e bombas de alta potência, elevando a guerra a um novo patamar de horror. As metralhadoras fixas (ainda não existiam as leves, que poderiam ser usadas por soldados de infantaria) eram um poderoso instrumento para a defesa de posições, praticamente à prova das formas tradicionais de ataque, o que teve como consequência uma taxa terrível de baixas: a infantaria precisava atravessar correndo as várias centenas de metros da "terra de ninguém" que separava as trincheiras de cada lado - e tinha que fazer isso indo ao encontro das rajadas das metralhadoras inimigas.

Os Estados Unidos entraram tardiamente na guerra, em 1917, oficialmente em resposta ao torpedeamento de navios americanos por submarinos alemães no Atlântico norte com o objetivo de cortar o fornecimento de suprimentos a ingleses e franceses, mas fica claro com uma análise mais cuidadosa que isso foi apenas parte do motivo: os americanos sabiam bem o que perderiam no campo econômico se alemães e austríacos vencessem a guerra e ficassem senhores da Europa. Para a Inglaterra e a França, a adesão dos ianques foi, literalmente, a salva
ção, principalmente depois que a Rússia se retirou da guerra por causa da Revolução Comunista ocorrida em outubro desse mesmo ano. Para relatar o que acontece na Casa Branca, Follett usa o jovem Gus Dewar, então um dos assessores diretos do presidente Woodrow Wilson.

Queda de Gigantes é um daqueles livros cuja leitura torna-se rapidamente compulsiva - você começa a ler e, quando se dá conta, percorreu 50 páginas sem sentir, e ainda fica contrariado por ter outros afazeres que o obriguem a deixar a leitura de lado por algum tempo. Por tratarem basicamente de guerra, estas páginas mostram um pouco (na verdade, muito) do melhor e do pior que existe nos seres humanos, pois talvez nenhuma outra situação seja tão propícia à revelação desses extremos. É fascinante ler um autor com a capacidade de nos fazer entender como a História é construída, pedra por pedra, pelas ações de seres humanos iguais a nós, tanto os milhares de anônimos que lutaram na guerra e os milhões que sofreram seus efeitos, quanto os grandes líderes que precisaram arcar com o peso de decisões que definiriam o futuro de países inteiros - e, infelizmente, nem sempre se mostraram à altura de tal responsabilidade. E a guerra não é mostrada de uma maneira simplista, como se tivesse sido um confronto do "bem" contra o "mal": o leitor conhece personagens de ambos os lados, estima-os igualmente e torce para que sobrevivam e voltem para suas famílias, o que dá à coisa toda, antes de mais nada, um sentido profundamente humano.

sexta-feira, dezembro 16, 2011

Politicamente... corretos??

Hesitei um pouco antes de decidir o lugar mais adequado para postar este texto. Por um lado, trata-se de uma reflexão de natureza pessoal, de modo que não estaria deslocada no meu outro blog, o Inner Wilderness; por outro, refere-se a literatura, de modo que também podia vir para cá, pois comentários e resenhas de livros específicos não são a única maneira de se "falar de literatura". Esse último fator acabou pesando mais – então, aqui estamos.

A revista Aventuras na História de dezembro traz uma matéria sobre a série de livros em quadrinhos (hoje dir-se-ia "graphic novels") intitulada Tintim, criada pelo jornalista e cartunista belga Hergé entre o fim da década de 20 e sua morte em 1986. Os aficionados por quadrinhos saberão na hora do que estou falando: embora menos popular, Tintim é tão clássico quanto Asterix. Para ser mais exato, a matéria é sobre as posições "discutíveis" tomadas pelo autor em praticamente todas as suas histórias, e especula um pouco sobre como Steven Spielberg terá contornado esse fato no filme que fez sobre o personagem, com estreia prevista para janeiro no Brasil.

As tais posições discutíveis consistem basicamente numa visão "eurocêntrica" do mundo. Tintim é um repórter do jornal belga (que existe mesmo: Hergé trabalhava nele quando criou o personagem) Le Vingtième Siècle, que viaja pelo mundo no exercício de sua função – mas, como teria que acontecer numa série de aventuras dirigidas ao público jovem, suas expedições jornalísticas nunca são tranquilas: ele sempre se mete em situações perigosas. Mais que isso: suas atitudes (muitas vezes de uma maneira não proposital, o que é mais revelador) deixam transparecer a ideia, apresentada como óbvia a ponto de não merecer reflexão, de que tudo o que vale a pena ou é digno de atenção, ou está na Europa ou deriva direta ou indiretamente de lá. Partindo desse ponto de vista, o colonialismo, que na época estava sendo contestado tanto nas próprias colônias quanto nas metrópoles, era plenamente justificável e até mesmo natural. Cito:

Quando Tintim foi ao Congo, em 1931, o país africano ainda era uma colônia belga (a independência veio só em 1960) e os quadrinhos reproduziam a visão eurocentrista da época. Na primeira versão do álbum, os congoleses falavam um francês primitivo e eram extremamente submissos. Em um dos trechos, Tintim substitui um professor em uma escola missionária e começa a aula apontando para um mapa da Europa: "Meus queridos amigos, hoje eu vou falar sobre o seu país: a Bélgica". Nas versões posteriores, o mapa foi substituído por um quadro-negro, e a lição sobre a Bélgica, por uma de matemática.


