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sexta-feira, junho 19, 2020

Manual Politicamente Incorreto da Civilização Ocidental

Caso queira ser chamado de simplório ou de repressor perverso, a maneira mais rápida é reconhecer que o mal realmente existe. No relativismo atual, a única coisa errada é dizer que algo é errado. (Anthony Esolen)

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Não invoco nenhum mérito pessoal nisso (não decorre de nada que eu tenha feito conscientemente – me parece algo natural, como o formato do meu nariz), mas sempre fui atraído pela História, sempre desejei conhecer os fatos do passado, como eles estavam interligados uns com os outros e como influenciavam o presente. Sempre tive a curiosidade de saber como os povos de outros tempos viviam, lutavam e amavam – e, mais importante, saber o que eles amavam e pelo que lutavam. Sempre compreendi a dificuldade, e também a necessidade indispensável, de tentar "pensar com a cabeça da época", em vez de simplesmente aplicar os padrões atuais à realidade de séculos passados, como a maioria das pessoas faz sem perceber. E, sinceramente, não entendo como é que tanta gente vê a História como uma coisa estática, sem vida, tediosa, algo que, até onde lhes importa, se resume a decorar meia dúzia de nomes e datas para fazer uma prova, receber uma nota, e depois esquecer tudo. Tampouco consigo ver sentido naquelas duas frases repetidas à exaustão (e geralmente ditas juntas) por milhões de estudantes e por outros que já não o são há um bom tempo: "Estudar História é uma perda de tempo! Pra que eu vou usar isso?"

Para os poucos que compartilham essa minha vontade de saber por que o mundo e a humanidade são como são, e a quem devemos aquilo que temos e somos (o que traz junto o peso de uma grande responsa sobre os nossos ombros), livros como este são um achado. O autor Anthony Esolen promove nestas páginas uma extensa viagem às raízes do ocidente, além de buscar respostas para as questões que estão na cabeça de todo intelectual que, mesmo nesse desvairado século XXI, ainda insiste em prezar esse legado inestimável de arte, filosofia e princípios que recebemos de nossos antecessores. Dessas questões, a primeira que vem à mente nestes tempos é: a quem interessa a destruição sistemática de todos os valores que serviram de alicerce à nossa civilização – e por quê? Questão essa que levanta imediatamente uma outra: e quando esse mundo, que direta ou indiretamente nos deu tudo o que temos (pelo menos, tudo de bom e digno) estiver definitivamente demolido, ele será substituído… pelo quê? O livro de Esolen também discute possíveis maneiras de resistir, mesmo que nossa resistência seja como a dos poloneses no Levante de Varsóvia: há momentos em que devemos lutar porque essa é a coisa certa a se fazer, mesmo que a esperança de vitória pareça ser nenhuma.

Como sabemos, a Europa, e, por consequência, todo o ocidente, nasceu do tríplice encontro entre a filosofia grega, o direito romano e a fé judaico-cristã, e Esolen faz o percurso lógico, dedicando a cada uma dessas bases um capítulo logo no começo do livro. O mais interessante é que ele não se limita a discorrer sobre a "coisa em si": em vez de focar só na filosofia grega, por exemplo, oferece-nos um painel (bem resumido, é claro) do amadurecimento da civilização helênica, que tornou possível o nascimento dessa filosofia, com copiosas indicações bibliográficas para quem quiser se aprofundar na matéria, embora, infelizmente, a maioria dos livros que ele indica não tenha edição brasileira. Qualquer pessoa com um pingo de cultura sabe que a Grécia antiga foi o berço da democracia, é claro – mas Esolen nos mostra que, por mais que a democracia seja uma coisa magnífica, já naquela época, como hoje, ela, sozinha, não era e não é garantia de nada. Liberdade é um bonito conceito, mas, se entendida simplesmente como "cada um faz o que quer", leva à libertinagem e ao caos. O homem só é verdadeiramente livre quando compreende que a liberdade não vem de graça: ela traz consigo deveres e responsabilidades, e, se ele não se mostrar à altura, desonra-se perante si mesmo e perante seus pares – isso para não mencionar outras consequências piores que o deslustro de sua honra, piores por poderem afetar seus filhos, netos e demais descendentes, caso esse homem livre de que estamos falando falhe em fazer o que tempos de crise exigem dele. Isso explica, por exemplo, o que manteve os soldados de Leônidas, homens livres, firmes em seus postos mesmo diante da morte certa, numa situação na qual os soldados-escravos do rei da Pérsia já teriam debandado, ou o que levava um legionário romano a dar a vida para impedir que o inimigo se apossasse da águia de sua legião. Como Esolen diz em algum lugar, essas civilizações só alcançaram o que alcançaram porque dispunham de homens assim – homens que temiam menos a morte que a desonra. Graças, em grande parte, ao que a Grécia e Roma nos legaram, foi possível construir uma civilização na qual um sacrifício tão drástico raramente é necessário, mas, hoje, cabe a nós lutar outro tipo de batalha. Em nossos dias, a guerra é cultural, o inimigo é ardiloso e sem escrúpulos e, como dizia Thomas Jefferson, o preço da liberdade é a vigilância constante.

Falei em liberdade porque estava pensando em democracia; as duas não são a mesma coisa, é claro, mas estão estreitamente relacionadas, e, assim como a liberdade precisa ser merecida, a democracia traz em si alguns pressupostos: o povo precisa ter um nível mínimo de educação e de virtudes cívicas para estar em condições de fazer bom uso do poder que esse sistema coloca em suas mãos. O que nos deixa (a nós, brasileiros) numa sinuca de bico que não preciso explicar. Bem, vamos adiante.

Boa parte do Manual Politicamente Incorreto da Civilização Ocidental é dedicada a desmontar o mito politicamente correto que pinta a Idade Média como a "idade das trevas" ou até mesmo a "noite dos mil anos" (esta última só pode ter sido cunhada por algum historiador francês, provavelmente filiado ao Iluminismo). A origem desse mito é fácil de entender: a Idade Média foi o período de maior poder e influência da Igreja Católica – portanto, por razões ideológicas, é da mais alta importância para os politicamente corretos que ela tenha sido um período obscurantista e miserável, quase sem nenhum progresso. É claro que essa noção é muito mais antiga que esses movimentos lacradores que hoje tentam com tanto empenho tornar a nossa vida insuportável, mas deve-se àqueles que, poderíamos dizer, foram os ancestrais ideológicos desses movimentos: os iluministas do século XVIII (sempre eles). Esolen nos toma pela mão para um passeio instrutivo no qual mostra que coisas como as catedrais, palácios e até fortalezas militares espalhadas pela Europa são testemunhas de um progresso técnico notável nos campos da engenharia e da arquitetura, o que não teria sido possível numa era culturalmente estagnada; que os primeiros hospitais e universidades surgiram precisamente na Idade Média e por iniciativa da Igreja; que, ainda que as pessoas da época estivessem longe de ter uma vida fácil, ela também não era tão horrível quanto quiseram nos fazer acreditar. O engraçado (ou revoltante, depende de como você escolha encarar) é ver que, à medida que mais e mais descobertas de evidências arqueológicas e documentos históricos vão mostrando, para além de qualquer dúvida, que a Idade Média trouxe muitos e importantes progressos em muitas áreas, a mídia vai mudando seu discurso: diante da impossibilidade de negar que esses progressos aconteceram, ela passa a insinuar que eles foram alcançados apesar da Igreja Católica, e não graças a ela. Não que isso surpreenda a alguém, considerando o habitual modus operandi da mídia e dos grupos que a controlam, e o tipo de opinião que eles tentam plantar na cabeça da população pouco instruída – e, o que é pior, daquela parte da população que teve alguma instrução, mas não enxerga o quão ideológica e enviesada ela foi. O resultado disso, é claro, é que essas pessoas se julgam altamente "críticas" e "conscientes", quando na verdade tudo o que estão fazendo é engolir um discurso que receberam pronto, sem questionar nada, ir atrás da maioria e repetir as opiniões que as deixam "bem na foto".

Você certamente conhece o relato padrão da Renascença. Os plebeus se libertaram da tirania da Igreja, e – recém-libertos – tornaram-se mais felizes e sábios. Grandes artistas, escritores e pensadores, livres para se concentrar em algo além da fé empoeirada, criaram a maior revolução artística, filosófica e cultural já vista pela Europa. A Renascença, em suma, nos é vendida como uma rejeição da Idade Média e o glorioso triunfo do secularismo. (…) Todas essas formulações servem às finalidades de nossos dias. Denigrem a religião, exaltam a modernidade e permitem que os secularistas exijam o crédito pelo florescimento da criatividade. Elas também possuem a virtude da simplicidade. O absurdo também é simples. (p. 166)

Impossível não concordar, até porque a estratégia da mídia não tem muito como fugir da obviedade nesse particular: quando você está tentando vender uma versão tendenciosa, ela não funciona se não for óbvia. Logo, se a Idade Média era ruim por causa da influência da Igreja, a Renascença (e notem como até esse nome já está carregado de ideologia), por ter, alegadamente, rompido com a Idade Média, só podia ser boa. E não se trata aqui de negar as maravilhosas realizações que os artistas desse período alcançaram nos campos das artes plásticas e da música, principalmente, nem os progressos científicos que também ocorreram; afinal, a Renascença nos deu Leonardo da Vinci, que, só ele, já teria bastado para conferir relevância a essa época, mesmo que tivesse sido o seu único expoente importante – e não foi, aliás longe disso. Acontece que essa suposta ruptura com a Idade Média (e, por conseguinte, com a fé cristã) é quase sempre muito exagerada por conta do viés ideológico de quem está contando a história; em muitos casos, se corretamente examinadas, as grandes realizações renascentistas foram muito mais um desenvolvimento natural do que já vinha sendo feito durante a Idade Média do que um grito de independência em relação a ela. Por outro lado, é um engano achar que houve progresso em todas as áreas. Houve o surgimento de muitas obras incríveis, como já dito, nas artes plásticas (pintura, escultura), na música, além de avanços nas ciências naturais etc., mas o que dizer, por exemplo, da filosofia? Na Idade Média tivemos uma vasta e rica tradição filosófica (de base cristã), iniciada por Santo Agostinho e que encontrou sua coroação com São Tomás de Aquino, que conciliou de forma brilhante o pensamento de Aristóteles com a teologia cristã. Na Renascença, o que tivemos? Maquiavel? A comparação fala por si.

