domingo, abril 17, 2016

A Espada do Destino

Pegar um volume das aventuras do bruxo Geralt de Rívia, de Andrzej Sapkowski, é sempre garantia de encontrar boas narrativas de fantasia, que agradarão em cheio aos fãs dos clássicos do gênero, mas com um estilo próprio, capaz de garantir que a série não vire um mero sub-Senhor dos Anéis. Agora que o leitor já teve um vislumbre do mundo da saga e travou conhecimento com seus principais personagens, a leitura deste segundo livro flui mais fácil que a do primeiro, e, se bem que tanto aquele livro quanto este tenham altos e baixos (coisa absolutamente natural), em média a qualidade das histórias não decaiu nada em relação àquele esplêndido início.
No começo do primeiro conto deste segundo volume, intitulado O Limite do Possível, encontramos Geralt caçando um basilisco, a pedido da população de uma vila qualquer; por acaso, ou assim parece, ele vem a conhecer um simpático sujeito que diz chamar-se Borch, apelidado Três Gralhas, que viaja (sabe-se lá com qual objetivo) acompanhado de dois guarda-costas, que, vejam só, são Tea e Vea, duas sensuais e sanguinárias guerreiras zerricanas, que honram a fama de seu povo, de falar pouco e manejar a espada com a velocidade de um raio. Os quatro seguem viagem juntos, até chegarem a uma ponte que está interditada por ordem de Niedamir, o rei adolescente de Caingorn. Motivo: o rei e seu séquito estão perseguindo um dragão, que parece ter se refugiado nas montanhas do outro lado, e não querem que ninguém venha a competir com eles pela glória da caçada – uma glória um tanto duvidosa, já que o monstro foi envenenado e tudo indica que já esteja nas últimas. Geralt, por princípio, não mata dragões, mas fica interessado ao saber que há dois feiticeiros acompanhando o rei, e que um deles é ninguém menos que sua antiga amante, Yennefer. A relação dos dois parece ser bem tempestuosa… No primeiro volume narra-se como foi que se conheceram, e, ao final dele, o romance parecia ir bem; já aqui, ficamos sabendo que se separaram de forma quase violenta quatro anos antes, e Geralt, por mais de uma vez, pede a Yennefer que o perdoe de alguma coisa, que não sabemos o que é, o que ela recusa obstinadamente. Tanto a caçada ao dragão quanto o relacionamento complicado entre o bruxo e a feiticeira servem de eixos à história daí em diante, mas talvez a melhor parte seja a variada galeria de personagens que se juntam a Niedamir na perseguição ao dragão – desde um paladino idealista que o rei Artur teria orgulho de ter em sua Távola Redonda, até os Rachadores, três mercenários que matam qualquer coisa que lhes ordenem matar, desde que a recompensa seja boa.
A história seguinte é Um Fragmento de Gelo. Geralt e Yennefer, aparentemente com as pazes feitas (mas a toda hora tendo pequenas discussões, ou nem tão pequenas assim), estão hospedados numa cidade chamada Aedd Gynvael, nome originário da língua dos elfos, e que, traduzido, dá título ao conto. Para Geralt, trata-se de uma ironia desagradável que a cidade tenha um nome tão belo e etéreo, pois, para ele, ela não passa de um pardieiro infecto – embora essa opinião pouco lisonjeira tenha sido influenciada pelo fato de que, logo ao chegar, ele foi contratado para matar um monstro repelente que se escondia no lixão, e desde então tem a nítida impressão de que o fedor do lugar se estende pela cidade toda. Se dependesse de Geralt, ele e Yennefer já teriam ido embora, mas ela insiste em permanecer, e o motivo para isso não agrada mais ao bruxo que a história do lixão: ela tem visitado regularmente outro feiticeiro, um tal Istredd, com quem já teve um relacionamento no passado, e Geralt tem lá suas dúvidas de que o objetivo dessas visitas seja apenas a troca de conhecimentos profissionais. É noção corrente que os bruxos não têm sentimentos, mas aqui está um deles que positivamente sente ciúme, além de ter todas as reações normais de um homem que tem a desventura de ser completamente louco por uma mulher de cujos verdadeiros sentimentos nunca se pode ter certeza – talvez nem mesmo ela saiba ao certo quais são. Apesar de ser provavelmente muito mais velha do que sua estonteante aparência permite imaginar, Yennefer, não raro, comporta-se como uma adolescente marrenta, e quem já passou pela dolorosa experiência de se apaixonar por uma dessas (não necessariamente uma adolescente, mas uma mulher que age desse jeito, seja qual for sua idade) compreende bem os estados de espírito vividos por Geralt nesse conto: depressão e raiva (inclusive as duas ao mesmo tempo). Entre outras coisas, é a primeira vez que vemos o bruxo ficar bêbado de cair. O conto também contribui com pelo menos mais um momento a ser registrado na galeria dos diálogos deliciosos que caracterizam a saga:
– (…) Pelo que ouvi falar, nem adianta tentar determinados feitiços sem o sangue de uma donzela, de preferência morta por um raio em noite de lua cheia. Em que ele difere do sangue de uma mulher da vida que, bêbada, caiu sobre uma paliçada?
