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quarta-feira, junho 01, 2011

Thor


Para quem já foi durante muito tempo (ou o que para um adolescente pareceu ser muito tempo) um entusiasta de quadrinhos, mas já não os lê, a não ser ocasionalmente, há uns bons anos, não será tarefa das mais fáceis comentar este novo filme, mas já observei que os textos mais difíceis de começar costumam ser os que, depois que deslancham, acabam tendo os resultados mais interessantes. Então peço paciência a meus leitores se este post demorar um pouco a "decolar". ☺

Quando Stan Lee, fundador e, na época, principal argumentista da Marvel Comics Group, escreveu a primeira história tendo como protagonista o deus nórdico Thor (publicada na revista Journey Into Mystery n.º 83, de agosto de 1962), estava fazendo algo de inaudito para a época: buscar inspiração no passado da humanidade, em suas religiões antigas e lendas ancestrais, para contar histórias com uma roupagem moderna, que atraísse os jovens. Para aproximar mais o personagem de seus leitores e também poder fazê-lo interagir com os demais astros dos quadrinhos de seu selo, como o Hulk, Homem de Ferro, Capitão América e outros, Lee teria que trazer Thor para o século XX. Conseguiu isso criando para ele um alter ego, o Dr. Donald Blake, um cirurgião (americano, é óbvio) manco, que, durante uma viagem à Noruega, encontraria numa caverna um velho bastão de madeira e, ao batê-lo acidentalmente nas pedras, ver-se-ia transformado no poderoso Deus do Trovão, tendo o bastão virado o mítico martelo Mjolnir (o j pronuncia-se como i semivogal). Daí em diante, Blake levaria a vida dupla típica de quase todos os super-heróis, exercendo a medicina como rotina e ocasionalmente encarnando o deus para salvar o mundo daquelas boas e velhas ameaças cósmicas que todo argumentista do gênero é craque em tirar da manga.

As histórias de Thor seguiram nesse esquema durante anos, com os altos e baixos normais. Como não sou um especialista e, além disso, essas histórias foram publicadas muito antes do meu tempo, não sei dizer ao certo se foi ainda o próprio Lee ou um dos vários argumentistas por cujas mãos o herói passou quem teve a ideia de dar uma reviravolta em sua origem. Até então, Donald Blake acreditava ser apenas um mortal a quem os desígnios de alguma sabedoria superior teriam achado por bem conceder os poderes de um deus para que os usasse em defesa de causas justas. Aos poucos, eventos misteriosos que iam ocorrendo em sua vida, e imagens que surgiam inexplicavelmente em sua memória, acabaram por levá-lo a compreender a verdade: ele era o próprio deus Thor.

A explicação encontrada para isso foi bastante engenhosa e com um sabor realm
ente mitológico: calçado em sua condição de primogênito do deus supremo, Odin, e em sua reputação de grande guerreiro entre os habitantes de Asgard (o reino dos deuses), Thor ter-se-ia tornado um deus egoísta e arrogante. Para ensinar-lhe uma lição, Odin teria retirado seus poderes, apagado sua memória, e o colocado para viver na Terra sob uma identidade forjada, a do então estudante de medicina Blake. Como um jovem sem muitos recursos, e que sofria com as sequelas de uma paralisia, Thor aprenderia o valor da humildade e do trabalho duro, até estar pronto para receber de volta sua herança divina.

Foi já nos anos 80 que um sujeito chamado Walter Simonson assumiu a revista mensal de Thor nos Estados Unidos. Escritor e também desenhista, realizou uma reformulação geral no personagem e em seu ambiente, buscando reduzir ao mínimo possível as ligações com o universo super-heroístico da Marvel para investir pesado numa maior aproximação com a mitologia nórdica, que, afinal de contas, foi de onde o personagem veio. E é nítido que foi principalmente dessa fase que veio a inspiração para o primeiro filme da nova safra cinematográfica da Marvel a tratar do Deus do Trovão.

E vamos concordar, não se trata de um filme qualquer ― nenhum filme dirigido por Kenneth Branagh, responsável por nada menos que Henrique V, é um filme qualquer. Menos ainda se tiver Anthony Hopkins no papel de Odin e Natalie Portman ― rara combinação de beleza estonteante e talento admirável, capaz de se sair bem seja num filme ET (extra trash) como Marte Ataca (1996) ou num tenso thriller psicológico como o recente Cisne Negro ― como a "mocinha", no caso a cientista Jane Foster, com quem Thor, exilado na Terra, irá se envolver. O filme tem ainda Stellan Skarsgård (Rei Arthur, O Exorcista: o Início) como Dr. Erik Selvig, mentor de Jane; Tom Hiddleston como Loki; Jaimie Alexander como a deusa Sif (na mitologia, esposa de Thor, no filme aparentemente apenas uma "amiga", que nem chega a interferir na relação dele com Jane) e, curiosamente, Ray Stevenson (também de Rei Arthur e da série Roma), praticamente irreconhecível sob uma montanha de barba e cabelo, como o gordo e bonachão Volstagg, personagem criado para os quadrinhos.




O filme começa com uma cena em que Jane, Selvig e sua bolsista estão tentando observar e registrar um estranho fenômeno nos céus do deserto do Novo México, quando seu veículo de pesquisa atropela um homem que parece ter surgido do nada em meio à tempestade. Depois de o espectador ter apenas tido tempo de ver que o homem é Chris Hemsworth, que interpreta Thor, a narrativa recua para a Idade Média, nas terras do norte, e passa a ocupar-se de uma guerra entre os deuses de Asgard e os Jotun, ou gigantes de gelo ― é interessante notar que na mitologia nórdica, como na grega, os gigantes personificam forças da natureza, e que os deuses nórdicos, também como seus equivalentes gregos, têm com esses gigantes uma relação ambivalente: ao mesmo tempo em que são ligadas por estreitos laços de parentesco, as duas raças são inimigas mortais. Com os deuses saindo vitoriosos, Odin toma dos gigantes uma caixa misteriosa que dá origem aos poderes deles, e estabelece uma trégua ― que Thor, muitos anos depois, irá quebrar em busca de glória pessoal, levando Asgard à beira de uma nova guerra. No filme, é esse ato que leva o rei dos deuses a banir o filho para a Terra, tendo anulado a maior parte de seu poder, mas Thor não perde a memória, nem chega propriamente a ter um alter ego humano ― apenas usa falsamente e por um curto período de tempo o nome de Donald Blake, que, segundo Jane, é um "ex" seu. Em Asgard, Odin adormece (de acordo com a mitologia, ele precisava de longos períodos de sono para manter seus poderes) e, sem que ninguém saiba quando despertará, seu ardiloso filho adotivo, Loki, aproveita-se da ausência de Thor para fazer-se rei, o que precipitará o conflito que serve de combustível ao roteiro.