(É fato que Santo Agostinho, que viveu de 354 a 430, ainda pertence, cronologicamente, à Antiguidade, mas faz sentido considerá-lo um dos fundadores da filosofia medieval, devido à enorme influência que teve nos séculos seguintes e ao fato de que viveu apenas algumas décadas antes da data tradicionalmente considerada como a da transição da Idade Antiga para a Média, com a queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476.)

Vou admitir, por uma questão de honestidade intelectual, que por vezes, ao longo do livro, Esolen parece apoiar-se um pouco demais em sua fé católica para embasar seus pontos – e quem está dizendo isso é também um católico devoto. Se o objetivo do livro é defender as bases da civilização ocidental contra os ataques orquestrados pelos movimentos "progressistas" do nosso tempo, a meu ver o autor deveria fazê-lo de forma que soasse convincente para qualquer leitor, independentemente de sua fé ou da falta dela. Você pode ser um ateu, mas se, acima de tudo, for intelectualmente honesto (e não tiver se rendido à lavagem cerebral da mídia), não deverá ter problema em reconhecer que manter de pé a civilização que a Igreja Católica tornou possível seria benéfico para a humanidade de maneira geral, quer no campo cultural, social ou espiritual (e se você, como ateu, não gostar da palavra espiritual, pode substituí-la por "psicológico"; não é bem o que eu queria dizer, mas me falta palavra melhor – em todo caso, estou me referindo à saúde mental média da população do ocidente). Demolir as bases da nossa cultura e ensinar às novas gerações que não há ordem alguma no universo, muito menos algum sentido, e que o bem e o mal não passam de construções sociais, não vai criar um mundo mais livre e feliz; vai criar um mundo cheio de gente frívola, sem objetivos e com uma enorme tendência à depressão, às drogas e ao suicídio. Isso é algo que deveria ser evidente para qualquer pessoa razoável, fosse ela religiosa ou não. Infelizmente, o mundo sempre esteve em falta de pessoas razoáveis, e hoje não é diferente, com o agravante de que as facilidades de comunicação que a tecnologia trouxe, agora permitem que doidos de toda espécie arrastem para o seu lado multidões de jovens e de pessoas influenciáveis em geral, e que movimentos políticos com intenções escusas se aproveitem disso. Esolen estaria alcançando seus objetivos de forma bem mais eficiente se convencesse seu leitor de tudo isso sem precisar antes fazê-lo compartilhar de suas próprias convicções de fé – mas não o culpo, pois sei o quanto isso é difícil, ainda que os fatos e os exemplos históricos estejam aí à vista de todos, porque a mentalidade progressista já prendeu seus antolhos na cara de muita gente, e removê-los não é tarefa fácil.

A primeira vez que ouvi falar em "politicamente correto" foi durante os anos 90, e não dá para dizer que propriamente tenha ouvido falar; na verdade li sobre o assunto, numa revista (acho que era a Veja, mas não posso dar certeza) que folheava aleatoriamente na casa de alguém ou na sala de espera de um consultório qualquer – não lembro os detalhes. O texto era uma resenha sobre o livro Contos de Fadas Politicamente Corretos, de James Finn Garner (é claro que eu não lembrava o nome do autor também: procurei agora na internet), que, por sua vez, tinha o claro objetivo de ridicularizar a moda que estava então se popularizando nas universidades americanas, consistindo em fazer todo o esforço para purgar a linguagem de qualquer traço de racismo, sexismo, culturalismo, preconceito contra portadores de qualquer tipo de deficiência, e por aí afora… e de tudo o que as cabeças paranoicas e ultrassensíveis dos adeptos dessa ideologia entendessem como sendo qualquer uma dessas coisas, mesmo que o resultado fosse esquisitíssimo e, não raro, ridículo. Na prática, aplicado aos contos de fadas, isso gerou títulos como A Jovem de Origem Caucasiana e Seus Sete Amigos Prejudicados Verticalmente (para quem não entendeu, Branca de Neve e os Sete Anões). Nunca cheguei a ler o próprio livro, mas é fácil imaginar que a reação de quem o lesse seria, muito provavelmente, aquela pretendida pelo autor: dar risada. Naquele tempo, ainda parecia mais ou menos seguro confiar que essa "nova linguagem" seria encarada pela grande maioria das pessoas exatamente como aquilo que era – uma completa idiotice. Só que não era uma idiotice aleatória, e sim dotada de método e objetivo. Em 2020, em meio a notícias a respeito de escolas que estão adotando oficialmente o "gênero neutro" no ensino da língua portuguesa, fica bem mais difícil achar graça em tais coisas. "Politicamente correto", hoje, engloba muito mais que linguagem, virou designação de toda uma mentalidade que basicamente busca realizar o sonho dos marxistas mais radicais de décadas passadas: arrasar por completo a cultura e a sociedade existentes, para construir outras novas sobre as suas ruínas. Para conseguir isso, usa-se a mídia, que manipula informações de modo a moldar a opinião pública da maneira que mais favoreça esse objetivo, e a educação "moderna", que trata de inculcar cada vez mais cedo nas mentes de crianças e jovens a ojeriza a todos os valores tradicionais  (em especial religião e família) e a crença de que não existe bem ou mal, certo ou errado, de que tudo é relativo, maleável, questão de opinião e ponto de vista… E, embora tudo seja questão de opinião, só determinadas opiniões é que são aceitáveis. Agora é possível ver o que havia por trás da tal linguagem politicamente correta que nos arrancava risos há alguns anos: as palavras podem não ter poder sobre a realidade objetiva, mas têm poder sobre as mentes – o que, a longo prazo, vem a dar no mesmo. George Orwell, ao descrever a novilíngua em seu 1984, profetizou o que estamos vendo na prática hoje.

É revelador observar como, nessa nova cultura que tanto insiste em justiça e igualdade, tudo é seletivo, tudo tem dois pesos e duas medidas. O caso da linguagem apenas exemplifica o que acontece em todos os campos. A fala politicamente correta pisa em ovos para não deixar passar nada que possa soar longinquamente ofensivo a qualquer uma das assim chamadas minorias (você deve dizer "afrodescendente", porque “negro”, supostamente, traz conotações pejorativas), mas faz questão de ser o mais brutal e odiosa possível quando se trata de atacar o "outro lado": a expressão para "marido" é "estuprador legalizado". Foram inventadas até palavras e expressões totalmente novas, mas com objetivos óbvios, como "descolonização do corpo", que significa tornar-se lésbica… Porque, segundo o feminismo radical que acolheu de braços abertos a cultura politicamente correta, toda relação heterossexual é um estupro (elas afirmam isso com todas as letras), e, portanto, ser lésbica não é apenas uma característica que algumas pessoas apresentam e que deve ser respeitada: é uma escolha, um ato político – um ato de "libertação". Não podia ser mais evidente a intenção de pulverizar a família tradicional, que costuma ser um empecilho à implantação de regimes totalitários (com uma ou outra exceção, como o nazismo, que conseguiu, de certa forma, instrumentalizá-la). O mesmo com a religião: o “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, proferido por Jesus Cristo, deixou claro que há espaços na vida do indivíduo, e mesmo da sociedade, nos quais o Estado não deve interferir – ou seja, regimes totalitários são intrinsecamente maus e errados. Não causa surpresa, portanto, que os politicamente corretos de todas as vertentes tenham elegido o cristianismo como inimigo número um e alvo preferencial, e isso apesar de defenderem com tanto zelo (da boca para fora) a liberdade individual. No mundo de hoje, é opinião geral que toda pessoa deve ser livre para professar e praticar qualquer fé – contanto que não seja cristã. É malvisto criticar, ainda que moderadamente, o budismo, o islamismo ou qualquer forma de crença indígena/aborígine (é intolerância!), mas tudo bem dizer qualquer absurdo contra Deus, Jesus ou a Igreja (aí é liberdade de expressão). Há muito, mas muito objetivo por trás de tudo isso. O politicamente correto não é mais (se é que alguma vez o foi) um instrumento para proteger minorias; hoje, ele nada mais é que um meio que movimentos políticos usam para arrebanhar essas minorias – que, em termos de números, são na verdade a maioria – para usar como massa de manobra e, de quebra, calar quem discorda. Muito deste parágrafo e do anterior são observações minhas, aproveitando um ou dois ganchos fornecidos no livro de Esolen.

O capítulo VIII, já próximo do final do livro, intitula-se O Século XIX: o Homem é um Deus; o Homem é uma Besta, e inclui reflexões sobre mais de um ponto interessante. Primeiro, o que lhe dá título – no século XIX, impulsionada pelo romantismo, instaurou-se uma tendência de endeusar a natureza, o que, por sua vez, abriria caminho para a divinização do homem, que ganhou um porta-voz em Friedrich Nietzsche (1844-1900). Não que o romantismo, de maneira geral, fosse particularmente propenso ao ateísmo – muitos de seus expoentes eram cristãos, e mesmo os que não o eram, geralmente cultivavam alguma forma de espiritualidade –, mas a ênfase que ele punha nos sentimentos, no "mundo interior" de cada um, na coisa subjetiva, levou muitos (não todos, nem a maioria, mas muitos) a uma tendência perigosa para o individualismo, e daí para o ateísmo o caminho costuma ser curto. Uma vez que se admita que não há Deus, os próximos passos são previsíveis. O ideal do comportamento humano seria que o simples fato de compreendermos o que é certo e o que é errado fosse suficiente para nos levar a buscar o primeiro e evitar o segundo – porque isso é o correto a se fazer e pronto, sem necessidade de qualquer promessa de recompensa ou de castigo. Mas, repito, isso seria o ideal. Na prática, o ser humano não é assim. Se ele achar que ninguém nunca irá lhe pedir contas do que andou fazendo, quase sempre agirá conforme suas inclinações o inspirarem, fará o que tiver vontade sem se importar com quem prejudica. Ou seja, como escreveu Dostoiévski de forma tão concisa e certeira, "se Deus não existe, tudo é permitido". O homem fica livre (pelo menos, tem a impressão de que isso é liberdade) para agir ao sabor dos impulsos, deixar-se conduzir unicamente por seus instintos. Esolen exemplifica citando certas "comunidades alternativas" que surgiram na Europa no século XIX, nas quais se praticava o assim chamado amor livre. "O homem é um deus, o homem é uma besta (no sentido de animal ou fera); o homem é tudo, menos um homem."

