Mostrando postagens com marcador modernidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador modernidade. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, novembro 22, 2021

O Ano em que a Terra Parou

Seguidor

Acalme-se e preste atenção
Faça o que disserem,
o que todos os outros fazem.
Vende seus olhos e pule de cabeça
Não questione, não pense
Não exista.

A verdade é real demais para você.
Ela estraga a imagem, não é?
Não queira acreditar, não queira ver,
pois a realidade é o inimigo.

Um cenário nascido de
imagens censuradas na TV
Um mundo construído a partir
de uma realidade censurada.

É tão simples apenas entrar na linha
Faça o que disserem,
o que todos os outros fazem.
Não conserte o que está errado,
apenas faça brilhar o que é legal.
Não questione, não pense
Nem mesmo abra a boca.

Cada história cortada para caber
na tela e nos olhos do público
Transformada para caber
na sua mente pequena e frágil.

É longe demais...

Certeza inquestionável,
uma fé cega na autoridade
e uma confiança que vai
mantê-lo subjugado.

É longe demais... 


                                        Machinae Supremacy
                                        Follower
                                        Álbum: Arcade (2003)

  *       *       *

Este blog sempre foi muito mais voltado para a literatura de ficção, e, embora algumas obras de não-ficção tenham eventualmente ganho espaço (como O Culto do Amador, de Andrew Keen, e, mais recentemente, os Manuais Politicamente Incorretos), procuro comentar temas ligados a política e sociedade apenas quando eles se imiscuem na literatura – o que inevitavelmente acontece: a coisa mais magnífica a respeito da literatura é sua capacidade de retratar (e transformar em objeto de reflexão) todo e qualquer aspecto da experiência humana, de modo que esses não seriam exceções. De qualquer forma, há momentos em que um tema se impõe, e assim foi com O Ano em que a Terra Parou, livro que praticamente me atropelou e me manteve num estado reflexivo durante vários dias. Preciso esclarecer, a priori, que meu conhecimento sobre os temas tratados pelo autor Luciano Trigo não é profundo, e estou ciente disso; na verdade, vai pouco além daquilo que qualquer pessoa minimamente bem informada e sem antolhos presos na cara pode ver todos os dias nesses tempos estranhos e ruins que atravessamos, mas concluí que escrever a respeito desse livro será bom para mim, porque me ajudará a organizar as ideias. É inevitável que em algum momento eu escreva alguma bobagem e/ou acredite ter entendido algo que, na verdade, é muito diferente de como eu imagino; tudo o que posso dizer em minha defesa é que mesmo esses tropeços terão sido motivados por um esforço sincero para entender uma realidade muito, muito confusa. Caso meus estudos posteriores me façam identificar algum erro, volto e corrijo. E, se por acaso alguém ler este post e se beneficiar de algum ponto dele, ou eventualmente chegar a ler o livro por causa do que vou dizer, melhor ainda.

Quem lê o título O Ano em que a Terra Parou pensa, é claro, em 2020, quando a explosão da pandemia de COVID-19 e suas consequências viraram de pernas para o ar a vida da maioria das pessoas em todos os países, e, de fato, o assunto é tratado nestas páginas, mas não é o assunto principal do livro, e também não será o meu aqui, pois não quero deixar o texto exageradamente longo e há outros pontos abordados por Trigo sobre os quais tenho bem mais a dizer. O subtítulo, Polarização da política e a escalada da insanidade, dá uma ideia de quais são. O livro, publicado no início de 2021, é baseado em vários artigos sobre política e sociedade que o autor escreveu ao longo do ano anterior.

Vivemos tempos muito estranhos, mas não dá para dizer que não fomos avisados. George Orwell, em seu 1984 (cuja primeira edição é de 1949) previu uma sociedade na qual a simples constatação da realidade não seria mais permitida: nela, as coisas só teriam permissão de existir, ou de ser desta ou daquela forma, com a condição de se coadunarem com a ideologia dominante – e é exatamente o que acontece hoje. A diferença é que o mundo previsto por Orwell era mais sincero: a ideologia era imposta, na maior parte das vezes, de maneira franca, por meio de uma repressão violenta de qualquer visão discordante. Hoje, por outro lado, o que vemos é uma miríade de grupos e movimentos que invariavelmente apregoam defender a liberdade, o respeito, a democracia e o amor – e, em nome da liberdade, do respeito, da democracia e do amor estão sempre prontos a lançar ataques virulentos e covardes contra qualquer um que discorde deles, ou que simplesmente não seja como eles acham que deveria ser. Movimentos que afirmam defender a dignidade dos negros, na verdade só estimulam o ódio contra os brancos. O feminismo há muito tempo que deixou de lutar por igualdade de direitos para as mulheres (se é que esse já foi alguma vez seu objetivo); hoje só faz reclamar por privilégios e, talvez mais importante, tentar desmoralizar os homens e ensinar o maior número possível de garotas a odiá-los (dando lugar, entre outras coisas, ao curioso fenômeno das adolescentes ou jovens universitárias que dedicam seus dias a entupir as redes sociais com frases feitas de apelo misândrico como "morte ao pênis" e "abaixo o patriarcado", usando o smartphone que ganharam do papai). Grupos "LGBT" propagam (em geral de forma velada, mas às vezes nem se dão ao trabalho) que heterossexuais são escória. De tudo isso se conclui que, se você é homem, branco e heterossexual, já está errado pelo mero fato de existir, e sua única possibilidade de se redimir um pouco (porque totalmente é impossível) é pedir desculpas diariamente por ser o que é, reconhecer que nenhum homem branco hétero merece qualquer tipo de respeito ou consideração, e ainda ouvir quieto as pessoas papagaiarem que você é "privilegiado" e "opressor". E a grande mídia abraça com entusiasmo toda essa ideologia, o que explica por que já não se pode confiar nem mesmo em veículos de imprensa que tinham outrora uma reputação sólida. Hoje, noticiar a realidade já não tem importância; o que importa é corroborar as narrativas que estiverem na ordem do dia.

Em meio a esse cenário, a internet tem um papel ambivalente. Como não se pode mais confiar na mídia mainstream, o que nos resta é recorrer a sites, blogs e vídeos produzidos de maneira independente para buscar informações e interpretações menos tendenciosas (não que isso seja fácil, pois também não faltam produtores independentes de conteúdo alinhados com essa agenda "progressista"). Ao mesmo tempo, as redes sociais se transformaram no paraíso dos haters, pessoas cuja razão de viver consiste em destilar ódio contra qualquer um que seu movimento identitário favorito rotule como O Mal. E, é preciso reconhecer, esses movimentos sabem como explorar a necessidade básica que os seres humanos sentem de fazer parte de algo, de pertencer a uma "tribo". Como, ao longo das últimas décadas, instituições como religião e família, que, historicamente, sempre cumpriram o papel de ajudar o indivíduo a achar seu lugar no mundo, vêm sendo sistematicamente demolidas, a militância digital tornou-se, para muitas pessoas – quase sempre jovens – a única âncora que encontram, a única coisa que lhes proporciona um simulacro de sentido e evita que sintam que suas vidas são um completo desperdício. Escondidas por trás da tela de um computador (hoje em dia, aliás, quase sempre do celular), multidões de pessoas medíocres e covardes se deliciam a praticar o linchamento virtual de quem ousar levantar alguma objeção ao discurso hegemônico – discurso hegemônico esse que sempre se apoia no pretexto de defender as "minorias". O mais assustador é ver que um número enorme dessas pessoas realmente não percebem o absurdo da contradição em que caem: escrevem "textões" ou gravam longos vídeos pedindo por uma sociedade mais "plural" e "inclusiva", condenando os preconceitos e o "discurso de ódio", para, um instante depois, liberar todo o seu ódio contra qualquer um que pense diferente sobre qualquer assunto, ou que meramente não faça parte de nenhuma das "minorias" pelas quais essas pessoas acreditam estar lutando. Não basta, por exemplo, defender os negros: se você insinuar que os brancos também merecem respeito, você é um "racista" desgraçado e se transforma automaticamente num alvo; daí em diante, enxames de heroicos militantes, defensores incansáveis da liberdade e da democracia, começarão a bombardear suas redes sociais com milhares de mensagens xingando-o de tudo em que conseguirem pensar e desejando abertamente a sua morte – é o que chamam de "cancelamento". Para alguém que é apenas um cidadão anônimo, com um trabalho comum, pode parecer que esse tipo de perseguição cibernética não tem um potencial de dano tão grande assim (desde que você seja adulto e tenha uma cabeça forte): basta esperar que a "galera do bem" se canse de ofendê-lo e ameaçá-lo e parta em busca do próximo alvo. Já para pessoas públicas, que dependem de sua imagem para sobreviver, o buraco é bem mais embaixo, já que o "cancelamento" não move apenas indivíduos isolados: não faltam exemplos de atores, músicos, jornalistas etc. que perderam contratos e patrocínios, ficando, na prática, impossibilitados de trabalhar, simplesmente por terem expressado alguma opinião conservadora ou de outra forma impopular, o que os grandes conglomerados de mídia não podem tolerar, para não ficarem mal na foto com o pessoal lacrador – que, via de regra, nem sequer é uma fatia expressiva de seu público, mas é uma minoria barulhenta e com o poder da mídia nas mãos. Pensando bem, dependendo de onde aquele cidadão anônimo de que eu falava há pouco trabalhe (leia-se: dependendo de quem seja o seu empregador), virar alvo da militância pode acabar em desastre também para ele.