O filme toma diversas liberdades em relação à mitologia ― basicamente, as mesmas que os quadrinhos já tomavam, e mais algumas. Nas lendas nórdicas, por exemplo, Loki não era filho de Odin, nem mesmo por adoção, e, embora por nascimento pertencesse à raça dos gigantes, era admitido ao convívio dos deuses e geralmente considerado um deles. Tinha uma personalidade complicada, algumas vezes comportando-se como um fiel amigo dos deuses, outras como um trapaceiro compulsivo. Nos quadrinhos, essa complexidade havia sido abolida ― Loki era retratado sempre como mau-caráter ―, enquanto, no filme, ele é um personagem mais dramático, que sofre ao descobrir sua verdadeira origem, o que pode, em parte, justificar seus atos e ganhar para ele um pouco da simpatia do espectador. Loki era o deus do fogo e gerou muitos filhos, tanto humanos quanto feras, entre eles Sleipnir, o garanhão de oito patas que servia de montaria a Odin, bem como o monstruoso lobo Fenris, ou Fenrir, e a Serpente de Midgard. Midgard, aliás, era como os nórdicos chamavam o mundo onde vivemos nós, humanos. Esse nome, que significa literalmente terra média (alguém se lembra onde já vimos isso?), deve-se ao fato de que esse mundo fica no meio, abaixo do céu, onde vivem os deuses, e acima do mundo subterrâneo, habitado por trolls e outras criaturas do escuro.

O próprio Thor era uma figura à parte. Diferente do que o filme sugere, a deusa Friga, embora fosse esposa de Odin, não era a mãe de Thor, que nasceu da relação dele com uma giganta de nome Jord (que significa Terra), provavelmente antes de seu casamento com Friga. Embora Odin fosse o deus supremo, Thor era, de longe, muito mais popular e cultuado, principalmente entre os homens: era um deus-herói, guerreiro, aventureiro, exatamente a divindade adequada aos seguidores da filosofia viking de vida, que tinham no sangue a febre do desbravamento e acreditavam que a única morte digna de um homem era no campo de batalha. Em homenagem a Thor, quase todos os vikings usavam no pescoço um pingente em forma de martelo.

Por falar em morte, alguns podem ter estranhado a cena em que, prestes a partir para Jotunheim, o reino dos gigantes de gelo, Thor diz a Heimdall, o guardião dos portões de Asgard, que não tem planos de morrer naquele dia, e Heimdall replica que ninguém tem. Pode-se pensar: "Fácil para eles dizerem isso: são deuses, imortais!" Beeeem... Mais ou menos. O fato é que os deuses nórdicos não eram imortais no sentido pleno do termo. Para evitar a velhice e as doenças, precisavam comer regularmente as maçãs mágicas cultivadas pela deusa Iduna, e podiam, sim, morrer em combate da mesma forma que os homens ― embora, claro, para isso fosse preciso um adversário realmente poderoso.

Falar em Heimdall me fez lembrar de um detalhe discutível (para dizer o mínimo) do filme: esse deus é interpretado pelo ator Idris Elba ― que é negro ―, enquanto Hogun, outro personagem oriundo dos quadrinhos, é representado pelo japonês Tadanobu Asano. Pergunto: qual a lógica de colocar negros e orientais no reino dos deuses nórdicos? Não seria isso um exemplo típico da obsessão do politicamente correto prevalecendo sobre o bom senso?

Em resumo: Thor vale a pena ser visto. Tem um enredo cativante, que consegue a difícil proeza de ser interessante tanto para o inveterado leitor de quadrinhos quanto para o espectador de ocasião que pouco ou nada sabe sobre o universo da Marvel, tem ótimas atuações (com o inevitável destaque para o "imortal" Anthony Hopkins e para a boa surpresa Tom Hiddleston), tem um visual de encher os olhos, e tem o grande mérito de contribuir para despertar nas novas gerações o interesse pelo mundo fascinante e cheio de significados da mitologia.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Henrique V

A peça Henrique V, de William Shakespeare (1564-1616), começa com um pedido de desculpas. O coro, ao introduzir o tema, roga ao público que seja indulgente, já que é impossível, no acanhado espaço de um teatro (uma "rinha de galos", como diz o texto) e com um elenco de número limitado, reproduzir de forma digna a grandiosidade dos eventos que vão ser narrados. Segue-se uma exortação, pedindo aos espectadores que usem a imaginação para transformar aquele modesto palco nos vastos campos da França, para visualizar os cavalos quando estes forem mencionados, e para multiplicar em grandes exércitos o escasso punhado de atores vestidos de soldados. No filme baseado na peça, lançado em 1989, essa indulgência é muito menos necessária, pois as amplas possibilidades novas a serviço do cinema permitem recriar as cenas narradas de uma forma até que bem satisfatória, pelo menos para os olhos do espectador moderno. Mesmo assim, o coro (no filme, reduzido a uma única voz, a do excelente Derek Jacobi) ainda pede por indulgência – talvez para preservar a atmosfera teatral, ou apenas porque seria uma pena suprimir esses belos versos. Numa avaliação do conjunto, de qualquer forma, coisas como cenários, figurinos e uma boa produção, embora importantes, são secundárias: o essencial é a força inigualável do texto de Shakespeare, e essa eu acredito que permaneça relativamente intacta, apesar de muitos dos diálogos originais da peça terem sido adaptados para um inglês mais próximo do que se fala hoje. Vi o filme pela primeira vez em VHS, poucos anos depois de seu lançamento; dias atrás, relendo meu post sobre o livro O Marechal das Trevas, a breve menção que fiz dele me trouxe a vontade de revê-lo (adquiri o DVD há algum tempo) e de ler a peça, o que nunca havia feito. O resultado disso tudo está aqui.

Uma observação: embora eu domine o inglês, os escritos originais de Shakespeare são praticamente outra língua. Os quatro séculos de lenta e gradual transformação (as línguas nunca param de mudar), mais os floreios e imagens poéticas dos quais o autor fazia largo uso, tornam sua leitura um desafio, de modo que evitei morder mais do que podia mastigar: achei melhor ler a peça em tradução.

