Mostrando postagens com marcador Cesar Bravo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cesar Bravo. Mostrar todas as postagens

sábado, abril 17, 2021

DVD: Devoção Verdadeira a D.

Os que leram VHS viram com curiosidade e expectativa a chegada deste novo livro de Cesar Bravo, que nos leva de volta àquele mesmo universo para nos mostrar o que mudou e o que continua igual, alguns anos depois, na cidade fictícia de Três Rios e sua região. A paixão pelo cinema em geral e o de terror em particular (naturalmente) continua escorrendo de cada página, unindo o autor, os leitores e os personagens, e fornecendo a lente através da qual iremos ver uma nova coleção de horrores e bizarrices. Se vocês se identificam com tudo isso, preparem a pipoca, pois o livro vai mantê-los absortos por horas, tanto quanto ficariam ao assistir a um bom filme.

VHS, se não me falha a memória, não mencionava datas específicas, mas dava para inferir que os acontecimentos envolvendo a locadora FireStar e os personagens Pedro, Dênis e Renan deviam passar-se entre o final dos anos 80 e o início dos 90, podendo os outros contos ambientar-se um pouco antes ou depois; já DVD informa que o ano em curso é 2002. Pedro e Dênis, que eram meros sócios-proprietários de uma videolocadora, expandiram o escopo de seus negócios, embora continuem lidando com o universo dos filmes: agora são produtores cinematográficos, e, além disso, a FireStar virou uma rede, da qual eles são os franqueadores – e, na qualidade de franqueado, o outrora ajudante Renan é agora o proprietário e gerente da Loja Um, a primeira FireStar, aquela mesma onde ele começou, e que segue funcionando no centro de Três Rios. Acompanhando a mudança dos tempos, a locadora está trocando seu acervo de fitas VHS pelo novo formato… Mas, seja em fitas analógicas ou em discos digitais, o famigerado Lote Nove continua respondendo por boa parte do movimento, constituindo, inclusive, o principal interesse de alguns clientes. Como o mundo não para de dar voltas, há um novo jovem ajudante, conhecido simplesmente por "Guri", em quem Renan frequentemente se vê tal como era em seus primeiros tempos de FireStar, e em quem agora já confia o suficiente para chamá-lo para uma conversa mais franca, a portas fechadas, sobre o Lote Nove, tal como Pedro e Dênis um dia fizeram com ele. Isso tudo é revelado em FireStar DVD & Vídeo, o primeiro conto propriamente dito do livro, que vem depois de dois enigmáticos introitos intitulados Águas Turvas e Prelúdio em Dó Menor. Nessa história, além de Renan, revemos também Millôr Aleixo, o sujeito que amputou a própria perna utilizando um trem como instrumento cirúrgico no conto Torniquete, do primeiro livro – ele agora vive numa cadeira de rodas, fuma compulsivamente e parece ter envelhecido umas três vezes o que seria normal nos poucos anos transcorridos desde o incidente. Além disso, nunca superou o término com sua antiga namorada, Kelly Milena, cujo nome está, de alguma forma misteriosa, ligado aos fatos tenebrosos que aconteceram e talvez ainda aconteçam no Matadouro 7, em cuja administração ela trabalha.

Pandemonium lida com certos dramas e desafios que todo mundo que já foi adolescente conheceu, com a possível exceção dos mais populares – que, na certa, enfrentaram problemas de outros tipos para compensar. Gabriel, um garoto aparentemente comum de 13 anos, decide aproveitar uma saída dos pais para promover uma sessão de cinema em sua casa, com a aparente intenção de galgar alguns degraus na pirâmide social do colégio; para tanto, convida um pequeno grupo escolhido a dedo, composto de garotas bonitas e caras "descolados". Normalmente, tais pessoas ignorariam um convite desses vindo de um pária como Gabriel, mas ele conta com um trunfo: depois de seu nome ficar por semanas numa lista de espera, ele acaba de conseguir alugar na FireStar o "filme maldito" do momento, o tal Pandemonium do título, cujas cenas chocantes, ao que se diz, já "maluqueceram" algumas pessoas; para adolescentes, e mesmo para muitos adultos, não poderia haver propaganda melhor que essa para um filme – é ainda melhor (ou pior, vai saber) que "proibido em trocentos países" escrito em letras berrantes na caixa da fita. Anda todo mundo doido para ver esse filme, mas, por alguma razão inimaginável, uma cláusula no contrato de licenciamento estabelece que a distribuidora só pode vender uma cópia para cada locadora. Com tudo isso, a sessão de cinema de Gabriel tem tudo para ser um sucesso… mas o final não será feliz. A ação transcorre em 1989, o que só ficamos sabendo bem depois de ler o conto, embora já tivesse ficado evidente que devia ser por volta dessa época, já que, nele, Dênis e Pedro ainda administram a FireStar, e Renan ainda é apenas um ajudante, ou seja, cronologicamente, Pandemonium poderia fazer parte de VHS.

Em A Voz que Caminhava, a pequena Rafaela, ajudando o irmão a esvaziar o quartinho dos guardados na casa da família, encontra uma relíquia: um velho walkman que pertencia a seu pai, que não o usa há mais de 20 anos. A menina se encanta com a velha engenhoca, e o pai, achando graça, permite que fique com ela. O primeiro sinal de que nem tudo está normal vem quando Rafa se mostra assustada ao ouvir, nas estações de rádio que ela sintoniza em seu novo-velho brinquedo, notícias sobre uma iminente guerra nuclear que poderá acarretar o fim do mundo – notícias essas que refletem a situação mundial lá pelos anos 80, quando a catástrofe foi evitada por um triz mais de uma vez. Ela ouve também sobre um menino que foi achado morto no banheiro do mesmo colégio onde ela e o irmão estudam, o tradicional Aureliano Gomes, na cidade de Velha Granada, vizinha de Três Rios – e, embora ela não guarde o nome, o menino não era outro senão o encrenqueiro Jonas Duna, mencionado no conto Branco Como Algodão, de VHS. Quando Rafa começa a fazer coisas estranhas (e perigosas), totalmente alheias ao seu comportamento habitual, o pai se vê forçado a admitir que tudo está  interligado… e que o walkman vagabundo de seus tempos de escola, que sua filha agora carrega para todo lado, pode estar assombrado. O conto é curto, eficiente, e sua ligação com algo que os leitores de Cesar Bravo já conhecem parece potencializar o efeito tenebroso.

