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quinta-feira, agosto 25, 2022

O Minotauro

Meu primeiro contato com a obra de Monteiro Lobato, isso lá nos meus quatro ou cinco anos de idade, foi por meio da primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo para a TV, aquela clássica, com Zilka Salaberry como D. Benta, Jacira Sampaio como Tia Nastácia, André Valli como o Visconde de Sabugosa, entre outros. Mesmo agora, mais de 40 anos depois, lembro nitidamente de muitos detalhes que se tornaram queridos para mim – músicas, cenas específicas, bordões de personagens, as caras dos atores que os interpretavam –, mas nenhuma lembrança é mais vívida que a da fase baseada no livro O Minotauro, por causa da sensação que eu, pequenino, tinha quando o referido monstro aparecia. A fantasia usada pelo ator (na verdade, a máscara e pouca coisa mais) era bem elementar, mas é claro que aos quatro anos de idade eu não tinha critério para avaliar isso, e, quando ele aparecia, andando lentamente, de forma ameaçadora, ao som de uma música tenebrosa, eu, sentadinho no chão diante da velha TV preto-e-branco que tínhamos na época, me encolhia – mas nem pensava em parar de assistir. Lembro-me da sensação com uma clareza espantosa: parecia que uma bola de chumbo se formava instantaneamente no meu estômago, e continuava ali por um bom tempo, mesmo depois que o temível homem-touro saía de cena.

Portanto, eu já tinha alguma familiaridade com o universo de Lobato quando cheguei à idade escolar, e tive a sorte de ter professoras que me incentivaram a ler (coisa que meus pais também faziam em casa) e tinham especial reverência para com o autor: provavelmente elas próprias o haviam lido na infância. E foi o que eu também fiz. Na já famosa biblioteca do SESI perto de onde cresci (vejam aqui e aqui) existia uma edição em oito volumes contendo todas as histórias do Sítio. Peguei todos emprestados, um por um (sem me preocupar em seguir a ordem numérica), embora precise confessar que "dropei" algumas histórias, como O Poço do Visconde e Aritmética da Emília, porque o que queria eram aventuras, de modo que achei esses livros "didáticos" demais (mas li a História do Mundo para as Crianças de cabo a rabo; sempre tive uma "coisa" com História). Ainda tenho planos de corrigir esses meus deslizes da infância.

Uma coisa da qual eu gostava especialmente era quando Lobato se deixava levar por sua paixão pela Grécia antiga, e os dois maiores exemplos disso são O Minotauro e Os Doze Trabalhos de Hércules, sendo que falei um pouco sobre este último num post que tratava desse herói. Já o primeiro começa onde termina uma outra história, O Picapau Amarelo, na qual todos os seres e personagens do universo das fábulas e das lendas pedem permissão para se mudarem para o Sítio, e, para acomodá-los, D. Benta compra algumas propriedades vizinhas, usando parte do dinheiro ganho com a extração do petróleo em O Poço do Visconde (essas histórias estão todas encadeadas mesmo). Esse Sítio do Picapau Amarelo estendido vira então uma espécie de versão caipira do Império de Fantasia, e sei que isso dá origem a várias aventuras e surpresas, embora não me lembre mais da maioria delas. Uma das últimas coisas a acontecer é a festa do casamento de Branca de Neve (ela mesma, a do conto de fadas) com Codadade, um príncipe das 1001 Noites, e essa festa é interrompida pelo ataque combinado de todos os monstros da mitologia grega. Na confusão, Tia Nastácia desaparece, e em seguida, não lembro por que, todos os seres da fábula voltam para seus locais de origem. Deduzindo que a velha cozinheira tão querida por todos deve ter sido capturada e carregada por algum dos monstros, D. Benta, seus netos, Emília e o Visconde partem para a Grécia para tentar resgatá-la (nas histórias de Lobato, nem espaço nem tempo são empecilhos para coisa alguma, desde que se tenha imaginação suficiente).