O último capítulo, O Século XX: um Século de Sangue é dedicado a mostrar como as bases do ocidente foram sendo lentamente (ou nem tão lentamente assim) solapadas ao longo do século passado, por muitos e variados meios. A crescente intromissão do Estado na vida do indivíduo levou ao enfraquecimento da autonomia da família e dos laços entre seus membros; hoje em dia, sob o pretexto de proteger as crianças contra abusos, vem-se tirando dos pais, cada vez mais, o direito de dar a seus filhos o tipo de educação que julgarem melhor. A revolta infantiloide da maior parte da comunidade artística contra as convenções "burguesas" da arte clássica mudou as coisas, e, na minha opinião, não foi para melhor: achar que o objetivo da arte deve ser a beleza é considerado agora um ponto de vista míope e atrasado, ou até mesmo elitista – e quem contraria essa corrente é sistematicamente boicotado. O poder que a arte – aí incluídas não apenas as artes plásticas, mas também a literatura, a música e assim por diante – exerce sobre a mente do indivíduo e, por consequência, sobre a sociedade, é subestimado em muitos círculos, mas parece que o grupo dos que se interessam pela implosão da cultura ocidental o conhece muito bem. A análise de Esolen a respeito disso é elucidativa e perturbadora.

Como uma observação final sobre o livro, quero registrar que, tal como no único outro Manual Politicamente Incorreto que já tinha lido (ver aqui), senti o peso de um ponto de vista fortemente norte-americano, em especial quando o autor se alonga por páginas e mais páginas que pouco dizem aos não-estadunidenses, por abordarem a história dos EUA – da qual, sem dúvida, seria útil termos um conhecimento maior – ou aspectos do cotidiano daquele país, muito descolados da nossa realidade. Mesmo assim, o livro é valioso e importante, por acrescentar muitos conhecimentos e fornecer insights aos que desejam fazer a sua parte, por menor que seja, no esforço de resistência contra a demolição sistemática que vem sendo empreendida contra a nossa civilização.

quarta-feira, dezembro 19, 2018

Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo

Quer dizer então que você está numa situação na qual precisa demonstrar inteligência e "espírito independente", mas não sabe muito bem como fazer isso? Precisa fazer uma média com aquele seu professor marxista de História ou de sociologia? Quer causar uma boa impressão naquela rodinha de colegas "intelectuais" que se reúnem no bar da faculdade e com quem você está tentando se enturmar? Quer "lacrar" numa discussão na internet? Nada mais fácil: ataque a Igreja Católica. Nem precisa entrar em controvérsias teológicas (aliás, isso nem é aconselhável, pois o seu "público-alvo", incluído aí o professor marxista, não entenderia nada): basta falar de como ela incitou o ataque (gratuito e sem provocação, é claro) aos coitadinhos dos muçulmanos nas Cruzadas, matou milhões de pessoas inocentes (todas inocentes, naturalmente) na Inquisição, tramou esquemas manipulando reis e Estados, só para ficar mais rica e poderosa, empatou o progresso da ciência durante séculos, legitimou a escravidão declarando que os negros "não tinham alma"… Isso são apenas alguns exemplos. A lista de distorções, meias-verdades, exageros e simples mentiras deslavadas é longa e você pode escolher à vontade sem perigo de errar. Basta enfileirar duas ou três observações (pouco importa o quão tolas e sem fundamento: sendo contra a Igreja, qualquer coisa serve, e não é preciso provas) sobre qualquer um desses pontos, e pronto: você deu a impressão de que é inteligente e estão garantidos os aplausos.

Muito bem, mas e a verdade? A Igreja Católica, praticamente sozinha, foi a responsável por manter a civilização ocidental viva quando o Império Romano desmoronou e povos bárbaros tomaram conta da Europa; mais tarde, também foi ela, e ainda praticamente sozinha, quem conseguiu domar esses mesmos povos bárbaros e criar condições para que a civilização voltasse a florescer – e não torçam o nariz quando falo em civilização: barbárie só é bacana em história do Conan. Dentro dos muros de mosteiros e abadias (católicos, não é demais lembrar), bibliotecas bem organizadas preservaram o conhecimento do mundo greco-romano, em livros que os bárbaros teriam queimado sem pensar duas vezes… Que digo eu? Sem pensar sequer uma vez. Foi dentro desses mesmos muros que a ciência moderna deu seus primeiros passos, sim senhor. Foi em torno da fé católica que tribos e grupos étnicos que não tinham mais nada em comum se uniram para formar os primeiros Estados nacionais da forma como os entendemos. Hospitais e universidades? Devemos à Igreja Católica. Devo continuar? Poderia ir longe, mas creio que basta por enquanto.

Este livro, escrito por um sujeito chamado John Zmirak (uma das principais cabeças por trás do site e jornal The Stream), mostra mais uma vez que sempre há coisas a aprender, mesmo sobre assuntos que acreditamos já dominar. Não que eu alguma vez tenha alimentado a ilusão de saber tudo sobre a Igreja Católica, apesar de haver congregado nela durante toda a minha vida, o que, agora, já significa um tempinho bem considerável. Porém, a Igreja é uma realidade imensa e complexa, que não se pode ver ou abarcar com a inteligência de uma vez só, e há de fato um ou dois temas específicos ligados a ela que eu acreditava conhecer bem – até agora. A oportunidade de aprender mais sempre me deixa contente, e ainda mais se for num livro como este, escrito do jeito que me agrada: com uma levada dinâmica, um assunto conduzindo ao outro com fluência, mas sem nunca perder o foco, numa linguagem rica e elaborada, sem pedantismo desnecessário, e valorizada, nesta edição, por uma tradução de qualidade, coisa que, infelizmente, vem se tornando cada vez mais rara em edições brasileiras – parabéns e obrigado ao tradutor Raul Martins (OK, há alguns problemas de português aqui e ali, mas nada que comprometa). Por outro lado, recomendo que desconsiderem a capa de péssimo gosto, feita por um tal Fernando Mena. O que dá pena é saber que o livro será lido mais por católicos mesmo, e dificilmente chegará às mãos daqueles que mais precisariam lê-lo. Mas vamos ver o lado bom: há tantos assuntos importantes aqui, e esmiuçados de forma tão eficiente, que quase nenhum católico do planeta poderá percorrer estas 367 páginas e, ao final, dizer que não leu nada que já não soubesse.

Nota-se que Zmirak se esforçou, entre outras coisas, para dar ao leitor um panorama o mais atual possível da situação vivida pela Igreja (talvez um cacoete trazido do jornalismo), o que terá a desvantagem de deixar parte do livro datada depois de alguns anos. Por outro lado, a maior parte dele trata de temas que serão sempre atuais – e mesmo aquilo que ficar datado terá o valor de registro histórico deste turbulento início de milênio. Como boa parte dos católicos mundo afora, Zmirak não parece lá muito contente com certas atitudes do atual papa, Francisco. Partindo disso, o autor aborda seu primeiro ponto: a noção equivocada que muita gente (inclusive muitos católicos) tem, de que o fiel católico tem por obrigação aceitar tudo o que o papa disser sobre qualquer assunto – e, mais equivocado ainda, de endossar tudo o que ele fizer. Os pseudointeligentes aos quais eu me referia no início do texto ouvem falar no dogma da infalibilidade papal e, sem se darem ao trabalho de procurar saber o que isso realmente significa, abrem logo a boca: "Mas cooomo? Como assim, o papa é infalível? E todos os papas corruptos e assassinos que existiram? Eles também eram infalíveis?" Que fique claro: a infalibilidade é, de fato, um dogma da Igreja, mas só se aplica ao que o papa declarar ex cathedra, quer dizer, às suas declarações oficiais sobre a fé e a moral – e somente sobre esses assuntos. Ao fazer esse tipo de declaração, o papa está amparado pelo Espírito Santo, que, no interesse de toda a Igreja, o preserva do erro… Desnecessário dizer que isso é um artigo de fé, o que significa que é algo em que a pessoa simplesmente acredita ou não acredita – e, se você não é católico, é muito provável que não acredite. Em todo caso, as declarações papais a respeito de fé e moral têm-se mostrado de uma notável constância e consistência ao longo desses vinte séculos repletos de chuvas e trovoadas de todos os tipos.

Passando para outros temas, entretanto, a coisa toda é diferente. Se o papa quiser emitir opiniões sobre política ou ecologia, é claro que ele pode, mas essas serão meramente suas opiniões, com as quais nenhum de nós tem a obrigação de concordar, e, no que se refere a sua conduta pessoal, ele é tão falível e propenso ao erro quanto qualquer outro homem. Os papas indignos registrados pela História tomaram o cargo, ou foram colocados nele, por meio de manobras escusas, e unicamente por causa do poder político que ele trazia junto; não estavam minimamente interessados em espiritualidade e não me consta que tenham feito declarações oficiais sobre fé e moral – o que, com a licença dos incrédulos, nós acreditamos ser mais um indício da ação do Espírito Santo. Mais ainda: bulas, encíclicas e demais documentos redigidos pelo papa, ou por ele determinados, destinam-se a esclarecer pontos da fé e nortear a conduta da Igreja e dos fiéis diante de novas circunstâncias trazidas pelas constantes mudanças que o mundo atravessa. Consistem em orientação, não são declarações ex cathedra, e não são infalíveis. O fiel católico deve prestar-lhes atenção e levá-los em grande consideração, como o faria com o conselho de qualquer pessoa sábia e instruída, mas não é obrigado a aceitar tudo o que contenham. Por fim, há que se observar que declarações papais apoiadas no dogma da infalibilidade são muito raras: o dogma (que já existia de forma implícita desde os primeiros tempos da Igreja) foi oficialmente proclamado durante o concílio Vaticano I, que ocorreu em 1869-70, e, desde então, foi aplicado apenas duas vezes.

