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Trinta e três anos se passaram desde a batalha da Floresta de Teutoburgo, e vinte e poucos desde as subsequentes represálias romanas contra as tribos da Germânia. O ano é 42 d.C., o segundo do governo do imperador Cláudio, e o Reno continua a servir de fronteira entre a província romana da Germânia Menor (formada pelas atuais regiões alemãs da Baixa Saxônia, Renânia, Renânia do Norte e Hesse, mais a Holanda e as regiões francesas da Alsácia e Lorena) e a Germânia Maior, que permanecia sob o controle das tribos nativas e abrangia todo o restante do atual território alemão, além de partes da Áustria, Polônia, República Tcheca e outros países. Como fronteiras bárbaras nunca são regiões seguras, e os germanos são um povo particularmente violento, Roma mantém um olho vigilante e fortes defesas a postos contra possíveis ataques.
É nas margens do Reno que se localiza a fortaleza que serve de base à Legio II Augusta, ou Segunda Legião Augusta, uma das mais afamadas e temidas unidades do exército romano. Por esse tempo, seu comandante é o legado Tito Flávio Vespasiano, mais tarde general e depois imperador. Entre os oficiais sob seu comando está Lúcio Cornélio Macro, que foi recentemente promovido ao posto de centurião, e ainda está se adaptando ao seu novo status e responsabilidades quando se depara com uma situação inusitada. No meio de um contingente de novos recrutas vem um certo Quinto Licínio Cato, um adolescente acostumado aos livros e aparentemente sem nenhum pendor para a vida de soldado. Cato (outra forma de Catão, o que poderia sugerir que o rapaz talvez tenha algum parentesco com esse célebre clã de políticos e oradores) tem uma história curiosa. Seu pai era um escravo no palácio imperial, mas não um escravo qualquer; por alguma razão misteriosa, gozava de alta consideração por parte de mais de um imperador, tendo ganho a liberdade como presente de Tibério – mas, infelizmente para o jovem Cato, isso aconteceu pouco depois de seu nascimento: o filho de um liberto era cidadão romano de pleno direito, já o filho de um escravo era escravo também, e a subsequente libertação de seu pai não alterava esse fato. O rapaz cresceu como escravo no palácio, mas aparentemente Tibério pretendia utilizá-lo em alguma função especializada, pois providenciou para que ele recebesse uma educação primorosa. Só que Tibério morreu e, depois do curto porém terrível interlúdio que foi o principado de Calígula, Cláudio chegou ao trono. No dia em que se conhecem, Macro e Cato têm o diálogo do qual retirei este trecho:
– (Meu pai) era um escravo, senhor. – A vergonha por o dizer era evidente, mesmo perante um homem como Macro. – Antes de ser libertado por Tibério. Eu nasci pouco antes.
– Que azar. (...) Presumo que tenhas sido liberto pouco depois. O teu pai comprou-te?
– Não o deixaram, senhor. Não sei por quê, mas Tibério não o permitiu. O meu pai morreu alguns meses atrás. No seu testamento pedia que me libertassem na condição de que continuasse a servir o império. O imperador Cláudio aceitou, desde que me alistasse no exército, e por isso estou aqui.
Cato passa por maus pedaços durante seu período de adaptação à vida na legião. Acostumado a manejar penas e papiros, e a lidar com a obra dos grandes expoentes da literatura e da filosofia, ele está agora entre homens rudes, na maioria analfabetos ou quase isso, que não fazem ideia de quem foram Platão ou Virgílio e tendem a avaliar o valor de um homem pela força de seu braço e por sua capacidade de suportar esforços e sofrimentos sem se queixar… Bem, pelo menos sem se queixar muito. Nas legiões, como em qualquer exército, forjavam-se grandes amizades, pois talvez nenhuma outra experiência crie um elo tão forte entre um grupo de homens quanto a de enfrentar a morte juntos – mas, é claro, também havia valentões, e, para esses, o novato magrelo e tímido, optio ou não, é presa fácil. Cato, entretanto, acaba demonstrando ser feito de um material mais resistente do que parecia a princípio. Não fica a dever nada em força de vontade a nenhum de seus companheiros e mostra-se mais astuto que a maioria, ainda que por vezes seja traído por sua ingenuidade adolescente. Durante uma insurreição numa aldeia germânica perto da fortaleza da Augusta, salva a vida de Macro – e, como o centurião sai do episódio com um ferimento grave, que vai exigir tempo para sua recuperação, o fardo de comandar a centúria durante os meses seguintes cai sobre os ombros do jovem optio. Como se isso não fosse o suficiente para mantê-lo ocupado, Cato ainda assume a tarefa de ensinar a seu comandante os segredos das letras: Macro é quase analfabeto, um segredo que ele guarda a sete chaves, já que, caso se tornasse conhecido, ele seria rebaixado de posto – esperava-se que os centuriões soubessem ler e escrever, pois, além do comando em si, tinham responsabilidades administrativas. Com a ajuda de Cato, Macro espera conseguir alfabetizar-se o suficiente e a tempo, antes que algum de seus superiores descubra a verdade.
