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sexta-feira, setembro 16, 2016

O Tigre

Salvo por alguns inevitáveis e esporádicos acidentes de percurso, a convivência milenar entre tigres e seres huma­nos tem sido, de modo geral, pacífica, quanto mais não seja porque, durante a maior parte de sua história, os ho­mens não possuíam armas suficientemente poderosas que os encorajassem a enfrentar um animal tão perigoso sem necessidade. Como regra, enquanto os tigres não atacassem pessoas, e não cobrassem um tributo excessivo dos re­banhos domésticos, os humanos os deixavam em paz. Tem sido assim desde tempos imemoriais, das taigas geladas da Sibéria até as selvas tropicais da Indonésia, e das praias do Mar Cáspio até os confins orientais da Ásia – quer di­zer, em todas as paragens habitadas por tigres e humanos. Só o advento dos séculos XIX e XX, trazendo consigo ar­mas de fogo modernas e o conceito de "caça esportiva", é que mudou essa situação. É verdade que a medicina tradi­cional chine­sa – tão admirável em algumas coisas, tão estúpida em outras – há muito atribui poderes curativos (e sem qual­quer base em fatos) a diversos pedaços do tigre; a impressão que dá é a de que existe um raciocínio de que, se uma coisa é rara e difícil de obter, então ela necessariamente deve ter propriedades milagrosas. Em consequên­cia, o sangue do tigre, o pó de seus ossos, sua bílis, órgãos internos e várias outras partes valem um alto preço, mas, enquanto o bi­cho tinha que ser caçado com arco e flecha, lança, ou com mosquetes rudimentares de um só tiro, ha­via pou­quíssima gente disposta a encarar a bronca, por maior que fosse a recompensa em jogo. Armas mais eficien­tes mu­daram as coisas – não admira que o tigre-da-china esteja quase extinto. Não foi tão melhor na antiga União Soviéti­ca, cujo vasto território abrigava duas subespécies: o tigre-do-cáspio, extinto desde a década de 1960, e o ti­gre-da-sibéria, ou tigre-de-amur, o maior e mais possante de todos os tigres, que teve um pouco mais de sorte por habitar regiões muito re­motas e pouco populosas.

Porém, essa sorte não duraria para sempre. Nos primeiros tempos do comunismo so­viético, os tigres eram considerados uma praga, e o seu extermínio era incen­tivado pelo governo. Mais ou menos na mesma época em que o tigre-do-cáspio foi extinto, e com a população de tigres-­siberianos reduzida a poucas dezenas de exemplares na natureza, felizmente parece que alguém mais esclarecido teve acesso a um cargo no qual dispunha de poder para fazer algo a respeito, e foram promulgadas leis protegen­do os animais. Com isso, o número de tigres-siberianos subiu para algumas centenas ao longo das décadas seguin­tes, e conservacionistas do mundo inteiro já se sentiam mais tranquilos, quando chegou a década de 1990 – a déca­da da Perestroika, a reestruturação política e econômica que pôs abaixo a "Cortina de Ferro" que isolava a União Soviéti­ca do resto do mundo. A isso seguiram-se, sem muita demora, o fim da própria União Soviética e a implosão do co­munismo. Isso tudo teve duros efeitos sobre a sociedade e a economia da Rússia, com um empobrecimento ge­ral da população e um aumento drástico do desemprego. Muitos russos, sem outra alternativa de sobrevivência, passa­ram a tentar viver do que as florestas da Sibéria ofereciam, fosse por meio da caça de diferentes animais ou da ex­tração de madeira – invadindo o habitat dos tigres. Pior ainda, o relaxamento do controle das fronteiras permitiu a entra­da de caçadores ilegais vindos da China em busca dos tigres que já não existiam em seu país.

No entanto, Vladi­mir Markov, o caçador ilegal de 46 anos que foi morto por um tigre, nos arredores do vilarejo siberiano de Sobolo­nye, em de­zembro de 1997, não era chinês, e sim russo mesmo. A guarda florestal imediatamente chama a equipe local do pro­jeto conhecido como Inspec­tion Tiger, subordinado ao Departamento de Conservação e Caça. A equipe é lidera­da por Yuri Trush, ex-militar e experiente caçador, cujo trabalho, agora, consiste basica­mente em proteger os tigres contra caçadores ilegais – só que, na eventualidade de os papéis de caçador e presa se­rem troca­dos, isso tam­bém é de sua alçada. Quando Trush e seus companheiros chegam ao local, constatam que pouca coisa restou de Markov para ser vista; o mais desconcertante, entretanto, é que, a julgar pelos rastros e outros sinais deixados na cena da morte (sinais esses que um caçador experiente pode ler como se estivessem escritos num livro), o tigre não ma­tou Markov num encontro fortuito, e nem mesmo para se defender: ele o espreitou e caçou, com inteligência e paci­ência, talvez durante dias.


A primeira hipótese levantada é a de que Markov tivesse capturado um filhote a fim de vendê-lo, e sofrido a vingança da mãe, mas um dos companheiros de Trush logo descarta essa possibilida­de, por­que os rastros encontrados na neve são grandes demais para pertencerem a uma fêmea. E, como se descobre de­pois, ele está certo: o tigre responsável pela morte do caçador é um macho de cerca de seis anos – jovem, mas já adulto, e especialmente grande. No decorrer da mesma investigação, os agentes do Inspec­tion Tiger descobrem uma armadilha, obviamente instalada por Markov, e destinada à captura de tigres. Ou seja, é a prova de que o fale­cido não simplesmente lidava com incidentes ocasionais envolvendo tigres, como todo caçador da taiga está sujeito a ter: ele estava deliberadamente caçando os felinos, um crime grave perante a lei russa, mas também um negócio muito lucrativo.

