quarta-feira, maio 22, 2013

Encantamentos

Certa vez, no editorial da revista de ficção científica que levava seu nome (e que chegou a ser publicada no Brasil, onde sobreviveu por 25 edições), Isaac Asimov propôs uma teoria classificando seus leitores (e os de publicações do gênero de modo geral) entre "exclusivistas" e "inclusivistas". Exclusivistas seriam aqueles que têm noções muito precisas a respeito do que esperam encontrar nas páginas de uma revista de ficção científica, e tendem a ficar contrariados com qualquer desvio da "norma": esse é o tipo de leitor que escreve ao editor para reclamar que tal ou qual conto é de fantasia, e, portanto, não deveria ter sido publicado numa revista que se pretende de ficção científica. Inclusivistas, em contrapartida, seriam os que, ou não têm uma definição muito rígida do que distingue seu gênero favorito, ou até têm uma definição, mas não a levam muito a sério: em princípio, não se opõem à publicação eventual de histórias que não sejam necessariamente de ficção científica, desde que tenham qualidade. Asimov concluía, se não me falha a memória, dizendo-se, ele próprio, um exclusivista enquanto escritor e, até certo ponto, também enquanto leitor, confessando, porém, que, por vezes, a única resposta que podia dar às reclamações veementes dos exclusivistas mais radicais que liam a revista, era que concordava que o conto em questão não se tratava de ficção científica - só que havia gostado tanto da história, que, como editor, sentira que não podia deixar de publicá-la, independentemente do gênero.

Felizmente, as reservas de Asimov em relação à literatura de fantasia, quaisquer que fossem, não o impediram de unir forças com Charles G. Waugh e Martin H. Greenberg para organizar a série de coletâneas Os Mundos Mágicos da Fantasia, da qual Encantamentos é o primeiro volume. Bem, "série" talvez seja exagero: pelo que me consta, existe apenas mais um volume, Magos. Um terceiro livro, Mutantes, embora com a capa seguindo o mesmo projeto gráfico, e coordenado (se não me engano) pelo mesmo trio, é voltado para a ficção científica.

O maior mérito de compilações como esta é o de tornarem novamente disponíveis histórias que talvez só tivessem sido publicadas antes em antologias há muito esgotadas, ou mesmo em revistas que são hoje itens de colecionador ("novamente" para os norte-americanos, é claro, pois, para nós, esta é a primeiríssima oportunidade de ler a grande maioria desses contos). E são histórias que vale a pena conhecer, pois representam um pouco do melhor que se pode encontrar em matéria de ficção curta ou média no gênero de fantasia. As três únicas que lembro de já ter visto publicadas em outro lugar são as dos autores mais conhecidos do público em geral: O Menino Invisível, do gigante Ray Bradbury, que (mais uma vez confiando na memória) está na antologia de autor único Os Frutos Dourados do Sol; Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, presente anteriormente numa velha edição dedicada a seus contos não-Sherlock Holmes e, recentemente, também em Góticos; e Eu Sei do que Você Precisa, de Stephen King, encontrável em Sombras da Noite. Ao lado destas, Encantamentos apresenta-nos um punhado de pérolas de imaginação e de escrita. Um (para mim) ilustre desconhecido que atende por Robert Arthur comparece com Satã e Sam Shay, conto que, com sua combinação magistral de humor e elementos sinistros, chega muito perto da perfeição como história cujo objetivo é divertir e entreter. Trata das atribulações de Sam Shay, um malandro de marca maior, que jamais na vida considerou seriamente a possibilidade de trabalhar, acostumado que está a viver à custa de apostas, e acaba por granjear tamanha reputação nesse métier, que seus conhecidos, divididos entre a admiração e o despeito, começam a dizer que "Sam Shay é capaz de fazer três apostas com o diabo, e ganhar todas elas". Até que Satã em pessoa ouve os comentários, e, sendo ele próprio um notório apreciador de jogatinas, decide aparecer para tirar a prova…

Andre Norton leva-nos, em Os Sapos de Grimmerdale, a visitar um mundo medieval imaginário, mais exatamente um país que acaba de emergir de uma guerra cruel, tendo conseguido, com muito sacrifício, repelir uma invasão bárbara. Agora a terra vive os tempos de escassez e confusão que sempre se seguem às guerras, e, em muitos lugares, sofre com a falta de lideranças, já que grande parte de seus homens adultos e capazes (incluindo muitos de seus lordes) tombou no campo de batalha. Esse é o cenário por onde perambula Hertha, uma jovem de estirpe nobre que caiu em desgraça ao ser estuprada - seu irmão expulsou-a do feudo da família, como se ela fosse culpada do acontecido. Ainda pior: o responsável pela violação não foi um dos invasores, mas um homem de seu próprio povo. Agora, grávida e desamparada, ela está em busca de vingança, e, para conseguir seu objetivo, está disposta a tudo, até mesmo a barganhar com os seres misteriosos que habitavam a região antes da chegada dos humanos, e que agora vivem escondidos e, segundo se diz, conhecem magia antiga e poderosa.