– Em nada – concordou o feiticeiro, com um sorriso amável. – No entanto, se fosse revelado que a tarefa poderia ser feita igualmente com o sangue de um porco, tão fácil de encontrar, o povaréu todo começaria a se envolver em feitiçaria. De outro lado, se a ralé tivesse de colher e usar esse sangue de donzela que tanto o fascina, lágrimas de dragão, veneno de tarântulas brancas, sopa feita de mãos decepadas de recém-nascidos ou de um cadáver exumado à meia-noite, pensaria duas vezes antes de se aventurar em tal mundo.
Não é mesmo uma explicação convincente para o fato de nove entre dez supostas fórmulas mágicas exigirem o uso de ingredientes quase impossíveis de se conseguir??
Na terceira história, O Fogo Eterno, Geralt está em Novigrad, uma das maiores cidades do continente, levado pela prosaica necessidade de fazer compras, quando topa com o bardo Jaskier, que, esqueci de dizer, também aparece em O Limite do Possível. Em ambas o encontro parece ser casual, mas, sei lá, coisas casuais não costumam ser tão frequentes… Seja como for, e apesar de falar feito uma matraca (a ponto de, por vezes, quase enlouquecer o sisudo e introspectivo bruxo), de beber vinho ou cerveja até no café da manhã, e de ter uma capacidade inesgotável para arrumar encrenca (especialmente quando há um rabo-de-saia envolvido), Jaskier é o melhor amigo de Geralt, e é também um bardo extremamente talentoso. Faz parte de sua filosofia que, embora seja possível compor uma balada com base num relato, as melhores, aquelas que caem na boca do povo e continuam a ser cantadas séculos depois da morte de seus autores, são feitas por quem testemunhou em primeira mão os acontecimentos – mas não por uma questão de fidelidade aos fatos: se for necessário mudar uma coisa aqui e outra ali para dar um sabor mais romântico e poético, ele o faz sem cerimônia, como os bardos do mundo real também faziam.
Em Novigrad, como seria inevitável numa grande cidade de um mundo multirracial, convivem humanos, elfos, anões e mais um punhado de raças minoritárias; uma delas é a dos "ananicos" (palavra que eu nunca tinha visto), que, embora tenham esse nome que sugere alguma relação com anões, lembram irresistivelmente os hobbits de J. R. R. Tolkien: são pequenos, têm pés peludos, gostam de uma vida pacata e de boa comida… Ou seja, se esses tais ananicos não são hobbits, então têm muito azar de se parecer tanto com eles (risos). Um deles, de nome Biberveldt, é conhecido de Jaskier e um comerciante próspero e conceituado na cidade, e, no momento, está às voltas com um problema embaraçoso: uma criatura transmórfica, de uma raça já tida por muitos como extinta, resolveu assumir sua aparência e anda se intrometendo em seus negócios, passando-se por ele com tanta habilidade, que até seus parceiros comerciais de muitos anos são enganados. Sobra para Geralt e Jaskier o desafio de achar um jeito de ajudá-lo a sair dessa. Quem vê Supernatural deve ter lembrado dos metamorfos da série, e talvez tenha achado a coisa meio sinistra, mas a verdade é que o conto é engraçadíssimo! Além de todas as suas outras qualidades como escritor, Sapkowski demonstra que também é versátil.
Em outra história, Um Pequeno Sacrifício, Geralt está envolvido com uma empreitada que deve ser insólita até mesmo para ele: está servindo como intérprete entre o príncipe Agloval, que governa uma cidade portuária, e a, aham, bem, "moça" por quem ele está apaixonado, a sereia Sh'eenaz. É claro que a barreira linguística não é nem de longe o maior obstáculo no caminho desse romance tão pouco convencional. O relacionamento encontra-se num impasse, já que nenhum dos dois está disposto a abandonar o meio vital onde cresceu – leia-se: o príncipe não quer se transformar num tritão, e a sereia tampouco quer se converter numa mulher humana, embora, pelo que se diz, existam meios mágicos capazes de realizar ambas as coisas. Exceto pela roupagem de fantasia, parece haver pouca diferença entre as picuinhas desse casal e as de vários que eu conheço, e vocês, provavelmente, também… É Sapkowski dando seguimento a sua curiosa experiência de imaginar como os contos de fadas seriam, caso o mundo onde eles têm lugar fosse habitado por pessoas de carne e osso. Para dar um vislumbre de como a realidade vira conto de fadas, Jaskier descreve a Geralt a balada que está compondo sobre o episódio – e que é nada mais, nada menos que o famoso conto de fadas A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen (mas esqueçam o desenho da Disney: leiam o conto original de Andersen, que é muito forte e não tem final feliz).