Uma mente civilizada reluta em estabelecer o nexo entre Markov caçar tigres e o fato de ter sido morto por um. Afinal, nenhuma fera é capaz de desejar vingança, e tampouco de executá-la, não é mesmo? Um tigre pode atacar um caçador que atire nele, que tente roubar carne de uma presa que ele abateu, ou que ameace seus filhotes, e – embora isso seja muito raro – pode até mesmo atacar um ser humano como o faria com um ani­mal qualquer, levado simplesmente pela fome, mas todas essas situações podem ser atribuídas ao instinto de auto­preservação ou ao de defender a prole. Vingança requer compreensão de causa e consequência, capacidade de pla­nejar, e também de experimentar um sentimento semelhante ao ódio – tudo coisas demasiado complexas para um animal dito "irracional". Entretanto, a relutância em admitir essa possibilida­de não é compartilhada por povos nati­vos da Sibéria, como os nanai e os udeghe, que há séculos e milênios vivem em íntima comunhão com a taiga (um tipo de floresta característico das latitudes boreais). Para os caçadores desses povos, que tiram da floresta o susten­to de suas famílias, tal como seus ancestrais o fizeram desde tempos muito antigos, o tigre é tão inteli­gente quanto um homem, igualmente capaz de ser tanto generoso quanto cruel, de guardar rancor ou de perdoar, e, por tudo isso, é digno de ser tratado com respeito e cautela. Conversando com esses caçado­res nativos, Yuri Trush e seus ho­mens vão desenvolvendo uma compreensão diferente do incidente que tirou a vida de Markov – e que se repete al­guns dias depois: desta vez, a vítima é um jovem caçador de 20 anos, Andrei Po­chepnya, para quem Markov havia sido, além de vizinho e amigo, uma espécie de mentor. Se Pochepnya estava atrás de vingança, ou se simplesmente topou com o tigre enquanto caçava para pôr comida na mesa da família, não fica claro, mas o problema nas mãos de Trush e sua equipe fica cada vez maior. Sem alternativa, os homens dão iní­cio a uma caçada perigosa em meio a um ambiente no qual o tigre parece capaz de desaparecer sempre que assim deseja, e, embora o animal esteja ferido e pareça raivoso, age com uma sagacidade quase sobrenatural, tornan­do sua caça um desafio ainda maior, e fazendo da leitura desta história uma experiência que o leitor não esquecerá fa­cilmente.

Citar críticas elogiosas feitas por escritores de renome ou por órgãos de imprensa conceituados é uma estratégia muito comum para alavancar as vendas de livros de todos os gêneros, mas uma das que aparecem na contracapa de O Tigre me parece certeira: al­gum crítico do jornal francês Le Monde teria escrito que o livro é "o equivalente de Moby Dick para a floresta", e eu concordo, por pelo menos duas boas razões. A primeira é a combi­nação mortífera de ferocidade e inteligência, de­monstrada tanto pelo grande cachalote branco de Herman Melville quanto pelo tigre homicida caçado por Trush e seu grupo – o que confere a ambas as narrativas um clima aflitivo impossível de compreender sem lê-las. A outra é que o esquema geral de Moby Dick parece ter servido de inspira­ção a John Vaillant: Melville intercalava capítulos que narravam a caçada ao cachalote com outros de conteúdo en­ciclopédico, versando sobre cetologia, sobre a ativi­dade baleeira e assuntos afins; Vaillant alterna a investigação das mortes de Markov e Pochepnya e a perseguição ao tigre com dissertações sobre aspectos históricos, geográficos e humanos da Rússia em geral e da Sibéria em particu­lar, e com uma ampla e fascinante pesquisa na qual a antropo­logia dialoga com a história natural.

Os grandes primatas (entre eles nós, hominídeos) e os grandes felinos evoluí­ram de forma paralela, em muitos casos partilhan­do o mesmo habitat, e, durante 90 por cento do tempo, ou mais, os respectivos papéis eram muito claros: eles eram os predadores dominantes, e nós, presas eventuais. Nosso medo atávico do escuro (e quando digo "nosso", não que­ro dizer apenas dos humanos, mas dos grandes primatas em ge­ral) deve-se provavelmente ao fato de nossos ances­trais, durante pelo menos cinco milhões de anos, terem desen­volvido o hábito de buscar abrigo tão logo anoitecia, sob pena de tornarem-se o jantar de algum dentre uma longa lista de predadores noturnos, lista essa na qual leões, leopardos e outros felinos ocupavam lugar de destaque. Não tínhamos a menor chance contra essas feras: não po­díamos nem por sonhos rivalizar com sua força ou agilidade, e não tínhamos presas ou garras. Com o tempo, fomos encontrando maneiras de compensar essas desvantagens usando nossos dois principais trunfos – nosso cérebro e nossa habilidade manual. Aprendemos a fabricar armas cada vez mais eficien­tes e a agir em equipe de formas astu­tas, o que, aos poucos, equilibrou a balança, e depois a fez pender para o nosso lado. A partir daí, parece que passa­mos a merecer algum respeito da parte de nossos vizinhos felinos – pois, como Vaillant demonstra com base em di­versos estudos de especialistas, não somos os únicos animais capazes de incorporar novos conceitos e mudar nossos costumes de acordo com eles. Por muito tempo, os felinos viram os hu­manos como presas fáceis, mas, a partir do momento em que nossos ancestrais começaram a andar munidos de obje­tos pontiagudos e cortantes que podiam cau­sar sérios estragos, as feras passaram a evitá-los. Por outro lado, mes­mo que agora fosse capaz de se defender, o ho­mem primitivo não tinha qualquer desejo de procurar briga com ani­mais perigosos, a menos que fosse absoluta­mente necessário – um comportamento que foi passando de geração em geração, tanto entre felinos quanto entre humanos, até que se chegasse a um acordo de respeito mútuo, aquele do qual eu fala­va no começo do texto. Apesar disso, a escuridão, e o que quer que possa haver nela, continuaram e con­tinuam a nos intimidar, e devemos isso, em grande parte, aos ti­gres e seus parentes. Para mim, uma das coisas mais fasci­nantes a respeito da antropologia (e, mais especificamen­te, da parte dela que trata dos nossos ancestrais) é o fato de nos permitir compreender os moti­vos de sermos como somos.

O tigre-siberiano é um dos mais belos animais que alguém seria capaz de imaginar, e também um dos mais aterradores. Mais peludo e corpulento que seus paren­tes de regiões quentes, é uma perfeita má­quina de ma­tar que pode atingir (e, por vezes, ultrapassar) 300 quilos de peso e três metros de comprimen­to to­tal, medindo do fo­cinho à extremidade da cauda. Seus dentes cani­nos têm o comprimento de um dedo indica­dor, a mandíbula é pode­rosa o suficiente para partir o fêmur de um boi com uma única mordida, as garras são cur­vas como ganchos e afia­das como navalhas. Todo esse arsenal está a ser­viço de um cérebro astuto de predador: tal­vez por viverem e caça­rem sozinhos, os tigres parecem ter boa capacida­de de plane­jamento (sim!) e de lidar com situa­ções inesperadas, muito mais que seus primos, os leões. Nenhum animal da tai­ga está a salvo de seu apetite: o tigre pode se alimentar de qualquer coisa, de ratos-silvestres a bisões adultos, e, pasmem, até mesmo de animais que, em qualquer outro lugar, costumam ocupar o topo da cadeia ali­mentar, como ursos e lobos (!). Entretanto, parece que suas presas fa­voritas são cervídeos de grande porte (alce, rena, wapiti) e javalis.