Outro mergulho empolgante em um mundo de guerreiros, magos e criaturas fantásticas é proporcionado por Gerald W. Page, que, em O Herói que Voltou, nos conta sobre o dilema de Dunsan (o nome do personagem é uma discreta, porém clara homenagem a Lord Dunsany, escritor pioneiro do gênero sword & sorcery do início do século XX), um homem já de certa idade que, depois de ter ganho a vida como agricultor e como ferreiro, acabou tornando-se balseiro, e agora faz travessias num rio. Detalhe: tudo o que existe na outra margem, por uma grande extensão, é uma região selvagem e uma velha e arruinada fortaleza que todos acreditam ser assombrada… Por causa disso, só um tipo de passageiro vem pedir transporte a Dunsan: heróis rumando para a tal fortaleza para enfrentar o que quer que exista lá, e tentar pôr fim à maldição. Esses audazes aventureiros vão, mas jamais voltam, de modo que o balseiro tem que conviver com o fato de que a comida que ele coloca na mesa para si próprio e para sua esposa vem de levar homens para a morte certa. Para completar, ele teme que a esposa, Maelwyd, bem mais jovem que ele e sonhadora por natureza, esteja insatisfeita com a vida rotineira que levam, e a presença, ainda que ocasional e breve, de todos aqueles guerreiros cheios de histórias fascinantes para contar não contribui para tranquilizá-lo. Até que, numa viagem que em nada parece diferente de inúmeras outras, Dunsan descobre que também é capaz de atos heroicos.

É claro que nem todos os contos são tão legais assim. A Feiticeira Está Morta, de Edward D. Hoch, até começa bem, com algumas estudantes de um colégio interno adoecendo misteriosamente depois que uma velha charlatã conhecida como Mãe Sorte (que, na juventude, fora expulsa do mesmo colégio) lhes roga uma maldição, e quem aparece para investigar é um tal Simon Ark, "detetive especializado em casos de ocultismo e feitiçaria", um homem que, a julgar por diversos indícios, parece ter séculos de idade. O enredo poderia render uma boa história, mas Hoch faz questão de estragar tudo trazendo uma "explicação lógica e racional" para o que parecia ser um fato sobrenatural - no melhor estilo Scooby-Doo -, e é difícil pensar em coisa mais frustrante e irritante que isso para qualquer verdadeiro apreciador da literatura do insólito, que começa a ler uma história de boa-fé, só para descobrir-se ludibriado dessa forma.

Mas não se assustem: não é essa bobagem que irá fazer com que deixe de valer a pena ler Encantamentos, pois o livro tem muito mais coisas a oferecer, e muitíssimo melhores. Particularmente empolgante é encontrar em suas páginas uma história que integra uma das mais monumentais séries de espada e magia já escritas, a das aventuras de Fafhrd, o bárbaro, criadas pelo norte-americano de ascendência alemã Fritz Leiber (1910-1992), que as escreveu durante quase 50 anos: a primeira é de 1939, e a última, de 1988. As Mulheres da Neve, presente em Encantamentos, não foi uma das primeiras a serem escritas (a publicação original é de 1970), mas, pela cronologia interna, talvez seja mesmo a primeira de todas, pois nela Fafhrd é adolescente e ainda vive em sua terra natal, no Canto Frio - uma região inóspita e gelada do norte do mundo de Nehwon -, começando a insurgir-se contra a tirania da mãe, Mor, que, por falar nisso, é uma líder entre sua gente e uma feiticeira temida, não necessariamente nessa ordem. E Fafhrd não é de modo algum o único homem do Povo da Neve a viver na rédea curta sob o controle de uma mulher, seja mãe, esposa ou outra: trata-se de uma sociedade fortemente matriarcal, e na qual as mulheres não dependem apenas da força dos costumes para manter seus homens dominados - na verdade sua magia, toda baseada no frio, no gelo e na neve, é um "argumento" bem mais eficaz que qualquer costume. E, embora não tenha como provar, Fafhrd nutre grandes suspeitas de que a morte de seu pai tenha sido obra dos poderes de Mor, enraivecida por não conseguir dobrar o espírito independente do marido. Há mais: o rapaz sente-se entediado e oprimido com a vida no Canto Frio, e seu interesse pelo sul civilizado e de clima mais ameno só tem aumentado durante os meses que passaram desde que participou de sua primeira expedição pirata para aqueles lados (essas expedições parecem ser mais ou menos uma tradição - um toque viking na caracterização do Povo da Neve). E o acúmulo do descontentamento provocado por todos esses fatores vai fazendo com que Fafhrd - um jovem de sentimentos intensos, embora seus atos sejam frios e calculados - fique cada vez mais inclinado a tomar uma atitude drástica.