Novamente é inevitável pensar em George Orwell. Winston Smith, o protagonista de 1984, tem um diário no qual registra pensamentos esparsos – muitos deles, coisas que o Partido consideraria subversivas, e por isso ele mantém o segredo. Espero que não se importem se não cito com exatidão literal, pois li o livro há mais de 30 anos e nunca o reli (por sinal, talvez esteja na hora), mas lembro que uma das anotações de Winston é, na ideia geral, assim: "Liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isso, tudo o mais decorre." Para a minha versão adolescente, o sentido dessas palavras não era muito claro; hoje é, graças, em parte, a um outro autor, Michael Ende, que escreveu que "os homens vivem de ideias, e as ideias podem ser dirigidas". Se isso é verdade para o indivíduo, também o é para a sociedade, que é feita de indivíduos. E hoje vivemos um tempo em que a liberdade de dizer que dois e dois são quatro nos foi tirada. Não se pode mais olhar para as coisas, analisá-las por meio dos sentidos e da razão, e concluir "isto é assim". Agora, é a ditadura do politicamente correto que decide como as coisas são e como não são, e, se os fatos refutarem a ideologia, então "cancelam-se" os fatos; simples assim. Dentre inúmeros exemplos possíveis, virou "fascismo" e "discurso de ódio" afirmar que um ser humano com pênis e testículos é um homem, e um ser humano com vagina e ovários é uma mulher. Agora cada um decide o que quer ser, e todo o restante da sociedade precisa acatar sua doideira em vez de acatar a realidade – e, se você não aceita, merece ser "cancelado", porque é um "fascista", o que virou um xingamento-padrão, sempre na ponta da língua de milhões de pessoas que não têm a menor ideia do que essa palavra significa. Chamam de fascista qualquer um de quem não gostem por qualquer motivo; é o equivalente pós-moderno de "feio e bobo".


Isso me leva a outro ponto abordado por Trigo: a total dominação do ambiente universitário pela esquerda, que abandonou o discurso clássico da "luta de classes" (que não cola mais, nem mesmo no meio acadêmico) para adotar as pautas identitárias mencionadas acima. Dizendo de outro modo, as faculdades se tornaram essencialmente antros de lacração – todas elas, mas em especial as de ciências humanas, cuja esfera de estudos oferece mais espaço a essas pautas – e, hoje em dia, são pouca coisa além disso, o que vem agravar um problema que já existia antes: o baixíssimo nível de conhecimento com que a maior parte dos alunos do ensino superior sai das faculdades. Pode não ser politicamente correto dizer isso, mas o fato é que nem todo mundo nasceu para o trabalho intelectual; porém, ao longo dos últimos dois séculos mais ou menos, um diploma universitário passou a ser um acessório indispensável para que uma pessoa alcançasse sucesso profissional e financeiro (é verdade que hoje em dia um diploma não garante mais nada, mas funcionava assim até recentemente). Isso fazia com que milhares de pessoas sem qualquer talento para trabalhos acadêmicos, ou sequer interesse por eles, seguissem qualquer caminho torto que fosse necessário para obter o famigerado diploma; adquirir conhecimento não era uma preocupação. E hoje está ainda pior: com uma ou outra exceção, o universitário brasileiro (e os de outros países) sai da faculdade sem saber interpretar um texto simples, que dirá escrevê-lo, mas plenamente capacitado para repetir um discurso pronto cheio de palavras compridas e levantar mil e uma bandeiras "em prol das minorias", sem enxergar que está agindo como um idiota útil para movimentos que na verdade nunca ligaram a mínima para mulheres, negros, homossexuais ou o que for, e sim para seus próprios objetivos puramente políticos. E o problema nem é o fato de o estudante ser exposto a pautas esquerdistas – é o fato de ele ser exposto exclusivamente a pautas esquerdistas, sem nenhum contraponto, nenhuma possibilidade de comparar ideias e informações para formar a própria opinião. Há todo um aparato cultural, dentro e fora das universidades, dedicado a inculcar nas cabeças ainda em formação dos jovens a noção de que essa é a única forma aceitável de pensar e que, se alguém vier com qualquer discurso diferente, a coisa certa a fazer é tapar os ouvidos e xingar (aos berros, de preferência) essa pessoa de fascista, sem nem querer saber o que ela tem a dizer e se faz algum sentido ou não. É claro que jovens assim sempre existiram, pois a juventude é, por definição, uma fase da vida em que sabemos pouco e temos um monte de certezas (quanto mais uma pessoa sabe, menos certezas ela tem, mas isso é algo que ela só compreende quando fica mais velha; algumas, nem mesmo então), mas talvez seja a primeira vez na História que vemos isso numa escala tão absurdamente grande e com tal potencial destrutivo.

É fácil notar, olhando-se para o passado e o presente, que, enquanto muitas coisas mudam constantemente de uma época para outra, algumas permanecem sempre iguais, e uma destas é o fato de que, quando algum projeto social mal-intencionado precisa de uma numerosa massa de manobra, são sempre os jovens o alvo preferencial. Eles têm uma tendência natural ao entusiasmo (que pode facilmente se converter em fanatismo), e, como ainda estão construindo suas identidades, também têm inseguranças; o anódino mais comum para essa sensação angustiante e crônica consiste em se verem aceitos num grupo – e, se o grupo que encontrarem for alguma militância progressista, está feita a porcaria. Em geral eles são presas fáceis, já que esses movimentos, além de tudo, dão ao jovem a sensação de ter o poder de fazer alguma diferença no mundo. Além disso, por ainda não terem tido tempo de adquirir um grande conhecimento do mundo, os jovens tendem a não enxergar a complexidade das coisas e a ver tudo de maneira binária: tudo é preto ou branco, bom ou mau, "nós" ou "os outros"; ou seja, é mais fácil convencê-los a aderir a uma determinada visão de mundo (por mais incoerente e estúpida que seja) do que seria convencer um adulto. É claro que mesmo um adolescente pode já ter princípios firmados e conceitos morais bem definidos, dependendo da educação que tenha recebido. No passado, movimentos como o nazismo e o comunismo precisaram de muito trabalho para remodelar todas aquelas mentes jovens; já para os movimentos esquerdistas identitários de hoje, está muito mais fácil, porque a maioria da juventude atual recebeu pouca ou nenhuma formação moral e só tem noções vagas e "elásticas" a respeito de certo e errado. Também há o fato de que, graças à educação "inclusiva" e à tecnologia que nos dá tudo fácil e na hora, no século XXI estamos testemunhando um fenômeno inédito na história: crianças e jovens com QI mais baixo que o de seus pais e avós. Esse conjunto de fatores talvez explique a aparente incapacidade de muitos militantes de rede social para compreender, por exemplo, que não apoiar o Black Lives Matter, que promove terrorismo e incita a violência, não faz de ninguém um racista; que ser contra o feminismo, que tem como único resultado prático transformar mulheres em criaturas azedas e histéricas, cheias de ódio, não significa ser machista; que não é preciso ser socialista ou comunista para se preocupar com os pobres. Não: se tecer a menor crítica a qualquer um desses movimentos, você é um "fascista" e merece a morte. Enquanto isso, naturalmente, eles podem dizer o que quiserem de quem quiserem, pois, afinal, a liberdade de expressão é sagrada – a deles, é claro. E essas são as pessoas que estarão conduzindo o mundo daqui a alguns anos… Sem querer ser apocalíptico demais (mas já sendo), acho que estamos vendo o palco armado para a instauração de uma nova forma de totalitarismo que o próprio Orwell provavelmente nunca imaginou, nem em seus piores pesadelos.

(Como seria inevitável acontecer num quadro como o já descrito, os vários discursos "em prol das minorias" volta e meia entram em colisão, o que coloca as militâncias numa sinuca de bico. O movimento negro [esse sim, racista até não poder mais] e o feminismo, por exemplo, deveriam ser aliados naturais, já que ambos têm os mesmos objetivos – fomentar a discórdia e criar conflitos –, mas como se supõe que eles devam se posicionar num caso como o da mulher que deu piti dentro de uma daquelas megapadarias de São Paulo e, durante seu surto, ofendeu e agrediu, fisicamente inclusive, vários funcionários, alguns deles negros e/ou gays? Havia seguranças e policiais no local, mas nenhum se atreveu a fazer nada, pois sabiam que poderiam ser presos por encostar a mão numa mulher, não importa o que ela estivesse fazendo [ela também sabia disso, como se nota no registro em vídeo que um funcionário fez do incidente – confiram este vídeo do Canal Tragicômico, que, além do registro em si, traz comentários pertinentes sobre o caso e sobre os absurdos da cultura da lacração em geral; por sinal, esse canal é excelente, considerem a possibilidade de inscrever-se]. Nessa situação, o que um militante que honra sua conta no Twitter deve fazer? Por um lado, ela é mulher e, portanto, é intocável e está sempre certa. Por outro, está tendo condutas racistas e homofóbicas! Apesar de tudo, não deixa de ser engraçado ver as múltiplas cabeças da hidra identitária lutando entre si.)

(Por mais que eu fosse adorar receber o crédito por bolar essa magnífica imagem comparando a esquerda identitária a uma hidra com várias cabeças, preciso assinalar, por uma questão de honestidade, que não fui eu o autor da façanha, e também não lembro quem foi: ouvi isso em algum outro vídeo no YouTube.)