O livro prossegue tocando em pontos que, por vezes, se mostram espinhosos para os católicos de hoje; é claro que não tem como oferecer soluções para a maioria deles, mas consegue esclarecê-los bastante e, de modo geral, fornecer um lembrete de como deveríamos agir em relação a cada uma dessas questões, caso queiramos ser católicos de verdade, e não meros "católicos de IBGE". Não que isso seja fácil, é claro. A questão da contracepção, por exemplo: historicamente, a Igreja sempre a considerou reprovável, e até hoje não aprova o uso de coisas como pílula e camisinha – mas não venham querer culpar a Igreja por haver tanta gente por aí transando sem proteção: se o povo ligasse para o que a Igreja diz sobre vida sexual, manteria abstinência até o casamento e fidelidade a partir daí, de modo que o risco das doenças venéreas praticamente não existiria e a tal proteção seria desnecessária. Não vou ser hipócrita e dizer que sempre segui esses preceitos à risca (sou solteiro e já mantive relacionamentos íntimos, sim; como Zmirak, assumo minha condição de mau católico), mas o fato é que, embora ele possa parecer nada mais que um moralismo ultrapassado, na verdade é a única orientação que a Igreja pode efetivamente oferecer sobre esse assunto sem trair alguns de seus princípios mais fundamentais – o primeiro deles sendo o de que não estamos neste mundo a passeio: há um Deus que colocou uma ordem nas coisas e espera de nós que ajamos em conformidade com ela. O problema com os contraceptivos, na visão da Igreja, é que eles desvinculam o sexo da função que o Criador lhe atribuiu, que é a da reprodução. Conhecendo a natureza humana (e, creiam, a natureza humana é algo que a Igreja, ao longo desses dois mil anos, teve oportunidade de conhecer muito bem), fica evidente para qualquer um que, uma vez rompido esse vínculo, o sexo vira um reles parque de diversões – e alguém aí vai negar que é exatamente assim que a sociedade moderna e secularizada o compreende? A Igreja não pode compactuar com isso e continuar sendo a Igreja. Ponto. Ninguém jamais disse que ser católico era fácil.

Por outro lado, mesmo o sexo dentro do casamento tem as suas complexidades. A Igreja não pretende que todo ato sexual entre marido e mulher resulte num filho, mas ensina que, se e quando isso acontecer, a criança gerada deve ser recebida com amor e educada com responsabilidade. Isso vale hoje como valia há quinhentos, mil ou dois mil anos. O que mudou foram outras coisas. Em séculos anteriores, controlar a quantidade de nascimentos não era uma preocupação, nem para a sociedade, nem para as famílias. Um casal dificilmente poderia ter filhos demais: tê-los em grande número era uma necessidade. Era preciso ter uns dez para que houvesse ao menos uma boa chance de que dois ou três chegassem à idade adulta. Além disso, nas sociedades eminentemente rurais desses tempos, o custo de se criar um filho era baixo, já que só era necessária uma educação rudimentar, e ele podia, desde tenra idade, começar a ajudar os pais no trabalho. Ocorre que, de lá para cá, o progresso da medicina e a melhoria das condições de vida da população em geral fizeram as taxas de mortalidade infantil despencarem, ao mesmo tempo em que a urbanização da sociedade, com a consequente demanda por profissionais cada vez mais especializados, passava a exigir um outro tipo de educação – mais demorada e mais cara. Em resumo: se, como no exemplo acima, o casal tivesse dez filhos, agora era provável que todos os dez sobrevivessem, e todos precisavam ir para a escola. Nessa nova realidade, não seria razoável da parte da Igreja censurar os casais que quisessem limitar os nascimentos na família ao número de filhos que pudessem efetivamente alimentar e educar. Mas, nesse caso, como fica? Se você só pode criar três filhos e já tem os três, deve simplesmente parar de fazer sexo com sua esposa ou marido? A resposta, que poderá surpreender a muitos, é um redondo não, pois, ainda que a função natural do sexo seja a reprodução, ele não pode ser reduzido apenas a isso: é também parte importante da vida e da intimidade de um casal. Para resolver o problema, a Igreja recomenda o que chama de métodos naturais, que consistem basicamente em calcular os períodos férteis da mulher e evitar fazer sexo durante os mesmos; se isso funciona na prática, é controverso. Além disso, uma mudança de entendimento não parece impossível, ao menos não desde que o papa Bento XVI admitiu que o uso da camisinha é aceitável em certas situações, o que sinaliza que o problema não é a camisinha em si, mas o modo como ela vem sendo usada e propagandeada: como um instrumento para desvincular o sexo de qualquer tipo de compromisso ou responsabilidade.

Sobre não ser fácil ser católico, como dito acima, Zmirak escreve: "É claro, há muitos pontos nos quais a fé cristã tradicional, e sobretudo em sua forma católica, é frustrante e exigente. Não precisaríamos do sacramento da Confissão se viver uma vida cristã nos fosse algo natural, como respirar, comer ou fazer valer nossa vontade às custas dos outros." O livro está coalhado de espetadas certeiras e cruamente realistas como essa. Ao longo das últimas décadas, e particularmente no ocidente, a mídia e uma educação tendenciosamente torta têm tentado criar nas mentes a ideia de que a natureza é sempre o modelo de perfeição e de que o melhor que fazemos é obedecer sempre a ela, o que significa sempre seguir nossos instintos – mas uma análise um pouco mais profunda da questão leva-nos a perceber que isso equivaleria a assinar embaixo de atos como roubo, assassinato e estupro, que são, sim, tendências naturais em primatas como nós, como o estudo do comportamento dos nossos primos quase irmãos, os chimpanzés, não deixa dúvida. O que nos faz seres racionais, capazes de respeitar os direitos uns dos outros e de viver em sociedade, é a nossa capacidade de contrariar os nossos instintos, quando eles nos querem levar a ter comportamentos antissociais. Em outras palavras, nossa capacidade de decidir quando obedecer à natureza e quando lutar contra ela – o que sempre foi uma das bases do ensinamento da Igreja.

Afora as questões que dizem respeito a todo católico em qualquer lugar do mundo, Zmirak (talvez de forma não premeditada, o que torna tudo mais revelador) acaba por nos oferecer um vislumbre de como é ser católico nos Estados Unidos, país predominantemente protestante, onde, não raras vezes ao longo da História, professar a fé romana foi fator de discriminação: dependendo da época e da região do país, ser católico não era mais fácil, nem mais seguro, que ser negro ou judeu. Além disso, o autor expõe seu parecer, na qualidade de católico, sobre diversas questões da realidade do país, também aplicáveis, em maior ou menor grau, a outros países. A ideia do presidente Trump de construir um muro na fronteira dos EUA com o México, por exemplo, pode ser uma maluquice pra ninguém botar defeito – mas a imigração descontrolada é um problema real, não mera paranoia. E, no entanto, o papa Francisco costuma falar como se fosse um dever moral de toda nação próspera receber de braços abertos qualquer imigrante que a procure, isso apesar de o próprio Catecismo da Igreja Católica prever que esse acolhimento deve ocorrer "até onde for possível", e não parece descabido interpretar esse "até onde for possível" como significando que uma nação não deve descuidar de seus próprios cidadãos porque precisa se virar com um número absurdo de imigrantes. Zmirak se alonga, nessa parte, discorrendo sobre os efeitos da política de imigração sobre a sociedade dos EUA, o que pode parecer sem relação com a realidade dos não-estadunidenses, mas não é bem assim – primeiro, porque muito do que acontece lá também acontece em outros países, e segundo, porque, queiramos ou não, o que afeta os EUA também nos afeta indiretamente.

E, se a torrente de imigração preocupa os norte-americanos, o que dizer, então, da Europa? Os europeus estão tendo cada vez menos filhos, pelos motivos discutidos acima, e isso parece ser uma questão de mentalidade, fora do alcance da influência quer da Igreja, quer do Estado, pelo menos a curto prazo. Enquanto isso, levas intermináveis de imigrantes chegam todos os anos – a maioria deles oriundos de países muçulmanos. É claro que, em sua vasta maioria, são pessoas de bem, que querem apenas encontrar trabalho e construir prosperidade para si e suas famílias… Mas nem todos, como mostra o fato de muitos dos atentados "em nome do Islã" praticados nos últimos anos na Europa terem sido obra de pessoas que entraram nela legalmente; em alguns casos, até mesmo de filhos de imigrantes, que já nasceram no novo país, têm cidadania nele – e, mesmo assim, o atacaram. Mesmo que não houvesse o perigo do terrorismo para ser levado em conta, é inevitável nos perguntarmos que efeitos terá, a longo prazo, essa entrada maciça de muçulmanos na Europa, principalmente no aspecto cultural. Em palavras simples: o que isso fará com a identidade do ocidente? Na Idade Média, a Igreja convocou as Cruzadas, que, embora execradas pela corja politicamente correta, salvaram nossa civilização… Acontece que, como costumo dizer, os cruzados contavam, ao menos, com a vantagem de saber quem era o inimigo e onde ele estava. Hoje, o inimigo pode ser qualquer um, em qualquer lugar.