O título de Ballet Royale é um trocadilho com "battle royale", expressão que se popularizou a partir do romance homônimo do escritor japonês Koushun Takami publicado em 1999 e acabou dando nome ao que se tornou praticamente um subgênero dentro da ficção distópica, tendo seu mais famoso exemplo na franquia Jogos Vorazes: é aquele tipo de enredo em que um grupo de pessoas é jogado em alguma espécie de arena e obrigado a lutar entre si até que só um reste vivo. Aqui, as regras são um pouco diferentes, mas tão brutais quanto: várias mulheres aparentemente sem qualquer ligação umas com as outras são sequestradas e levadas ao que parece ser uma mansão isolada no meio da mata, onde são forçadas por três carcereiras mascaradas a dançar balé – coisa que a maioria delas jamais fez na vida –, sendo exigido que executem com perfeição os mais difíceis movimentos, e qualquer falha é punida com violência absurda. A lógica do conto é a mesma de Bicho-Papão (que chega a ser mencionado dentro da história!): no começo ficamos chocados, penalizados e torcendo por alguma reviravolta que faça as cativas levarem a melhor sobre suas algozes, mas depois há certas revelações que mudam tudo; essas revelações mostram também que, ao contrário do que parecia, todas essas mulheres têm, sim, alguma coisa em comum.

Em Sopa de Letrinhas, somos apresentados a Bia, uma menina pequena, e a sua avó, D. Eslovena, com quem a garotinha vive desde que sua mãe (a filha de Eslovena) foi embora não se sabe para onde. Por várias páginas nos perguntamos o que aquela história está fazendo num livro de terror, pois o que lemos é uma sucessão de cenas fofas que mostram Bia descobrindo o mundo sob o olhar da avó carinhosa, que a educa com infinita bondade e paciência. Mas, como sei que já escrevi em algum lugar deste blog (e talvez mais de uma vez), começar com cenas da vida normal é um recurso que o terror usa há muito tempo e que parece nunca perder a eficácia: as coisas começam a ficar estranhas quando Bia, que ainda nem chegou à idade de alfabetização, mas já consegue ler palavras simples, passa a ver as letrinhas de macarrão na sopa que a avó lhe serve formarem mensagens, como numa espécie de tábua Ouija para crianças do pré-maternal. Talvez a sinopse, colocada assim, pareça boba, mas, se for o caso, a culpa é minha, e não de Bravo: a justaposição da inocência infantil com sugestões preternaturais tem um efeito poderoso quando a coisa é bem feita, tanto que, mesmo sendo muito mais curta, muitíssimo mais simples, e não tendo qualquer semelhança notável em termos de enredo, Sopa de Letrinhas me fez pensar em O Povo Branco, de Arthur Machen. Ah, e existe uma conexão entre Sopa de Letrinhas e Pandemonium, conexão essa que evidencia novamente que é melhor o leitor não fazer muita questão de uma cronologia precisa, primeiro porque cada conto pode transcorrer num ano diferente e eles não estão colocados em ordem, e segundo porque, no universo de Cesar Bravo, existem certas, digamos, singularidades no que diz respeito ao tempo.

Lar, Doce Lar segue os personagens Duque e Paloma – um gângster do interior paulista e sua amante –, que acabam de assaltar um banco, escapar da polícia e, em sua fuga, utilizam estradas secundárias que os levam em direção à microrregião maldita formada por Três Rios e os municípios menores que a cercam. Nessa viagem, vários fenômenos estranhos se manifestam: tanto a aparência do céu quanto a dos campos que ladeiam a estrada muda de repente, trovões ensurdecedores soam do nada, sem que haja sinal de chuva e, o mais desconcertante, olhando pelo espelho retrovisor veem-se coisas que simplesmente não estavam ali quando o carro passou pelos mesmos locais, segundos antes. A região parece ser uma encruzilhada, mas não de estradas: uma encruzilhada no tempo, e talvez também entre dimensões.

O Homem da Terra leva-nos de volta ao final do século XIX para nos apresentar a Ítalo Dulce, um imigrante italiano e personagem arquetípico, já que, como ele próprio observa, "ítalo" é a mesma coisa que italiano (falta uma boa explicação para que seu sobrenome seja "Doce" em espanhol). Ele e sua esposa, Gemma (não poderia haver nome mais adequado) vivem todas as durezas que os imigrantes enfrentavam naqueles anos; são colonos, quer dizer, receberam do governo um lote de terra para trabalhar por conta própria, diferentemente de outros imigrantes que vinham como empregados para as fazendas de café, para, na prática, substituir a mão de obra dos escravos, que haviam sido libertados pouco antes. Não tenho conhecimento suficiente para dizer em qual das duas situações um imigrante batia mais cabeça; é provável que ambas fossem igualmente ferradas de maneiras diferentes, embora ainda fosse melhor que ficar no país de origem, onde, na época, a imigração era para muita gente a única alternativa para (tentar) escapar da miséria. Tudo indica que Ítalo terá o mesmo destino de muitos outros italianos em terras brasileiras, que era o de trabalhar de sol a sol pela simples sobrevivência enquanto tivesse forças para tanto e, depois disso, só Deus sabe… Até que certo dia, tirando mel numa gruta junto à nascente do rio Escuro (um dos três que dariam nome à cidade que mais tarde existiria ali), não muito longe de sua casa, o imigrante encontra um misterioso personagem que lhe propõe um pacto. Para evitar spoilers, direi apenas que, nos tempos nos quais se ambienta a maior parte das histórias de VHS e DVD, Ítalo Dulce é considerado um vulto histórico, uma espécie de patriarca, um dos homens que tornaram possível a prosperidade econômica de que a região viria a gozar – e o Mel da Gruta ainda é um produto muito apreciado, com "tradição de mais de um século".