Como dissemos, o ano desses eventos é o segundo do principado de Cláudio, que ocupou o trono após o assassinato de seu sobrinho, Calígula, e logo nos primeiros tempos de seu governo precisou lidar com uma tentativa de golpe de estado orquestrada por Escriboniano, um legado da Dalmácia. O fato de Cláudio ter vencido a rebelião surpreendeu a muitos, já que ele sempre tivera fama de débil mental e tinha sido colocado no trono para ser um mero fantoche – mas acabou demonstrando inesperada capacidade. Ainda assim, sua posição ainda não era muito firme nos dias em que está ambientada esta história, e Cláudio precisava realizar feitos relevantes para ganhar o respeito da população em Roma e, tão ou mais importante que isso, do exército. Essa necessidade foi um dos principais fatores a determinar a invasão da Britânia, que aconteceu no ano 43, e a narrativa de Simon Scarrow segue a História à risca nesse ponto. Júlio César havia tentado por duas vezes, quase um século antes, sendo bem-sucedido na segunda, mas tal invasão tivera por objetivos principalmente punir os bretões por terem apoiado os gauleses contra Roma durante as Guerras Gálicas e aumentar o prestígio pessoal de César, e não resultou num domínio efetivo de Roma sobre as Ilhas Britânicas; durante esse intervalo de 90 e poucos anos, houve relações diplomáticas intermitentes entre os romanos e as tribos locais. Como sempre acontecia, algumas dessas tribos haviam-se aliado voluntariamente a Roma, atraídas pelas vantagens econômicas, sociais e políticas que isso oferecia, enquanto outras prezavam por sua independência e certamente oporiam uma obstinada resistência. A verdadeira conquista da Britânia, aquela que faria dela, em definitivo, uma província romana, aconteceu sob o governo de Cláudio… e, entre as legiões destacadas para compor a força de invasão, estava a Segunda Augusta. Assim, em A Águia do Império temos oportunidade de acompanhar Macro, Cato e seus companheiros na longa marcha desde as margens do Reno até as praias do norte da Gália, de onde partirá a frota invasora. Porém, a dura jornada e os tensos momentos de combate não são tudo na trama: há também fartas doses de intriga, na qual nossos heróis são enredados de forma alheia à sua vontade. Um dos tribunos da Augusta, na verdade o mais graduado deles, é um certo Vitélio, um aristocrata ambicioso que, nos anos seguintes, cultivaria estreitas relações com a casa imperial, ganhando as boas graças da imperatriz Agripina e, mais tarde, fazendo parte do círculo íntimo do filho dela – o ególatra e amalucado Nero, enteado de Cláudio, que ocuparia o trono depois dele. Com a morte de Nero, em 68, Roma mergulharia no período conturbado que ficaria conhecido como o "Ano dos Quatro Imperadores", durante o qual sucederam-se no trono Galba (que durou seis meses), Oto (três) e Vitélio (oito), cujo desastroso principado terminaria com uma revolta na qual ele seria apedrejado pelo povo e sucedido por Vespasiano, que restauraria a ordem e faria um governo próspero de dez anos; foi o primeiro imperador de uma nova dinastia, a dos Flávios. Entre outras coisas, Vespasiano iniciou a construção do grande Anfiteatro Flaviano, hoje mais conhecido como Coliseu, que seria concluída por seu filho e sucessor, Tito. Por falar nisso, Tito também aparece neste livro, ainda quase uma criança de colo, muito vivo e travesso.
O pano de fundo histórico é fascinante, mas o que realmente cativa o leitor é o primeiro encontro de Macro e Cato, destinados a ainda passarem por muita coisa juntos. Embora a sinopse da contracapa (nesta edição da Saída de Emergência) descreva Macro como "o mais experiente e destemido de todos os centuriões", dentro do livro o personagem não é assim: como eu disse acima, Macro tornou-se centurião há pouco tempo – possui experiência como soldado, mas é novo no "negócio" de ser um oficial. É um homem duro e corajoso, sem dúvida, mas não especialmente esperto (como ele mesmo reconhece numa passagem) e por vezes tem momentos de indecisão e insegurança. Cato, por outro lado, mesmo inexperiente e, no começo, totalmente cru quando o assunto é a vida militar, tem uma mente afiada e sua ajuda é valiosa. A complementaridade entre os dois se estabelece naturalmente, junto com uma amizade que combina a relação de mestre e discípulo (com os dois se alternando nesses papéis), admiração mútua e uma certa afeição de pai e filho "postiços". Perto do final do livro, quando a legião enfrenta os bretões, toda a coragem de Cato vem à tona, ao mesmo tempo que ele se sente, pela primeira vez, verdadeiramente parte da Augusta. Se o leitor ainda conservava alguma dúvida de que o rapaz tem dentro de si aquilo que faz de alguém um legionário, ela é dirimida nesse ponto.
A Águia do Império é uma leitura empolgante para fãs de ficção histórica como eu – e de modo especial para os fascinados pelas legiões. Está, facilmente, no mesmo nível que a Trilogia das Águias, de Ben Kane. Aliás, o autor, Simon Scarrow, parece ter muito em comum com Kane além do tema sobre o qual gosta de escrever: ambos nasceram na África (Kane no Quênia, Scarrow na Nigéria), mas possuem cidadania britânica e vivem hoje na Inglaterra. Como este é apenas o primeiro volume da série, a tendência é que os próximos sejam ainda mais interessantes. Pretendo conferir em breve, e sem dúvida trarei os volumes seguintes para o blog, logo que os tenha lido.
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