Não será novidade para ninguém que siga este blog (ou que tenha, no mínimo, dado uma olhadela nele) a minha admiração pela civilização romana, mas nem por isso fecho os olhos ao fato de que muitas de suas conquistas só foram possíveis graças ao expediente maquiavélico (palavra que não existia naquele tempo, mas que serve bem) do divide et impera – dividir para dominar. Em geral não era preciso fazer muita coisa para promover a divisão entre os povos da época, que, em sua maioria, se organizavam em tribos, frequentemente inimigas entre si, mas, quando necessário, os romanos eram hábeis em achar maneiras de jogar essas tribos umas contra as outras, sabendo que assim seria muito mais fácil conquistá-las do que se todas elas se pusessem lado a lado contra o invasor. A esquerda do século XXI (ironicamente, financiada pelo grande capital internacional, aquele mesmo que os marxistas abominavam e queriam combater) também conhece esse método, conta com todo o poder da mídia a seu favor, e é isso o que ela tem feito e continua fazendo: criar o máximo possível de divisões dentro da sociedade, jogando negros contra brancos, mulheres contra homens, gays contra héteros e assim por diante, pois, dessa forma, a sociedade como um todo tem muito menos condições de oferecer resistência a um plano de dominação cultural em grande escala. Os movimentos que compõem essa esquerda identitária não têm o menor interesse no fim do racismo, do sexismo ou da homofobia, porque, se essas formas de segregação e discriminação desaparecessem, os tais movimentos perderiam sua justificativa para existir. O que eles realmente fazem é açular cada vez mais os conflitos, a fim de sempre terem munição para seus discursos e transformar isso em ganho político – da mesma forma como não é do interesse da maioria dos políticos do Brasil erradicar a miséria em meio à população, e sim administrá-la, de modo a sempre contar com uma massa de eleitores pobres e desesperados que vendam facilmente seus votos em troca de qualquer pequeno benefício financeiro que lhes permita sobreviver por mais um mês. Trigo dedica algumas páginas a isso também.

O Ano em que a Terra Parou é leitura altamente recomendável para todos os que já perceberam o quanto o mundo mudou nos últimos poucos anos, notaram que essa mudança não foi para melhor, mas ainda estão tentando entender o que aconteceu, o que ainda está acontecendo, e como as coisas ficaram e podem ficar nos próximos anos. Ou seja, é recomendável para muita gente. Para mim, ajudou muito a interpretar certos fenômenos que eu já tinha observado, mas ainda não tinha compreendido completamente o que podiam significar, e também a fazer as ligações entre certas coisas e certas outras – e sempre entendemos melhor a situação geral quando conseguimos estabelecer ligações entre fatos que, à primeira vista, podem parecer não ter nada em comum. Naturalmente que não concordo com todos os pontos do autor (com a grande maioria, mas não com tudo), mas, concordando ou não, posso atestar que ele nunca falha em estimular o leitor a refletir. Há muito mais que eu poderia comentar sobre os assuntos em que já toquei acima e sobre outros que estão presentes no livro, mas o texto já está mais longo do que eu pretendia. Além disso, creio que não faltarão oportunidades de abordar esses assuntos – mais oportunidades do que eu gostaria, já que, para infelicidade nossa, esses fenômenos estão aí, e ignorá-los é inútil.

quinta-feira, julho 30, 2020

Black Mirror

O uso imprudente (ou simplesmente tolo) da tecnologia é mais um dentre os muitos aspectos de uma questão muito maior: o Homo sapiens está, no mínimo há alguns séculos, vivendo num mundo para o qual ele não foi feito. Ao longo da nossa evolução, sempre precisamos lutar dia a dia por comida, e, na natureza, essa luta é constante e quase sempre feroz. Antes de aprenderem a estocar e conservar alimentos, nossos ancestrais se condicionaram durante centenas de milhares de anos a comer o quanto conseguissem quando havia comida disponível, já que ninguém sabia quando isso aconteceria de novo. De modo semelhante, nosso paladar evoluiu para achar agradáveis os sabores doces, porque coisas como mel ou certas frutas forneciam muitas calorias – que, naqueles tempos, eram preciosas. Hoje, graças à agropecuária moderna, aos transportes e ao comércio, a maioria de nós tem comida disponível na hora que precisar e na quantidade que quiser, mas o instinto de se empanturrar e o de gostar de doces continuam vivos no ser humano. Em consequência, as outrora escassas e valiosas calorias viraram um problema, e agora vamos à academia para gastá-las, fazendo movimentos que não têm qualquer finalidade prática – coisa que nossos ancestrais considerariam loucura. Coisa parecida acontece com o sexo: em uma hora navegando no XVideos, você provavelmente se expõe a mais estímulo sexual do que um ser humano médio era exposto durante toda a vida, um mero século atrás – e, como o nosso cérebro não sabe a diferença entre sexo virtual e real, não há dúvida de que isso, de algum modo, nos afeta. A tecnologia (e por esse nome não me refiro apenas a coisas como computadores e smartphones: a clava do homem primitivo já era tecnologia) surgiu para nos ajudar com problemas que tínhamos dificuldade em resolver sozinhos, e contribuiu de forma decisiva para a sobrevivência de nossa espécie mais vezes do que conseguimos contar – era o caminho mais recorrente que encontrávamos para usar nossa inteligência de maneiras que compensassem nossa debilidade física. Hoje, porém, ela mudou seu foco e, eu ousaria dizer, sua própria razão de ser: com nossa sobrevivência já garantida (pelo menos em relação às coisas que nos ameaçavam no passado), a tecnologia se propõe agora a ser uma extensão do próprio ser humano, mudando radical e talvez irreversivelmente a nossa maneira de interagir com o mundo e uns com os outros. Neste post tentarei comentar uma obra que trata de tudo isso.

Se me pedissem para descrever Black Mirror usando um único adjetivo, isso seria bem fácil, e esse adjetivo seria necessária. A série criada por Charlie Brooker apresenta uma história independente em cada episódio (apesar de vários deles parecerem frouxamente interligados entre si, muitas vezes por meio de detalhes que, para serem notados, exigem do espectador um certo grau de atenção), mas todos têm algo em comum: tratam da relação dos seres humanos com a tecnologia, e, na maioria das vezes, não de uma forma que nos deixe otimistas. E, ainda que isso seja penoso e exija de nós um bocado de coragem, essa questão precisa ser enfrentada – temos que respirar fundo e olhar nesse "espelho" (em inglês, mirror), pois dificilmente poderia haver um tema mais atual e que fosse mais relevante para um número tão grande de pessoas – praticamente a humanidade toda, a bem dizer.

A série nasceu na rede de TV britânica Channel 4, e sua primeira temporada foi ao ar em 2011. Eram apenas três episódios, já que se tratava de uma aposta um tanto arriscada: implicava em custos de produção consideráveis e não se sabia como seria a receptividade do público, entretanto parece que o saldo foi positivo, pois uma segunda temporada surgiu dois anos depois, com mais três episódios (como se vê, não é uma série recomendável para pessoas ansiosas). Em 2014 veio um único episódio, um especial de Natal com duração mais longa que o normal da série e seguindo aquela estrutura de filme-antologia que era popular no gênero terror durante os anos 80: havia uma história-moldura e, dentro dela, por meio de narrações, eram apresentadas três histórias curtas e (relativamente) independentes. No ano seguinte, a Netflix comprou a série, e, na sequência, anunciou novas temporadas, que chegaram em 2016 e 2017, cada uma com seis episódios. Outro especial foi lançado em 2018, Bandersnatch, um "filme interativo", no qual o espectador, via controle remoto, escolhe as ações do protagonista dentre duas ou três opções, e a soma de todas as suas decisões levará a um dos vários finais possíveis – é como naqueles livros tipo Enrola & Desenrola. A quinta e, até este momento, última temporada estreou em 2019 e tem três episódios.

O único gênero no qual consigo encaixar Black Mirror é a ficção científica, embora fazer isso pareça um pouco estranho, por razões fáceis de entender para quem vê a série, mas difíceis de explicar. Alguns episódios poderiam facilmente acontecer no mundo de hoje, com a tecnologia que já existe – na verdade, coisas parecidas já acontecem –, e outros parecem estar a um estalar de dedos de distância, quando pensamos em como a sociedade em que vivemos lida com coisas como redes sociais ou realidade virtual. O episódio da terceira temporada Queda Livre, por exemplo, retrata uma realidade na qual a dinâmica de like/dislike das redes sociais foi estendida para as interações presenciais do dia a dia: cada vez que interage com alguém no trabalho, na rua ou até em casa, você avalia essa pessoa numa escala de cinco estrelas; graças a certos implantes biocibernéticos que, nessa época, todo mundo tem, qualquer pessoa sabe instantaneamente a média de avaliações de qualquer outra, tão logo põe os olhos nela. Essa média é o que determina o que você é: um indivíduo popular, de quem todos querem ser amigos (para elevar suas próprias médias, é claro) ou um pária que as pessoas fingem não enxergar, tendo a entrada barrada em muitos lugares e sendo preterido no atendimento em estabelecimentos comerciais, aeroportos e até mesmo hospitais. Conclusão: hoje, em 2020, nós já vivemos num mundo onde o que você aparenta nas redes sociais é mais importante que o que você realmente é; tudo o que o mundo de Queda Livre tem de diferente é um tiquinho de tecnologia a mais – e as consequências assustadoras disso tudo. Talvez só a falta desse tiquinho de tecnologia esteja nos poupando, por enquanto, de arcar com essas consequências.