Gladiadores em Technicolor é protagonizado por Lívia, filha de Renan (ela já havia aparecido, pequenininha, em FireStar DVD & Vídeo, e aqui ressurge um pouco mais velha, mas não muito). Ela e seus amigos Juliano e Cléber estão fazendo um filme, uma fita caseira de ação/fantasia inspirada nos clássicos dos anos 80, como Os Aventureiros do Bairro Proibido, filme estrelado por Kurt Russell que chega a ser citado, entre outros. A história é curta e tem um sabor nostálgico de infância e de amizades separadas, pois Lívia está prestes a mudar-se de Três Rios com os pais – Renan, muito a contragosto, está tentando vender a locadora. Chega a parecer que o conto vai ser feito apenas desse misto de diversão e melancolia, mas boatos sobre acontecimentos estranhos em Três Rios e arredores aparecem na conversa das três crianças, e ela termina num elo explícito com Lar, Doce Lar. Ah, e tem um detalhe que não se pode deixar passar: o título do filme que os garotos estão fazendo é A Batalha de Devorac – e Devorac é um nome que voltará a aparecer.

Em Solo Sagrado, lemos sobre o esforço de Saulo Renan Sampaio, um jovem pastor evangélico que chega a Três Rios decidido a instalar uma nova igreja, e, para tanto, adquire o terreno da antiga locadora FireStar (e digo isso apenas para deixar vocês curiosos; não contarei o que aconteceu com a locadora). Conforme encara a luta para erguer sua igreja e depois para fazê-la começar a funcionar, Saulo vai ficando menos cético a respeito das histórias macabras que ouviu sobre Três Rios: é como se alguém, ou mais provavelmente algo, estivesse tentando impedir ou ao menos dificultar o máximo possível a pregação da palavra de Deus naquele lugar – sendo que "lugar" pode significar o local específico onde ficava a locadora, ou a cidade como um todo. Perto do final do conto, o pastor se vê dialogando com um misterioso "homem de camisa vermelha" que lhe desperta sensações não muito agradáveis, e que menciona de passagem ter conhecido há muito tempo um sujeito de nome Deodoro… Leitores atentos e de boa memória que leram VHS matarão a charada. Por falar nisso, conforme vamos nos aproximando do final de DVD, vai crescendo um impulso de, ao terminá-lo, emendar com uma releitura do livro anterior, pois há uma viva sensação de que, agora que temos novas informações, muitas coisas dele serão melhor compreendidas e se encaixarão melhor no grande e tenebroso quebra-cabeça que Bravo está criando.

Em Devorac, a região de Três Rios está sendo aterrorizada pelos ataques do que a polícia e a imprensa assumem ser um serial killer que, por alguma razão, mata apenas idosos – mas que, fora isso, não parece fazer nenhum tipo de distinção, atacando homens, mulheres, brancos, negros, o que for. Os corpos dos anciãos são sempre encontrados com terríveis mutilações que desafiam os peritos da polícia e enchem de pavor qualquer um que as veja. Como acontece tanto no terror, há aquela teimosa obstinação por parte das pessoas "racionais" em tentar obrigar a realidade a encaixar-se dentro da moldura do "plausível": um serial killer é uma coisa horrenda, mas que ainda pertence ao campo dos fatos explicáveis, e portanto (pensam as tais pessoas "racionais") essa deve ser a resposta. Tem que ser. Por favor, seja, porque a alternativa é muito pior! As mutilações nas vítimas são coisas que não poderiam ter sido feitas por nenhum ser humano, não importa o quão louco, e nem mesmo por qualquer animal conhecido, mas ninguém quer pensar nisso. Mais uma vez, o leitor atento terá reunido pistas, ao longo da leitura deste livro e do anterior, que lhe permitirão ir construindo uma teoria sobre o que pode ser o tal Devorac. A AlphaCore Biotecnologia, empresa do magnata Hermes Piedade, pode ter algo a ver com isso. Piedade (eita sobrenome irônico) é considerado por muitos um homem de visão e um benfeitor que trouxe o progresso para a região – e por outros tantos uma cria do demônio, que, junto com o tal “progresso”, pode ter trazido também outras coisas bem menos desejáveis. O conto Bom pra Cachorro, que vem logo depois de Devorac, fornece mais algumas pistas nessa direção, mas sem revelar demais. Ainda sobre Devorac, preciso confessar que o jeito como o narrador fala sobre o predador misterioso me fez pensar na igualmente misteriosa Besta de Gévaudan (caso essa referência não lhes seja familiar, vejam o excelente filme O Pacto dos Lobos, de Christophe Ganz, com Vincent Cassel e Monica Belucci).

