quinta-feira, agosto 23, 2018

A Águia do Império

Desmontando do seu cavalo, Vespasiano desapertou a fivela no seu ombro e deixou que o seu manto de legado caísse ao chão. Um oficial de dia entregou-lhe um escudo e Vespasiano passou a mão esquerda pela correia, agarrou firmemente no suporte de ferro e desembainhou a espada curta de cabo de marfim. Endireitou-se numa postura rígida e forçou o seu caminho por entre os soldados até alcançar o centro da frente de combate. Se este era o dia destinado à sua morte, então morreria como lhe ditavam os seus antepassados e o respeito pela tradição romana: com a face virada para o inimigo e a espada na mão.

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Trinta e três anos se passaram desde a batalha da Floresta de Teutoburgo, e vinte e poucos desde as subsequentes represálias romanas contra as tribos da Germânia. O ano é 42 d.C., o segundo do governo do imperador Cláudio, e o Reno continua a servir de fronteira entre a província romana da Germânia Menor (formada pelas atuais regiões alemãs da Baixa Saxônia, Renânia, Renânia do Norte e Hesse, mais a Holanda e as regiões francesas da Alsácia e Lorena) e a Germânia Maior, que permanecia sob o controle das tribos nativas e abrangia todo o restante do atual território alemão, além de partes da Áustria, Polônia, República Tcheca e outros países. Como fronteiras bárbaras nunca são regiões seguras, e os germanos são um povo particularmente violento, Roma mantém um olho vigilante e fortes defesas a postos contra possíveis ataques.

É nas margens do Reno que se localiza a fortaleza que serve de base à Legio II Augusta, ou Segunda Legião Augusta, uma das mais afamadas e temidas unidades do exército romano. Por esse tempo, seu comandante é o legado Tito Flávio Vespasiano, mais tarde general e depois imperador. Entre os oficiais sob seu comando está Lúcio Cornélio Macro, que foi recentemente promovido ao posto de centurião, e ainda está se adaptando ao seu novo status e responsabilidades quando se depara com uma situação inusitada. No meio de um contingente de novos recrutas vem um certo Quinto Licínio Cato, um adolescente acostumado aos livros e aparentemente sem nenhum pendor para a vida de soldado. Cato (outra forma de Catão, o que poderia sugerir que o rapaz talvez tenha algum parentesco com esse célebre clã de políticos e oradores) tem uma história curiosa. Seu pai era um escravo no palácio imperial, mas não um escravo qualquer; por alguma razão misteriosa, gozava de alta consideração por parte de mais de um imperador, tendo ganho a liberdade como presente de Tibério – mas, infelizmente para o jovem Cato, isso aconteceu pouco depois de seu nascimento: o filho de um liberto era cidadão romano de pleno direito, já o filho de um escravo era escravo também, e a subsequente libertação de seu pai não alterava esse fato. O rapaz cresceu como escravo no palácio, mas aparentemente Tibério pretendia utilizá-lo em alguma função especializada, pois providenciou para que ele recebesse uma educação primorosa. Só que Tibério morreu e, depois do curto porém terrível interlúdio que foi o principado de Calígula, Cláudio chegou ao trono. No dia em que se conhecem, Macro e Cato têm o diálogo do qual retirei este trecho:

– (Meu pai) era um escravo, senhor. – A vergonha por o dizer era evidente, mesmo perante um homem como Macro. – Antes de ser libertado por Tibério. Eu nasci pouco antes.

– Que azar. (...) Presumo que tenhas sido liberto pouco depois. O teu pai comprou-te?

– Não o deixaram, senhor. Não sei por quê, mas Tibério não o permitiu. O meu pai morreu alguns meses atrás. No seu testamento pedia que me libertassem na condição de que continuasse a servir o império. O imperador Cláudio aceitou, desde que me alistasse no exército, e por isso estou aqui.

A história de Cato é incomum do início ao fim, mas o detalhe mais surpreendente (na verdade, absurdo) vem agora: em seu alforje, o novato traz uma carta do próprio Cláudio, dirigida pessoalmente ao legado Vespasiano. A carta está lacrada e seu portador desconhece o conteúdo. Quando é entregue e aberta, descobre-se que Cláudio ordena a Vespasiano que Cato seja não só incorporado à Segunda Legião, mas investido no posto de centurião (!). Talvez a minha noção a respeito de Cláudio seja demasiado favorável por ser baseada principalmente no livro de Robert Graves, mas acho difícil crer que ele desse tal ordem; embora, por conta de seus vários problemas de saúde, ele nunca tivesse estado no exército, era um historiador, e, enquanto tal, precisava ter um razoável conhecimento (ainda que apenas teórico) sobre assuntos militares, certamente mais que o suficiente para saber que a patente de centurião é para soldados experientes, que já provaram repetidamente no campo de batalha tanto seu valor como combatentes quanto sua capacidade de liderança. Colocar o elmo com a crista transversa na cabeça de um recruta que ainda não sabe nem segurar uma espada seria condenar 80 homens à morte quase certa na primeira batalha. É impossível cumprir a ordem do imperador – mas, por ser uma ordem do imperador, também é impossível simplesmente ignorá-la, de modo que Vespasiano decide pelo meio-termo: como Macro, casualmente, acaba de perder o seu optio (pronuncia-se ópcio; assim se chamava o oficial que atuava como lugar-tenente de um centurião), o legado promove Cato a esse posto e ordena ao estupefato centurião que o treine para desempenhar as respectivas funções. O título original do livro era Under the Eagle, ou seja, 'Sob a Águia', referindo-se à águia dourada que era a mais importante insígnia de toda legião, um símbolo de sua honra, que todo legionário tinha o dever de guardar com a própria vida (mais detalhes sobre isso aqui). "Marchar sob a águia" era uma forma poética de dizer "juntar-se ou pertencer a uma legião", de modo que o título refere-se ao ingresso do jovem Cato na vida militar. As aventuras dele e de Macro, iniciadas com este volume, renderiam uma longa e bem-sucedida série.