Henrique V é a parte final de uma quadrilogia que também inclui Ricardo II, Henrique IV, parte 1 e Henrique IV, parte 2 – mas não se preocupem, pois não é indispensável conhecer aquelas peças para poder apreciar esta. Retratado em Henrique IV, parte 2 como um adolescente turbulento e indisciplinado, mais interessado em prazeres irresponsáveis que em aprender a ser rei, Henrique V parece ter sofrido uma transformação radical com a chegada da idade adulta e sua coroação, em 1413, aos 27 anos, pois foi considerado, em sua época, um monarca competente, corajoso e dotado de múltiplos e variados talentos. E com uma ambição acima de todas as outras:

Rei Henrique:

Partamos, pois, meus caros compatriotas.
Nas mãos de Deus ponhamos nossa força
e demos logo início à expedição.
Alegres, para o mar! A guerra avança;
só serei vosso rei se o for da França.

(Ato II, Cena II)

A pretensão de Henrique ao trono da França era baseada em laços sanguíneos derivados de antigos casamentos políticos entre as famílias reais inglesa e francesa, e ele já havia, antes disso, reivindicado seu suposto direito por meios diplomáticos – só que os franceses, é claro, não iriam, de livre vontade, entregar o poder supremo de seu país a um monarca estrangeiro, fosse herdeiro de sangue ou não, e menos ainda em se tratando precisamente do rei da Inglaterra, rival da França desde os primórdios da história das duas nações. Sem esquecer, ainda, que estava-se em plena Guerra dos Cem Anos, que foi mais como uma sequência de diversos períodos de guerra intercalados por intervalos de uma paz frágil (e bota frágil nisso). Para negar a petição de Henrique, os franceses invocaram a Lei Sálica, do século V, que, entre muitos outros assuntos, tratava de direitos de sucessão e herança. Conforme essa lei, mulheres não podiam herdar bens imóveis: nem terras, nem tampouco casas, castelos etc. Numa interpretação extensiva, isso significava que elas também não podiam herdar títulos de nobreza (já que estes se ligavam estreitamente à posse da terra), incluindo o mais alto de todos os títulos, a realeza. Como, portanto, mulheres não podiam herdar a coroa (segundo essa interpretação), isso, por consequência, retirava a legitimidade de qualquer candidato ao trono que não fosse ligado à família real por linha masculina – e Henrique era parente dos reis franceses somente por intermédio de ancestrais femininas. Acontece que essa lei nunca havia sido aplicada com muito afinco até 1328, quando outro rei inglês, Eduardo III, havia feito a mesma reivindicação – que foi negada com o mesmo argumento. Ou seja, Henrique poderia alegar que os franceses só se lembravam da existência da Lei Sálica quando lhes convinha. Em adição a isso, o arcebispo de Canterbury, seu conselheiro, asseverou que essa lei, em sua origem, só vigorava na região de Meissen, na atual Alemanha, entre os rios Sala (e daí o nome de Lei Sálica) e Elba, e que tal região só se tornou possessão francesa sob o imperador Carlos Magno, séculos depois da criação da dita lei, de modo que não haveria motivo algum para afirmar que ela devesse ser seguida em todo o território francês. Uma vez aceita essa premissa, decorria como conclusão lógica que o rei francês de então, Carlos VI, só estava no trono porque este havia sido negado indevidamente, no passado, aos ancestrais de Henrique – que, portanto, estaria amparado pela razão e pelo direito.

Era tudo o que o jovem e ambicioso rei queria ouvir. Ele adotou um brasão pessoal cujo principal elemento, o escudo, era particionado em quatro; no jargão da heráldica, um escudo assim é dito esquartelado, e cada partição é um quartel. Dois dos quartéis desse novo escudo exibiam os leões da Inglaterra, dourados em campo vermelho, e os outros dois, os lírios da França, também dourados, em campo azul. Com esse símbolo, Henrique anunciava ao mundo que se considerava rei dos dois países, que estava disposto a sê-lo não só de direito, mas também de fato, e a fazer o que fosse necessário para isso. Ainda nesse mesmo espírito, ele também incluiu no brasão da coroa britânica a divisa em francês que ele ostenta até hoje: Dieu et mon droit ('Deus e meu direito').

(Na peça de Shakespeare, o desejo de Henrique por uma guerra é atiçado por um fator a mais: a petulância do delfim [título dado ao príncipe herdeiro do trono da França], que lhe envia de presente uma arca cheia de bolas de tênis… O tênis havia sido um dos passatempos favoritos de Henrique durante sua adolescência tresloucada, de modo que mandar as bolas é uma maneira de o delfim insultá-lo, deixando claro que ainda o considera o mesmo rapazinho tolo, indigno de temor ou sequer de respeito. Não sabemos se isso de fato aconteceu; tenho para mim que Shakespeare tenha inventado o episódio, inspirando-se em outro parecido, esse sim atestado por historiadores, que teria acontecido com Alexandre: Dario, rei da Pérsia, teria lhe mandado uma bola e um chicote de brinquedo como presentes, com o mesmo objetivo insultuoso. E, tal como o grande conquistador da Antiguidade, Henrique também não deixaria barata a brincadeira. Aliás, no ato IV, cena VII, a comparação de Henrique com Alexandre é explícita, na voz do capitão Fluellen, personagem meio heroico, meio cômico, que se gaba de ser conterrâneo do rei, e, como se fosse para sublinhar o fato, fala com um carregado sotaque galês).

Em agosto de 1415, Henrique desembarcou na Normandia (norte da França) com seu exército, que incluía, é claro, um contingente de cavaleiros, homens de berço nobre, treinados para a guerra desde a infância e equipados com armadura pesada e excelentes cavalos de combate, e também infantaria, lanceiros na maioria – esses, em geral, homens do povo, recrutados, treinados e equipados às expensas da coroa. Porém, a confiança do rei repousava de modo especial nos famosos arqueiros do País de Gales, que lhe eram particularmente devotados, já que também era galês. A arma desses soldados era o arco longo, assim chamado porque tinha quase a mesma altura de quem o manejava, e, embora fosse conhecido em toda a Europa, parece que a maioria dos exércitos o subestimava. Mas não os britânicos. Em Gales, principalmente, seu manejo era uma tradição. Apesar da construção simples, sendo feito numa única peça de madeira (geralmente teixo, às vezes carvalho ou bétula), esse arco, bem utilizado, tem um formidável alcance de até 500 metros, oferecendo boa precisão até mais ou menos a metade dessa distância. Naturalmente, o bom manejo exige muito treino, além de braços fortes. Cerca de sete mil desses arqueiros integravam o exército de Henrique, além de uns cinco mil lanceiros e algumas centenas de cavaleiros. As fontes divergem, mas o número total devia estar em torno de 13 mil homens.