Polaroid Colorpack 80 leva o nome de um tipo de câmera fotográfica que já foi bastante popular graças ao diferencial de não precisar de revelação (a garotada que já nasceu na era das fotos digitais talvez nem entenda do que estou falando, mas, se for o caso, basta ir até a Wikipédia e pesquisar um pouco sobre história da fotografia). Você tirava a foto e, em segundos, ela saía por uma fenda na câmera, já impressa e pronta. Quem chegou a ter uma Polaroid conta que as fotos não eram tão boas, deixavam a desejar em nitidez e colorido, e, além disso, desbotavam depois de alguns anos, mas, mesmo assim, a praticidade da coisa conquistou alguns fãs – sem contar que essa câmera era a favorita dos serial killers e outros freaks para registrar seus "feitos", já que as câmeras convencionais tinham o sério inconveniente de que seus filmes precisavam ser levados até um estúdio ou loja de fotografia para serem revelados – e o laboratorista que topasse com imagens de natureza potencialmente criminosa, sem dúvida notificaria a polícia… a menos que o próprio serial killer soubesse revelar, como alguns de fato sabiam, mas isso não vem ao caso aqui. A história tem como protagonista um sujeito de nome Leone Dantas, proprietário, gerente e atendente da Paraíso Perdido, loja em Três Rios especializada em comprar e vender todo tipo de item usado, desde móveis até discos e revistas, passando por antigos eletrodomésticos (ou "eletromésticos", como diz o anúncio da loja nos classificados) que agora têm basicamente o valor de curiosidades. Certo dia, Jaime Extremo (sobrenomes improváveis, e às vezes nomes também, são meio que uma peculiaridade regional em Três Rios e arredores), um idoso que é uma espécie de ajudante informal de Leone, aparece com uma notícia potencialmente interessante: um cidadão chamado Amâncio Gruta acaba de morrer e, como vivia sozinho e não tinha esposa, filhos ou outros parentes chegados, sua casa passou em herança à família extensa, e vai ser leiloada. Enquanto isso não acontece, os bens móveis que o falecido deixou na casa podem ser arrematados em lote por um valor razoável, e, com alguma sorte, alguns itens podem dar lucro ao serem postos à venda na Paraíso Perdido. Há um detalhe que pode fazer bastante diferença: apesar de não levar o sobrenome, Amâncio era descendente dos Dulce, talvez um bisneto do semilendário Ítalo Dulce, e, considerando a estreita ligação dessa família com a história da região, há uma possibilidade real de que a casa do velho guarde alguns objetos dotados de valor histórico. Assim, Leone aceita o negócio e, tempos depois, ele e Jaime vão até a casa para conferir seu conteúdo. Entre a esperada coleção de itens comuns, com variados graus de interesse para venda, eles encontram uma caixa contendo fotos – fotos que mostram, muitas delas, pontos conhecidos de Três Rios e cidades vizinhas, mas, naqueles panoramas familiares, há por vezes alguma coisa que não parece estar certa, e Leone acaba entendendo o que é: algumas das imagens mostram os lugares com alterações que ainda vão acontecer, tal como o atual local da locadora FireStar ocupado por uma igreja evangélica… Outras fotos mostram imagens perturbadoras e inexplicáveis, que o leitor reconhecerá como sendo registros de cenas descritas em vários dos contos de VHS e DVD, e examiná-las acaba afetando a sanidade do lojista. Na minha humilde opinião, Polaroid Colorpack 80 merece um lugar entre as melhores histórias do "bravoverso" publicadas até agora.

A penúltima história do livro é Tomada En Passant, cuja maior parte é dedicada a narrar uma reunião dos Filhos de Jocasta, que parecem ser uma espécie de "maçonaria" local, congregando as figuras mais destacadas da sociedade desse noroeste paulista fictício. O ponto de vista é o de um homem chamado Almirante Querido (!!!), que veio de origens humildes e agora é um rico homem de negócios, tão importante, de fato, que até ganhou uma cadeira nesse seleto clube. Inesperadamente, a sessão é invadida por ninguém menos que Hermes Piedade, que, por sinal, já foi por várias vezes convidado a tornar-se membro dos Filhos, mas nunca aceitou. O magnata veio apresentar à assembleia seu novo parceiro nos negócios, um jovem empresário que, diz ele, veio para "revolucionar" a economia local. Considerando o que já sabemos sobre as atividades de Piedade, é difícil esperar boas coisas dessa tal "revolução", e Almirante encara a novidade com bastante ceticismo… mas descobrirá que ficar no caminho de Hermes Piedade significa arriscar muita coisa. Esse conto parece ter sido bolado para preparar certos acontecimentos que podem estar por vir em volumes futuros dessa… série? Também parece ser esse o objetivo de algumas notícias enigmáticas dos jornais da região, "reproduzidas" nas últimas páginas do livro. Em tempo: eu me pergunto se eventualmente receberemos uma explicação para o nome dessa irmandade. "Filhos de Jocasta" evoca associações de incesto e/ou tragédia, e, como se fosse para assinalar que a escolha do nome não foi casual, o "mestre da ordem" recebe o título de “Édipo”.

DVD termina com Sete Vidas, que narra (com detalhes agoniantes) o destino final de Sagitário Piedade, filho caçula de Hermes Piedade e mau elemento irremediável desde sempre: era colega de Gabriel Cantão (o do Pandemonium) em fins dos anos 80, sendo já então um dos piores bullies do colégio, e sua carreira a partir daí consistiu numa sucessão de roubos, sequestros, assassinatos, estupros e coisas que tais, tendo constante necessidade da intervenção do pai, com sua influência e seu dinheiro, para repetidamente livrá-lo das garras da justiça e mantê-lo livre para praticar novas vilanias – até ser apanhado por dois personagens misteriosos, decididos a fazer justiça com as próprias mãos e, aproveitando a oportunidade, usar "Sági" como cobaia para uma curiosa experiência envolvendo memória e viagem no tempo. Mais uma vez, o esporear de emoções causado pela história segue o mesmo itinerário de Bicho-Papão e Ballet Royale, como se lançasse um desafio ao leitor: e aí, vai ficar com peninha, ou acha que ele só está recebendo o que merece? De todo jeito, a leitura é pra lá de incômoda, e os resultados da tal experiência, ainda que inconclusivos, abrem uma infinidade de possibilidades.

Tal como já havia feito em VHS, atribuindo a essa conhecida sigla o novo significado de "Verdadeiras Histórias de Sangue", Cesar Bravo também brincou com o título de DVD: ao mesmo tempo que designa o novo formato de vídeo com o qual a FireStar e demais locadoras passaram a trabalhar, essa é também a sigla de "Devoção Verdadeira a D.", mas ainda não é neste livro que ficamos sabendo o que significa essa inicial misteriosa: ela aparece aqui e ali, mas não é objeto de explicações. Com esse novo livro, Bravo promove uma considerável ampliação em seu universo sombrio, deixando seus leitores fiéis (pois ele já os tem) cada vez mais curiosos e ansiosos por mais. Em algum canto da internet, já vi alguém se referir ao escritor como o "Stephen King tupiniquim", uma comparação que, tenho certeza, o deixaria satisfeito, já que, assim como (pelo menos) grande parte de seu público, ele é provavelmente um fã do mestre do Maine, e, de fato, o que Bravo está fazendo com sua Três Rios lembra o que King fez com Jerusalem's Lot, Derry e Castle Rock – está construindo uma mitologia, tijolo por tijolo. Como só os realmente bons conseguem fazer, Bravo foi capaz de aprender com King (e com outros mestres do terror) sem se transformar num mero copycat: seu estilo é muito pessoal, marcante e fácil de reconhecer. Se a DarkSide topou publicar mais este livro, é porque o anterior deve ter sido bem-sucedido, e com muito mérito. Torço para que essa parceria continue.