Gostaria de deixar algo claro antes de prosseguir: não é meu objetivo aqui defender o colonialismo (o que seria no mínimo burrice vindo de um brasileiro, cujo país começou sua história como colônia e até hoje tenta se livrar dos traumas inerentes a essa condição) ou qualquer das outras atitudes "discutíveis" que aparecerão mais adiante neste texto. O que questiono é o que nos dá o direito de "corrigir" obras que retratam uma época – e muitas vezes a retratam de maneira valiosa – para que se enquadrem nas regras daquilo que hoje é tido como "aceitável". Tintim tem atitudes eurocêntricas porque seu criador, como a maior parte dos europeus daqueles dias, tinha essas mesmas atitudes. Suas aventuras retratam um ponto de vista que prevaleceu durante muito tempo e que, gostemos ou não disso, ajudou a moldar uma época. Pergunto: faz sentido, ao invés de aprender com esses fatos e permitir que eles nos ajudem a aquilatar tudo o que mudou desde então, simplesmente querer reescrever as histórias para adequá-las àquilo que é considerado de bom tom hoje em dia?

Atravessando o oceano, encontramos mais exemplos: as obras de Mark Twain (1835-1910) estão sendo reescritas nos Estados Unidos para atender às demandas da tirania politicamente correta. No texto de Twain, é largamente utilizada a palavra
nigger – uma designação pejorativa para pessoas negras –, agora substituída por slave ('escravo'). Note-se que a situação dos negros não é um ponto de pouca importância nessas obras, já que o escravo Jim, fiel amigo dos imortais anti-heróis Tom Sawyer e Huckleberry Finn, é um dos personagens mais atuantes nas histórias. Eu já tinha lido, creio que numa dissertação sobre a vida e a obra de Samuel Langhorne Clemens (Mark Twain era pseudônimo) que, já em meados do século passado, portanto bem antes da babaquice politicamente correta ser inventada (ou seria ela bem mais antiga do que imaginamos?), as Aventuras de Huck (1885), geralmente consideradas sua obra mais importante, haviam sido alvo de protestos por parte de pessoas que consideravam o livro racista. Pessoalmente, acho que o racismo estava muito mais na cabeça de tais pessoas do que nas páginas dessa obra essencial da literatura norte-americana. De outra forma, como teria sido possível alguém não perceber que o que Twain estava fazendo era sair em defesa dos negros, que eram particularmente marginalizados no sul dos Estados Unidos, região onde ele nasceu e viveu? A escravidão foi abolida no país com a vitória dos estados do norte na Guerra Civil, em 1865, quando Mark Twain tinha 30 anos de idade; já as aventuras de Tom Sawyer e Huck Finn são ambientadas nos anos da adolescência do autor, quando a escravidão era vista como um fato cotidiano, e seria ingenuidade esperar que uma emenda constitucional tivesse o poder de mudar instantaneamente a atitude que a maioria dos americanos brancos tinha em relação aos negros. Há um trecho em que Huck inventa, para uma senhora com quem se encontra, que esteve viajando num barco a vapor e que chegou atrasado porque a cabeça de um cilindro da embarcação saltou devido à pressão, exigindo uma parada para conserto. A tal senhora então pergunta se alguém se feriu e, ao ouvir em resposta que um negro morreu, manifesta alívio, "porque em acidentes desse tipo, às vezes, pessoas se machucam". O autor estava sendo racista? Claro que não: se no livro os negros são vistos por muitos como seres sub-humanos, é porque era isso mesmo o que acontecia na época que a história retrata – e também na época em que ela foi publicada, mesmo que entre uma coisa e outra a escravidão tivesse sido abolida. Esquecer esses fatos, ou escondê-los das novas gerações, fará bem a alguém? Acredito que muito pelo contrário: como escreveu Sêneca (se não me engano), quem esquece o passado condena-se a repeti-lo, e isso não vale só para indivíduos: aplica-se também às sociedades. Observe-se ainda, de passagem, que defender a igualdade das pessoas independentemente de raça, nos tempos de Mark Twain, exigia muito mais coragem do que hoje, porque essa ideia não era unanimidade: muitas pessoas que se consideravam "de bem" davam como certo que os negros, e qualquer outra raça não-caucasiana, eram inferiores, e fim de papo. Isso era ensinado em escolas e universidades; havia cientistas que acreditavam tê-lo provado.