O primeiro e bem-sucedido ataque do exército inglês foi contra a cidade portuária de Harfleur, que se rendeu depois de um cerco que se prolongou bem além do esperado e foi cruel para os dois lados. Henrique comandou pessoalmente suas tropas, participando do combate direto. Pode-se questionar a sensatez disso, já que sua morte em plena campanha causaria um caos e traria consequências terríveis não só para o exército, mas para a própria Inglaterra; por outro lado, não havia modo mais claro de mostrar a seus soldados que seu rei não estava pedindo a eles nenhum sacrifício que ele próprio não estivesse disposto a fazer. Também consta que Henrique enviou uma mensagem ao delfim, desafiando-o a ir a Harfleur para enfrentá-lo num combate singular. E parece que o delfim não respondeu.

Shakespeare nos conta que, na tomada de Harfleur, Henrique foi misericordioso, ordenando a seus soldados que tratassem com civilidade todos os cidadãos, proibindo a pilhagem e toda e qualquer violência desnecessária – mas só agiu assim porque o governador da cidade concordou com a rendição. No filme, a negociação entre ambos acontece numa pausa da batalha, com o governador falando do alto das muralhas, Henrique diante dos portões, montado em seu cavalo e coberto de sangue; o rei inglês aconselha a rendição, prometendo clemência, mas ressalva que, caso o governador não aceite, será ele o responsável por condenar seu povo:

Rei Henrique:

Que terei eu que ver, se sois vós próprios
os culpados de virem vossas filhas
a ser presas da mais intolerável
e feroz violação? (…)
Tão pouco resultado alcançaríamos
procurando pôr cobro nos excessos
dos soldados entregues à pilhagem,
como se ao Leviatã determinássemos
que viesse para a praia. Por tudo isso,
homens de Harfleur, mostrai-vos compassivos
com vosso próprio povo e com a cidade,
enquanto os meus soldados me obedecem (…).

(Ato III, Cena III)

A expressão de alívio no rosto de Henrique ao ouvir o governador concordar com seus termos é uma pequena amostra da capacidade dramática do ator Kenneth Branagh, que, por sinal, também é o diretor do filme. Um alívio que o rei, na certa, sentiu mesmo, pois seu exército, além de pouco numeroso, começava a padecer com o cansaço e doenças; uma epidemia de disenteria estava se anunciando, e pioraria muito durante as semanas seguintes. Além disso, era fim de verão, conta-se que chovia muito e havia lama por toda parte, condições realmente miseráveis para se manter um cerco. O rei Carlos, o delfim e seus oficiais também sabiam disso, de modo que abstiveram-se de ir em socorro de Harfleur (a cidade era um sacrifício que eles podiam dar-se ao luxo de fazer) e adiaram o quanto puderam o momento do confronto, à espera de que os ingleses ficassem tão debilitados quanto possível.


Depois da capitulação de Harfleur, Henrique deixou parte do exército como guarnição na cidade e marchou com o restante em direção ao leste, para Calais, na época um enclave britânico na França. O corpo principal do exército francês, que não havia se movido até então, saiu em seu encalço, mas, mesmo debilitados, os ingleses contavam com a vantagem da mobilidade, pois dispunham de cavalos em número superior ao da soma total de seus soldados e pessoal de apoio – quer dizer, mesmo quem, na hora da batalha, lutava a pé, ou nem lutava, tinha uma montaria para a viagem. É claro que a celeridade teve seu preço: as catapultas e os canhões (estes, uma grande novidade na época) que haviam sido usados para tomar Harfleur, tiveram que ser deixados lá mesmo, assim como toda carga não essencial: Henrique ordenou a seus homens que não levassem consigo nada além de armas, armaduras, o equipamento indispensável, e provisões – que já começavam a ficar escassas. O plano do rei era reunir-se a suas tropas estacionadas em Calais e, ou passar o outono e o inverno lá, ou navegar de volta para a Inglaterra e retornar no ano seguinte, pois, naquela região do mundo e com a tecnologia bélica existente na época, campanhas militares só eram praticáveis na primavera e verão, e, naquele momento, já se estava entrando no outono.

Mesmo viajando leves, a marcha foi dura. Chovia torrencialmente, as estradas eram verdadeiros atoleiros, e, depois de alguns dias, as rações tiveram que ser reduzidas, sob pena de, em breve, ficarem sem nada para comer. A má qualidade da água agravou as doenças que já castigavam o exército. Ao chegarem às margens do Somme, que teriam que transpor para alcançar Calais, os ingleses enfrentaram outro problema: todas as pontes tinham sido demolidas, e os pontos onde o rio podia ser vadeado estavam fortemente defendidos por tropas francesas – e um exército cruzando um rio fica muito vulnerável. A solução foi marchar cada vez mais para o interior ao longo do rio, à procura de um vau que não estivesse defendido, o que tomou vários dias, tempo esse durante o qual o exército britânico ficava cada vez mais cansado, faminto e fraco devido à doença.

Quando, por fim, conseguiram atravessar o Somme, Henrique e seus homens viram-se numa extensão de terra agrícola perto um vilarejo chamado Azincourt (Agincourt na forma inglesa), dominado pelo castelo de mesmo nome. A essa altura, o exército de 13 mil homens estava reduzido a uns seis mil ainda em condições de combater: os 13 mil originais, menos as baixas sofridas durante o cerco de Harfleur, menos os que foram deixados lá como guarnição, menos os que morreram ou ficaram incapacitados por causa da doença durante a marcha. Nos campos de Azincourt, o depauperado exército inglês viu-se encurralado entre duas forças francesas que, somadas, o superavam em número por uma diferença de, no mínimo, cinco para um, e provavelmente mais, para não mencionar que os franceses estavam descansados e bem alimentados. Era ao entardecer de uma quinta-feira, 24 de outubro de 1415.