Não estou de acordo com todos os pontos de vista de Zmirak, é claro. A defesa veemente que ele faz do direito à posse e ao porte de armas, por exemplo, parece ter muito mais a ver com sua formação de americano-de-classe-média-que-sempre-vota-nos-republicanos que com a fé católica – e, antes que alguém me interprete mal, esclareço que não sou radicalmente contra esses direitos, nem irrestritamente a favor deles: como em tudo na vida, o meio-termo é a melhor coisa. O modelo norte-americano, que permite que praticamente qualquer um compre uma arma como quem compra um guarda-chuva, é insensato, mas tampouco parece certo negar às pessoas qualquer meio prático de defender sua integridade física e a de sua família, bem como seu patrimônio. Por isso, acho válido que se tenha armas, desde que o controle seja rígido, constante, e inclua todos os testes psicológicos possíveis, que deveriam ser repetidos com frequência. Se você quer ter uma arma, prove que é equilibrado e responsável o suficiente para fazer bom uso dela – que não é apenas mais um babaca que se acha um "cidadão correto" e sairá dando tiros na primeira discussão de trânsito em que se envolver. Por outro lado, um dos capítulos mais interessantes do livro é aquele no qual Zmirak se dedica a desfazer uma ideia muito comum – tão comum, de fato, que um número enorme de católicos acredita nela: o de que o católico, e o cristão em geral, deve ser um pacifista, incapaz de matar um mosquito, não importa a situação. O papa Paulo VI liquidou o assunto (ou assim deveria ter sido) ao declarar que o cristão ama a paz, mas não é pacifista. "Paz a qualquer preço" é uma ideia ingênua (na qual, confesso, eu mesmo já acreditei); a posição da Igreja, e, a meu ver, a de qualquer pessoa realista, é a de que, embora a guerra seja sempre um mal, há momentos na História em que ela é o mal menor. Junto com as questões das armas e da guerra, Zmirak debate também a da pena de morte – assunto esse no qual faço grandes ressalvas aos pontos de vista que ele expressa, embora precise admitir que o faz de forma coerente e bem argumentada.

O capítulo X trata da relação entre a fé católica e a ciência – e não deixa sobrar nada da noção, tão difundida, de que a Igreja fez e faz tudo ao seu alcance para impedir o progresso científico e manter a humanidade eternamente aprisionada numa bolha de obscurantismo. Esse é um dos porretes favoritos dos que querem bater na Igreja, e podemos retraçar sua origem até os filósofos iluministas da segunda metade do século XVIII – eles mesmos, os mentores intelectuais da Revolução Francesa, cujos virulentos ataques ao cristianismo e particularmente ao catolicismo tinham clara intenção política, pois o apoio da Igreja era um dos pilares do poder dos reis, o que levava tais filósofos a se sentirem na obrigação de tentar demoli-la. Destacam-se nomes como Diderot, Montesquieu e, principalmente, Voltaire (1694-1778), consumado hipócrita que escrevia manifestos contra a escravidão que levavam seus leitores às lágrimas e, enquanto isso, investia suas economias pessoais em ações de navios negreiros. Não por acaso, foi Voltaire quem inventou e alardeou o quanto pôde que a Igreja afirmava que os negros não tinham alma e que, por isso, não havia problema em escravizá-los – estupidez essa até hoje repetida à exaustão quando alguém que acha que sabe algo sobre alguma coisa quer parecer "crítico" e inteligente. Um pouco de pesquisa séria e imparcial (o que, claro, é pedir demais a esse tipo de gente) revela a realidade: a escravidão era simplesmente algo que sempre tinha existido e que a Igreja não tinha poder para mudar, ao menos não sozinha; sendo assim, fazia o que estava ao seu alcance, exortando a quem tivesse escravos para que os tratasse de forma justa, sob pena de pecar gravemente – o que pode parecer ridículo para a mentalidade atual, mas constituía preocupação séria para a maioria das pessoas naquela época. E tem mais: será que ninguém se pergunta por que é que a Igreja sempre insistiu para que todos os escravos fossem batizados? Se fizesse parte da crença católica que os negros não tinham alma, batizá-los seria como batizar bezerros – inútil além de sacrílego.

Mais uma vez, divaguei: a maior parte do que vai no parágrafo anterior não está no livro de Zmirak, que só toca muito de passagem nos filósofos iluministas; mesmo assim, trata-se de informação que considero relevante, de modo que fica como está. Voltemos agora ao capítulo X, do qual eu estava começando a falar.

O fato nu e cru, meus amigos, é que a Igreja não empatou o progresso científico – ela o promoveu, e Zmirak se sai muito bem em mostrar que, apesar das notáveis realizações intelectuais de todas as civilizações antigas, foi necessária a cosmovisão cristã da Europa medieval para que a ciência experimental pudesse nascer. Enquanto os antigos enxergavam o universo como uma realidade essencialmente caótica, na qual seria impossível ao intelecto humano se aprofundar muito, a filosofia de base cristã via esse mesmo universo como a criação de um Ser racional e que, portanto, possuía uma ordem que refletia a mente de Deus; como a nossa mente, por sua vez, foi feita à imagem e semelhança da do Criador, não nos seria impossível chegar a compreender (mesmo que de forma limitada) a natureza de Sua obra. Daí porque cientistas cristãos – muitos deles padres ou monges – construíram, no decurso de alguns séculos, mais conhecimento científico prático do que havia sido alcançado em milênios antes. Mesmo casos como o de Galileu Galilei (que, por falar nisso, foi sentenciado à prisão domicilar, e não queimado na fogueira, como já ouvi vários "gênios" afirmarem) muitas vezes não foram bem do jeito que nos contaram: Galileu, em que pese seu brilhantismo científico, tinha um temperamento difícil e sérios problemas de ego, o que o levou a comprar brigas com autoridades eclesiásticas por motivos que pouco tinham a ver com sua teoria heliocêntrica.

E, é claro, um capítulo sobre Igreja e ciência não estaria completo sem dedicar alguma atenção à questão "Deus x Darwin"… Para começar, colocar a coisa nesses termos, como se Darwin alguma vez tivesse tentado se igualar a Deus, ou como se crer num deles fosse necessariamente sinônimo de descrer do outro, é uma visão simplista e tola, propícia ao sensacionalismo de certos setores da mídia – ou ao fundamentalismo burro. Zmirak dá o recado, embora de forma muito resumida, dedicando à questão da evolução muito menos espaço do que já houvera dedicado a assuntos, a meu ver, bem menos relevantes; a impressão que tive foi de que ele próprio não simpatiza muito com Darwin, embora esteja de acordo com o fato de que não é preciso jogar fora A Origem das Espécies para ser fiel à Bíblia, ou vice-versa. O que precisamos notar é que, apesar de alguns cristãos fundamentalistas (em geral de igrejinhas protestantes picaretas, mas há um ou outro católico no meio) ainda hoje insistirem em ler o Gênesis ao pé da letra, a posição oficial da Igreja é a de que o livro é, em grande parte, alegórico. O autor bíblico (e, cremos nós, o próprio Deus ao inspirá-lo) não estava querendo nos ensinar ciência, mas apenas transmitir a verdade básica de que tudo o que existe tem em Deus sua origem primeira; como, exatamente, essa criação se deu, está aberto à investigação. E, como diz o ditado, quem procura acha: sinais da evolução estão por toda parte. Baleias possuem certos ossos sem função alguma, vestígios das patas traseiras que seus ancestrais, animais terrestres, um dia tiveram. Da mesma forma nós próprios, humanos, ainda temos algumas vértebras caudais. A ordem de mamíferos conhecida como os monotremos se distingue pelo fato de pôr ovos e amamentar os filhotes que saem deles – um claro indicativo de que os mamíferos evoluíram a partir dos répteis. Até mesmo nossos dentes não passam de escamas modificadas!… Quem rejeita a teoria de Darwin, geralmente não a entendeu, e os poucos que entenderam e ainda assim a rejeitam, o fazem por pura ideologia, não por uma convicção baseada em evidências. Há inúmeras pessoas religiosas instruídas que aceitam tranquilamente a ideia da evolução, e, do outro lado, há também muitos cientistas evolucionistas que acreditam em Deus – vide o "evolucionismo teísta" defendido por Alister McGrath. A meu ver, aceitar a teoria da evolução (que, como disse o papa São João Paulo II, na verdade "é mais que uma teoria") não conflita de forma alguma com a crença em Deus; pelo contrário, um sistema tão perfeito aponta para a existência de um Intelecto que deve tê-lo coordenado.

E creio que já escrevi o suficiente: isso tudo já dá um bom vislumbre dos assuntos tratados neste Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo, cuja leitura recomendo sem dúvida para católicos interessados em conhecer melhor sua Igreja e a fé que ela professa, e para não-católicos dotados desse dom, hoje em dia tão raro, que chamamos de honestidade intelectual, em grau suficiente para desejar conhecer a verdadeira história, missão e propostas dessa instituição tão falada e tão pouco compreendida, antes de começar a apedrejá-la. Há uma pá de outros assuntos abordados no livro e sobre os quais fiquei tentado a discorrer, mas isso deixaria o texto longo demais (desconfio que ele já esteja, de qualquer forma). Terei oportunidade de tocar nesses assuntos quando estiver comentando outros livros, tanto de ficção quanto de não-ficção, que já estão na minha lista. Então, vamos para a conclusão.

Uma análise histórica isenta, independente da crença, ou falta dela, de cada um, mostra que, desde os filósofos iluministas, como visto acima, um grande esforço vem sendo feito para difamar e desacreditar a Igreja, e que a quase totalidade dos órgãos da mídia em nossos dias está firmemente comprometida com esse objetivo, seja por estar nas mãos dos inimigos da Igreja ou porque os profissionais que dirigem esses órgãos, e produzem o conteúdo que veiculam, foram adequadamente doutrinados e agora acreditam sinceramente estar divulgando a "verdade". O que se quer, em resumo, é que aqueles ainda suficientemente teimosos para continuarem a ser católicos tenham vergonha de fazer parte da Igreja e cultivem uma atitude do tipo "desculpem-me por ser católico", quando, na verdade, deveriam ter orgulho disso. Coisas como as Cruzadas e mesmo a Inquisição (nomes que soam praticamente como palavrões aos ouvidos de muita gente) na realidade foram muito diferentes daquilo que a mídia quer que o público acredite que foram: houve abusos e arbitrariedades como sempre há em qualquer empreendimento humano (abusos e arbitrariedades quase sempre cometidos por indivíduos ou grupos, e que a Igreja teria impedido se pudesse), mas elas tiveram sua razão de existir e, cada uma a seu modo, evitaram grandes desastres em suas respectivas épocas.