Encantamentos termina em grande estilo, com Os Milagreiros, do sempre magnífico Jack Vance, uma história de fantasia com background de ficção científica. Num passado distante (que para nós é futuro), 1600 anos antes dos fatos que vão ser narrados, aconteceram as agora legendárias guerras interestelares, e, no caos que veio depois delas, alguns planetas que a Terra havia colonizado foram esquecidos, ficando sem contato com o resto do universo humano. Pangborn foi um deles. Ao longo dos séculos, seu povo foi-se esquecendo da tecnologia, e agora os descendentes dos antigos viajantes espaciais vivem de maneira praticamente medieval. Com um detalhe curioso: na opinião dos pangbornianos de hoje em dia, o que houve foi progresso. Eles consideram os antigos uma gente primitiva e supersticiosa, que depositava sua confiança em "milagres" (é assim que os personagens se referem à tecnologia e a tudo o que dela derive, mas sem que o uso dessa palavra traga qualquer conotação de admiração; pelo contrário, ela é pronunciada com desprezo), e orgulham-se de atualmente utilizarem-se de meios mais lógicos e racionais para alcançar seus objetivos: feitiços, maldições, invocação de demônios… Apesar disso, algumas heranças dos dias antigos ainda são usadas, seja porque podem trazer vantagens práticas ou como meras insígnias de tradição e status: nobres de ilustres famílias antigas levam na cintura pistolas laser que não funcionam e que, de todo jeito, eles não saberiam manejar, e Lorde Faide, um dos protagonistas, locomove-se num carro que flutua acima do solo, mas que dá claros sinais de estar nas últimas. No topo da fortaleza que leva o nome de sua família, Faide mantém o temido "Boca do Inferno", um canhão energético outrora removido de uma nave de combate arruinada, e que constitui agora sua principal arma defensiva. Há um atendente cuja única tarefa é cuidar do Boca do Inferno - mas tudo o que ele faz é polir e azeitar a superfície metálica da arma, sem que lhe ocorra a possibilidade de algo como uma manutenção interna, pela simples razão de que nem ele, nem ninguém no planeta tem a mínima ideia de como uma coisa daquelas funciona. A não ser quando o Boca do Inferno ou seus congêneres de outras fortalezas entram em ação, a maior parte do combate praticado em Pangborn - onde, por sinal, os conflitos de poder entre os diferentes feudos parecem ser comuns -, é realizada usando cavalos, espadas, arco e flecha e assim por diante, à moda medieval mesmo. Porém, todo lorde sagaz sabe que tão importante quanto ter um exército aguerrido é dispor de uma boa equipe de azarentos, que são uma categoria de feiticeiros profissionais, encarregados de fazer mandingas contra o exército oponente, podendo também invocar demônios, mas somente em situações de extrema necessidade, pois o esforço e o dispêndio de energia envolvidos nisso são enormes, muitas vezes deixando o azarento à beira da morte; por isso mesmo, apenas os mestres da azaração se atrevem a fazê-lo. Os demônios, a propósito, podem servir a dois objetivos: espalhar o terror entre os inimigos ou inspirar um estado semelhante à fúria berserker nos soldados de seu próprio exército. Lorde Faide tem a seu serviço Hein Huss, tido por muitos como o maior azarento vivo, e Huss, por sua vez, tem um aprendiz, Sam Salazar, amiúde ridicularizado tanto por seu medíocre talento na arte de azarar, quanto por cultivar um interesse sem cabimento pelos "milagres" dos antigos. Mas talvez chegue o dia em que nem a espada nem o azar poderão salvar o Forte Faide, e então todos tenham que depositar suas esperanças nas ideias tresloucadas do adolescente que até aí consideravam um pateta. Enfim, Os Milagreiros é tudo aquilo que um leitor de Jack Vance está acostumado a esperar dele, e dizer isso é suficiente para chegar à conclusão de que vale, e muito a pena lê-lo.

Com os altos e baixos inevitáveis (e os baixos são realmente poucos), o mesmo pode ser dito de Encantamentos como um todo: temos aqui um livro que constitui companhia perfeita para muitas horas de viagens de imaginação, para quem quer dar-se um tempo para ler por prazer, deixando de lado todas as demais preocupações e tirando uma folga da dura realidade. E que bem isso faz…