A madrugada tensa que antecede a batalha é, sem dúvida, um dos trechos mais magistrais da peça. Tensa, é claro, para os ingleses, que temem a chegada da aurora, porque acreditam que não verão o próximo pôr-do-sol. Quanto aos franceses, esses anseiam pela manhã, reclamam da demora do dia em despontar, antegozando a batalha como se fosse uma festa, enquanto conversam despreocupadamente sobre quem tem o melhor cavalo e a mais bela armadura. Henrique, disfarçado, percorre o acampamento inglês, ouvindo o que dizem seus soldados, apresentando-se com um nome inventado para falar com eles. Ouve seu desalento e procura encorajá-los, sem nunca revelar sua verdadeira identidade. Por fim, ao ver-se sozinho, desabafa num monólogo a respeito do pesado fardo da realeza:

Rei Henrique:

Só sobre o rei! Ponhamos nossas vidas,
nossas almas, as dívidas, os filhos,
as esposas ansiosas, os pecados,
tudo, em cima do rei! Forçoso é tudo
suportarmos. Oh dura condição!
Ser gêmeo da grandeza e estar sujeito
ao capricho do sopro dos estultos
que só sabem sentir suas próprias dores.
Quantas satisfações são proibidas
aos reis para que os súditos se alegrem!
Que têm os reis a mais que seus vassalos,
além do rito, além das cerimônias
exteriores? Que vales, rito ocioso?
Que espécie és tu de deus, para sofreres
muito mais do que os teus adoradores
a condição humana!

(Ato IV, Cena I)

Entretanto, esse momento de fragilidade não é mais do que isso: um momento. Quando o dia finalmente desponta – sexta-feira, 25 de outubro, dia de São Crispiniano –, o rei profere aquele que é, sem sombra de dúvida, a "mãe" de todos os discursos inspiradores que outros reis e comandantes fazem a seus soldados em inúmeros filmes épicos, geralmente logo antes de uma batalha que tudo indica ser impossível vencer:

Westmoreland:

Oh, se agora tivéssemos ao menos
dez mil dos homens que imobilizados
se encontram na Inglaterra!

Rei Henrique:

Quem deseja
tal coisa? Westmoreland? Não, caro primo;
se fadados estamos para a morte,
a pátria, em nós, já perde muitos filhos;
mas se vivermos, quanto menos formos,
maior será nosso quinhão de glória.
Deus o decida. (…)
Hoje é dia de São Crispiniano. (…)
Quem neste dia não perder a vida
e chegar à velhice, há de todo ano,
na véspera, dizer para os vizinhos:
"Mais um dia de São Crispiniano!"
Arregaçando as mangas, mostra as marcas
e dirá: "Todas estas cicatrizes
são do dia de São Crispiniano".
Tudo os velhos esquecem; mas embora
fique tudo esquecido, hão de lembrar-se
com minúcias dos feitos deste dia. (…)
Esta história os valentes hão de aos filhos
transmitir, e de agora ao fim do mundo
não poderá jamais ser pronunciado
o nome de Crispim Crispiniano
sem que lembrados todos nós sejamos.
Nós, poucos; nós, os poucos felizardos;
nós, pugilo de irmãos! Pois quem o sangue
comigo derramar, ficará sendo
meu irmão. Por mais baixo que se encontre,
confere-lhe nobreza o dia de hoje.
Todos os gentis-homens que ficaram
na Inglaterra julgar-se-ão malditos
por não terem estado aqui presentes,
e hão de fazer ideia pouco nobre
de sua valentia, quando ouvirem
alguém dizer que combateu conosco
neste dia de São Crispiniano!

(Ato IV, Cena III)

(Fico com os olhos rasos d'água cada vez que leio isso, e sou macho o suficiente para admitir!)

Sim, eu sei: é fácil imaginar os soldados magros, esfarrapados e cobertos de lama saudando com um brado ensurdecedor o final desse discurso, e ainda mais fácil ter a sensação de que já ouvimos e vimos algo parecido antes, seja em Coração Valente, O Retorno do Rei ou, literalmente, dezenas de outros. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Para dar um toque final no moral de suas tropas, Henrique assegurou que não seria capturado vivo: em caso de derrota, morreria com seus soldados. Faz bem ao coração acreditar que isso não era só uma bravata, e, de qualquer forma, além de um ato de coragem pessoal, expressava a vontade de não causar ainda mais sofrimento a seu país: se os franceses o apanhassem vivo, a soma que pediriam por sua libertação poderia quebrar a Inglaterra (a expressão isso custa o resgate de um rei, usada em várias línguas para dizer que o preço de algo é abusivo, não surgiu do nada).


Se o discurso de Henrique deixou seus soldados ansiosos para lutar, eles precisaram ter um pouco de paciência. Ao romper do dia, os franceses estavam prontos, mas não fizeram nenhum movimento para atacar, e por bons motivos. É quase sempre mais vantajoso para um exército manter sua posição e esperar que o inimigo tome a iniciativa, e, no presente caso, o tempo era aliado dos franceses, para quem suprimentos não eram um problema: no que dependesse deles, podiam esperar ali até que os últimos ingleses morressem de fome. Lá pelo meio da manhã, Henrique fez o primeiro movimento, ordenando que seu exército avançasse cerca de 200 metros, até uma posição da qual seus arqueiros já tivessem o inimigo ao alcance de suas flechas. Analistas militares avaliam que, se a cavalaria francesa tivesse aproveitado a momentânea desorganização dos ingleses durante esse pequeno deslocamento, poderia ter quebrado a espinha do exército de Henrique e assegurado uma vitória fácil, mas, por algum motivo, a ordem para a carga não foi dada. Os franceses só se moveram ao serem forçados a isso, quando as flechas inglesas começaram a chover sobre suas posições. E foi aí que as coisas começaram a dar errado para eles.