Ainda em Um Pequeno Sacrifício, Geralt experimenta um lance inesperado em sua sofrida vida amorosa ao conhecer a poetisa Essi, a "Olhuda" – encantadora, inteligente e cheia de personalidade. Só é um tanto difícil explicar o fato de que Jaskier, que a conhece há anos, consiga interagir com ela em termos de pura amizade e coleguismo: embora este seja apenas o segundo volume da saga, já deu para perceber que o bardo não é o tipo de homem de ter amigas. Talvez seja algum tipo de ética profissional: vai ver, ele prefere não se envolver com uma colega de profissão, que, dependendo da situação, pode ser para ele tanto uma colaboradora quanto uma concorrente. Seja como for, o conto, que tem momentos engraçados e outros cheios de ação, termina com um lirismo melancólico, até agora inédito nas aventuras de Geralt. O que eu dizia há pouco sobre a versatilidade de Sapkowski torna-se mais verdadeiro ainda.
A história seguinte é a que dá título ao livro, e, nela, Geralt se envolve num conflito territorial entre humanos e dríades (que os humanos, em alguns lugares, chamam de "pantânamas"). Novamente, a fantasia serve de tela para apresentar problemas do mundo real, neste caso o fato de que todo conflito por espaço vital entre diferentes povos é também um conflito de culturas e visões de mundo. Aqui, os humanos, com seu ímpeto de expansão, representam a civilização moderna, baseada na indústria, no comércio e no "progresso", enquanto as dríades simbolizam os povos selvagens, que ainda vivem na dependência da natureza e, no fundo, não têm chance de resistir ao avanço da civilização, restando-lhes a escolha entre integrar-se a ela ou desaparecer. Para tornar as coisas ainda mais difíceis para as dríades, elas dependem dos humanos para se perpetuarem: como são todas mulheres, precisam acasalar com homens para poderem procriar – e parece que, nos últimos tempos, têm apelado também para o simples expediente de raptar meninas humanas para criá-las entre elas; uma vez crescidas, essas meninas são consideradas dríades, tanto quanto as outras. E, claro, esses raptos tornam-se um fator de conflito a mais. As aventuras de Geralt de Rívia acontecem numa época em que seu mundo está em pleno processo de transformação, com o crescimento da civilização humana gradualmente causando a extinção dos seres fantásticos, ou obrigando-os a buscar refúgio nos poucos cantos inacessíveis que ainda restam. Geralt conta que existem lugares onde elfos e outros povos fizeram acordos com os humanos e puderam continuar vivendo em relativa tranquilidade – ainda que sua cultura, provavelmente, tenha sido profundamente modificada (e é claro que isso só é possível para espécies dotadas de inteligência e capacidade de contemporizar; para monstros irracionais como os que Geralt caça, parece não haver alternativa à extinção). As dríades poderiam fazer o mesmo, mas estão irredutíveis em sua recusa de qualquer acordo, o que leva o bruxo a não ter expectativas muito otimistas em relação ao seu futuro. Eithné, a líder da comunidade das dríades, inevitavelmente nos faz lembrar a rainha élfica Galadriel, de O Senhor dos Anéis, com a diferença de ser teimosa e não ter a mínima empatia ou simpatia para com os seres humanos. Por fim, A Espada do Destino (o conto) também marca o aparecimento da pequena princesa Ciri, uma personagem cuja origem está entrelaçada com uma antiga aventura de Geralt, narrada em O Último Desejo, e que provavelmente terá um papel importante em acontecimentos ainda por vir.