quinta-feira, fevereiro 20, 2020

VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue

Essa geração acostumada a ver filmes e séries por meio de serviços de streaming deve achar bizarro o próprio conceito de "videolocadora", fosse qual fosse o formato de mídia utilizado. Um lugar até onde você precisava se locomover, e onde ficava circulando por entre prateleiras cheias de caixinhas vazias, cada uma tendo na frente uma reprodução do cartaz do filme, atrás uma pequena sinopse (geralmente mal traduzida) e às vezes algumas fotos – e essa costumava ser toda a informação que você tinha para decidir se iria ou não investir seu tempo e seu dinheiro para vê-lo, a menos que se tratasse de um filme famoso ou que você tivesse alguma informação prévia a respeito dele, o que, naqueles tempos sem internet, não era frequente. (Certa prima minha tinha por método de seleção descartar automaticamente qualquer filme não famoso, declarando em tom de desprezo: "nunca ouvi falar", como quem diz "nunca ouvi falar, logo não é bom".) Aí você levava essas caixinhas vazias até o balcão, onde um atendente as recebia e ia até o acervo buscar as fitas (mais tarde, discos). Você saía da locadora transportando essas mídias físicas (!) e as levava para casa, onde tinham que ser inseridas no aparelho adequado, conectado à sua TV por meio de uma selva de cabos, para que você pudesse ver o filme. Sei o quanto isso tudo parece absurdamente primitivo e trabalhoso para quem hoje escolhe seus filmes do conforto de sua poltrona, usando nada além de seu smartphone ou controle remoto; parece tosco mesmo se você pensar em DVDs ou blu-rays, mídias razoavelmente confiáveis e que oferecem um bom desempenho de imagem e som, que dirá então se formos falar nas velhas fitas de vídeo VHS, coisas enormes e pesadas que pareciam (e, no fundo, eram) uma versão maior e mais desajeitada das fitas cassete de áudio, tinham uma qualidade de imagem sofrível e uma desesperadora tendência a embolar, enguiçar e dar mil e um outros defeitos. Ah, e antes de devolvê-las à locadora, você tinha que rebobiná-las.

Apesar de tudo isso, a era do VHS deixou saudade. Quem for da minha faixa etária, ou ligeiramente mais velho ou mais novo, certamente se lembra do porquê, e quanto à garotada, peço que considere isso como uma pequena lição de História. Acontece que o advento do videocassete nos trouxe, pela primeira vez, a liberdade de escolher o que queríamos assistir. Até então, só havia duas maneiras de se ver um filme: ir ao cinema ou assistir aos que fossem veiculados nos canais da TV aberta, em horários muitas vezes pouco convenientes, com comerciais no meio e, não raro, em versões tesouradas, fosse por conta de alguma cena mais "ousada" ou simplesmente para que o filme pudesse ser encaixado na grade de programação sem atrasar o programa seguinte. Ou seja, o vídeo VHS representou um enorme progresso para a época. Que época?, perguntarão vocês. Bem, pelo que me lembro, já ouvíamos falar em videocassete desde o início dos anos 80, mas era "coisa de rico". Ele só foi se popularizar lá pelo fim dessa mesma década, e viveu seu auge durante a seguinte. Passar na locadora na sexta-feira à tardinha fazia parte da magia da chegada do fim de semana. Era bom.

E eis que Cesar Bravo, paulista de Monte Alto, escritor em franca ascensão no ainda limitado campo do terror made in Brazil, decidiu revestir sua mais nova obra (por enquanto, a única que li) de uma atmosfera saudosista, ambientando-a precisamente na era de ouro do VHS. O palco dos acontecimentos é a fictícia Três Rios, no noroeste paulista (há uma Três Rios real no estado do RJ, mas não tem nada a ver com esta), onde, em fins dos anos 80, a videolocadora FireStar vai de vento em popa, liderando o segmento na cidade. Devido ao crescimento da clientela, os sócios-proprietários Pedro e Dênis, que até então cuidavam sozinhos do estabelecimento, decidem contratar um ajudante, o adolescente Renan. Além disso, implementam uma ideia destinada a tentar reduzir a prática da pirataria: quem trouxer fitas de vídeo usadas ganha um desconto na locação de lançamentos. Quando, por engano, uma das fitas caseiras recebidas na promoção vai parar entre as locações de um cliente esquisitão, surpresa: em vez de reclamar de ter pago para ver a gravação de uma reles festa de aniversário com gente que nem conhece, o sujeito pergunta se a locadora não tem mais fitas do mesmo tipo… É assim que Pedro e Dênis descobrem que podem aumentar seus lucros oferecendo (na surdina) a seus clientes a oportunidade de ver imagens da intimidade de outras pessoas. Esse seria um negócio supimpa em qualquer lugar (o conceito de reality show só surgiria nos anos 90, se não me engano, mas seu sucesso só foi possível graças à tendência voyeurística preexistente numa grande parcela do público), e mais ainda numa cidade pequena, onde, em geral, as pessoas estão sempre interessadíssimas na vida alheia e a fofoca é uma espécie de esporte popular. Certo, de acordo com as informações presentes no livro, Três Rios não é tão pequena assim, tendo pouco mais de 310 mil habitantes no censo de 2019, mas é fato que esses 30 anos são tempo suficiente para uma cidade crescer bastante, e, além disso, talvez os critérios de cidade grande ou pequena variem de um estado para outro.