Como vimos, o local da batalha era uma terra de cultivo, que havia sido recentemente arada, esperando pela semeadura do trigo; isso, combinado às chuvas pesadas dos últimos dias, havia convertido o terreno num grande lodaçal, onde os cavalos afundavam até os joelhos – que dirá então os enormes e pesados animais da cavalaria francesa, cada um levando sobre o dorso um cavaleiro em armadura completa. Com isso, a carga aconteceu em câmera lenta, facilitando as coisas para os arqueiros de Henrique, que, para a ocasião, haviam recebido aljavas carregadas das assim chamadas flechas-punhal, providas de pontas alongadas, desenhadas para concentrar toda a força do disparo num único ponto; impulsionadas por seus robustos arcos longos, essas flechas eram capazes de perfurar a maioria das armaduras. A topografia do local também conspirou a favor dos ingleses, pois o campo, relativamente estreito, era ladeado, à direita e à esquerda, por densos bosques onde a circulação de tropas montadas era impossível, o que livrava Henrique e seus homens da preocupação com a possibilidade de serem flanqueados. Para completar, a vanguarda francesa era formada pelos nobres e suas guardas pessoais: esses cavaleiros haviam feito questão de estar à frente, para garantir a própria glória no que esperavam ser uma vitória rápida e fulminante, e para ter a chance de capturar vivos alguns nobres ingleses, pelos quais seria possível obter gordos resgates. Os besteiros, únicos no exército francês que poderiam ter respondido aos arqueiros, estavam atrás, sem possibilidade de intervir. Os poucos cavaleiros franceses que conseguiram se aproximar do inimigo deram de cara com uma floresta de estacas longas e pontudas, que os arqueiros haviam fincado em diagonal no chão, e nas quais os cavalos se estripavam. Onda após onda de franceses atacou e encontrou seu fim sob as flechas inglesas. O próprio número enorme dos franceses trabalhou contra eles: os que vinham atrás, ainda sem perceber o tamanho do desastre, impediam que os da frente recuassem para se reorganizar. A pressão vinda de trás foi forçando milhares de franceses para dentro de uma espécie de corredor, entre duas colunas de arqueiros que os massacravam sem parar – e, ao fim desse corredor, os cavaleiros e lanceiros ingleses esperavam por eles. Quando ficaram sem flechas, os arqueiros empunharam o que quer que tivessem à mão (alguns tinham espadas, a maioria apenas machadinhas, facas e outros objetos que eram mais ferramentas que armas) e caíram sobre os flancos do inimigo, agora cansado, confuso e aterrorizado demais para conseguir lutar decentemente. Muitos franceses foram feitos prisioneiros, na maior parte homens nobres e/ou abastados, cujos resgates poderiam mudar a vida de seus captores. Entretanto, uma vez mais, o número excessivo foi sua perdição. Ainda havia um grande contingente de franceses descansados preparando-se para atacar, e o rei Henrique sabia que precisaria que cada homem que ainda tinha estivesse em seu posto de combate; não podia dar-se ao luxo de deixar boa parte deles vigiando prisioneiros. Além disso, estes últimos eram tão numerosos que, mesmo desarmados, poderiam rebelar-se, com boas chances de conseguir dominar seus carcereiros, apossar-se de armas que facilmente achariam entre os mortos no campo de batalha, e obrigar os ingleses a uma luta em duas frentes, que, sem a menor dúvida, seria o seu fim. Nessas circunstâncias, Henrique tomou uma decisão difícil, mas que se mostraria acertada: mandou seus homens executarem os prisioneiros e depois se prepararem para receber a última onda do exército francês, que não teve melhor sorte que as anteriores. Foi uma carnificina – mas parece que, nessa fase final da batalha, novos prisioneiros foram capturados; ou isso, ou os mais importantes do grupo anterior foram poupados da matança, pois os registros históricos fazem referência a cativos sendo levados até Calais e depois à Inglaterra, e a resgates que teriam sido efetivamente pagos.

Na peça, Shakespeare fala em dez mil franceses mortos, um número razoavelmente realista segundo os historiadores, mas "viaja" longe ao mencionar apenas 29 baixas fatais do lado inglês, sendo quatro nobres e 25 homens comuns – um "exagero ao contrário", claramente destinado a reforçar a ideia de que a vitória fora um milagre. O número real de mortos deve ter sido algo em torno de 500, sendo impossível saber quantos foram feridos; ainda assim, uma impressionante média de vinte para um! Henrique, que sempre acreditara ter Deus ao seu lado, atribuiu totalmente a Ele essa vitória impossível. No filme, o rei começa a entoar uma belíssima e comovente versão para o Non Nobis (do Salmo 113), dizendo, em síntese, que a glória desse dia não cabe a ele nem a seus homens, mas unicamente a Deus. Aos poucos, os soldados vão juntando suas vozes à dele em meio àquele campo enlameado e juncado de cadáveres, na cena mais emocionante do filme.

Ao colher os frutos de sua vitória, Henrique preferiu mostrar benevolência, talvez na intenção de dar início a um tempo de entendimento entre os dois reinos que esperava governar. Naturalmente, fez uma série de exigências de cunho territorial, econômico e estratégico, mas, em vez de destronar Carlos VI, como poderia ter feito, contentou-se em receber em casamento sua filha, a princesa Catarina, então com 15 anos (pelo costume da época, essa era a idade de casar; Henrique é que estava atrasado, ainda solteiro com quase 29), e em ser formalmente nomeado o próximo na linha de sucessão ao trono da França, o que, é claro, implicou em deserdar o delfim, o que muito deve ter agradado a Henrique. Infelizmente para ele e para a Inglaterra, porém, Henrique nunca se sentaria nesse trono: morreu repentinamente em 1422, com 36 anos de idade. Seu filho, Henrique VI, também foi um rei notável (e também assunto de peças de Shakespeare), que, além de reinar sobre a Inglaterra, disputou longamente o trono da França com seu tio, Carlos VII – o ex-delfim, coroado, em grande parte, graças aos feitos de Joana d'Arc.


Só a título de curiosidade, algumas fontes informam algo interessante: o popular gesto obsceno de mostrar o dedo médio esticado, que quase todos pensam tratar-se de um símbolo fálico (tanto, que o gesto é normalmente acompanhado da expressão fuck you, ou do equivalente no idioma local), teria tido origem, na verdade, num episódio relacionado à batalha de Azincourt. Os cavaleiros franceses tinham um ódio antigo aos arqueiros britânicos, em especial os galeses, por causa das derrotas sofridas em Crécy (1346) e Poitiers (1356); aos olhos deles, essas derrotas pareciam um ultraje, até mesmo algo antinatural: como era possível que arqueiros, que não passavam de camponeses, tivessem tido a ousadia de liquidar centenas de cavaleiros, que eram nobres?! Para eles, isso era uma subversão da ordem "natural" das coisas, um crime que merecia punição exemplar. Então, certos de vencer em Azincourt, dada a vasta superioridade numérica de seu exército, os nobres franceses teriam prometido cortar o dedo médio da mão direita de todos os arqueiros que fossem capturados, a fim de que nunca mais pudessem manejar um arco… Uma ameaça sem muito sentido, na verdade, pois os arqueiros eram homens do povo, sem famílias ricas que pudessem pagar resgates; portanto, não tinham valor como prisioneiros, e, se capturados, seriam muito provavelmente executados sem mais delongas. De qualquer forma, quando, contra todas as expectativas, os britânicos venceram, conta-se que os arqueiros divertiam-se ao passar pelos cercados improvisados para os prisioneiros franceses e zombar deles exibindo o dedo médio, para mostrar que ainda o tinham, de modo que a ameaça dera em nada. Talvez nunca saibamos se essa é de fato a origem do tal gesto, mas esse é bem o tipo de curiosidade do qual eu gosto!