Em certa ocasião, numa entrevista, Charlie Brooker declarou que a tecnologia também é um tipo de droga, e, sendo assim, é uma preocupação válida se nos perguntarmos quais podem ser os seus efeitos colaterais – e esse é o motor que move Black Mirror. Não é mera força de expressão. Li tempos atrás na Superinteressante (salvo engano) a respeito de um estudo que indicava que é mais fácil uma pessoa se livrar do vício em crack que em redes sociais. O paralelo é completo: pode-se ter crise de abstinência de Facebook, Twitter e sei lá o que mais – nunca me interessei por essas coisas, e parece que foi melhor assim. É claro que a série não poderia ignorar esse assunto, que é pincelado em vários episódios, mas tem papel central em Smithereens, da quinta temporada, que conta a história de um homem em crise, que se culpa pela morte da noiva, há alguns anos: ele estava dirigindo o carro em que ambos viajavam, quando seu celular deu o alerta de alguma atualização em sua rede social favorita, e ele olhou. Esses segundos de distração causaram o acidente que custou a vida dela. Ele decide então sequestrar um alto executivo da empresa proprietária da rede social e ameaçar matá-lo, a menos que o todo-poderoso CEO da tal empresa converse com ele. Eis um episódio que pode levantar polêmica – polêmica de verdade, não do jeito como a tchurma da internet usa, chamando de "polêmica" qualquer coisa que cause hype e deixando claro que quem produz o conteúdo não tem a menor ideia do que essa palavra significa. Aqui cabe polêmica mesmo. À primeira vista, pôr a culpa nas redes sociais pelo uso obsessivo que muita gente faz delas (e que pode prejudicar seriamente suas vidas, de várias maneiras) parece tão sem sentido quanto querer processar o McDonald's exigindo indenização pela sua obesidade ou problemas cardiovasculares – afinal, ninguém obriga ninguém a se entupir de junk food cinco vezes por semana, nem a ficar 12 horas por dia numa rede social até isso ferrar seu cérebro e acabar com qualquer vida normal que porventura tivesse… Porém, a coisa muda de figura quando ficamos sabendo que as empresas de redes sociais têm departamentos inteiros que trabalham em tempo integral para encontrar maneiras de tornar o uso delas cada vez mais compulsivo, recorrendo para isso a todo o conhecimento que as ciências do comportamento podem oferecer.

Se alguns episódios de Black Mirror parecem se ambientar no presente (em geral, numa versão alternativa do presente), ou num futuro que pode ser real dentro de cinco, dez anos, outros chutam mais longe no campo da ficção científica, descrevendo futuros um pouco mais distantes, mas sempre com foco na questão da tecnologia e/ou mídias sociais. É o caso de Quinze Milhões de Méritos (primeira temporada), que retrata o cotidiano de pessoas que passam seus dias pedalando em bicicletas fixas para gerar energia, dentro de complexos aparentemente construídos para isso, sem contato com o mundo exterior. De acordo com a quantidade de energia que produzem, eles ganham méritos, que são uma espécie de moeda virtual com a qual podem adquirir desde comida até pequenas bobagens tecnológicas, acesso a jogos, TV etc. E, como a política do pão e circo nunca perde a atualidade, há um programa de talentos estilo The Voice que é extremamente popular; por meio dele um punhado de ex-pedaladores tornaram-se artistas de sucesso e alcançaram uma vida de glamour e conforto, o que, naturalmente, é o sonho de milhares, quiçá milhões. A inscrição para participar custa os 15 milhões de méritos do título, o que equivale a vários meses de trabalho frenético nas bicicletas. A história do episódio gira em torno de um jovem (o excelente Daniel Kaluuya, de Corra!), que se apaixona por uma garota com talento de cantora, mas que não tem como pagar a inscrição no programa. Ele a patrocina e ela realmente consegue participar, mas o resultado acaba sendo desastroso – muito pior do que ela levar "buzina", ou o equivalente a isso. O episódio termina dando-nos um doloroso tapa na cara para mostrar como até mesmo o protesto pode virar mercadoria comerciável e um instrumento a mais para fortalecer o status quo.

Pesquisando na internet em busca de informações sobre Black Mirror, vim a saber que as duas primeiras temporadas (as que foram lançadas enquanto a série ainda pertencia ao Channel 4) são as favoritas da maioria dos fãs; para mim, parece que essas pessoas estão cedendo ao instinto (tão comum) de dar mais valor ao que é alternativo só por ser alternativo, como quem pensa "ah, a Netflix é muito mainstream, não vai pegar bem se eu disser que ela fez um bom trabalho, tenho que ser da opinião de que a série só foi boa enquanto estava num canal menor e que, quando passou para a Netflix, decaiu – assim todo mundo vai me achar fodão". Minha própria opinião é que a primeira temporada é, de fato, muito intensa, mas não dá para dizer o mesmo da segunda, que tem um episódio forte, Urso Branco, um mediano, Volto Logo, e tem também Momento Waldo, a meu ver um dos episódios mais fracos de toda a série. A terceira e a quarta temporadas têm muito mais momentos marcantes, e mesmo a quinta, de modo geral execrada, tem coisas interessantes (já citei Smithereens). Suponho que a maior parte da bronca que muitos têm com essa temporada seja por causa do episódio Rachel, Jack e Ashley Too, uma história leve (para os padrões de Black Mirror, bem entendido) e com final otimista, o que deve ter decepcionado muita gente que, num episódio da série, espera ver coisas terríveis, trágicas ou chocantes. A participação da cantora Miley Cyrus, no papel de uma estrela pop (nããão, jura?!), também deve ter desagradado aos mais radicais. De minha parte, acho a variação de tons entre os episódios uma boa coisa; caso venham mais temporadas, espero ver um equilíbrio entre histórias mais tensas e outras mais divertidas. Não há motivo para que o futuro precise ser sempre retratado de modo tão negro e ameaçador. E, para falar francamente, Rachel, Jack e Ashley Too está longe de ser o melhor episódio de Black Mirror, mas está ainda mais longe de ser o pior.

Embora vários temas ligados à tecnologia sejam abordados na série, talvez o mais recorrente (e, pelo menos para mim, de longe o mais inquietante) é a possibilidade (teórica) da migração da consciência humana para algum tipo de dispositivo artificial. Em San Junípero (terceira temporada), pessoas próximas da morte podem ter a totalidade do conteúdo de suas mentes escaneada, copiada e carregada em poderosos servidores que rodam simulações virtuais perfeitas do mundo real, em qualquer época ou lugar que se deseje; na teoria, a pessoa pode passar a eternidade revivendo os momentos agradáveis de sua vida e/ou vivendo experiências novas, e, como o corpo que ela tem nas simulações é puramente virtual, pode descartar a idade e quaisquer doenças, voltar a ser jovem e forte e permanecer assim para sempre. Na teoria. À primeira vista, isso de fazer upload da sua mente para um computador pode parecer ótimo, e, em princípio, deve ser possível, pois, como dizia Joachim Kleronomas, uma mente humana é feita de memórias, memórias são dados, e dados podem ser copiados. Porém, se isso um dia se tornar factível, me parece, por simples lógica, que sua versão digitalizada não será realmente você. Para dar um exemplo: se sua mente for copiada para um substituto eletrônico de cérebro, e este for implantado num corpo robótico ou clonado (Westworld também lida com essa ideia), a criatura resultante pode parecer você, agir como você, pensar como você, pode até acreditar ser você, mas não creio que a sua consciência vá estar ali, que você realmente vá ver através daqueles olhos e experimentar as sensações daquele corpo. Será uma cópia sua, uma máquina programada para agir como se fosse você, e não mais que isso. Seu verdadeiro "eu" terá sido extinto ou terá migrado para outro plano de existência, conforme a crença que você tenha – enfim, você terá morrido, como sempre aconteceu com os seres humanos desde o princípio. Em palavras simples, acredito que seja possível copiar uma mente, mas não transplantá-la. Mas posso estar enganado, é claro.

O upload de consciência tem um papel-chave, também, no que talvez seja o episódio mais perturbador de todos (e é sem dúvida um dos melhores), Black Museum, o último da quarta temporada – mas se eu fosse descrever exatamente de que forma esse conceito é usado no episódio, teria que dar um spoiler pelo qual ninguém me perdoaria. Assim como Natal, trata-se de um filme-antologia. Na história principal, acompanhamos uma jovem que está viajando de carro pela estrada que corta o deserto no estado de Utah (Salt Lake City é mencionada) quando para num posto de combustíveis no meio do nada, só para descobrir que ele está fechado e vazio. Ela põe o carro para carregar usando a energia solar, mas isso demorará horas, e então, como se fosse uma decisão tomada de improviso, só para matar o tempo, ela vai até um estranho museu que fica exatamente ao lado – o Black Museum, cujo proprietário, administrador e cicerone é um homem chamado Rolo Haynes. Haynes explica à visitante que trabalhou durante muito tempo para a TCKR (empresa de tecnologia que aparece também em outros episódios) e esteve envolvido com certas experiências inovadoras e pouco ortodoxas, uma das quais acabou causando sua demissão. Então criou o museu, que reúne uma coleção de itens tecnológicos ligados de alguma forma ao crime ou tragédias. Ele conta as histórias de três dos objetos em exibição, mas o espectador atento reconhecerá outros, mostrados quase de relance, que tiveram papéis fundamentais em episódios anteriores. Por fim, a visitante é conduzida à atração principal do museu, sobre a qual não darei detalhes, mas, talvez mais que qualquer outro tema na série, essa revelação nos leva a refletir que a simbiose homem/máquina, que já começa a se tornar realidade em nossos dias, pode, sim, ter possibilidades (teóricas, insisto) fascinantes, mas também tem outras extremamente assustadoras e macabras. Tudo vai depender de como essas possibilidades vierem a ser exploradas, é claro, mas, se levarmos em conta o jeito como outras tecnologias têm sido aplicadas ao longo da História… Bem, acho que vocês me entendem.