Estima-se que existam hoje cerca de 500 ti­gres-siberianos em liberdade, mais uns cem em zoológicos e cen­tros de preservação em diferentes países. É o sufici­ente para que a subespécie não corra pe­rigo imediato, mas há outro fa­tor complicador a colocar em risco seu futuro: a gradual redução do espaço vital disponí­vel devido à ocupa­ção hu­mana. Foi-se o tem­po em que "Sibéria" designava uma região isolada e quase despo­voada, para onde eram mandados os prisioneiros políticos: hoje ela tem grandes ci­dades e uma população superior a 25 milhões de habi­tantes. Para complicar, o ti­gre, como todo predador de gran­de porte, necessita de um território vas­to – algo em tor­no de 450 quilômetros qua­drados para um macho adulto, sen­do que essa área pode sobrepor-se aos territórios de até duas ou três fêmeas. Embo­ra a Rússia tenha estabeleci­do reservas naturais visando tanto a preser­vação do tigre quanto de outras espéci­es, o sim­ples tamanho dessas reservas torna quase impossível um controle cem por cento efeti­vo; além disso, mais difí­cil que impedir que caçadores entrem, é impe­dir que os animais saiam. Há planos de trans­ferir certo número de ti­gres para o Par­que Pleistoceno, uma reserva natural no nordeste da Sibéria, onde biólogos estão tentando restabe­lecer as condi­ções ecológicas que lá existiam perto do final da última Era Gla­cial, por meio da reintrodução de espé­cies que habi­tavam a região na época. Mesmo antes que a área se tornasse um parque, já vi­viam nela animais como ur­sos, lobos, alces, renas e ja­valis; desde então, foram reintroduzidos com su­cesso bois-al­miscarados, bisões, wapi­tis, ca­valos selvagens, saigas e linces (e, se o projeto de clonagem que está ten­tando trazer de volta os mamutes for bem-­sucedido, o local será, sem dúvida, um lar confortável também para esses gigantes do passado – isso não seria for­midável??). Ainda estão em andamento os estudos sobre a viabilidade de ter tigres vi­vendo lá, e, de qualquer for­ma, será necessário aguardar que a popula­ção de herbívoros aumente até atingir núme­ros que permitam que sir­vam de alimento aos grandes feli­nos sem peri­go para sua própria conservação. Outra ideia, ainda mais ambiciosa, consiste em repovoar com tigres-siberianos as áreas antigamente ocupadas pelo extin­to tigre-do-cáspio, o que re­presentaria um aumento importante do espaço vi­tal disponível para a subespécie, mas isso ainda é uma possibilida­de distante. Por enquanto, o tigre-­siberiano só pode contar mesmo com as reservas que já ocupa, no extremo orien­te russo.

Acho que foi Jacques Cousteau quem declarou que ficava atônito de pensar que, durante o tempo de duração de sua vida, o homem, de­pois de milênios lutando contra a natureza pela sobrevi­vência, teve que fazer um giro de 180 graus e passar a empe­nhar-se em defendê-la, porque percebeu – e esperemos que não tenha sido tarde demais – que é preciso encontrar um equilíbrio. Continuando o pensamento de Cousteau, eu diria que o tigre é um perfeito exemplo concreto dessa ideia mais geral sobre a natureza. Junto com outras feras predadoras, ele fez parte dos nossos pesa­delos na pré-his­tória, e, ao longo de toda a construção da nossa cultura, foi sempre temido – pri­meiro, só temido; depois, temido, admirado e cobiçado de morte. Hoje, temos que nos esforçar para salvar os últi­mos deles, se não quisermos ser os responsáveis por legar às gerações futuras um mundo onde os tigres não exis­tam, um mundo, por­tanto, despojado de um pouco (na verdade, um muito) de sua beleza e terror. Eu fico pensando no quanto vai ser triste se, daqui a um ou dois séculos, uma criança de então abrir um livro, maravi­lhar-se com a ilustração represen­tando um gigan­tesco gato listrado de amarelo e preto, tão forte, majestoso, fasci­nante e terrível, e sentir a frustra­ção de saber que tal animal não existe mais, que nunca lhe será possível ver um de­les vivo e respi­rando – o mesmo tipo de frustração que eu, tanto em criança quanto ainda hoje, sentia e sinto ao abrir um livro e fi­car olhando com espanto para ima­gens de arsinotérios, gliptodontes, entelodontes, rinocerontes peludos e tantas outras feras magní­ficas que nunca vou ver a não ser em livros mesmo. Na verdade, acho que será mais triste ainda, porque essa crian­ça do futuro esta­rá olhando para fotografias, e não para pinturas; para um ani­mal cuja extinção não foi natural, e sim culpa do ho­mem. E ficará sabendo que tivemos uma chance de salvar o ti­gre, e não o fizemos. O que seria uma grande, grande vergonha.

domingo, maio 29, 2016

Os Livros da Selva

Já havia algumas edições, tanto brasileiras quanto portuguesas, intituladas O Livro da Selva, circulando por aí antes, que incluíam apenas o conteúdo do primeiro The Jungle Book, publicado originalmente em 1894, e uma única edição, da Companhia das Letras (dentro de sua coleção traduzida dos famosos Clássicos Penguin) que trazia os dois (The Second Jungle Book é de 1895), mas, mais uma vez, temos que agradecer, mesmo que um tanto a contragosto, a Hollywood pelo retorno às livrarias, em grande estilo, de uma obra e de um autor que todo mundo deveria ter a chance de conhecer. No embalo do novo filme Mogli, o Menino-Lobo, a editora Zahar lança esta nova edição, chamada Os Livros da Selva (notem o plural!) e com o subtítulo Contos de Mowgli e Outras Histórias. Trata-se de uma tradução nova e, de modo geral, OK (com algumas falhas), mas confesso que teria ficado muito feliz se, ao abrir o livro, tivesse reencontrado a velha tradução de Monteiro Lobato, a primeira que tivemos publicada no Brasil, e que li quando criança.