Em nossos dias, a tirania do politicamente correto tornou-se o principal instrumento usado para tentar impedir a Igreja de levar a cabo sua missão, ou deveria dizer suas missões; a primeira é aquela que Cristo tinha em mente ao fundá-la, e que consiste em ajudar homens e mulheres a salvarem suas almas, mas há outra que ela tomou sobre si ao longo dos últimos dois milênios, que é a de manter a civilização ocidental de pé, por mais atacada que ela seja e por mais que também tente se autodestruir. O pior é ver que muitos católicos (até mesmo sacerdotes) se deixam levar por esse discurso castrador e hipócrita. Tornou-se "feio" dizer a verdade sem eufemismos e chamar as coisas pelos nomes que elas têm. Em tal cenário, o aparecimento de livros como este é providencial – e para nós, católicos, literalmente, pois pode ser visto como um sinal da providência divina. Como disse antes, só tenho pena de que o livro de Zmirak dificilmente será lido por aqueles a quem mais poderia fazer bem. Ninguém é obrigado a partilhar da nossa fé, mas, para os que partilham, a promessa de Cristo ("Pois eu te digo, tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela." Mt 16:18) é uma injeção diária de coragem e uma garantia da vitória final, pouco importa o quão numerosos e poderosos sejam os inimigos, ou de quanta perfídia façam uso.

quinta-feira, outubro 25, 2018

O Voo da Águia

O segundo volume da saga Águias do Império de Simon Scarrow começa praticamente onde o primeiro termina. O exército romano acaba de estabelecer sua primeira base de operações relativamente firme em solo britânico, tendo enfrentado para isso uma árdua batalha, e prepara-se para prosseguir com seu avanço de conquista. O general Aulo Pláucio e seus oficiais (entre eles Vespasiano, legado da Segunda Legião Augusta, e seu tribuno superior, Vitélio) sabem que precisam tomar a cidade de Camulodunum (trata-se da atual Colchester, e nesta tradução adota-se a versão aportuguesada "Camulodônia") antes que o mau tempo do outono e inverno tornem inviável a continuidade da campanha pelo restante do ano: a cidade é sede da aliança de tribos forjada por Carátaco, chefe dos catuvelaunos, para tentar resistir à invasão romana. Esse movimento tem dupla importância: tomando Camulodunum, os romanos quebrarão a espinha da aliança dos bretões e, além disso, darão uma de-monstração de força que poderá convencer várias tribos britânicas ainda neutras a apoiá-los. Se falharem e tiverem que esperar até a primavera seguinte, poderá ser tarde demais, pois Carátaco terá tempo de consolidar sua aliança e desferir um ataque fatal, tirando vantagem de sua superioridade numérica e melhor conhecimento do terreno. Só que tomar Camulodunum não será fácil: só para chegar até a cidade, as legiões precisarão atravessar dois rios, o Durobrivae (que, por alguma razão, Scarrow preferiu chamar pelo nome moderno, Meadway) e o Tamesis (Tâmisa), obstáculos naturais que Carátaco, sem dúvida, saberá usar a seu favor.

Nos bastidores da Segunda Augusta, a rivalidade velada entre Vespasiano e Vitélio está equilibrada, graças ao princípio da "destruição mútua assegurada": cada um conhece certos segredos que, se revelados, custariam a carreira e, provavelmente, também a vida do outro. Isso mantém os dois disputando um tenso jogo de xadrez no qual um só passo em falso pode ser fatal. Ambos estão destinados a serem imperadores – um deles por curto tempo e deixando uma memória ingrata, enquanto o outro se tornaria um dos mais notáveis a vestir a púrpura durante os 500 anos do período imperial romano. Porém, nessa época ainda não há como alguém saber disso.

Já entre os "meros mortais" que integram a legião, o jovem Quinto Licínio Cato, já com quase um ano de caserna, está, por fim, sentindo-se um legionário digno desse nome e, como optio, sua ajuda é valiosa para seu centurião, Lúcio Cornélio Macro, homem bravo e justo, mas um tanto bronco. Junto com a Nona, Décima Quarta e Vigésima legiões, a Segunda Augusta atravessa o Durobrivae em meio à feroz oposição dos bretões, resultando numa batalha sangrenta, na qual a Segunda, por estar com seu contingente reduzido, é utilizada como reserva… mas, para a aflição de Macro, Cato e seus companheiros, no momento em que eles são mais necessários e estão prontos para entrar em ação, a ordem de avançar não vem – e, desnecessário dizer, sem essa ordem eles não podem intervir, de modo que são obrigados a ficar olhando enquanto a Nona enfrenta a fúria dos bretões e sofre baixas pesadas. Chega a parecer que alguém no comando está sabotando a batalha, mas a Nona confirma a fama de unidade valente e durona que já então tinha, e ganha o dia, mesmo com tudo indo contra. A ordem para a Segunda avançar, quando finalmente vem, parece ter sido dada no último momento possível. Ainda assim, há luta suficiente para que Cato abata mais alguns inimigos e sofra um ferimento de certa gravidade.

As provações ainda estão longe de acabar. Na região pantanosa entre o Durobrivae e o Tamesis, a Segunda Legião, impossibilitada de se reagrupar, fica dividida em pequenas subunidades que se veem envolvidas numa série de escaramuças, nas quais os bretões, familiarizados com o terreno, levam vantagem. Num momento desesperado, em que a Sexta Centúria, já reduzida em número, parece na iminência de ser aniquilada, Macro ordena a Cato que tente salvar o restante da centúria enquanto ele próprio fica para trás, com um punhado de homens, para tentar atrasar o inimigo, num ato heroico e praticamente suicida. O jovem optio cumpre a missão, mas fica totalmente sem chão com a perda de seu centurião, que ele julga morto… Claro que não é spoiler dizer que Cato está enganado – todo mundo sabe que a série continua ainda por vários volumes e que, neles, Macro continua aparecendo, mas, durante alguns dias, não se tem notícias dele, o que automaticamente coloca Cato no comando interino, função na qual ele não se sente nada à vontade – e quem poderia culpá-lo, sendo ainda tão pouco experiente? De qualquer forma, Cato e os soldados, de comum acordo, determinados a vingar seu centurião, apresentam-se como voluntários para fazer parte da primeira leva de tropas que atravessará o Tamesis; essa primeira leva terá que segurar as coisas por ali até que a segunda chegue para ajudá-la, e mesmo os meros minutos que os transportes levarão para cruzar o rio de volta, embarcar a segunda leva e retornar podem ser tempo suficiente para que eles sejam massacrados. Essa parte é muito propícia a que Simon Scarrow dê mais uma demonstração de suas habilidades como narrador de batalhas. É interessante notar que esse tipo de batalha – um exército tentando atravessar um rio, fosse vadeando-o ou por meio de embarcações, enquanto o outro tentava impedi-lo – seria muito típico das guerras medievais, séculos mais tarde. As legiões romanas eram insuperáveis como infantaria pesada, mas, justamente por causa do peso de seu equipamento, sua mobilidade no campo de batalha era limitada; era mais vantajoso para elas esperar que o inimigo tomasse a iniciativa de atacar, mas, devido à própria natureza das batalhas travadas no Durobrivae e no Tamesis, desta vez viram-se forçadas a assumir postura ofensiva, o que teve seus custos em termos estratégicos e acarretou sérias baixas. A conquista da Britânia não sairia barata ao Império.


Uma vez assegurado o controle da travessia dos rios, o exército comandado por Pláucio está finalmente em condições de avançar para Camulodunum, mas não pode fazer isso de uma vez: o imperador Cláudio, determinado a tirar daquela campanha todo o proveito político que puder, faz questão de estar presente para posar de herói conquistador, embora, é claro, não vá tomar parte em batalha alguma – ele nunca teve saúde para ser soldado, e, além disso, nessa época já não é jovem, sem contar que não teria muito cabimento um imperador arriscar a vida dessa forma, considerando que sua morte repentina poderia facilmente lançar o Império no caos. Vespasiano reflete que, enquanto o exército romano permanece parado, esperando pela chegada do imperador, Carátaco está tendo tempo para se preparar, e diz consigo mesmo que "a vaidade de Cláudio podia matá-los a todos", mas, para crédito de Cláudio, a verdade é que não se trata de mera vaidade, e sim de uma maneira de consolidar-se no trono.

Por esse tempo, há em Roma um movimento semissecreto conhecido como "os Liberais", que tem por objetivo a restauração da República, e pretende alcançar isso sabotando tudo o que o imperador tente fazer, como a campanha da Britânia, por exemplo. Nesse caso, eles podem estar agindo de uma forma bastante direta: Macro, Cato e outros soldados na linha de frente começam a notar que muitos chumbos lançados pelos fundibulários britânicos e muitas espadas empunhadas por seus guerreiros são de fabricação romana. Se fosse numa escala menor, nada disso seria de se estranhar – os fundibulários poderiam estar simplesmente reaproveitando os chumbos lançados pelos romanos contra eles, e as espadas poderiam ser despojos de batalhas anteriores, mas a presença de tais itens na quantidade em que estão sendo encontrados só pode significar uma coisa: há romanos fornecendo armas aos bretões. A primeira e natural suspeita de Vespasiano é que algum comerciante romano, mais sensível à sede de lucro que ao patriotismo, esteja negociando com os bárbaros por baixo dos panos, mesmo correndo o risco de ser apanhado, caso no qual seria executado publicamente da forma mais dolorosa e vergonhosa possível – era assim que Roma lidava com traidores. Porém, a realidade parece ser ainda mais sinistra: há nisso o dedo dos Liberais, e, o pior de tudo, Vespasiano suspeita que sua própria esposa, Flávia, uma nobre dama romana com trânsito livre na corte imperial, esteja envolvida.

Quando Cláudio finalmente chega, traz consigo reforços substanciais sob a forma de tropas e máquinas de cerco, tudo isso muito bem-vindo pela força expedicionária romana, já combalida pelas batalhas. Traz também, curiosamente, alguns elefantes (!), muito mais para fazer vista que qualquer outra coisa: embora isso tenha sido tentado por mais de uma vez, não parece que tenha havido algum sucesso consistente em utilizar elefantes em combate de forma eficaz no exército romano, nem mesmo com a colaboração de mahouts (condutores) nativos da África, provavelmente cartagineses ou númidas – esses povos, antes de serem subjugados, haviam lutado contra os romanos, muitas vezes utilizando elefantes com resultados terríveis. Por outro lado, a simples visão dos paquidermes costumava valer por um golpe severo no moral do inimigo, que geralmente nunca tinha visto nem imaginado semelhantes "monstros". Para eles, os animais pareciam algo saído de um pesadelo.