Meu objetivo com este post foi apenas dar a quem ainda não assistiu uma ideia preliminar do que é Black Mirror, mencionando alguns episódios que considero relevantes; há vários outros que mereceriam destaque, e, se outra pessoa for redigir um texto com a intenção de apresentar a série, ela certamente escolherá episódios diferentes para citar. Há muitos sites e blogs por aí com análises aprofundadas, seja da série como um todo ou de episódios específicos – recomendo especialmente o Farofa Geek, que oferece uma interpretação fascinante a respeito de Black Museum, mas só leiam depois que tiverem assistido ao episódio. Minha conclusão será modesta, apenas reiterando que Black Mirror é muito necessária. Deveria ser vista por todos, já que todos vivemos nesse mundo maluco, e a maioria de nós viverá o suficiente para vê-lo tornar-se mais maluco ainda. É claro que a série dificilmente escapará da mesma sina que afeta a maior parte da ficção científica: por mais que suas previsões nos pareçam espantosas, a realidade, no devido tempo, muito provavelmente fará essas previsões parecerem tímidas e conservadoras. Ainda assim, ela vale por uma espécie de vacina mental, e talvez nos deixe um pouco mais preparados para o que deveremos ver aparecer durante os próximos anos e décadas.

sexta-feira, julho 13, 2018

HEX

Depois de Deixa Ela Entrar, de autoria do sueco John Ajvide Lindqvist, aqui temos outro exemplo de ventos frescos na literatura de terror vindo de países inesperados: Thomas Olde Heuvelt é holandês, embora a história de HEX esteja ambientada nos Estados Unidos – por boas razões, como veremos depois. É um pensamento comum acreditar que, à medida que a ciência e a tecnologia progridem, a tendência é que a crença no sobrenatural, ou o papel que ele desempenha na vida das pessoas, diminua… E já faz tempo que desmontar essa ideia em suas histórias é um caminho que diversos escritores de terror adotam. É o que Heuvelt faz aqui, mas de uma maneira inovadora e surpreendente.

Black Spring (nome dúbio, que pode significar "fonte negra" ou "primavera negra") é uma cidadezinha aparentemente pacata e normal do estado de Nova York, a pouca distância da famosa academia militar de West Point. O que um eventual forasteiro não imagina ao andar por suas ruas sossegadas é que a cidade sofre com uma maldição que já dura três séculos e meio e pesa sobre todos os seus habitantes, tanto os nativos quanto os que, seduzidos por sua aparência de tranquilidade ordeira, fizeram a bobagem de mudar-se para lá. Os bosques que a rodeiam são assombrados pelo espírito de Katherine Van Wyler, uma mulher que foi condenada à forca por bruxaria em 1664, quando aquela região era habitada principalmente por imigrantes holandeses, em sua maioria calvinistas, e por índios algonquinos. Isso, por si só, já seria bem ruim, mas acontece, ainda, que Katherine nem sempre se contenta em vagar pelos bosques, e volta e meia invade a pequena cidade, podendo aparecer em qualquer lugar – ruas, praças, lojas, ou dentro da casa de alguém (credo-em-cruz!). Outra peculiaridade de Katherine é que, ao contrário de outros fantasmas, ela não parece ser incorpórea, tendo uma presença física capaz de interagir com objetos, pessoas e animais (os cães costumam latir e uivar em desespero quando ela está por perto). O efeito da maldição que é sentido com mais frequência é o fato de que os habitantes de Black Spring não podem sair de lá. Não que haja algum tipo de barreira física (há quem pense que seria melhor se houvesse), mas porque bastam alguns dias longe do local para que até mesmo a pessoa mais centrada, ajuizada e satisfeita com a vida comece a ter ideias de suicídio – e, a menos que volte logo para casa, acaba concretizando essas ideias, em cem por cento dos casos.

A história acompanha uma família típica: Steve Grant, médico e professor universitário, sua esposa Jocelyn, ambos nos seus 40 e poucos ou 50 anos, e seus filhos Tyler, de 18 anos, e Matt, de 13. Ah, e tem o border collie Fletcher. Pode parecer inacreditável que essa seja uma família funcional e feliz, pois nosso primeiro e muito compreensível impulso é não achar possível que tal coisa exista numa cidade amaldiçoada, mas a História com H maiúsculo já nos forneceu muitas provas de que a capacidade de adaptação do ser humano beira o infinito – em grande parte, foi por isso que sobrevivemos. Como acontece em cidades pequenas, em Black Spring todo mundo conhece todo mundo, e, sendo assim, Steve e Jocelyn conhecem também um sujeito de nome Robert Grim, que trabalha num órgão chamado HEX. Para um desavisado, isso pode parecer uma sigla, mas na verdade é o som da palavra equivalente a bruxa em várias línguas de raiz germânica: a grafia varia um pouco, mas a pronúncia é quase a mesma, seja em alemão (Hexe), sueco (häxa), holandês, norueguês e dinamarquês (heks nas três). Em inglês também existe um cognato de todas essas palavras, hag, que, na origem, também significava bruxa, embora hoje em dia quase sempre se use witch para designar uma bruxa propriamente dita, enquanto hag comumente se refere de forma pejorativa a mulheres idosas, em especial quando feias e/ou de comportamento desagradável ("bruxa" também é por vezes usado dessa forma em português). A HEX foi criada por iniciativa dos militares de West Point, para lidar da forma mais discreta possível com a maldição de Black Spring. Sua função é monitorar as andanças de Katherine, resolver qualquer problema que surja, e evitar que a história vaze para o mundo exterior. Para facilitar sua tarefa, o órgão desenvolveu o aplicativo de celular também chamado HEX, que os moradores da cidade podem usar para saber onde Katherine está no momento; quem a vir deve informar sua localização, também por meio do aplicativo. O mais sensato a se fazer é evitar ao máximo qualquer proximidade com a bruxa; se ela resolver aparecer na sua casa, o aconselhável é não entrar no cômodo onde ela estiver. Se isso for impossível, pode-se, por exemplo, jogar um lençol ou toalha de mesa sobre ela (sem tocá-la!) e tentar ignorá-la; ela geralmente fica imóvel feito um poste, e desaparece em um dia ou dois. Desaparece literalmente, indo aparecer em outro lugar, como se fosse algum tipo de teleporte sobrenatural. A situação já está assim há muito tempo e, salvo por algum incidente medonho eventual, a convivência entre a população e a bruxa é relativamente tranquila. Quando pega antipatia por alguém, porém, ou acha que foi tratada sem o devido respeito, Katherine sussurra algo, e as consequências para a pessoa visada nunca são agradáveis.

Entretanto, nem mesmo Black Spring pode esperar ficar imune às transformações trazidas pelo avanço da tecnologia – e não estou falando apenas do aplicativo HEX. Enquanto os moradores adultos da cidadezinha parecem conformados com a situação, os mais jovens, não raro, têm dificuldade em aceitar esse estado de coisas. Cidades pequenas são sabidamente um ambiente claustrofóbico para adolescentes, e não é diferente para os que tiveram a pouca sorte de nascer em Black Spring. Como todos os jovens, eles têm vontade de sair, ver o mundo, perseguir ambições, mas são ensinados desde cedo que jamais poderão fazê-lo. Tyler, o filho mais velho de Steve e Jocelyn, é um rapaz especialmente inconformista, que, como quase toda a sua geração, utiliza a tecnologia com desenvoltura, e, além do mais, tem vocação jornalística. Além de todos os motivos acima para estar descontente, ele tem outro: sua namorada, Laurie, que é de fora da comunidade, de modo que só resta a Tyler a escolha entre desistir dela ou condená-la a também viver naquela prisão de muros invisíveis. Na opinião do rapaz, a melhor coisa a fazer seria acabar com o segredo, deixar o mundo saber o que acontece em Black Spring, para que alguma solução – fosse tecnológica, religiosa, mágica ou de outro tipo – pudesse ser tentada. Ele e um grupo de outros garotos começam a procurar deliberadamente por Katherine, filmando e fazendo experiências… Algo muito perigoso em qualquer caso, mas, para piorar, um desses rapazes é Jaydon Holst, filho da proprietária do açougue e empório local. O pai de Jaydon abandonou a família e foi embora de Black Spring, e, sem que isso surpreendesse a ninguém, pouco tempo depois chegou a notícia de seu suicídio. Por menos motivos que parecesse ter para gostar do pai (que, antes de abandoná-lo, o maltratou um bocado), Jaydon odeia Katherine por causa do acontecido. Trata-se de um rapaz mal-humorado, agressivo e pouco esperto. Enquanto Tyler e os outros se utilizam de câmeras digitais e outros aparatos para reunir o máximo possível de dados sobre a bruxa, que depois serão colocados na internet, Jaydon só está interessado em praticar violências contra ela. (Katherine, sendo, como dissemos, uma entidade corpórea, pode ser ferida, mas, na vez seguinte em que se teleporta, ela aparece no local de destino intacta de novo. É como se o processo a "resetasse"… o que não significa que ela se esqueça da agressão sofrida.)