Rudyard Kipling, o criador de Mowgli e de tantos outros personagens memoráveis, foi, em tudo, um autor inglês, mas nutriu durante toda a vida um grande amor e interesse pela Índia, então colônia britânica, e terra de seu nascimento. Começou no jornalismo, profissão que exerceu durante a maior parte da vida, mas sem nunca deixar de encontrar tempo para a literatura. Além de contos de aventuras como os que encontramos n'Os Livros da Selva, também escreveu romances e poemas – um dos quais, If ('Se'), é, sem a menor dúvida, um dos mais reproduzidos de todos os tempos (todo mundo já o recebeu por e-mail pelo menos uma vez, nem sempre com o nome do autor corretamente creditado). Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1907, tornando-se o primeiro autor de língua inglesa a receber tal distinção. Embora muitos o acusem de ter sido uma voz do imperialismo britânico – e, por sinal, uma das mais influentes –, Kipling recusou os títulos de Cavaleiro e de Poeta Laureado do Império Britânico, duas das maiores honrarias que podem ser oferecidas a um cidadão inglês; provavelmente, porque não queria ter que ficar se preocupando com o que poderia ou não dizer em suas obras, uma vez que os tivesse aceito.

Kipling esteve no Brasil em 1927, escrevendo uma série de crônicas especiais para o jornal londrino The Morning Post, dando ênfase às atividades da firma inglesa São Paulo Railway e ao dia a dia de centenas de cidadãos britânicos que trabalhavam para ela em solo brasileiro. A Railway cuidava da operação e da manutenção das estradas de ferro que conectavam o interior do estado de São Paulo ao porto de Santos, um caminho que era vital para o transporte do café, na época o principal produto de exportação do Brasil. Para servir de posto de controle e também de acomodação para seus funcionários, a companhia criou a vila de Paranapiacaba, hoje um distrito do município paulista de Santo André. Ao chegar lá, Kipling (como todos os ingleses que vieram antes) deve ter-se surpreendido com a sensação de estar praticamente em casa, pois, além da típica arquitetura britânica, o próprio clima do lugar – frio, úmido e nevoento – faz pensar na velha Inglaterra. Paranapiacaba, aliás, parece ter mudado muito pouco nos últimos noventa ou cem anos, e recomendo-a como destino para um passeio muito curioso. Em especial, não se pode deixar de visitar o "Castelo", um casarão situado bem no topo de um morro, de onde se avista toda a vila. Era a residência do engenheiro-chefe, então é provável que Kipling tenha-se hospedado ali. Quanto às crônicas, foram publicadas no The Morning Post, durante os meses de novembro e dezembro de 1927, e hoje estão disponíveis em livro, com o título Crônicas do Brasil.


Embora sua obra seja muito maior que isso, não há dúvida de que é por ter criado Mowgli, o menino-lobo, que Kipling é mais famoso. As aventuras do personagem divertem e empolgam hoje tal como o faziam no século XIX, e fizeram parte do imaginário e até da educação de várias gerações, em grande parte por serem adotadas pelo escotismo internacional como uma espécie de guia e fonte de inspiração para meninos e meninas de sete a onze anos, os "lobinhos". É fácil ver por que: essas histórias ensinam (sem deixar demasiado óbvio que estão ensinando) lições sobre amizade, disciplina, respeito aos mestres e às instituições, amor à família, e sobre como a inteligência pode triunfar sobre a força bruta. Para a criação de Mowgli, Kipling parece ter tomado como base histórias que ouviu na Índia durante sua infância e juventude, histórias essas que merecem um olhar atento, e que ele complementou com a própria imaginação.

Histórias de crianças órfãs ou abandonadas, acolhidas por animais selvagens, são contadas desde a Antiguidade (lembram-se de Rômulo e Remo?); por alguma razão, para cada história dessas envolvendo outros tipos de animais, há pelo menos umas dez sobre lobos, e a Índia é, de longe, o país com o maior número de casos relatados. Talvez isso tenha a ver com seu clima quente, já que, em lugares como a Rússia ou o Canadá, uma criança vivendo entre animais dificilmente sobreviveria ao primeiro inverno na floresta, de modo que sua história ficaria sem ser conhecida. Kipling, com certeza, ouviu falar muito no assunto, e encontrou aí a ideia de que precisava para criar um personagem por meio do qual poderia narrar diversas aventuras ambientadas nas misteriosas selvas de sua terra natal.

Quando Shere Khan, o tigre, ataca um acampamento nas montanhas de Seeonee, na região central da Índia, os humanos que lá estavam se dispersam, fugindo cada qual para um lado. Um menino – um bebê que há pouco começou a andar – vai parar na toca de uma família de lobos, onde Shere Khan acaba por localizá-lo, mas não pode entrar por ser muito grande. A mãe-loba, por nome Raksha ('a Demônia'), declara ao tigre que o "filhote" agora pertence a ela e, mais, profetiza que, quando ele crescer, irá caçar Shere Khan e matá-lo. O tigre se retira furioso, e ninguém ignora que, daí em diante, matar o menino vai tornar-se uma obsessão para ele. Algum tempo depois, o casal de lobos leva o bebê, ao qual deram o nome de Mowgli, ao conselho da alcateia, junto com seus próprios filhotes, para que seja apresentado à sociedade dos lobos. O chefe da alcateia, Akela (pronuncie Ákela) é um líder forte e justo, rígido no cumprimento da lei, mas não incapaz de ter misericórdia. Duas vozes, além das dos pais adotivos, se elevam a favor do filhote de homem. A primeira é a de Baloo, o urso-pardo, que há muito desempenha as funções de professor dos filhotes da alcateia, ensinandolhes a Lei da Selva; a outra é a de Bagheera, a pantera negra, um dos predadores mais temidos e respeitados da região. Embora não tendo direito a falar no conselho da alcateia, Bagheera oferece um preço pela vida do menino: um touro que acaba de matar. O arranjo é aceito e Mowgli fica vivendo com seus novos pais e irmãos. Durante os anos seguintes, sua vida entre os lobos é feliz e despreocupada; Shere Khan mudou seus campos de caça para outra região, e Mowgli vai sendo educado e instruído não só por Baloo, mas também por Bagheera e Akela, além, é claro, dos próprios pais. Naturalmente, os filhotes de Pai Lobo e Mãe Loba crescem muito mais depressa que ele, mas, conforme eles vão ficando adultos e seguindo sua vida na alcateia, novas ninhadas nascem, de modo que o garoto nunca fica sem irmãos. Ele se considera um lobo tal como os outros, mas, com exceção dos jovens da alcateia, tão ingênuos quanto ele, ninguém mais cultiva tal ilusão. Baloo se orgulha da inteligência de seu discípulo, mas não deixa de notar que, enquanto os lobinhos só precisam ouvir uma lição uma vez para que ela fique em suas mentes para toda a vida, no caso de Mowgli o aprendizado tem uma tendência a entrar por um ouvido e sair pelo outro. Coisas de homem. Apesar disso, o garoto tem facilidade para aprender e, infelizmente, sabe disso, o que acaba por torná-lo orgulhoso e excessivamente autoconfiante – dois defeitos que só a experiência o ensinará a corrigir, como a história A Caçada de Kaa ilustra bem.