(A título de curiosidade, os elefantes de Cláudio, embora parecendo enormes aos olhos dos bretões e mesmo da maioria dos romanos, provavelmente não eram tão grandes quanto nós, modernos, os imaginaríamos, pois quase certamente pertenciam a uma subespécie hoje extinta, a Loxodonta africana pharaoensis, que habitava o vale do Nilo e outras partes do norte da África e era menor que as outras duas subespécies de elefantes africanos, que ainda existem e que, por habitarem a África subsaariana, eram exóticas para os povos da bacia do Mediterrâneo na Antiguidade. Essa subespécie menor era a mesma dos elefantes de guerra empregados por Cartago nas Guerras Púnicas.)

Bem… Quando escrevi meus comentários sobre A Águia do Império, primeiro volume desta série, deixei registrado meu estranhamento quanto ao detalhe de que Cláudio tivesse ordenado a Vespasiano que investisse o adolescente Cato no posto de centurião – ordem essa totalmente disparatada e que, se cumprida, seria certeza de desastre para a centúria em questão e, numa batalha, poderia até afetar toda a coorte, num efeito dominó. Acontece que o Cláudio aqui retratado (pois, neste volume, ele aparece) seria perfeitamente capaz de ordenar isso. Scarrow pinta-o como um tolo completo, talvez até levemente retardado – um papel que Cláudio representava quando julgava necessário, mas que não correspondia a sua personalidade real. É ponto pacífico entre os historiadores que ele foi um governante competente, que tomou decisões sábias na administração e na justiça do Império e era estimado pelo povo, além de ter sido um intelectual de capacidades não desprezíveis, autor de vários livros de História considerados notáveis pelos acadêmicos das gerações seguintes, mas que, infelizmente, não foram preservados até nossos dias. Aqui, porém, Cláudio é retratado como um pateta vaidoso, completamente manipulado por seu homem de confiança, o liberto Narciso, e, enquanto permanece na frente de combate, por vezes dá pitacos absurdos, obrigando o general Pláucio a verdadeiros contorcionismos de retórica para salvar seu exército sem afrontar o imperador. Fiquei até as últimas páginas na expectativa de ver Cláudio, talvez em particular com Pláucio ou com Vespasiano, tirar a máscara de abobado e começar a falar com autoridade e firmeza (mesmo que continuasse a gaguejar!), mostrando-se como realmente era, mas isso não aconteceu.

Outro ponto discutível que encontrei foi numa passagem em que Cato (no exercício de suas funções administrativas na centúria) e Macro estão conversando sobre um soldado que precisou ter uma perna amputada devido a um ferimento gravíssimo em combate e que, por conta disso, seria mandado para casa tão logo recebesse alta do hospital de campanha. Não estou encontrando o trecho agora para me certificar dos detalhes (livro físico também tem suas desvantagens), mas, pelo que minha memória reteve, Macro relembra os veteranos aleijados que ele via nas ruas de Roma quando jovem, levando vidas miseráveis e dependendo da caridade alheia para sobreviver; então, para poupar seu legionário ferido desse destino, promove uma coleta entre os companheiros para que ele tenha o capital inicial para abrir um negócio, talvez fabricando calçados ou alguma outra atividade que possa exercer sentado. A questão é: todas as fontes históricas que já consultei a respeito das legiões romanas (e acreditem, foram muitas, ao longo de mais de 30 anos) são unânimes em afirmar que um legionário inválido não ficava entregue à própria sorte. Havia o aerarium militare, talvez o primeiro sistema de previdência institucionalizado e regulamentado da História, que era custeado em parte por um desconto compulsório sobre os soldos dos legionários na ativa, em parte por outras verbas provenientes de impostos e destinadas pelo governo imperial. Esse sistema garantia uma renda aos soldados inválidos ou às famílias dos que morressem. Dependendo de seu nível de educação e da qualificação profissional que possuísse, um legionário que ficasse incapacitado para lutar podia, também, ser remanejado para funções administrativas ou de apoio dentro do próprio exército ou em diferentes órgãos públicos.

Como parece ser característico da série Águias do Império, em O Voo da Águia encontramos a alternância entre partes que tratam do cotidiano dos legionários (incluindo as batalhas, é claro) e outras que envolvem política, intriga e suspense. Neste volume, há uma conspiração em andamento para assassinar Cláudio, e, como no livro anterior, Macro e Cato vão ver-se envolvidos na trama, resultando numa situação em que nenhum dos dois gostaria de estar metido, mas na qual terão que mobilizar toda a sua coragem para tentar salvar a vida do imperador. Suponho que procurar equilibrar os dois aspectos dentro da narrativa seja a aposta de Simon Scarrow para evitar que qualquer um deles se torne cansativo, e devo dizer que, na minha opinião, funciona. Suas histórias são interessantes, intensas e satisfazem plenamente o leitor interessado na Antiguidade romana. Seguirei lendo e recomendando.

quinta-feira, agosto 23, 2018

A Águia do Império

Desmontando do seu cavalo, Vespasiano desapertou a fivela no seu ombro e deixou que o seu manto de legado caísse ao chão. Um oficial de dia entregou-lhe um escudo e Vespasiano passou a mão esquerda pela correia, agarrou firmemente no suporte de ferro e desembainhou a espada curta de cabo de marfim. Endireitou-se numa postura rígida e forçou o seu caminho por entre os soldados até alcançar o centro da frente de combate. Se este era o dia destinado à sua morte, então morreria como lhe ditavam os seus antepassados e o respeito pela tradição romana: com a face virada para o inimigo e a espada na mão.

*          *          *

Trinta e três anos se passaram desde a batalha da Floresta de Teutoburgo, e vinte e poucos desde as subsequentes represálias romanas contra as tribos da Germânia. O ano é 42 d.C., o segundo do governo do imperador Cláudio, e o Reno continua a servir de fronteira entre a província romana da Germânia Menor (formada pelas atuais regiões alemãs da Baixa Saxônia, Renânia, Renânia do Norte e Hesse, mais a Holanda e as regiões francesas da Alsácia e Lorena) e a Germânia Maior, que permanecia sob o controle das tribos nativas e abrangia todo o restante do atual território alemão, além de partes da Áustria, Polônia, República Tcheca e outros países. Como fronteiras bárbaras nunca são regiões seguras, e os germanos são um povo particularmente violento, Roma mantém um olho vigilante e fortes defesas a postos contra possíveis ataques.

É nas margens do Reno que se localiza a fortaleza que serve de base à Legio II Augusta, ou Segunda Legião Augusta, uma das mais afamadas e temidas unidades do exército romano. Por esse tempo, seu comandante é o legado Tito Flávio Vespasiano, mais tarde general e depois imperador. Entre os oficiais sob seu comando está Lúcio Cornélio Macro, que foi recentemente promovido ao posto de centurião, e ainda está se adaptando ao seu novo status e responsabilidades quando se depara com uma situação inusitada. No meio de um contingente de novos recrutas vem um certo Quinto Licínio Cato, um adolescente acostumado aos livros e aparentemente sem nenhum pendor para a vida de soldado. Cato (outra forma de Catão, o que poderia sugerir que o rapaz talvez tenha algum parentesco com esse célebre clã de políticos e oradores) tem uma história curiosa. Seu pai era um escravo no palácio imperial, mas não um escravo qualquer; por alguma razão misteriosa, gozava de alta consideração por parte de mais de um imperador, tendo ganho a liberdade como presente de Tibério – mas, infelizmente para o jovem Cato, isso aconteceu pouco depois de seu nascimento: o filho de um liberto era cidadão romano de pleno direito, já o filho de um escravo era escravo também, e a subsequente libertação de seu pai não alterava esse fato. O rapaz cresceu como escravo no palácio, mas aparentemente Tibério pretendia utilizá-lo em alguma função especializada, pois providenciou para que ele recebesse uma educação primorosa. Só que Tibério morreu e, depois do curto porém terrível interlúdio que foi o principado de Calígula, Cláudio chegou ao trono. No dia em que se conhecem, Macro e Cato têm o diálogo do qual retirei este trecho:

– (Meu pai) era um escravo, senhor. – A vergonha por o dizer era evidente, mesmo perante um homem como Macro. – Antes de ser libertado por Tibério. Eu nasci pouco antes.

– Que azar. (...) Presumo que tenhas sido liberto pouco depois. O teu pai comprou-te?

– Não o deixaram, senhor. Não sei por quê, mas Tibério não o permitiu. O meu pai morreu alguns meses atrás. No seu testamento pedia que me libertassem na condição de que continuasse a servir o império. O imperador Cláudio aceitou, desde que me alistasse no exército, e por isso estou aqui.

A história de Cato é incomum do início ao fim, mas o detalhe mais surpreendente (na verdade, absurdo) vem agora: em seu alforje, o novato traz uma carta do próprio Cláudio, dirigida pessoalmente ao legado Vespasiano. A carta está lacrada e seu portador desconhece o conteúdo. Quando é entregue e aberta, descobre-se que Cláudio ordena a Vespasiano que Cato seja não só incorporado à Segunda Legião, mas investido no posto de centurião (!). Talvez a minha noção a respeito de Cláudio seja demasiado favorável por ser baseada principalmente no livro de Robert Graves, mas acho difícil crer que ele desse tal ordem; embora, por conta de seus vários problemas de saúde, ele nunca tivesse estado no exército, era um historiador, e, enquanto tal, precisava ter um razoável conhecimento (ainda que apenas teórico) sobre assuntos militares, certamente mais que o suficiente para saber que a patente de centurião é para soldados experientes, que já provaram repetidamente no campo de batalha tanto seu valor como combatentes quanto sua capacidade de liderança. Colocar o elmo com a crista transversa na cabeça de um recruta que ainda não sabe nem segurar uma espada seria condenar 80 homens à morte quase certa na primeira batalha. É impossível cumprir a ordem do imperador – mas, por ser uma ordem do imperador, também é impossível simplesmente ignorá-la, de modo que Vespasiano decide pelo meio-termo: como Macro, casualmente, acaba de perder o seu optio (pronuncia-se ópcio; assim se chamava o oficial que atuava como lugar-tenente de um centurião), o legado promove Cato a esse posto e ordena ao estupefato centurião que o treine para desempenhar as respectivas funções. O título original do livro era Under the Eagle, ou seja, 'Sob a Águia', referindo-se à águia dourada que era a mais importante insígnia de toda legião, um símbolo de sua honra, que todo legionário tinha o dever de guardar com a própria vida (mais detalhes sobre isso aqui). "Marchar sob a águia" era uma forma poética de dizer "juntar-se ou pertencer a uma legião", de modo que o título refere-se ao ingresso do jovem Cato na vida militar. As aventuras dele e de Macro, iniciadas com este volume, renderiam uma longa e bem-sucedida série.