Para tornar a situação ainda mais bizarra, a mãe de Jaydon, Griselda Holst (para quem o sumiço do marido abusivo foi um alívio), desenvolveu uma forma própria e distorcida de religião, com Katherine fazendo as vezes de divindade. Há basicamente duas maneiras de cultuar um ser divino no qual se acredite: se você crer que esse ser é bom, irá querer louvar, agradecer, talvez fazer pedidos; se crer que ele é algo a ser temido, então é provável que os seus ritos tenham como principal objetivo aplacá-lo para que ele o poupe de sua ira. O "culto" inventado por Griselda, como seria de se imaginar, tende muito mais para a segunda possibilidade, embora, uma vez ou outra, ela arrisque pedir algo. Ela procura por Katherine nas florestas, leva oferendas e conversa com ela durante horas – ou melhor, monologa, já que a bruxa nunca diz nada (a não ser pelo sussurro mortífero quando decide eliminar alguém) e raramente se move. Não é preciso dizer que nem a abordagem de Jaydon nem a de Griselda irão resultar em nada de bom.

HEX tem uma ideia excelente e bastante original, explorando o confronto sobrenatural versus modernidade, que tem um potencial fora do comum para amedrontar, porque nos leva a questionar a noção de "progresso", que é um dos pilares da escassa sensação de segurança que o homem moderno consegue desfrutar. Ainda assim, a essência da história talvez não seja a fragilidade dessa noção em si, e sim uma decorrência dela: a facilidade com que pessoas que se consideram civilizadas e esclarecidas podem recair num obscurantismo semelhante ao de séculos passados quando confrontadas com terrores que, no "modo século XXI" de ver as coisas, não deveriam existir, e para os quais essa visão de mundo não oferece soluções. Os moradores de Black Spring são cidadãos americanos modernos, normais em quase tudo, que acessam a internet, consultam tabelas de calorias, assistem a séries na Netflix e distribuem-se entre os eleitorados republicano e democrata, mas há cenas (principalmente as de assembleias populares) em que é difícil não imaginá-los em trajes de colonos calvinistas do século XVII, agitando tochas e forcados. A conclusão é que, por mais sofisticados que pensemos que somos, o medo nos reverte ao primitivismo, muitas vezes com uma facilidade absurda. A História nos oferece (infelizmente) muitos exemplos de casos em que isso foi habilmente explorado com finalidades políticas, resultando em guerras, genocídios e outros desastres.

Heuvelt tem a habilidade para criar personagens convincentes e cativantes, mas, a meu ver, existem algumas incoerências, como quando é dito que Steve Grant "não acredita no pós-vida". Em qualquer outro lugar que não Black Spring, seria perfeitamente crível que um homem do tipo dele fosse basicamente materialista, não crendo no divino nem em qualquer outra manifestação do sobrenatural – mas, se o homem em questão tiver vivido quase metade de sua vida numa cidade por onde uma mulher morta há 350 anos desfila pelas ruas, sendo corriqueiramente vista por todo mundo, qual o sentido lógico de que até mesmo um homem assim continue "não acreditando no pós-vida"? Também acho necessário criticar o final, pois eu realmente esperava que uma história que inova em tantas coisas tivesse um final surpreendente, nunca imaginado… Quando, na verdade, o final de HEX é idêntico (vá lá, quase idêntico) ao do conto A Pata do Macaco, de W. W. Jacobs. Entendedores entenderão.

Uma consideração final… Na parte de trás da capa, junto com a breve sinopse, constam palavras elogiosas a HEX, atribuídas a George R. R. Martin e Stephen King. A opinião de King, principalmente, terá sempre muito peso quando estivermos falando de um novo autor de terror, e eu ouso dizer que a ideia central de HEX é "nível Stephen King" – mas ter uma boa ideia não é tudo. Thomas Olde Heuvelt ainda terá bastante trabalho pela frente se pretender um dia ter uma escrita tão ágil, fluida e viciante quanto a de King, e talvez nunca chegue a isso, o que não o impedirá de ser um excelente escritor mesmo assim; o fato é que HEX é um tanto irregular, com muitos trechos arrastados e pouco empolgantes, embora, no saldo final, recompense bem o leitor. E, já que mencionamos Martin, não custa observar, como nota de rodapé, que em HEX, assim como em Game of Thrones, qualquer personagem pode morrer. Por último, é preciso ressaltar a edição, como sempre muito bem feita, da DarkSide, selo que está fazendo um grande trabalho em prol da literatura fantástica, especialmente a de terror, no Brasil.

terça-feira, março 18, 2014

Assombro

Um punhado de pessoas com ambições literárias responde a um anúncio tentador colocado em vários quadros de avisos: um convite para um "retiro de escritores". A proposta é que, durante três meses, os participantes deixem para trás tudo o que os impede de criar sua obra-prima: emprego, família, casamento, distrações, vícios. Durante esses 90 dias, esses candidatos a autores de bestsellers ficarão isolados do mundo, dedicando-se exclusivamente a seu trabalho criativo.

Parece muito bom, até que todos chegam ao local do retiro –um velho teatro – e descobrem que estão presos lá. Seu anfitrião, o velho Sr. Whittier, alega que tudo o que pede deles é que façam o que vieram fazer, aquilo que, enquanto estavam no mundo exterior, tudo servia de desculpa para não fazerem: dedicar-se a escrever algo realmente bom, ou, pelo menos, vendável. Mas ninguém parece escrever coisa alguma. A narrativa alterna entre o que acontece no teatro e histórias que os "confinados" contam uns aos outros, e que aparecem no livro sob a forma de contos. O mais curioso é que as histórias não parecem ser ficção, e sim coisas que aconteceram na vida real de cada um dos presentes – por mais que os fatos narrados, de tão bizarros, pareçam inventados. E, para não destoar da bizarrice, os eventos no teatro também são absolutamente esdrúxulos, embora sigam uma lógica (tortuosa) e uma motivação (mesquinha). O que há é que as pessoas trancadas no antigo teatro constituem a coleção mais variada possível, mas todos têm algo em comum: ninguém ali quer virar escritor por amor à arte – o que todos querem é ficar ricos e famosos. E a melhor oportunidade para isso, pensam eles, é escrevendo a história de seu "cruel encarceramento" pelo "maníaco" Sr. Whittier e sua cúmplice, a Sra. Clark. Pois, como está escrito em alguma página de Assombro, "esse é o sonho americano: transformar sua vida em algo que você possa vender".

Na verdade, a vida ali não é particularmente ruim: há comida à vontade e ninguém é submetido a maus-tratos. A única coisa é que não podem sair antes do prazo fixado de 90 dias, tempo durante o qual espera-se que produzam qualquer coisa de notável. É claro que essa situação não renderia um romance capaz de liderar as listas de bestsellers e de ser transformado em roteiro para um blockbuster de cinema – mas com alguns retoques, quem sabe? Então, as próprias "vítimas" encarregam-se de piorar as coisas, adotando providências que vão desde violar embalagens de alimentos para que estraguem mais depressa, até automutilações (!). O raciocínio é simples: quando o cativeiro for descoberto e a polícia invadir o local para "salvá-los", as câmeras de TV certamente estarão gravando tudo, e o que haveria de chocante ou de sensacional em um grupo de pessoas sendo resgatadas ilesas e bem-alimentadas? De jeito nenhum! É preciso que todos estejam satisfatoriamente magros e abatidos, e que tenham ferimentos para exibir, a fim de "provar" os horrores inimagináveis pelos quais dirão ter passado: isso tudo é indispensável para obterem a simpatia do público, convites para participar de programas entrevistas na TV e, mais tarde, uma adequada atenção da mídia para seu livro/filme. A propósito, ninguém parece ter dúvida de que o resgate vai chegar uma hora ou outra, e tudo o que acontece no interior do teatro vai sendo anotado, gravado em áudio ou vídeo, e, principalmente, reelaborado e discutido: será que isso vai ficar bacana na tela? Deveríamos exagerar um pouco esta parte? Como o público vai reagir a isso? Enfim, a mídia é o parâmetro para tudo, principalmente para a vida real, sem excluir seus momentos mais bizarros e desesperados.