Porém, esse tempo feliz, como sempre acontece, chega ao fim. Shere Khan retorna a Seeonee, e Akela, já velho, vê sua liderança se enfraquecer dia a dia conforme o tigre, traiçoeiro, vai-se fazendo "amigo" de muitos dos jovens lobos, engambelando-os com palavras lisonjeiras e comprando-os com os restos das presas que mata – uma desonra por si só, já que caçar o próprio alimento é um dos mais importantes pilares sobre os quais repousa o orgulho de qualquer lobo que se preze. Se mais alguém tiver visto nisso algum tipo de crítica social, que bom: é sinal de que eu não devo estar louco, afinal de contas. Aliás, mais de um estudioso mais abalizado que eu já manifestou a opinião de que parte do segredo da longevidade da obra de Kipling está nos diferentes níveis de leitura possíveis: uma criança pode ler a coisa toda como simples histórias de aventura, e, ao relê-la anos ou décadas mais tarde, perceber que há símbolos a serem interpretados, e que, onde se fala em animais, o autor pode estar retratando comportamentos humanos.

O resultado do relaxamento da disciplina é o que seria de se esperar: a alcateia se esfacela, dividida por rivalidades sem sentido e com cada lobo caçando e vagueando como bem entende, muitos deles caindo em armadilhas ou adotando modos de vida que os envergonham. Diante disso, o grupo dos que mais se importam com Mowgli chega a uma conclusão: não podem protegê-lo sempre e em toda parte, e todos sabem que basta um pequeno descuido para que Shere Khan cumpra sua vingança há tanto tempo esperada. A solução é mandá-lo de volta para os homens, e o menino, agora quase adolescente, muito a contragosto, dirige-se para a aldeia mais próxima, aquela onde seus pais biológicos possivelmente ainda vivem. Isso, de certa forma, representa o início do conflito que define a própria existência de Mowgli: nascido dos homens, mas criado entre os animais, ele não pertence de fato a nenhum dos dois mundos, e a sombra desse destino vai persegui-lo até a última de suas aventuras a ser narrada nestes livros.

Já li comentários sobre a obra de Kipling criticando-o por retratar animais comportando-se de maneiras descaradamente humanas – uma crítica, a meu ver, sem sentido; é óbvio que o autor nunca teve a intenção de descrever o comportamento das criaturas selvagens com rigor científico, ou que cabimento teria colocar Baloo como mestre dos filhotes da alcateia? Ursos e lobos são rivais naturais, que competem por território e caça em todos os ecossistemas onde convivem, seja na gelada Sibéria ou na Índia tropical. O que Kipling fazia era uma espécie de fábula, com ação empolgante e personagens inesquecíveis. Mesmo assim, ele frisa de forma insistente a diferença essencial e irremediável entre Mowgli e seus irmãos selvagens: cada animal da selva, seja lobo, urso, pantera, tigre, elefante ou outro qualquer, age sempre de acordo com sua natureza, e pode-se ter a certeza de que sempre farão isso, porque não há outro caminho possível para eles; são seres retos e sem contradições, que nunca enfrentam dúvidas sobre o que fazer diante de determinada situação. Mowgli é diferente, porque, por mais que tente esquecer o fato, é homem – e ele bem que tenta, muitas vezes, especialmente depois de ter tido contato com os humanos e ver o quanto eles podem ser tolos, cruéis e ilógicos; porém, por ser homem, ele é incomparavelmente mais complexo que qualquer animal, e, consequentemente, contraditório, e isso é algo sobre o qual não tem poder. Costuma ofender-se quando o chamam de homem, mas não hesita em recorrer a uma certa autoridade natural que sua condição humana lhe confere até mesmo sobre aqueles com quem aprendeu tudo, como Bagheera e Baloo. Não há animal na selva que consiga encará-lo sem desviar o olhar, e a combinação do "ser homem" com o conhecimento profundo da vida selvagem, dos costumes e da língua de cada espécie, acaba por fazer dele o senhor absoluto da selva e de todos os que nela habitam – o que não impede que sofra momentos de incerteza e insegurança. Sua ambivalência em relação à humanidade fica mais evidente na história O Avanço da Selva, na qual, já se acostumando a seu papel de senhor, ele decide que a aldeia não deve continuar a existir, e consegue a ajuda de diferentes animais, passando a destruir sistematicamente as colheitas e danificar as construções, até que o povo seja obrigado a ir embora e a selva retome o lugar – mas faz tudo isso sem matar ninguém.