Henrique V, claro, é um épico, mas não é só isso. O perfil psicológico do protagonista é sólido, detalhado, fazendo dele um personagem complexo, o que deve ser ainda mais difícil de conseguir no teatro que num romance. Como disse, não conheço as peças anteriores da quadrilogia, mas, pelo que fiquei sabendo ao pesquisar o assunto, a mudança de Henrique, do jovem irresponsável para o rei intrépido, é convincente e marcante. Dois episódios de Henrique V ilustram isso; ambos são tratados brevemente na peça e um pouco mais detalhados no filme, acredito que retomando elementos de Henrique IV, parte 2, e ambos envolvem antigos companheiros de farra do rei na época em que este era príncipe. No primeiro, ainda na Inglaterra, um velho fidalgo, Sir John Falstaff, está doente, à beira da morte, e todos os seus amigos são unânimes em dizer que ficou assim devido à tristeza de ter sido destratado e renegado pelo rei, que, no último encontro dos dois, afirmou não conhecê-lo, apesar de terem virado tantas noites bebendo, cantando e arrumando confusão juntos em tabernas. No segundo, ocorrido já durante a campanha na França, Bardolfo, soldado do exército de Henrique e também seu velho chapa de bebedeiras, rouba de uma igreja e, por tal crime, deve ser condenado à morte; o rei poderia, se quisesse, mandar prendê-lo e, mais tarde, depois da poeira baixar, libertá-lo discretamente, aplicando alguma pena mais branda – mas opta por não fazer nada disso: Bardolfo é imediatamente enforcado, sem favorecimento algum. Nesse caso, Henrique mostra-se apenas justo e, pode-se dizer, inflexível; com Falstaff, ele é decididamente cruel. Entretanto, os dois episódios deixam entrever no espírito do rei uma mesma decisão: a de enterrar de vez seu passado de loucuras. E esses dois homens faziam parte desse passado.

Henrique V acaba de passar a dividir com Macbeth o primeiro lugar na minha preferência entre as peças de Shakespeare (o que pode mudar, é claro, pois, por enquanto, li poucas delas), e apresenta em traços vigorosos a marca da genialidade de seu criador. As partes que tratam de pessoas comuns são um tanto maçantes, mas isso é largamente compensado pelas cenas grandiosas que colocam em jogo o destino de nações, com um protagonista de um carisma indescritível e mais um punhado de personagens notáveis. Nas mãos habilidosas de Kenneth Branagh, essa grande peça tornou-se um filme inesquecível, um sinal visível de que Henrique não estava dizendo palavras vazias ao prometer a seus soldados uma fama que o tempo não apagaria. Seis séculos depois, seus feitos ainda inspiram os que encontram em histórias de heroísmo, fictícias ou reais, uma fonte de força e coragem para enfrentar seus próprios desafios.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

O Marechal das Trevas

Gilles de Rais (1404-1440), barão de Laval, é um dos personagens mais curiosos – e mais assustadores – da história da França. Seus feitos medonhos, ecoando pelo universo da cultura popular através de histórias contadas em tabernas e ao pé do fogo, deram origem à lenda que o grande escritor Charles Perrault (1628-1703) poria por escrito em seu clássico livro Histórias ou Contos de Outrora, com o título A História de Barba-Azul – uma nota tenebrosa em meio a histórias encantadoras ou engraçadas, como A Bela Adormecida do Bosque ou O Gato de Botas. Se bem que tanto Perrault quanto os irmãos Grimm, e outros autores que recolheram e redigiram tais contos populares, suavizaram grandemente essas histórias, muitas das quais, tal como eram na origem, seriam consideradas hoje pouco apropriadas para se contar a crianças... Mas isso é assunto para outro artigo.

Em O Marechal das Trevas, o jornalista e escritor espanhol Juan Antonio Cébrian, usando de uma prosa ágil em tom de reportagem – que ele prova ser compatível com uma análise histórica apurada, ainda que não tão aprofundada – reconstrói a trajetória do "verdadeiro" Barba-Azul, tendo o cuidado de situar o leitor por meio de uma breve história da Guerra dos Cem Anos, conflito no qual De Rais se destacou como soldado antes de ganhar reputação bem mais sombria graças a seus crimes.

O autor nos informa, por exemplo, dos feitos do rei inglês Henrique V, que, aparentado com os reis franceses (depois de séculos de casamentos políticos, quase todas as famílias reais da Europa eram aparentadas entre si), decidiu fazer valer seu suposto direito ao trono da França e, em 1415, invadiu o país, derrotando o exército francês na histórica batalha de Azincourt. Henrique obrigou o então rei da França, Carlos VI, a reconhecer seus direitos de herdeiro e a dar-lhe sua filha em casamento, de modo que, se Carlos morresse, Henrique seria o próximo a ocupar o trono francês, acumulando-o com o da Inglaterra (o que praticamente faria dele um imperador) e preterindo o direito do filho do rei, o delfim, também chamado Carlos. A propósito desse episódio da Guerra dos Cem Anos, vejam o magnífico filme Henrique V (1989), baseado na peça homônima de Shakespeare, e dirigido e estrelado por Kenneth Branagh.

Inesperadamente, porém, Carlos VI sobreviveu a Henrique V, ainda que por um espaço de poucos meses: o rei inglês faleceu em agosto de 1422, e o francês, em outubro do mesmo ano. Isso criou um impasse: os ingleses, e parte da França que estava do seu lado, coroaram como novo rei (da Inglaterra e da França) o filho de Henrique, então ainda uma criança de colo, com o nome de Henrique VI; já os franceses nacionalistas queriam declarar rei o delfim, como Carlos VII. Havia um empecilho: por uma tradição de séculos, todo rei francês deveria ser coroado na catedral da cidade de Reims, sob pena de não ter sua legitimidade reconhecida pelo povo e pelos nobres – e Reims, como várias outras partes da França, estava nas mãos dos ingleses. O delfim, então, aquartelou-se em seu castelo na cidade de Chinon, juntamente com todo o exército que pôde reunir e os nobres ainda dispostos a lutar por ele – e entre estes, estava Gilles de Rais.