Quando Renan já está trabalhando na locadora há algum tempo e conquistou uma certa confiança por parte de seus chefes, eles lhe revelam esse novo filão que estão explorando por baixo dos panos e lhe fazem uma proposta: ele deve levar para casa as fitas do Lote Nove (um codinome que usam para as gravações caseiras), algumas de cada vez, e assistir ao seu conteúdo para então classificá-las. Seu salário terá um aumento substancial, não tanto para compensá-lo por levar trabalho para casa quanto para comprar seu silêncio a respeito dessa atividade ilegal. O que ninguém esperava era que o conteúdo de algumas das fitas pudesse se mostrar tão perturbador quanto acaba se mostrando. Para saber mais, vocês terão que ler o livro.

O conto FireStar Videolocadora, do qual acabo de falar, é o primeiro, e, considerando a caprichada apresentação visual do livro, confesso que eu tinha a ideia de que a locadora e os personagens Pedro, Dênis e Renan compusessem uma espécie de painel que englobaria as outras histórias, como naqueles filmes-antologia, geralmente de terror, que eram tão populares nos anos 80 – havia uma história principal, e as outras eram encaixadas dentro dela por meio de um personagem que as narrava, ou de um livro, manuscrito etc. Mas não é o que acontece aqui: FireStar Videolocadora termina e os contos que se seguem não parecem ter ligação com ele, exceto pelo fato de todos se ambientarem na mesma microrregião fictícia que engloba Três Rios e vários municípios vizinhos. A apresentação visual a que me refiro já fica evidente antes de abrirmos o livro: a capa faz com que ele pareça uma fita VHS, não as que você encontrava nas locadoras, que normalmente já vinham das distribuidoras com uma embalagem oficial do filme (que era a tal caixinha vazia que ficava nas prateleiras), mas as fitas que você podia comprar ainda virgens e usar para gravar programas de TV ou copiar o conteúdo de outras fitas; elas também podiam ser usadas em filmadoras caseiras – como no caso das fitas do Lote Nove. A inspiração direta para o design da capa veio da embalagem de uma fita da marca TDK, que era comercializada nos anos 80. Ao abrirmos o livro, o cuidado com a parte visual continua: há recortes de jornais fictícios (completos, incluindo até mesmo fotos com aquela textura granulada que fotos de jornais tinham na época) e anúncios classificados que imergem o leitor no cotidiano de uma cidade do interior e traçam ligações com os elementos presentes em um ou outro conto – é num desses classificados que ficamos sabendo, por exemplo, que a FireStar está localizada na rua George Orwell, n.° 1984 (risos). Essas notícias e anúncios já começam a nos fazer repensar aquela impressão de que não há relação entre o primeiro conto e os outros, e mais indícios do contrário vão aparecendo. Ou seja, o livro pode não seguir o esquema dos tais filmes-antologia, mas certamente é bem mais que uma simples coleção de contos.

(Alguns de vocês devem estar pensando, e não sem alguma razão, que a existência de uma "rua George Orwell" numa cidade com as características da Três Rios de Cesar Bravo é um tanto dura de "engolir". Nomes de ruas são, em geral, sugeridos por vereadores, e, em cidadezinhas do interior, quase sempre homenageiam personalidades locais – seria muito improvável que algum vereador de um lugar assim conhecesse Orwell, para não falar na coincidência inimaginável de a numeração do prédio ser justamente 1984! Concordo com tudo isso, mas, independentemente de sua verossimilhança, a homenagem é legal!)

Os contos contemplam desde o terror sobrenatural até outro tipo de horror, aquele gerado por atos humanos, e às vezes as duas coisas se entrelaçam, como em Chuva Forte, no qual a cidade de Cordeiros é atingida por uma chuva de sangue – sangue humano de verdade, e não alguma coisa explicável que apenas se pareça com ele: análises laboratoriais demonstram que é sangue mesmo. O fenômeno fantástico e inacreditável, como ficamos sabendo depois, está relacionado a um segredo obscuro que ficou oculto durante muitos anos, e que se refere a uma decisão tomada em conjunto por vários figurões da sociedade local, decisão essa que custou vidas humanas. E agora parece que alguns espíritos querem vingança.

Um dos contos de que mais gostei foi Branco Como Algodão, que lida com a conhecida lenda urbana da "loira do banheiro", que, com diferentes nomes e certas variações nos detalhes, parece existir no mundo todo, e a cidade de Velha Granada não é exceção: quando um aluno da escola local é encontrado morto no banheiro sob circunstâncias estranhas, o detetive de polícia Louis Trindah vai investigar. Louis é aquele típico policial durão e cético, que tem certeza de que há uma explicação racional e provavelmente bem simples para a coisa toda – mas descobrirá que não é bem assim.

Três que Capturaram o Diabo apresenta uma conversa entre o velho homem do campo Deodoro e seu neto Tavinho; ao ouvir o avô mencionar aleatoriamente o diabo, o garoto quer saber mais sobre esse misterioso personagem, e recebe em resposta uma história da juventude de Deodoro, sobre como o coisa-ruim já andou por aquelas bandas sob disfarce humano. Cesar Bravo obtém um belo efeito nesse conto ao retratar esse mundo interiorano que muitos de nós chegamos a conhecer pelo menos um pouco, onde as pessoas de mais idade geralmente tiveram pouca ou nenhuma instrução, não têm qualquer intimidade com livros, mas mesmo assim, sem saber, dominam uma forma de literatura, já que, para elas, ouvir e contar histórias sempre foi uma parte normal do cotidiano.

Bicho-papão causa mal-estar (e não há a menor dúvida de que a intenção era essa), e eu não o chamaria realmente de terror, pelo mesmo motivo pelo qual, para mim, filmes como Jogos Mortais e O Albergue também não fazem parte do gênero: não há nada de sobrenatural e também não há mistério, ou, se há, ele é acessório. Esse conto é basicamente sobre tortura e degradação, mostrando o dia a dia de um homem que vive há meses acorrentado num porão imundo onde constantemente recebe visitas de três sujeitos fardados como policiais, que o submetem a todo tipo de tratamento horripilante, chamando isso de "terapia". Ao longo de várias páginas o autor usa e abusa do privilégio de chocar o leitor, levando-o a sentir horror e pena, e principalmente a ficar perplexo, querendo saber qual o sentido daquilo tudo… Até revelar que o homem está ali por causa de algo que fez, o que pode fazer muitos dos leitores mudarem de ideia. Não vou criticar, mas não é o tipo de literatura que eu, pessoalmente, estou procurando quando abro um livro de terror.