Esta nova edição d'Os Livros da Selva traz as histórias na ordem em que aparecem nas publicações originais, diferentemente da edição que li na infância, que apresentava primeiro todas as aventuras de Mowgli, e depois as outras histórias. Isso nos permite observar que o primeiro The Jungle Book incluía apenas três histórias sobre o menino-lobo, e quatro com outros temas; provavelmente o fato de Mowgli ter-se tornado seu personagem mais querido levou Kipling a dar-lhe maior destaque no The Second Jungle Book, no qual, de oito histórias, cinco o têm como protagonista. Também é importante notar que as aventuras de Mowgli estão numa ordem cronológica aproximada, mas não rigorosa: a primeira, Os Irmãos de Mowgli, fala de sua adoção pelos lobos e, depois, de sua primeira ida para os homens, aquela da qual ele voltaria; a última, A Corrida da Primavera (que, na tradução de Lobato, chamava-se A Embriaguez da Primavera; o título original era The Spring Running, que permite diferentes interpretações, mais ou menos literais) é sobre sua ida definitiva. Por outro lado, A Caçada de Kaa, por exemplo, fica em algum lugar entre o início e o fim de Os Irmãos de Mowgli, sendo uma das inúmeras aventuras que o autor "pula", dizendo ao leitor que ele deve "simplesmente imaginar a vida magnífica que Mowgli teve entre os lobos, pois se isso fosse escrito preencheria uma infinidade de livros". Como apêndice, temos ainda Dentro do Rukh, publicada em 1893, a primeira história na qual Mowgli aparece – só que, nela, ele já é adulto e deixou a selva (apesar de ainda parecer muito ligado a ela), de modo que seria na verdade a última por ordem cronológica.

Não se pode negar que as aventuras de Mowgli são a parte mais apetitosa de Os Livros da Selva, mas estão longe de ser a única coisa interessante. No primeiro The Jungle Book, temos A Foca Branca, uma das duas únicas histórias não ambientadas na Índia. Embora Kipling se refira aos animais ali apresentados pelo nome de "focas", trata-se claramente de leões-marinhos, como as notas de rodapé da nova edição esclarecem. A foca branca do título é Kotick, um jovem macho nascido nas praias do mar de Bering, que, inconformado com o assassinato de milhares de seu povo a cada ano por caçadores de peles, decide dedicar a vida a procurar por um lugar onde as "focas" possam viver em paz, e o relato de suas viagens pelos quatro cantos dos oceanos é algo digno de acompanhar – e tanto mais admirável por sabermos que esses incríveis mamíferos marinhos são mesmo capazes de tais deslocamentos, nadando por milhares de quilômetros e passando meses a fio sem tocar terra firme. Temos também Rikki-tikki-tavi, sobre a inimizade mortal entre mangustos e serpentes. Servos de Sua Majestade é uma fábula que tem como personagens diferentes animais do exército indo-britânico: cavalos, camelos, mulas, bois de tração, elefantes e outros, todos conversando entre si, e que nos leva à conclusão de que cada um "luta" conforme sua natureza e suas capacidades, o que não significa que um tenha mais valor que outro. E, ainda no primeiro The Jungle Book, encontramos o que talvez seja a melhor história sem Mowgli de ambos os livros: Toomai dos Elefantes, sobre a vida dos homens que trabalhavam com os referidos paquidermes na Índia, na época da ocupação britânica. Um desses homens é o Grande Toomai, filho e neto de famosos mahouts (tratadores e condutores de elefantes), que alcançou um cargo bem remunerado e de certo prestígio a serviço do governo britânico na Índia, e, naturalmente, espera que seu filho, o Pequeno Toomai, siga seus passos... Só que o menino de dez anos gosta é da vida na selva, e sonha em tornar-se um dos homens que se dedicam a capturar e domar elefantes selvagens, o que, na opinião do pai, seria um retrocesso de vida.

No segundo The Jungle Book, temos O Milagre de Purun Bhagat, uma história diferente, com pouca ação, mas também interessante a seu modo, que trata de um homem originário de uma das famílias mais conceituadas da casta dos brâmanes, a mais alta da Índia, e que vem a ser um alto funcionário do governo, com excelentes conexões tanto em Délhi e Bombaim quanto na própria Inglaterra, o que lhe garantiria uma vida de poder e riqueza... Só que ele decide abandonar tudo para tornar-se um homem santo errante, passando a percorrer a pé as estradas poeirentas do interior da Índia e a viver da caridade dos que encontra.

A outra história não ambientada na Índia, como referi ao falar sobre A Foca Branca, também está em The Second Jungle Book; é Quiquern, uma aventura esquimó fortemente marcada pela estranha e macabra mitologia desse povo. Os Agentes Funerários narra a Revolta dos Sipaios, de 1857, através das memórias de um velho crocodilo que conta suas histórias a um marabu e um chacal; o réptil interpreta as reviravoltas da sociedade dos humanos de acordo com a quantidade de cadáveres que encontra boiando no rio, e que lhe poupam o trabalho de caçar. Trata-se de uma fábula também, projetando um pouco do pior da humanidade (prepotência, vaidade, servilismo, covardia) sobre as figuras dos três animais. O título parece enigmático à primeira vista, mas torna-se claro quando o leitor se dá conta de que os personagens são dois animais necrófagos por excelência (o chacal e o marabu) e um que parece bem adaptado a essa vida (o crocodilo).

O Livro da Selva chegou às telas pela primeira vez em 1942, com direção de Zoltán Korda e o ator indiano Sabu Dastagir no papel de Mowgli, mas essa produção é pouco lembrada hoje em dia; a versão mais famosa é, sem dúvida, o longa-metragem de animação da Disney, lançado em 1967, cujo roteiro, entretanto, tinha pouco a ver com as histórias originais de Mowgli escritas por Rudyard Kipling. A nova versão, também da Disney, que acaba de ser lançada, responsável pelo hype que possibilitou o surgimento desta nova edição, combina atores reais (na verdade, praticamente só o garoto Neel Sethi) com animais criados por computação gráfica; é visualmente magnífico, mas tem praticamente o mesmo roteiro que o desenho animado, deixando de fora quase todas as partes mais significativas e emocionantes das aventuras de Mowgli e pintando os personagens Baloo e Kaa, a serpente, de formas totalmente deturpadas: Baloo, que, nos livros, é um mestre austero, virou um urso bonachão e boa-vida; Kaa, que salva a vida de Mowgli na história A Caçada de Kaa e, daí por diante, torna-se sua amiga e mestra, assim como Baloo e Bagheera, nos filmes da Disney só está interessada em comer o garoto (o filme de 1942 era mais justo com ela). Para não dizer que o novo filme não traz nenhuma melhoria em relação ao desenho, ele mostra um dos momentos mais interessantes das histórias, a Trégua da Água, que tem início quando a Pedra da Paz emerge das águas do rio, o que só acontece em tempos de grande seca; enquanto essa pedra estiver exposta, é proibido aos animais carnívoros caçar junto ao rio, porque "beber é mais importante que comer". Em condições normais, os bebedouros estão entre os melhores lugares para um predador espreitar sua presa; enquanto dura a trégua, Bagheera, Shere Khan e os lobos bebem lado a lado com cervos e antílopes. Lei é Lei!