De Rais, durante alguns anos, foi um dos cavaleiros mais admirados da França, e parecia um homem destinado à grandeza. Bonito, culto, guerreiro formidável (com apenas 25 anos de idade, alcançou o altíssimo posto de Marechal da França) e dono de uma das maiores fortunas pessoais da Europa, celebrizou-se pela bravura demonstrada no campo de batalha e ganhou um lugar de honra na corte do delfim. E foi na corte, em Chinon, num dia qualquer de 1429, que Gilles e os outros nobres viram aparecer uma camponesa analfabeta de 17 anos chamada Joana d'Arc, declarando-se enviada pelo próprio Deus para garantir que o delfim fosse coroado rei como era seu direito. Por mais absurdo que isso parecesse, Joana já havia feito profecias que deram certo, o que impediu que suas pretensões fossem sumariamente rejeitadas.

Entre os que desde o início acreditaram nela esteve Gilles de Rais, que mais tarde, em seu julgamento, contaria que só enquanto esteve junto de Joana conheceu a paz de espírito e sentiu a presença de Deus; a pureza e a fé inquebrantável da donzela trouxeram alívio à alma do marechal, já então ensombrecida pelo mal. Gilles lutou ao lado de Joana na batalha de Orléans, pouco depois, e foram as mãos dele que, diante dos olhos dela, puseram a coroa da França na cabeça do delfim, um mês mais tarde, em Reims, recuperada dos ingleses graças ao inexplicável ardor que a liderança daquela garota inspirava aos soldados.

De Rais foi seguidor e protetor de Joana por mais algum tempo, até que o recém-coroado Carlos VII os separasse, designando a cada um diferentes missões. A verdade é que, depois de ter retomado Orléans, tornado possível a coroação do rei, e causado uma reviravolta na guerra a favor da França, Joana tornou-se um incômodo para Carlos e sua corte, de modo que, quando ela foi capturada pelos borgonheses (da região francesa de Borgonha, aliada à Inglaterra), em maio de 1430, o rei não esboçou nenhum esforço para salvá-la, nem mesmo diante da enérgica intercessão do marechal Gilles de Rais. Embora tenha-se tentado dar ao julgamento e à execução de Joana d'Arc a aparência de um processo por crimes religiosos, a verdade é que a Donzela de Domrémy morreu por razões políticas. Depois de um ano de julgamento sob acusação de heresia, a pressão da coroa inglesa fez com que Joana fosse condenada à morte na fogueira, sentença que foi executada na cidade de Rouen, em 30 de maio de 1431. Tinha 19 anos de idade.

Isso foi, de certa forma, o fim para Gilles de Rais; qualquer chance que ele tivesse de dar à sua vida um rumo positivo morreu com Joana. De acordo com o levantamento biográfico feito por Cébrian, Gilles era filho de um casamento político: seus pais nunca coabitaram de fato e deram pouquíssima atenção a ele e a seu irmão, René. Ambos foram criados pelo avô materno, o conde Jean de Craon, que lhes incutiu a noção de que a crueldade era parte integrante da força e da masculinidade. Isso, somado à falta de uma verdadeira família, pode em parte explicar, embora nunca justificar, sua conduta posterior.

Desgostoso após o destino que tivera Joana d'Arc, Gilles abandonou as armas e passou a dividir seu tempo entre os vários castelos que possuía, espalhados pelo interior da França, levando uma vida de luxo excessivo e promovendo quase diariamente festas suntuosas para centenas de convidados. Nem mesmo sua enorme fortuna poderia arcar indefinidamente com tais exageros, e o barão passou a enfrentar problemas financeiros. Sabe-se que procurou renovar sua riqueza tentando obter ouro por meio da alquimia, que ele próprio estudou e praticou, além de empregar especialistas, notadamente o italiano Francesco Prelati, que também se dedicava à feitiçaria. Infelizmente para De Rais, a transformação de metais comuns em ouro era algo que vinha sendo tentado desde a Antiguidade sem sucesso – e não foi com ele que essa história mudou. Chegou-se a aventar a hipótese de que as práticas alquímicas e mágicas teriam levado ao início da carreira de assassino do barão, já que o sangue de crianças era um ingrediente mencionado em inúmeras fórmulas da época, mas sua própria confissão descarta essa ideia: ele já matava por prazer bem antes de dedicar-se a tais práticas.

A última parte de O Marechal das Trevas é uma leitura penosa, pois conta sobre a prisão e o julgamento de De Rais, reproduzindo os depoimentos dele e dos criados que o assistiam em seus crimes, com fartura de detalhes capazes de causar horror até a Jack, o Estripador, que, comparado ao barão de Laval, não passava de um aprendiz. Desconhece-se o número exato de vítimas – na maioria crianças de 8 a 12 anos, de ambos os sexos – que foram raptadas, violentadas e mortas entre os anos de 1431 e 1440; sabe-se que não foram menos de 140, provavelmente cerca de 200, e há cronistas que elevam a conta até perto dos mil. O marechal confessou sem a necessidade de tortura (que na época era considerada um método legítimo de interrogatório em qualquer julgamento, e não apenas nos de bruxaria, como muita gente pensa), demonstrando arrependimento que foi considerado sincero por seus juízes, e pediu um padre para ouvi-lo em confissão, no que foi atendido. Foi levado à forca em 26 de outubro de 1440, e, antes de morrer, dirigiu suas últimas palavras à multidão que comparecera para ver sua execução, e que incluía os pais de muitas crianças que ele assassinara. Suplicou-lhes perdão e pediu que rezassem por sua alma, o que todos fizeram.

O livro tem ainda um apêndice que reproduz A História de Barba-Azul de Perrault e fornece breves resumos a respeito de alguns serial killers modernos que Cébrian considera "herdeiros" de De Rais. A meu ver, O Marechal das Trevas vale a leitura principalmente pela informação histórica que oferece (e ultimamente, não sei por que, ando com uma curiosidade louca a respeito da Guerra dos Cem Anos, de modo que veio a calhar), mas, claro, também é recomendável para os que se interessam pelo estudo dos distúrbios mentais e suas manifestações, inclusive as mais violentas e assustadoras. Mas mesmo esses precisarão ser fortes para encarar a última parte do livro.