Cato passa por maus pedaços durante seu período de adaptação à vida na legião. Acostumado a manejar penas e papiros, e a lidar com a obra dos grandes expoentes da literatura e da filosofia, ele está agora entre homens rudes, na maioria analfabetos ou quase isso, que não fazem ideia de quem foram Platão ou Virgílio e tendem a avaliar o valor de um homem pela força de seu braço e por sua capacidade de suportar esforços e sofrimentos sem se queixar… Bem, pelo menos sem se queixar muito. Nas legiões, como em qualquer exército, forjavam-se grandes amizades, pois talvez nenhuma outra experiência crie um elo tão forte entre um grupo de homens quanto a de enfrentar a morte juntos – mas, é claro, também havia valentões, e, para esses, o novato magrelo e tímido, optio ou não, é presa fácil. Cato, entretanto, acaba demonstrando ser feito de um material mais resistente do que parecia a princípio. Não fica a dever nada em força de vontade a nenhum de seus companheiros e mostra-se mais astuto que a maioria, ainda que por vezes seja traído por sua ingenuidade adolescente. Durante uma insurreição numa aldeia germânica perto da fortaleza da Augusta, salva a vida de Macro – e, como o centurião sai do episódio com um ferimento grave, que vai exigir tempo para sua recuperação, o fardo de comandar a centúria durante os meses seguintes cai sobre os ombros do jovem optio. Como se isso não fosse o suficiente para mantê-lo ocupado, Cato ainda assume a tarefa de ensinar a seu comandante os segredos das letras: Macro é quase analfabeto, um segredo que ele guarda a sete chaves, já que, caso se tornasse conhecido, ele seria rebaixado de posto – esperava-se que os centuriões soubessem ler e escrever, pois, além do comando em si, tinham responsabilidades administrativas. Com a ajuda de Cato, Macro espera conseguir alfabetizar-se o suficiente e a tempo, antes que algum de seus superiores descubra a verdade.

Como dissemos, o ano desses eventos é o segundo do principado de Cláudio, que ocupou o trono após o assassinato de seu sobrinho, Calígula, e logo nos primeiros tempos de seu governo precisou lidar com uma tentativa de golpe de estado orquestrada por Escriboniano, um legado da Dalmácia. O fato de Cláudio ter vencido a rebelião surpreendeu a muitos, já que ele sempre tivera fama de débil mental e tinha sido colocado no trono para ser um mero fantoche – mas acabou demonstrando inesperada capacidade. Ainda assim, sua posição ainda não era muito firme nos dias em que está ambientada esta história, e Cláudio precisava realizar feitos relevantes para ganhar o respeito da população em Roma e, tão ou mais importante que isso, do exército. Essa necessidade foi um dos principais fatores a determinar a invasão da Britânia, que aconteceu no ano 43, e a narrativa de Simon Scarrow segue a História à risca nesse ponto. Júlio César havia tentado por duas vezes, quase um século antes, sendo bem-sucedido na segunda, mas tal invasão tivera por objetivos principalmente punir os bretões por terem apoiado os gauleses contra Roma durante as Guerras Gálicas e aumentar o prestígio pessoal de César, e não resultou num domínio efetivo de Roma sobre as Ilhas Britânicas; durante esse intervalo de 90 e poucos anos, houve relações diplomáticas intermitentes entre os romanos e as tribos locais. Como sempre acontecia, algumas dessas tribos haviam-se aliado voluntariamente a Roma, atraídas pelas vantagens econômicas, sociais e políticas que isso oferecia, enquanto outras prezavam por sua independência e certamente oporiam uma obstinada resistência. A verdadeira conquista da Britânia, aquela que faria dela, em definitivo, uma província romana, aconteceu sob o governo de Cláudio… e, entre as legiões destacadas para compor a força de invasão, estava a Segunda Augusta. Assim, em A Águia do Império temos oportunidade de acompanhar Macro, Cato e seus companheiros na longa marcha desde as margens do Reno até as praias do norte da Gália, de onde partirá a frota invasora. Porém, a dura jornada e os tensos momentos de combate não são tudo na trama: há também fartas doses de intriga, na qual nossos heróis são enredados de forma alheia à sua vontade. Um dos tribunos da Augusta, na verdade o mais graduado deles, é um certo Vitélio, um aristocrata ambicioso que, nos anos seguintes, cultivaria estreitas relações com a casa imperial, ganhando as boas graças da imperatriz Agripina e, mais tarde, fazendo parte do círculo íntimo do filho dela – o ególatra e amalucado Nero, enteado de Cláudio, que ocuparia o trono depois dele. Com a morte de Nero, em 68, Roma mergulharia no período conturbado que ficaria conhecido como o "Ano dos Quatro Imperadores", durante o qual sucederam-se no trono Galba (que durou seis meses), Oto (três) e Vitélio (oito), cujo desastroso principado terminaria com uma revolta na qual ele seria apedrejado pelo povo e sucedido por Vespasiano, que restauraria a ordem e faria um governo próspero de dez anos; foi o primeiro imperador de uma nova dinastia, a dos Flávios. Entre outras coisas, Vespasiano iniciou a construção do grande Anfiteatro Flaviano, hoje mais conhecido como Coliseu, que seria concluída por seu filho e sucessor, Tito. Por falar nisso, Tito também aparece neste livro, ainda quase uma criança de colo, muito vivo e travesso.

Portanto, Vespasiano, no seu posto de legado da Segunda Augusta, tem Vitélio como seu subordinado imediato, e, sob a superfície de disciplina militar impecável e de relacionamento cortês em nível pessoal, os dois estão bem cientes, já nessa época, de que são rivais – mas, como reflete Vespasiano, ninguém sabe o dia de amanhã, e esse velho ditado é ainda mais verdadeiro quando se trata de política: mais tarde os dois poderão estar em lados opostos de uma disputa feroz, ou pode ser que acabem precisando se aliar. Ainda não há como saber, e, por isso, ele precisa ser muito cuidadoso em seu trato com o jovem oficial. Para deixar tudo ainda mais complicado, o imperador Cláudio envia seu braço-direito, um tal Narciso, para supervisionar a invasão, além de tratar de outros assuntos mais secretos. Narciso é um bocado arrogante, o que se torna ainda pior aos olhos de um homem como Vespasiano pelo fato de tratar-se de um liberto, isto é, um ex-escravo, que não tinha o direito de colocar-se no mesmo nível que um cidadão romano – mas Narciso sabe que sua condição de enviado imperial lhe confere certas prerrogativas, e por isso toma atitudes que, em mais de um momento, deixam o legado fulo… mas sem condições de fazer nada a respeito. O que eu não compreendi foi por que Cláudio não concedeu cidadania a Narciso, pois esse era um poder que o imperador tinha, e que ele exerceu para com o humilde jovem Cato, que, afinal, também é um liberto, e não poderia tornar-se um legionário sem antes ser cidadão. Ou talvez Cláudio tivesse, sim, concedido cidadania a Narciso, mas mesmo assim o estigma social permanecesse… mas, neste caso, seria uma boa ideia deixar isso explícito em algum momento.

O pano de fundo histórico é fascinante, mas o que realmente cativa o leitor é o primeiro encontro de Macro e Cato, destinados a ainda passarem por muita coisa juntos. Embora a sinopse da contracapa (nesta edição da Saída de Emergência) descreva Macro como "o mais experiente e destemido de todos os centuriões", dentro do livro o personagem não é assim: como eu disse acima, Macro tornou-se centurião há pouco tempo – possui experiência como soldado, mas é novo no "negócio" de ser um oficial. É um homem duro e corajoso, sem dúvida, mas não especialmente esperto (como ele mesmo reconhece numa passagem) e por vezes tem momentos de indecisão e insegurança. Cato, por outro lado, mesmo inexperiente e, no começo, totalmente cru quando o assunto é a vida militar, tem uma mente afiada e sua ajuda é valiosa. A complementaridade entre os dois se estabelece naturalmente, junto com uma amizade que combina a relação de mestre e discípulo (com os dois se alternando nesses papéis), admiração mútua e uma certa afeição de pai e filho "postiços". Perto do final do livro, quando a legião enfrenta os bretões, toda a coragem de Cato vem à tona, ao mesmo tempo que ele se sente, pela primeira vez, verdadeiramente parte da Augusta. Se o leitor ainda conservava alguma dúvida de que o rapaz tem dentro de si aquilo que faz de alguém um legionário, ela é dirimida nesse ponto.

A Águia do Império é uma leitura empolgante para fãs de ficção histórica como eu – e de modo especial para os fascinados pelas legiões. Está, facilmente, no mesmo nível que a Trilogia das Águias, de Ben Kane. Aliás, o autor, Simon Scarrow, parece ter muito em comum com Kane além do tema sobre o qual gosta de escrever: ambos nasceram na África (Kane no Quênia, Scarrow na Nigéria), mas possuem cidadania britânica e vivem hoje na Inglaterra. Como este é apenas o primeiro volume da série, a tendência é que os próximos sejam ainda mais interessantes. Pretendo conferir em breve, e sem dúvida trarei os volumes seguintes para o blog, logo que os tenha lido.