Para finalizar, uma nota de rodapé sobre as imagens: a edição da Zahar traz algumas ilustrações das primeiras edições de ambos os The Jungle Book, feitas por ninguém menos que John Lockwood Kipling, pai do autor – mas, embora eu ache isso formidável, optei por não reproduzi-las aqui, porque foi impossível resistir à tentação de usar as ilustrações da edição francesa, que são do grande Pierre Joubert, tal como a capa da mesma edição, que também estou incluindo.

quarta-feira, dezembro 12, 2012

Chamado Selvagem

Jack London (1876-1916) foi mais um autor que marcou minha infância, embora eu tenha lido realmente pouca coisa de sua obra naquela época - que me lembre, este próprio livro e uma história curta chamada Luta com os Dentes, que aparecia numa antologia intitulada Animais Selvagens: aventuras e histórias famosas, e que, como mais tarde descobri, era na verdade um trecho de seu romance Caninos Brancos (menos mal que, sendo assim, London é inocente desse título pra lá de ruim dado a uma boa história). Já adulto, li O Andarilho das Estrelas, um de seus últimos livros, e que me pareceu ser uma coisa um tanto à parte do resto de sua obra, embora também seja uma derivação natural dos interesses e convicções que o autor cultivou durante os últimos anos de sua curta vida. Mas poderei retornar oportunamente a esse livro. Por hoje, vamos focar em Chamado Selvagem - e um pouco em seu autor.

John Griffith Chaney nasceu em San Francisco, Califórnia, e compartilhou muitas características com outros grandes escritores norte-americanos, antes e depois dele: como Herman Melville, foi um jovem irrequieto, que correu o mundo e viu com os próprios olhos as coisas e os lugares que depois retrataria em romances de aventuras que empolgariam gerações; como Ernest Hemingway, celebrou em seus escritos a força, a coragem, a virilidade, e a natureza no que ela tinha de mais grandioso e indomável... E, como Edgar Allan Poe, morreu aos 40 anos de idade, no auge de suas capacidades, privando seus fãs das muitas obras memoráveis que ainda poderia ter produzido. Fãs, aliás, ao contrário de Poe, ele tinha muitos: foi um dos raros escritores a gozarem de popularidade ainda em vida. Seus romances e os contos publicados em revistas de grande circulação fizeram-no rico e admirado - um notável progresso de vida para alguém que teve um início difícil. Filho de um astrólogo itinerante e de uma professora de música, nunca conheceu o pai. Quando o pequeno John ainda não tinha um ano, sua mãe casou-se com John London, um veterano da Guerra Civil, que daria ao enteado tanto seu sobrenome quanto o apelido de Jack. Depois de uma adolescência que teve de tudo, de um prosaico emprego numa fábrica (no regime semiescravo de 16 horas por dia, seis dias por semana, como era comum naqueles tempos pós-Revolução Industrial) até perigosas pescarias de ostras, além de um único ano na Universidade da Califórnia, em 1897 decidiu juntar-se à Corrida do Ouro no Alasca, onde conheceria todas as durezas da vida no Ártico, travando contato na prática com aquela que seria a ambientação de pelo menos dois de seus livros mais famosos: The Call of the Wild (Chamado Selvagem, 1903) e White Fang (Caninos Brancos, 1906).

Embora seja geralmente citado como um romance, Chamado Selvagem não seria assim definido pela Teoria Literária, por ter um único núcleo narrativo; é mais como se fosse um longo conto. A história é a de um cão, Buck, que leva uma vida de rei no sítio do Juiz Miller, na ensolarada Califórnia, até estourar a notícia da descoberta de ouro na região de Klondike, na fronteira Alasca/Canadá. Com milhares de homens deslocando-se para o norte em busca do sonho da riqueza, a demanda por cães grandes, fortes e peludos torna-se frenética, e, para azar de Buck, ele possui todas essas características: mestiço de um pai são-bernardo e de uma mãe collie, é um animal magnífico. E por ser assim, acaba sendo roubado e vendido por um dos próprios empregados de seu dono, levado para San Francisco e, de lá, direto para o norte, onde mergulha numa nova e brutal existência na qual o carinho e a consideração com que era tratado em seu antigo lar transformam-se apenas em vagas lembranças que parecem vir de outra vida. Sua "doma" por um sinistro "homem de suéter vermelho" é uma passagem dolorosa de ser lida, embora o autor demonstre, ao final dela, que esse homem não é realmente cruel: há método e objetivo por trás de sua brutalidade, e os cães que passam por suas mãos têm a chance, se forem espertos, de aprender uma ou duas coisas que talvez os ajudem a sobreviver nas condições inclementes sob as quais terão de trabalhar.

E inclemente é sem dúvida a palavra que melhor descreve o mundo no qual Buck está entrando. Uma vez chegado às geladas terras do norte, bem depressa ele compreende que não deve esperar misericórdia dos que ali encontrará, sejam homens ou cães - e que tampouco deve oferecê-la, caso pretenda ser respeitado. Um gesto casual qualquer, que, entre os cães de sua terra natal, seria visto como uma tentativa de contato cordial, é muitas vezes interpretado pelos cães de trilha do Alasca (mais próximos de lobos que dos cães que Buck até então conhecia) como uma provocação, que pode levar a uma luta de consequências fatais. Ao mesmo tempo em que sua inexperiência o coloca em desvantagem, Buck tem a seu favor o tamanho e a força: pesando 63 quilos - dado esse que o autor parece considerar muito importante, pois repete-o diversas vezes -, ele é consideravelmente maior que um lobo, e também que os cães nativos. Isso faz com que algumas brigas sejam evitadas.

É verdade que nem tudo nesse mundo é violência. Os primeiros amos a quem Buck serve são François e Perrault, experimentados agentes do governo canadense e calejados viajantes das trilhas árticas, que, sempre incumbidos do transporte de importantes documentos oficiais, não podem abrir mão da celeridade, e por isso precisam sempre certificar-se de ter a melhor equipe de cães que lhes seja possível reunir e treinar. Nas mãos dos dois homens, Buck conhece uma disciplina dura, mas justa, e começa a aprender todo o necessário para ser um bom cão de trenó. As lições vêm tanto dos dois condutores quanto de seus novos companheiros, principalmente Dave e Sol-leks, cães mais velhos, com longa experiência como puxadores. Com o líder Spitz, em compensação, a coexistência não é tão harmônica: entre ele e Buck instala-se logo uma inimizade instantânea e irreconciliável.