(Acho pertinente uma rápida observação sobre Jogos Mortais, já que o citei como exemplo de "não-terror": acho difícil falar dessa franquia como uma coisa só. Gostei do primeiro filme, que considero um suspense na tradição de Seven e O Silêncio dos Inocentes – não é tão bom quanto eles, mas segue numa pegada parecida, o clima é parecido, e o sadismo que existe está a serviço da narrativa, não o contrário, como aconteceria nos filmes seguintes, que, a meu ver, não são nem suspense nem terror, e sim mero torture porn. Vi, se não me engano, o segundo e o terceiro, depois perdi o interesse, junto com a esperança de que a franquia eventualmente voltasse a apresentar as qualidades do primeiro filme.)

Torniquete é um conto agoniante, mas que te pega de uma maneira que não dá para interromper a leitura. É totalmente subjetivo dizer isso, mas ele me causou uma sensação semelhante à de Eu Sou o Umbral da Porta, de Stephen King, e aí não sei dizer se é só porque as duas histórias têm em comum protagonistas que tomam a decisão drástica de "cortar o mal pela raiz" livrando-se de uma parte do próprio corpo, ou se existe alguma semelhança mais sutil. Millôr Aleixo é um jovem morador de Três Rios que ganha a vida trabalhando pendurado num rapel, limpando janelas de prédios altos, e de repente, por motivo nenhum, começa a sentir uma coceira atroz na perna direita, que nenhum tratamento consegue resolver, simplesmente porque não parece ter qualquer causa que se possa detectar para tratar. Quando a coceira se transforma numa dor, também sem causa aparente, e o rapaz está a ponto de enlouquecer, sem conseguir trabalhar, nem dormir, nem nada, ele decide amputar a perna com o "auxílio" de um trem. Para narrar a história, o autor pega carona numa entrevista na qual Millôr conta o acontecido a um repórter – pois, é claro, um caso grotesco e sanguinolento como esse tem muito valor para a imprensa, e nesse caso nem dá para criticar muito, pois, afinal, estamos aqui lendo o conto, não estamos?… O entrelaçamento de histórias continua, pois a ex-namorada de Millôr, que o largou quando ele começou a ter o problema com a perna, era uma certa Kelly Milena, nome que o leitor, nessa altura do livro, já "ouviu" antes.

O Último Centavo da Sra. Shin conta-nos sobre uma senhora idosa, descendente de japoneses, que, apesar de ter nascido e, pelo que entendemos, sempre ter vivido no Brasil, nunca realmente se adaptou ao país; o jeito espalhafatoso dos brasileiros, a falta de disciplina e de respeito para com os mais velhos, e em especial o famoso "jeitinho" a deixam exasperada. Não dá para deixar de refletir que o Japão do qual ela sente saudade (o que é paradoxal, pois como alguém pode ter saudade do que não conheceu?) é provavelmente um Japão que já não existe há muito tempo. Para encontrar um pouco de paz, ela costuma ir ao templo budista que existe em sua cidade (não é explicitado de qual cidade se trata), onde tem conversas com a estátua de Shinigami, o deus da morte. No conto, "Shinigami" é usado como um nome individual, como sendo o nome desse deus específico, mas, se formos pesquisar nos contextos do budismo e xintoísmo, veremos que "shinigami" designa toda uma classe de deuses (talvez "espíritos" seja mais adequado) que teriam por função determinar o momento da morte dos seres humanos – é mais ou menos o que quem viu Death Note já conhece. De qualquer forma, hoje em dia a maioria dos japoneses considera tais entidades como figuras puramente simbólicas, o que não é bem o caso nesta história… Pode parecer mórbido, ou ao menos esquisito, alguém orar para um deus da morte, mas a cultura japonesa tradicional lida, ou lidava, com a morte de uma maneira mais filosófica que a nossa, vendo-a como uma coisa natural e inevitável, uma passagem que todos nós faremos mais cedo ou mais tarde e que, portanto, é melhor aceitar com tranquilidade desde já. Tínhamos algo parecido no ocidente: os romanos (seguindo a tradição de outros povos pagãos antes deles) e depois os cristãos dos primeiros séculos, encaravam a morte com serenidade, mas essa atitude se perdeu com a secularização e o avanço do materialismo, até chegarmos à sociedade atual, na qual o simples ato de mencionar a morte é considerado de mau gosto. Em tempo: O Último Centavo da Sra. Shin está evidentemente ambientado alguns anos depois da maior parte dos outros contos do livro – em 1994 ou depois, já que a moeda mencionada é o real.

Assim como Torniquete, Lugar Algum também tem um feeling stephenkinguiano, mas neste não dá para apontar uma história específica do mestre do Maine como possível inspiração, já que a situação da qual ele parte aparece em várias: alguns homens (somente homens) estão num bar, tomando umas e outras e conversando sobre assuntos aleatórios, quando chega um cliente esquisito, e a partir daí a aura de normalidade começa a se deformar. Em Lugar Algum, a participação desse cliente vai além de contar histórias estranhas, embora ele comece fazendo justamente isso: parece trazer consigo alguma coisa sombria e malévola, que costuma se manifestar, diz ele, às três da madrugada – a "hora morta", a hora inversa à da morte de Cristo na cruz, que foi às três da tarde, e que por isso os demônios, por zombaria, teriam escolhido como "sua" hora. A atmosfera de tensão vai aumentando à medida que o desconhecido, de nome Estêvão, vai contando sua história e os ponteiros do relógio vão caminhando implacavelmente rumo às três… Concordo que algumas interrupções bobas por parte dos ouvintes são um recurso eficiente para dar um ar de "verdade" à narrativa, mas, no lugar do autor, teria sido mais parcimonioso ao usar esse truque, pois o excesso de interrupções deixa o leitor impaciente. Tirando esse pequeno problema, é um excelente conto.