Cato passa por maus pedaços durante seu período de adaptação à vida na legião. Acostumado a manejar penas e papiros, e a lidar com a obra dos grandes expoentes da literatura e da filosofia, ele está agora entre homens rudes, na maioria analfabetos ou quase isso, que não fazem ideia de quem foram Platão ou Virgílio e tendem a avaliar o valor de um homem pela força de seu braço e por sua capacidade de suportar esforços e sofrimentos sem se queixar… Bem, pelo menos sem se queixar muito. Nas legiões, como em qualquer exército, forjavam-se grandes amizades, pois talvez nenhuma outra experiência crie um elo tão forte entre um grupo de homens quanto a de enfrentar a morte juntos – mas, é claro, também havia valentões, e, para esses, o novato magrelo e tímido, optio ou não, é presa fácil. Cato, entretanto, acaba demonstrando ser feito de um material mais resistente do que parecia a princípio. Não fica a dever nada em força de vontade a nenhum de seus companheiros e mostra-se mais astuto que a maioria, ainda que por vezes seja traído por sua ingenuidade adolescente. Durante uma insurreição numa aldeia germânica perto da fortaleza da Augusta, salva a vida de Macro – e, como o centurião sai do episódio com um ferimento grave, que vai exigir tempo para sua recuperação, o fardo de comandar a centúria durante os meses seguintes cai sobre os ombros do jovem optio. Como se isso não fosse o suficiente para mantê-lo ocupado, Cato ainda assume a tarefa de ensinar a seu comandante os segredos das letras: Macro é quase analfabeto, um segredo que ele guarda a sete chaves, já que, caso se tornasse conhecido, ele seria rebaixado de posto – esperava-se que os centuriões soubessem ler e escrever, pois, além do comando em si, tinham responsabilidades administrativas. Com a ajuda de Cato, Macro espera conseguir alfabetizar-se o suficiente e a tempo, antes que algum de seus superiores descubra a verdade.

Como dissemos, o ano desses eventos é o segundo do principado de Cláudio, que ocupou o trono após o assassinato de seu sobrinho, Calígula, e logo nos primeiros tempos de seu governo precisou lidar com uma tentativa de golpe de estado orquestrada por Escriboniano, um legado da Dalmácia. O fato de Cláudio ter vencido a rebelião surpreendeu a muitos, já que ele sempre tivera fama de débil mental e tinha sido colocado no trono para ser um mero fantoche – mas acabou demonstrando inesperada capacidade. Ainda assim, sua posição ainda não era muito firme nos dias em que está ambientada esta história, e Cláudio precisava realizar feitos relevantes para ganhar o respeito da população em Roma e, tão ou mais importante que isso, do exército. Essa necessidade foi um dos principais fatores a determinar a invasão da Britânia, que aconteceu no ano 43, e a narrativa de Simon Scarrow segue a História à risca nesse ponto. Júlio César havia tentado por duas vezes, quase um século antes, sendo bem-sucedido na segunda, mas tal invasão tivera por objetivos principalmente punir os bretões por terem apoiado os gauleses contra Roma durante as Guerras Gálicas e aumentar o prestígio pessoal de César, e não resultou num domínio efetivo de Roma sobre as Ilhas Britânicas; durante esse intervalo de 90 e poucos anos, houve relações diplomáticas intermitentes entre os romanos e as tribos locais. Como sempre acontecia, algumas dessas tribos haviam-se aliado voluntariamente a Roma, atraídas pelas vantagens econômicas, sociais e políticas que isso oferecia, enquanto outras prezavam por sua independência e certamente oporiam uma obstinada resistência. A verdadeira conquista da Britânia, aquela que faria dela, em definitivo, uma província romana, aconteceu sob o governo de Cláudio… e, entre as legiões destacadas para compor a força de invasão, estava a Segunda Augusta. Assim, em A Águia do Império temos oportunidade de acompanhar Macro, Cato e seus companheiros na longa marcha desde as margens do Reno até as praias do norte da Gália, de onde partirá a frota invasora. Porém, a dura jornada e os tensos momentos de combate não são tudo na trama: há também fartas doses de intriga, na qual nossos heróis são enredados de forma alheia à sua vontade. Um dos tribunos da Augusta, na verdade o mais graduado deles, é um certo Vitélio, um aristocrata ambicioso que, nos anos seguintes, cultivaria estreitas relações com a casa imperial, ganhando as boas graças da imperatriz Agripina e, mais tarde, fazendo parte do círculo íntimo do filho dela – o ególatra e amalucado Nero, enteado de Cláudio, que ocuparia o trono depois dele. Com a morte de Nero, em 68, Roma mergulharia no período conturbado que ficaria conhecido como o "Ano dos Quatro Imperadores", durante o qual sucederam-se no trono Galba (que durou seis meses), Oto (três) e Vitélio (oito), cujo desastroso principado terminaria com uma revolta na qual ele seria apedrejado pelo povo e sucedido por Vespasiano, que restauraria a ordem e faria um governo próspero de dez anos; foi o primeiro imperador de uma nova dinastia, a dos Flávios. Entre outras coisas, Vespasiano iniciou a construção do grande Anfiteatro Flaviano, hoje mais conhecido como Coliseu, que seria concluída por seu filho e sucessor, Tito. Por falar nisso, Tito também aparece neste livro, ainda quase uma criança de colo, muito vivo e travesso.