Na história principal – a dos aspirantes a escritores trancados no teatro –, nunca fica claro quem é que está narrando. Durante a maior parte do tempo, a pessoa verbal é a primeira do plural ("nós"), como se a voz pertencesse a um dos confinados, sem que saibamos qual deles. Já nos contos, fica variando, de forma aparentemente aleatória, do "você", como se o narrador estivesse dizendo ao personagem o que acontece com ele (ou, mais propriamente, levando o leitor a pôr-se na pele do personagem), para "eu" ou "nós", inclusive dentro do mesmo conto. Essa oscilação de pessoa verbal é uma inconsistência comum em textos produzidos por gente pouco acostumada a escrever; como não li nenhum outro livro de Palahniuk antes, não sei dizer se ele é daqueles autores que cultivam um estilo tosco deliberadamente, se é dos que não gostam de "perder tempo" com "bobagens" como coesão e coerência, ou se está apenas procurando dar cores mais vivas ao enredo, tentando escrever como escreveriam as pessoas envolvidas, nenhuma das quais parece ter maior intimidade com literatura, apesar do sonho de serem escritores, ou, melhor dizendo, de terem a boa vida que acreditam que um escritor de sucesso tenha. De qualquer forma, embora a narrativa principal tenha os seus achados, a atração do livro são mesmo os contos.

Não é possível adiantar muita coisa sobre essas "histórias dentro da história" sem entregar detalhes-chave que estragariam o prazer do leitor – se bem que "prazer", aqui, é uma palavra que deve ser usada com reservas. Ao escrever quase todos esses contos, Palahniuk tinha a clara intenção de dar um tapa na cara de seus compatriotas norte-americanos, e precisamos admitir que, em maior ou menor grau, esse "tapa" serve também para os leitores de qualquer outro país, e pode ser igualmente útil para "acordá-los" um pouco. Vamos concordar que, quando uma sociedade valoriza as aparências acima de tudo, faz cobranças absurdas e rotula de fracassado quem não consegue satisfazê-las, recompensa o mau-caratismo, transforma a mediocridade e a pobreza de espírito num padrão, acoberta formas camufladas de violência em nome de dogmas "politicamente corretos", e estimula as pessoas a fazerem de suas vidas um reality show, é porque alguma coisa está muito errada. E, para nos jogar esse fato na cara de um modo que seja impossível ignorar, o meio que o autor escolheu foi narrar situações que causam desconforto, mal-estar e aflição.

De qualquer forma, pode-se dar algumas dicas… Se vocês (como eu) são daqueles que gostam de perambular por sites como o Medo B ou o Quero Medo, que, além de terror propriamente dito, também publicam curiosidades e bizarrices em geral, é bem possível que já tenham lido o conto Tripas – o primeiro e um dos mais aflitivos do livro, embora outros sejam, cada um a seu modo, tão terríveis quanto. Pós-produção é sobre exibicionismo e voyeurismo, e, principalmente, sobre como a diferença entre o que as telas mostram e a realidade pode ser grande e brutal ao ponto de destruir uma pessoa, ou, no caso, um casal. Canto do Cisne aborda a curiosidade das massas por notícias escabrosas e desastrosas, o que pode levar certos representantes da mídia a chegar a atos inimagináveis para saciar esse apetite doentio, porque "é preciso dar ao público o que ele quer". Falas Amargas aposta no humor negro (e bota negro nisso…) para criticar certo tipo de "feminismo". Fiquei surpreso ao constatar que pelo menos dois contos em Assombro – A Caixa de Pesadelos e Crepúsculo Civil – são, em tudo e por tudo, contos de terror, e bons contos de terror, que o mestre Richard Matheson possivelmente gostaria de ter escrito, e é interessante notar que, embora o elemento gore apareça bastante ao longo do livro, ele brilha pela ausência nessas duas histórias: nelas não há tortura, mutilação ou qualquer outra "amenidade" desse tipo, e a morte, quando aparece, tem uma função no enredo, em vez de ser a atração principal. O que o autor busca (e consegue) é aquela sensação perturbadora do desconhecido, do misterioso e do sinistro, de modo que não parece absurdo admitir que, nesses contos em particular, Pahlaniuk chega muito perto do que H. P. Lovecraft chamava de "horror cósmico", ainda que esse esteja longe de ser seu gênero por excelência. Estava na ponta dos meus dedos incluir aí mais um conto, Espíritos Malignos, mas acabei concluindo que esse trata-se de outro tipo de coisa, pois além de (apesar do título) não trazer sugestões sobrenaturais, suas características oscilam entre o "terror científico" e o drama.

Palahniuk fez o que os falantes de inglês chamam de save the best for last – guardar o melhor para o fim. O último conto é Obsoletos, uma coisa bastante diferente dos demais, e de várias maneiras. Para começar, é o único que não parece uma passagem autobiográfica contada por um dos personagens, e sim uma criação ficcional atribuída a um deles. Em segundo lugar, é um dos poucos que não estão limitados pela preocupação do verossímil: a maioria dos contos presentes no livro trata de coisas que poderiam acontecer, que provavelmente já aconteceram, ou que podem estar acontecendo em algum lugar; Obsoletos e dois ou três outros lançam mão dos recursos da pura imaginação – terror, fantasia e, aqui especificamente, uma mistura alucinante de misticismo com uma pitada de ficção científica – para provocar reflexão sobre certos temas muito reais e cotidianos. Com uma observação: o misticismo aí mencionado não envolve coisas difíceis como fé, autoconhecimento ou desejo de melhorar; é o misticismo fast food, rápido, prático, consumível, enfim, o tipo de misticismo que tem procura no mercado. Quando terminei Obsoletos, desejei que Assombro não fosse o primeiro livro do autor que eu estivesse lendo: se eu o conhecesse melhor, estaria devidamente embasado para emitir a opinião de que "mais Palahniuk, impossível". Grande conto.

Dizer que um determinado autor, ou você ama, ou odeia, é um dos mais manjados lugares-comuns da crítica literária, e, como seria de se esperar, já li isso também sobre Chuck Palahniuk. Se for verdade, eu ainda não consegui decidir de que lado fico… Não dá para negar que vários dos contos que fazem parte de Assombro são trabalhos de alto nível: escritos de forma vigorosa, prendem a atenção, provocam, perturbam, deixam o leitor refletindo depois, e qualquer pessoa que já tenha lido bastante na vida sabe que um escritor que consegue fazer com que seus textos tenham todas essas características merece, no mínimo, respeito. Por outro lado, nota-se em Palahniuk um gosto por chocar e escandalizar, e eu não sei até que ponto acho isso uma coisa que se deva admirar. É possível que eu conclua que essa tendência se justifica quando não é gratuita: não simplesmente chocar por chocar, mas, por exemplo, para chamar atenção para um fato absurdo que achamos normal porque estamos habituados a ele, usando a lente do grotesco para nos mostrar esse mesmo fato sob uma ótica diferente e, assim, forçar-nos a encarar a dúvida, a pensar sobre o assunto, o que, de outra forma, talvez não viéssemos a fazer. Pode ser. Por ora, tudo o que posso adiantar é que pretendo ler outras coisas do autor antes de fazer um julgamento. E que Assombro pode ser recomendado para aqueles leitores que não se sentem ameaçados quando alguém os desafia a questionar algumas coisas "normais" e cotidianas. Ah: um estômago forte também ajuda.

sexta-feira, março 30, 2012

Jogos Vorazes

Mais uma vez, muita gente vai torcer o nariz para uma coisa legal só porque ela está bombando na mídia – fala-se de Jogos Vorazes como uma "nova grande franquia", no rastro de Harry Potter ou Crepúsculo, o que significa que a indústria cultural está contando com ele para faturar os tubos, não só com livros e filmes, mas com todo tipo de memorabilia imaginável e com uma fornada de imitações mais ou menos óbvias, e isso será suficiente para que muitos nem sequer levem a sério a possibilidade de lê-lo. Como continuo acreditando que nenhum "dogma" deve ser colocado acima do julgamento individual, pus os preconceitos de lado e li.

E, vejam só, o que concluí foi que, se Jogos Vorazes vier mesmo a se tornar uma febre como aqueles outros, será preciso reconhecer que a autora Suzanne Collins visou – e acertou – um alvo bastante diferente do de suas antecessoras. Harry Potter, embora, em seus volumes finais, tenha-se permitido lidar com climas pesados e tratar de questões bastante sérias, começou de uma maneira leve, quase infantil mesmo – como escrevi em outro post, J. K. Rowling apostou em que uma geração de leitores amadureceria junto com o herói. Crepúsculo, por sua vez, é uma releitura romantizada dos vampiros do folclore e da literatura gótica. Nada disso se aplica a Jogos Vorazes. Há romance, sim, mas ele não é a mola propulsora da história. Trata-se de um universo bem mais sombrio e de um enredo bem mais cru e brutal que o de qualquer "grande franquia" que tenhamos visto recentemente. Uma aposta num público diferente?

Estamos alguns séculos no futuro. No local onde antes existiam os Estados Unidos da América, há agora um país chamado Panem, governado pelo Capitólio (no original, "the Capitol", que na tradução virou "a Capital"... Tradutores sem cultura me tiram do sério) e formado por doze distritos designados simplesmente por números. Os cidadãos do Capitólio vivem uma vida despreocupada e de abundância material, enquanto os habitantes dos distritos trabalham duramente para garantir a sobrevivência – uma sobrevivência bem mais magra e penosa em alguns deles do que em outros: aparentemente, os distritos são numerados de acordo com uma ordem, dos mais ricos para os mais pobres. Cada distrito exerce uma atividade principal: agricultura, pesca, mineração e assim por diante. Sabe-se que, décadas antes do início da história, houve uma guerra na qual os distritos, que então eram em número de 13, tentaram libertar-se do domínio do Capitólio. Doze deles foram subjugados, e o último, destruído por completo. A partir daí, o Capitólio promove anualmente os Jogos Vorazes – um evento para o qual cada distrito é obrigado a enviar um casal de jovens, de 12 a 18 anos, que serão colocados em uma imensa arena a céu aberto, onde lutarão entre si até que apenas um reste vivo. Esse retorna rico e famoso ao seu distrito, para servir (conforme a propaganda oficial) como uma "lembrança da benevolência e generosidade" do Capitólio. Detalhe: a competição, ou antes, a carnificina, é transmitida ao vivo, em rede nacional, pela televisão. Esses jovens recebem o nome de "tributos". Enquanto, na maioria dos distritos, é necessário um sorteio geral entre toda a população capaz dentro da faixa etária visada, nos distritos mais ricos, notoriamente no 1 e 2, existem os assim chamados "carreiristas", que são treinados intensivamente durante anos e, ao completarem 18, oferecem-se como voluntários. Desnecessário dizer que são quase sempre esses que vencem.