Talheres de Ossos do Rei Invertebrado tem o título mais enigmático e curioso dentre todos os contos em VHS. Na primeira vez em que o li (em que li o título, quero dizer), ele me evocou vislumbres da obra de Robert W. Chambers, não sei ao certo se só por causa do "rei" aparecendo num livro de terror ou por mais alguma coisa. Em todo caso, não tem nada a ver: não há aqui nada de sobrenatural. A história é narrada por Julian, filho de um homem que foi durante anos um dos mais temidos chefões do tráfico do estado de São Paulo e provavelmente de todo o país, e que era apelidado de "Rei Invertebrado" por causa de sua capacidade de escapar de qualquer lugar, como se "não tivesse ossos". É uma alcunha interessante, levemente macabra, mas que nunca "pegaria" na vida real: bandidos e traficantes notórios precisam de apelidos que caiam facilmente na boca do povo. Uma palavra comprida e de sentido (para a maioria das pessoas) obscuro como essa não teria chance de se tornar corrente. E, vejam só, o Rei, ao mesmo tempo em que era um criminoso da pior espécie, era também um bom pai – sempre foi presente na vida do filho, além de justo e afetuoso com ele, e inclusive diz com todas as letras ao adolescente Julian que ficará furioso caso venha a saber que ele anda metido com drogas. Quando Julian está contando a história, ele já é adulto e seu pai está morto há muito tempo (seu fim, como o da maioria das pessoas de seu ramo, não foi agradável); a narrativa é feita de reminiscências e gira em torno do dia em que, quando ele tinha 14 anos, o Rei Invertebrado o levou a certo lugar para que ele "entendesse o negócio da família" e "se tornasse homem".

Whey Protein é surpreendente! Também não tem nada de sobrenatural e, no começo, dá a impressão de que será apenas um vulgar "conto de polícia" (não é conto policial, é "conto de polícia" mesmo, coisa massivamente praticada por escritores brasileiros e para a qual eu, pessoalmente, tenho pouca paciência). A premissa é simples: um detetive de polícia, denominado apenas de "Prestes", está tomando o depoimento de um homem de nome Cassiano, cuja esposa desapareceu. Como era do conhecimento de muitos que o casamento já não ia bem há anos, e, além disso, Cassiano não deu parte do sumiço da mulher, pairam suspeitas sobre ele. Até aí, é tudo comum; o que torna o conto surpreendente é a habilidade com que o autor trabalha os perfis psicológicos dos dois personagens, criando um paralelo e até uma empatia entre eles. Conforme Cassiano conta sobre o inferno em que o mau gênio da mulher havia transformado sua vida, e confessa repetidamente que, apesar de tudo, ele ainda a amava, Prestes acredita cada vez menos que ele a tenha assassinado e começa a gostar do rapaz – sendo que, para isso, contribui o fato de o detetive ter passado por coisas parecidas em seu próprio casamento, como é revelado por meio de pensamentos que ele não partilha com o suspeito, mas aos quais nós, leitores, temos acesso. Na última página há uma reviravolta, que ainda mantém a possibilidade da dúvida quanto à culpa ou inocência do cara, mas abala todas as quase-certezas que Prestes tinha e nós também.

Os dois últimos contos, Zona de Abate: Matadouro 7 e HSBF6-X, estão nitidamente interligados e tratam de uma combinação pavorosa de horror sobrenatural com corrupção e ganância empresarial que passa por cima de qualquer lei ou preocupação com a preservação ambiental ou a vida humana. O primeiro se alonga na descrição dos "horrores" de um matadouro, como se tentasse motivar o leitor a tornar-se vegetariano, e acompanha um detetive particular (ex-policial) que está investigando o desaparecimento de um homem que foi visto pela última vez nesse local. O conto termina de repente – mais que isso, dá a impressão de estar inacabado, mas na verdade já lemos seu final, lá no início do livro, na descrição do conteúdo de uma das fitas recebidas pela FireStar. O outro leva o nome de um produto corrosivo que é usado para sumir com os restos das carcaças dos animais abatidos, e deixa no ar a dúvida sobre quem estará por trás dos acontecimentos macabros que têm lugar no matadouro: um empresário inescrupuloso? Um demônio? Ambos?

Com os altos e baixos que são normais em livros de contos, VHS é uma adição de peso à lista das obras de terror de autores brasileiros disponíveis nas nossas livrarias, e não se pode negar que a apresentação visual diferenciada conta pontos quando se trata de atrair o interesse de leitores em potencial; o autor e a DarkSide Books (selo que, por sinal, é sempre garantia de edições caprichadas) estão de parabéns. Há algumas falhas, a bem dizer inevitáveis num projeto tão intrincado e cheio de detalhes, que poderão ser facilmente consertadas nas próximas edições. Lembro agora, por exemplo, que, no conto FireStar Videolocadora, uma personagem cujo nome era Alessandra é de repente chamada de Cris. Sei exatamente o que aconteceu: com o texto já pronto (provavelmente já revisado, inclusive) o autor, de última hora, decidiu trocar o nome da personagem, e o fez utilizando o recurso "localizar e substituir" no Word – só que, numa de suas ocorrências, o nome tinha sido digitado diferente das outras, e por isso escapou da busca. A mesma coisa acontece em Branco Como Algodão, na qual o  menino assassinado se chama Jonas Cravinho na primeira vez em que é mencionado, e depois passa a ser Jonas Duna. No mesmo conto, a escola onde o fato ocorre chama-se Aureliano Gomes, já numa página de classificados que aparece depois, é Aureliano Chaves.

Como de costume ao escrever sobre livros de contos, não estou mencionando todas as histórias, apenas aquelas de que mais gostei, as que apresentam alguma curiosidade, ou as de particular relevância para a compreensão do universo do autor. Segundo comentários que rolam na internet, VHS não é a primeira incursão de Cesar Bravo nesse universo: um livro anterior, Ultra Carnem, também publicado pela DarkSide, já explorava os segredos sombrios de Três Rios e região. E tenho a sensação de que ainda ouviremos falar muito sobre esses lugares e sobre o que acontece neles.