É a princípio um tanto chocante (e provavelmente o será mais se o leitor for um amante de cães) ver como Perrault e François se abstêm de tentar apartar as brigas entre os animais, salvo quando elas ocorrem durante o trabalho; mais tarde compreendemos que os condutores agem assim porque estão cientes de estarem lidando com animais apenas precariamente domesticados, de modo que não podem esperar ter sobre eles o mesmo grau de controle que têm os donos ou tratadores que lidam com outros tipos de cachorros. A definição da cadeia de comando da matilha é assunto a ser decidido exclusivamente entre os cães, só cabendo aos homens o papel de observadores neutros das acirradas "disputas políticas" que ocorrem entre os animais. Também não escapará aos leitores mais atentos que, à semelhança de Rudyard Kipling e outros escritores que costumam colocar em cena personagens animais, Jack London é um mestre em usá-los para retratar comportamentos humanos: Buck acaba mostrando talento para a sedição, encorajando os companheiros a desafiar a autoridade de Spitz, a fim de desestabilizar o rival - mas, quando por fim o derrota e conquista a liderança, ele não tolera qualquer insubordinação. Isso lembra certas pessoas que vocês conhecem, ou sobre as quais já leram? Qualquer semelhança não é mera coincidência.

De qualquer forma, a carreira de Buck como cão-líder pouco dura. Trocar de condutores com frequência parece fazer parte da sina dos cães de trilha a serviço do governo, e, depois de deixarem François e Perrault, ele e os companheiros sobreviventes passam às mãos de outro agente, que, embora também se mostre um patrão justo e sensato, vê-se obrigado por ordens superiores a forçá-los em duas longas e exaustivas viagens, quase sem descanso. Ao final desse périplo, os cães esgotados são descartados, postos à venda. A partir daí, ainda que apenas por um breve período, as coisas ficam realmente feias. Buck e os outros têm o azar de ser comprados por Hal e Charles - dois personagens nos quais London retrata um tipo que, sem dúvida, conheceu bem durante sua própria aventura no Alasca: o dos que achavam que meter-se pelo norte em busca de ouro era para qualquer um. Os dois não sabem coisa alguma sobre viagens no Ártico, nem parecem dispostos a "perder tempo" aprendendo. Depois de passar maus, aliás, péssimos pedaços com esses sujeitos, Buck tem a vida salva por aquele que se tornará seu verdadeiro dono: John Thornton.

Thornton é um minerador como tantos outros, mas, além disso, é também um homem que realmente entende e gosta de cães; trata os seus como amigos, não como meros instrumentos de trabalho, e Buck logo toma-se de uma adoração por ele que toca as raias da idolatria, algo que não sentira nem mesmo no sítio do Juiz Miller. Com Thornton, conhece uma vida diferente, na qual a tração do trenó é apenas um dos papéis que desempenha; também lhe cabe acompanhar o dono na caça, guardar o acampamento, e, principalmente, ser um amigo e companheiro. Mesmo com tudo isso, Buck dispõe de tempo livre pela primeira vez desde sua chegada ao norte: enquanto John Thornton e seus sócios estão prospectando ouro num local, os cães têm pouco o que fazer. Com isso, Buck começa a passar cada vez mais tempo a vagar solitário pela floresta, chegando a ficar fora dias a fio, sem qualquer contato humano. Do fundo da mata (ou seria das profundezas de si próprio?) vem um chamado que ele não tem certeza se ouve ou apenas sente, mas que intensifica a atração pela vida selvagem que já vinha experimentando desde que deixou as terras civilizadas onde nasceu. Em momentos entre a vigília e o sono, Buck chega a ter visões de outro tempo e outro lugar, enxergando através dos olhos de um ancestral distante, que foi provavelmente um dos primeiros cães a andarem em companhia humana: no caso, a trêmula companhia de um assustado homem primitivo que ainda não aprendera a encarar a natureza tal como um monarca olhando para seu reino, vendo-a, em vez disso, com medo, muito medo - e encontrando certo conforto na presença do cão, por saber que os sentidos aguçados, os instintos e a coragem do aliado de quatro patas podem contribuir para sua sobrevivência.

O desejo de Buck de unir-se à floresta passa por momentos de euforia e de melancolia, pontuados por uma estranha saudade de algo que nunca conheceu - ao menos, não por experiência própria. Além disso, existe a ligação de afeto e lealdade que o prende a John Thornton, e que ele se sente incapaz de romper. Devo dizer, aliás, que sempre achei muito intrigante essa devoção de vida e morte, de um cão para com seu dono. De onde viria tamanha dedicação? Em geral, todo comportamento de um animal doméstico é uma adaptação de algum hábito ou tendência que seus ancestrais selvagens já tinham, e é claro que já se tentou dar uma explicação desse tipo para o caso: mais de um livro sobre cães que li quando garoto dizia que o cão simplesmente transfere para o dono a lealdade que o lobo dedica ao líder da alcateia, mas essa versão desmorona quando se sabe como são as coisas entre os lobos. Esses animais estão sempre muito atentos às fraquezas uns dos outros, e sua lealdade é relativa e frágil; se o lobo-líder piscar um olho na hora errada, está morto. Portanto, não é aí que se encontra a explicação, se alguma explicação existir, da proverbial fidelidade canina, essa dedicação incondicional que faz um cão ser capaz de dar a própria vida por seu dono, a mesma que mantém Buck vinculado a John Thornton até o desfecho dramático de sua história.

Não sei ao certo se Chamado Selvagem é considerado pela maioria da crítica como a obra-prima de Jack London - e, quando se fala de um autor dessa importância e reconhecida qualidade, é difícil apontar uma obra que esteja indisputavelmente acima das outras -, mas não há dúvida de que é uma magnífica introdução para quem ainda não conhece seu trabalho. Creio que a melhor maneira de sintetizar toda a sua mensagem é dizer que o livro nos põe ante os olhos um fato básico, o de que vivemos num mundo sem misericórdia, um mundo violento e cruel, no qual quem quiser sobreviver e prosperar precisa, antes de mais nada, ser forte, mas, ainda assim, um mundo com espaço para a beleza e onde a verdadeira amizade é possível.