Portanto, Vespasiano, no seu posto de legado da Segunda Augusta, tem Vitélio como seu subordinado imediato, e, sob a superfície de disciplina militar impecável e de relacionamento cortês em nível pessoal, os dois estão bem cientes, já nessa época, de que são rivais – mas, como reflete Vespasiano, ninguém sabe o dia de amanhã, e esse velho ditado é ainda mais verdadeiro quando se trata de política: mais tarde os dois poderão estar em lados opostos de uma disputa feroz, ou pode ser que acabem precisando se aliar. Ainda não há como saber, e, por isso, ele precisa ser muito cuidadoso em seu trato com o jovem oficial. Para deixar tudo ainda mais complicado, o imperador Cláudio envia seu braço-direito, um tal Narciso, para supervisionar a invasão, além de tratar de outros assuntos mais secretos. Narciso é um bocado arrogante, o que se torna ainda pior aos olhos de um homem como Vespasiano pelo fato de tratar-se de um liberto, isto é, um ex-escravo, que não tinha o direito de colocar-se no mesmo nível que um cidadão romano – mas Narciso sabe que sua condição de enviado imperial lhe confere certas prerrogativas, e por isso toma atitudes que, em mais de um momento, deixam o legado fulo… mas sem condições de fazer nada a respeito. O que eu não compreendi foi por que Cláudio não concedeu cidadania a Narciso, pois esse era um poder que o imperador tinha, e que ele exerceu para com o humilde jovem Cato, que, afinal, também é um liberto, e não poderia tornar-se um legionário sem antes ser cidadão. Ou talvez Cláudio tivesse, sim, concedido cidadania a Narciso, mas mesmo assim o estigma social permanecesse… mas, neste caso, seria uma boa ideia deixar isso explícito em algum momento.

O pano de fundo histórico é fascinante, mas o que realmente cativa o leitor é o primeiro encontro de Macro e Cato, destinados a ainda passarem por muita coisa juntos. Embora a sinopse da contracapa (nesta edição da Saída de Emergência) descreva Macro como "o mais experiente e destemido de todos os centuriões", dentro do livro o personagem não é assim: como eu disse acima, Macro tornou-se centurião há pouco tempo – possui experiência como soldado, mas é novo no "negócio" de ser um oficial. É um homem duro e corajoso, sem dúvida, mas não especialmente esperto (como ele mesmo reconhece numa passagem) e por vezes tem momentos de indecisão e insegurança. Cato, por outro lado, mesmo inexperiente e, no começo, totalmente cru quando o assunto é a vida militar, tem uma mente afiada e sua ajuda é valiosa. A complementaridade entre os dois se estabelece naturalmente, junto com uma amizade que combina a relação de mestre e discípulo (com os dois se alternando nesses papéis), admiração mútua e uma certa afeição de pai e filho "postiços". Perto do final do livro, quando a legião enfrenta os bretões, toda a coragem de Cato vem à tona, ao mesmo tempo que ele se sente, pela primeira vez, verdadeiramente parte da Augusta. Se o leitor ainda conservava alguma dúvida de que o rapaz tem dentro de si aquilo que faz de alguém um legionário, ela é dirimida nesse ponto.

A Águia do Império é uma leitura empolgante para fãs de ficção histórica como eu – e de modo especial para os fascinados pelas legiões. Está, facilmente, no mesmo nível que a Trilogia das Águias, de Ben Kane. Aliás, o autor, Simon Scarrow, parece ter muito em comum com Kane além do tema sobre o qual gosta de escrever: ambos nasceram na África (Kane no Quênia, Scarrow na Nigéria), mas possuem cidadania britânica e vivem hoje na Inglaterra. Como este é apenas o primeiro volume da série, a tendência é que os próximos sejam ainda mais interessantes. Pretendo conferir em breve, e sem dúvida trarei os volumes seguintes para o blog, logo que os tenha lido.

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