O que fico me perguntando é: d
epois de terem purgado as obras de Twain de todas as partes supostamente racistas, qual será o próximo alvo da patrulha politicamente correta? Suponho que os próprios Tom e Huck, cuja maior qualidade enquanto criações literárias é (era?) precisamente o fato de representarem garotos reais, de carne e osso, do sul dos Estados Unidos em meados do século XIX: garotos criados soltos nos brejais do Mississípi, que fumavam cachimbo, pregavam mentiras sempre que achavam necessário e preferiam com toda a certeza perambular pelo mato e remar de ilha em ilha pelo rio ao invés de ir à escola. Agora, se depender dessa turma, provavelmente as próximas edições de Tom Sawyer e das Aventuras de Huck terão protagonistas vegetarianos, que fazem ginástica ao acordar e trabalho voluntário para causas sociais...

Não estou dizendo que os preconceitos de época presentes em obras literárias devam ser considerados normais ou assim apresentados aos novos leitores. O que acontece é que o melhor caminho, aquele que mais contribuiria para a edificação cultural e para a própria formação das novas gerações, mais uma vez, não é o caminho mais fácil. Temos um exemplo mais perto de nós: Monteiro Lobato (1882-1948), que pode não ter revolucionado a literatura brasileira como Mark Twain fez com a norte-americana, mas sem dúvida marcou a infância de muitos brasileiros e foi responsável por despertar em pelo menos alguns o gosto pela leitura. Há, sim, detalhes racistas nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, mas seria ignorância culpar o autor por isso: ele era simplesmente um homem de sua época. Nos anos 30 e 40, quando esses livros foram publicados pela primeira vez, muitas pessoas que haviam sido escravas, ou donas de escravos, ainda estavam vivas; era, portanto, normal que Tia Nastácia chamasse sua patroa, Dona Benta, de "sinhá" – mas como uma criança de hoje iria interpretar isso? Depende apenas dos instrumentos de interpretação que a família e a escola lhe houverem fornecido. Mais complicado: sempre que a boneca Emília queria fazer uma malcriação com Tia Nastácia (o que acontecia em média umas duas vezes por livro), chamava-a de "negra beiçuda" ou de outros insultos de teor racista. Em pelo menos uma ocasião, Dona Benta vem em defesa da cozinheira dizendo que "todos sabem que Nastácia só é preta por fora" (!), declaração que consegue ser mais racista que os xingamentos dos quais tentava defendê-la.

Entretanto, eu defendo que a solução para isso não é nem banir as obras de Lobato (que são literatura infantil de qualidade, que já se provou capaz de resistir ao tempo) nem "reescrevê-las" para que não choquem os mais sensíveis nem disseminem ideias preconceituosas entre os jovens. Esse tipo de "reescrita" (e o que digo agora vale para as obras de Hergé, Twain, Lobato e dezenas de outros) teria o efeito de criar nesses jovens a noção de que o mundo foi sempre como é agora, tirando-lhes qualquer chance de vir a compreender na prática o que significam variações de cultura e perspectiva histórica – coisas sem as quais, a meu ver, não é possível alcançar a verdadeira maturidade intelectual. Devíamos, isso sim, investir em esforços para que a educação oferecida a cada nova geração a tornasse capaz de fazer seus próprios julgamentos, de modo que, quando fosse o caso, pudesse apreciar uma obra literária pelo que tem de belo e interessante, sem necessariamente aceitar como verdade todas as ideias que ela apresente. Não é fácil? Certamente que não. Mas quem aí já obteve algo de bom na vida fazendo as coisas do jeito mais fácil?

Infelizmente, a brigada politicamente correta que domina certos setores da cultura contemporânea, seja por mera ignorância ou por desonestidade intelectual, uma determinação consciente de fazer ouvidos surdos a qualquer coisa que desqualifique seus argumentos (e, não raro, tudo isso), não demonstra qualquer senso de perspectiva: já vi censurarem Cristóvão Colombo por não ter tido preocupações ecológicas no início da colonização das Américas, e absurdos ainda maiores. É até natural que cada geração tenha a tendência de pensar que suas próprias crenças e visões de mundo são as "certas" – mas aqueles que, em qualquer geração, vêm a alcançar algum grau de sabedoria, não demoram a compreender o quanto tais coisas são frágeis. Embora não seja uma coisa fácil de aceitar, Salman Rushdie estava certo ao dizer que verdade é o que a maioria vê como verdade  mas a maioria também pode mudar de opinião ao longo da História. É muito possível que ideias que hoje aceitamos como normais sejam consideradas absurdas e preconceituosas daqui a alguns séculos. Não há saída: toda pessoa que tenha a pretensão de estender sua compreensão um pouco além de sua vidinha cotidiana tem que aceitar o fato de que tudo é transitório, tudo é nebuloso, e de que não temos certeza de coisa alguma.