A heroína narradora é Katniss Everdeen, uma garota de 16 anos que vive no Distrito 12, onde a atividade econômica predominante é a extração de carvão. O pai de Katniss morreu cinco anos antes, numa explosão na mina onde trabalhava; a mãe caiu numa espécie de estupor causado pela depressão, ficando durante meses sem falar ou fazer coisa alguma, o que forçou Katniss, então com onze anos de idade, a, nas suas próprias palavras, assumir a liderança da família, tendo que, de algum modo, garantir sua própria sobrevivência, a da mãe e a da irmã, Prim, de sete anos. Felizmente, o Sr. Everdeen não era apenas um mineiro, mas também um homem que sabia como mover-se numa floresta, caçar e coletar plantas comestíveis ou medicinais, e, antes de morrer, teve tempo de ensinar um pouco disso à filha mais velha. Daí em diante, Katniss passa a maior parte do tempo perambulando pela região selvagem que fica além da cerca de seu distrito, seu arco garantindo carne para a mesa de sua família e para ser trocada pelas outras coisas de que precisam. Ter sido obrigada a arcar com tanta responsabilidade cedo demais fez de Katniss uma jovem aparentemente fria e dura, acostumada a reprimir as emoções. Só Prim e, em bem menor grau, o amigo e companheiro de caçada, Gale, conseguem, uma ou outra vez, fazer com que sorria ou demonstre algum débil traço de capacidade de interação afetiva.

É nesse pé que as coisas estão quando chega o dia da "Colheita" – o sorteio dos participantes – destinada à septuagésima quarta edição dos Jogos. Pela primeira vez, não só o nome de Katniss estará na urna, mas também o de Prim, que completou 12 anos desde a edição anterior. Como crianças dessa idade não têm, na prática, a menor chance contra competidores mais velhos, muito mais fortes e hábeis, a organização dos Jogos criou uma maneira de reduzir as chances de que sejam sorteadas: as inscrições são cumulativas, quer dizer, os de 12 anos têm seus nomes inscritos apenas uma vez, os de 13, duas, os de 14, três, e assim por diante até os 18. Além disso, há um sistema de distribuição de tésseras (um sinônimo arcaico para senhas) que dão direito a pequenas rações de grãos, mas, em troca de cada uma, o jovem ou a jovem tem seu nome inscrito uma vez a mais. Embora ela própria já tenha pego muitas tésseras para afastar de casa o fantasma da fome enquanto ainda não sabia caçar muito bem, Katniss jamais permitiria que Prim fizesse o mesmo. Porém, mesmo todas as probabilidades estando contra, Prim é sorteada logo em sua primeira vez, e Katniss, sabendo que a irmã estaria indo para uma morte certa, apresenta-se como voluntária no lugar dela.

(Parêntese: lendo a narrativa a respeito da Colheita, é impossível não lembrar de outro sorteio muito parecido, o que era realizado entre os jovens de Atenas para selecionar os que seriam levados a Creta para serem devorados pelo Minotauro. Collins ganhou alguns pontos comigo com essa citação clássica indireta.)

O outro tributo do ano é Peeta (uma variação futurista de Peter?) Mellark, filho do padeiro da cidade. Como Katniss observa, a boa alimentação e o trabalho constante sovando massa e carregando pesados sacos de farinha fizeram dele um rapaz forte e bem constituído, aparentemente capaz de ter alguma chance nos Jogos. O que ela não esperava era que, além disso, Peeta também se mostrasse um ator nato, capaz de tornar impossível saber quando está ou não mostrando seus verdadeiros sentimentos, seja ao dizer-se apaixonado por ela ou ao blefar na arena. Enfim, esse sujeito se daria bem nos revoltantes reality shows do século XXI. E, de qualquer forma, com ou sem paixão, há um fato implacável pairando sobre suas cabeças: só um pode sair vivo da arena. Na improvável hipótese de os outros 22 tributos morrerem e só os dois restarem, um será obrigado a matar o outro.

Mencionar os reality shows leva-me a outro ponto: eles são sem dúvida um dos muitos elementos aos quais Collins está fazendo referência em sua obra. Uma referência, por sinal, nada lisonjeira – e, vamos ser francos, eles não merecem outra coisa. Antes de os Jogos terem início, os tributos recebem um "polimento" nas mãos de estilistas, são entrevistados na TV, apresentados ao público e tudo o mais, e precisam angariar simpatias, pois isso pode significar a diferença entre a vida e a morte na arena: os Jogos Vorazes dependem de patrocinadores, que, mediante o pagamento de quantias obscenas, podem mandar algum tipo de ajuda para seus tributos favoritos, sob a forma de alimento, remédios ou outros itens vitais durante a competição. Naturalmente, os tributos mais populares têm mais chances de receber esses donativos. E, para ganhar popularidade, o que acontece, tanto nos Jogos Vorazes quanto nos Big Brothers da vida, é que as pessoas fingem ser o que não são. Embora a palavra realidade faça parte do próprio nome desse tipo de programa, tudo parece ser uma grande armação. Nos realities reais (dãã...), os participantes são, via de regra, pessoas tão rasas, vulgares e sem qualquer traço distintivo marcante, que a produção e os apresentadores procuram grudar um rótulo berrante em cada um para que o público consiga, pelo menos, distinguir um do outro: este é o palhaço, aquele é o atleta, aquele outro é o maquiavélico, e assim por diante. Romances de ocasião também ajudam. Da mesma forma, Peeta e seu mentor, Haymitch (mentor é uma pessoa que já venceu os Jogos uma vez e agora auxilia e orienta os atuais tributos) arquitetam cuidadosamente, juntos, o romance dele com Katniss, a fim de vender a imagem dos dois como os "amantes desafortunados do Distrito 12", o que faz com que sobressaiam e atraiam a atenção do público sedento de emoção – só que Peeta, o cara enigmático, mantém tanto Katniss quanto o leitor em suspense sobre se isso tudo é teatro ou se ele realmente gosta dela. Também é fato que, tanto nos realities quanto nos Jogos Vorazes, forjam-se alianças que são necessariamente temporárias, pois, caso um grupo de aliados derrote seus adversários, não restará outra alternativa a não ser apunhalarem-se uns aos outros logo depois. A única diferença é que, na arena de Panem, o apunhalamento é literal.

Registre-se também que, como não podia deixar de ser em se tratando de uma história sobre pessoas que lutam até a morte para a diversão de outras, há citações bastante claras aos combates de gladiadores da Roma antiga, o que aparece até mesmo no fato de muitos dos habitantes do Capitólio terem nomes romanos: Caesar, Claudius, Portia, Cinna... Capitólio, aliás, embora o tradutor Alexandre D'Elia, pelo visto, não saiba disso, era o nome de uma das sete colinas de Roma, onde ficava o templo de Júpiter Capitolino, protetor da cidade. Séculos mais tarde, o nome foi dado ao prédio do centro legislativo dos Estados Unidos, em Washington. A qual dos Capitólios estaria Collins fazendo alusão? Acho que a ambos. O próprio nome do país onde tudo acontece também não foi escolhido gratuitamente. Panem é pão em latim, e faz parte de uma das mais célebres expressões proverbiais da História: Panem et circenses, ou seja, 'pão e atrações de circo', significando que, enquanto o povo tiver a barriga cheia e alguma distração que não demande muito cérebro, ele não causará problemas aos poderosos, façam estes o que fizerem. Tudo a ver com Jogos Vorazes e, infelizmente, também com a nossa realidade.

Certo, não há nada de radicalmente inovador na obra de Suzanne Collins: quadros sombrios de civilizações distópicas no futuro existem em quantidade na literatura e no cinema de ficção científica (1984, Blade Runner, O Exterminador do Futuro, e isso mal serve de início se quisermos fazer uma lista), e a ideia de um programa de TV ao vivo com pessoas lutando e matando-se já aparecia num filme de 1987, The Running Man, exibido no Brasil como O Sobrevivente, com Arnold Schwarzenegger, que, por sua vez, era livremente inspirado (e bota livremente nisso...) num romance de Stephen King publicado em 1982, mas não dá para tirar o mérito da autora se ela soube recombinar esses elementos e criar algo tão capaz de prender a atenção quanto Jogos Vorazes, que, de quebra, ainda vale por uma intencional e louvável cuspida na cara de certos setores da indústria do entretenimento em nossos dias. As sequências, Em Chamas e A Esperança, estão desde já na minha lista de leitura.