Há uma observação que fatalmente me arrastará para uma longa digressão, e que, portanto, talvez eu devesse me abster de fazer, mas não adianta, não resisto (risos). Na terra das dríades, Geralt reencontra um sujeito de nome Freixenet, que lhe manifesta gratidão por havê-lo livrado, tempos antes, de um feitiço que o transformara num pelicano. O curioso é que, antes do bruxo lançar seu contrafeitiço bem-sucedido, a irmã de Freixenet – uma jovem linda e bobinha, casada com um rei – havia tentado inutilmente desenfeitiçá-lo utilizando um manto feito de urtigas. Durante o diálogo dos dois, Geralt conta a Freixenet que sua história ganhou o mundo, está sendo contada e recontada (e cantada, pois os bardos não ficariam de fora), mas, é claro, com algumas modificações. Parece que alguém achou que o pelicano era um pássaro pouco romântico e o substituiu por um cisne, além de dar a Freixenet um lote de dez irmãos, que teriam, todos, sofrido a mesma maldição que ele. Nessa versão, Geralt nem aparece: os onze rapazes-cisnes são efetivamente salvos pelos mantos de urtigas feitos por sua irmã. Em resumo, o que temos aí é o enredo de outro conto de Hans Christian Andersen, Os Cisnes Selvagens! Pelo visto, Sapkowski, neste volume, estava decidido a homenagear o escritor dinamarquês. No tempo de Andersen (que viveu de 1805 a 1875), os contos de fadas haviam-se tornado muito populares, graças, principalmente, ao trabalho dos irmãos Grimm, que compilaram, redigiram e publicaram muitos deles, levando também a uma revivescência do interesse pela obra de Charles Perrault (1628-1703). Por causa dessa popularidade, muitos escritores do século XIX tentaram criar histórias originais no mesmo estilo desses contos, mas, embora alguns tenham até feito certo sucesso em sua época, Andersen (por sinal, amigo pessoal dos Grimm) foi o único que conseguiu criar novos contos de fadas que perduraram. Vale lembrar que os Grimm não inventaram histórias – apenas puseram por escrito contos folclóricos, a maioria deles de provável origem medieval, que circulavam oralmente nas regiões rurais de seu país natal, a Alemanha.
A última história chama-se Algo Mais. Outro detalhe interessante da escrita de Sapkowski é que o título de cada conto costuma aparecer diversas vezes nos diálogos dos personagens, não raro assumindo diferentes significados, todos importantes para a trama. E aqui não é diferente: o conto trata da ideia de que, mesmo que o destino seja real (coisa na qual Geralt não acredita, mas muita gente em seu mundo, sim), o fato de alguma coisa estar predestinada não basta – é preciso algo mais. Tudo começa quando Geralt, percorrendo uma região selvagem e perigosa, encontra-se por acaso (?) com Yurga, um mercador que está em sérios apuros: sua carroça sofreu um acidente no meio de uma ponte e, com a aproximação da noite, os dois empregados que o acompanhavam deram no pé, aterrorizados com os sons vindos da floresta circundante. Sons esses que não são um alarme falso: a região é o lar de uma raça de criaturas diminutas, porém malignas, e que compensam seu pequeno tamanho atacando sempre em bandos numerosos. Geralt concorda em proteger e auxiliar o comerciante, frisando que não pode dar garantia alguma de que o episódio não vá terminar com ambos mortos – e, como vai arriscar a vida, pede uma recompensa muito especial. Nada de dinheiro: o que o bruxo quer em troca de seus serviços é a promessa de Yurga de que lhe dará "aquilo que encontrar em casa ao retornar e que não esperava". Isso, é claro, costuma significar uma criança, e é assim que os bruxos normalmente asseguram a continuidade de sua ordem, já que não podem constituir famílias e são estéreis… Não vou entregar mais detalhes do conto, exceto um: ferido, Geralt toma um elixir misterioso dentre os vários que sempre leva consigo, e que, ao mesmo tempo em que tem poderes curativos, age de forma estranha sobre a mente, levando-o a sonhar com diferentes momentos de seu passado, desde um encontro melancólico com Yennefer até a ocasião em que testemunhou o desesperado êxodo dos sobreviventes da cidade de Cintra, destruída por invasores vindos de Nilfgaard. Tudo isso antes de um final pra lá de inesperado.
A Espada do Destino é o segundo volume da série sobre as aventuras de Geralt de Rívia, e o último a ter o formato de uma coletânea de contos às vezes (aparentemente) soltos, outras vezes interligados entre si; o próximo, O Sangue dos Elfos, marca uma mudança de rumo, ou, pelo menos, de método, pois, daí em diante, a série prossegue com romances. É fácil imaginar como a coisa se deu: Sapkowski começou pelos contos, que podiam ser publicados em revistas e, mais tarde, caso houvesse demanda por isso, reunidos em livros, que foi o que de fato ocorreu; com a boa recepção que sua criação teve por parte do público, o escritor e seu editor devem ter tido uma conversa e decidido por essa mudança – e eu realmente espero que Sapkowski tenha recebido gordos adiantamentos por todos os volumes seguintes, bem como uma boa participação em suas vendas, na cessão dos direitos para a TV e para a série de videogames The Witcher, e assim por diante. O cara merece.