Está claro que, se o objetivo da expedição é resgatar Tia Nastácia das garras de algum monstro mítico, o período histórico ao qual os aventureiros devem se dirigir é aquele anterior à Guerra de Troia, em plena Idade do Bronze, quando se supõe que tenham vivido os grandes heróis gregos como Hércules, Teseu, Jasão e tantos outros; entretanto, o mergulho no passado é feito, por assim dizer, de forma gradual. A primeira parada é a Atenas do século V a.C., o assim chamado "século de Péricles", período em que, sob a administração inteligente desse notável ditador de múltiplos talentos, a cidade conheceu seu apogeu cultural. As Guerras Greco-pérsicas tinham-se encerrado com a vitória dos gregos, e, livres dessa ameaça externa, estes últimos puderam dedicar um volume sem precedentes de recursos e trabalho às artes plásticas, à arquitetura e à literatura. D. Benta, uma senhora de muita cultura, sempre teve esse como seu período favorito na História grega, e acaba decidindo ficar ali mesmo, com sua neta Narizinho, enquanto Pedrinho, Emília e o Visconde continuam sua odisseia no passado em busca de Tia Nastácia. Para isso, os três viajam para os tempos da "Grécia heroica", que, para os gregos dos dias de Péricles, já são um passado remoto. A partir daí, o livro alterna capítulos ambientados nas duas épocas. Como hóspedes de Péricles, D. Benta e Narizinho têm a chance de conhecer grandes vultos das artes, ciências e filosofia da Grécia, como os escultores Fídias e Policleto, o historiador Heródoto, o dramaturgo Sófocles, o filósofo Sócrates, entre outros. Enquanto isso, nos tempos míticos, Pedrinho, Emília e o Visconde sobem o monte Olimpo para xeretar como vivem os deuses, assistem escondidos Hércules liquidar a terrível hidra de Lerna no segundo de seus famosos Doze Trabalhos, e, é claro, vão ao resgate de Tia Nastácia, depois de terem consultado o célebre Oráculo de Delfos para descobrir-lhe o paradeiro.

Mesmo sendo apenas um "aperitivo" para Os Doze Trabalhos de Hércules, livro muito mais extenso e ambicioso, O Minotauro é uma pequena joia da literatura infanto-juvenil brasileira, que, no tempo em que crianças e adolescentes ainda liam livros (bem, pelo menos algumas crianças e adolescentes liam), deve ter plantado em muitas jovens cabeças a primeira noção a respeito da importância verdadeiramente inestimável que a civilização grega teve para o mundo ocidental em todos os aspectos da vida. As conversas que D. Benta mantém com Péricles e seus eminentes convidados fazem a proeza de estarem num nível de compreensão acessível para qualquer criança esperta, sem serem rasas, e estão cheias de "iscas" para a curiosidade infantil, que provavelmente levaram muitos meninos e meninas a quererem saber mais sobre as personalidades e os acontecimentos que são mencionados. (Na época da publicação original, essas informações tinham que ser procuradas em enciclopédias, e por vezes me pergunto se não era melhor desse jeito, já que é uma tendência natural no ser humano dar mais valor àquilo que custou esforço para obter – inclusive conhecimento. Easy comes, easy goes.) E há pelo menos uma fala dela, já perto do final do livro, que só fez ficar mais atual nesses 83 anos que se passaram desde que O Minotauro foi escrito. A convite de Péricles, D. Benta e Narizinho vão assistir, com ele e seus amigos, a uma encenação da tragédia Alceste, de Eurípedes – na época, uma obra que estava estreando. Ao final da peça, conversando sobre ela com Sófocles, D. Benta declara:

– Este drama me fez compreender muita coisa, e sobretudo o que para um povo inteligente significa uma "arte geral".
Sófocles não entendeu.
– Sim, uma arte que interessa a todos da cidade, absolutamente a todos, desde gênios como Sófocles, Péricles, Aspásia e Sócrates, até modestos vendedores de figos, como aquele ali – e apontou para um vendedor de rua, que se sentara perto e que "sentira" o drama de Eurípedes tão bem quanto o próprio autor. – Isto, meu senhor, é o que nos falta no mundo moderno, esta absoluta identidade entre o sentimento do povo e a arte. A arte lá é uma coisa para os eleitos, para as chamadas elites; aqui é para todos, sem a menor exceção – para ricos e para pobres.

O que resta a dizer depois dessas palavras? Não há nada a acrescentar, dá apenas para comentar e ilustrar, e sei de um exemplo que cai como uma luva. Quando minha namorada, Cintia, se cansa do ajuntamento de vizinhos batendo papo na calçada diante de sua porta (é aquele tipo de gente com vocabulário de umas 40 palavras, para quem "caraio" é vírgula, e que parece não saber falar baixo), ela costuma tocar música clássica bem alto. É tiro e queda: não dá 60 segundos e todo mundo some. Quer dizer, esse pessoal está tão idiotizado pela exposição a funk, "sertanejo universitário" e outras atrocidades, que positivamente não suporta ouvir Mozart; qualquer coisa que lembre arte ou cultura os repele, faz com que se sintam mal. Não se enganem, não há nada de casual nisso; muita gente trabalhou com afinco e durante muito tempo para que o nível intelectual médio do nosso povo descesse até esse ponto. Exceto por algum milagre, nenhum desses "mano" (o erro de concordância é proposital) jamais vai ler um livro na vida, nem se perguntar o que está fazendo no mundo ou por que as coisas são como são e não de outro jeito, e, para os que querem o fim da civilização ocidental (não pela sua destruição propriamente dita, e sim por meio de uma sutil e gradual remodelagem feita de dentro para fora), é ótimo que seja assim. Ainda acho que Monteiro Lobato tinha uma visão idealizada demais da Grécia antiga, mas o mero fato de que na época os teatros precisavam ter capacidade para 20, 30, 50 mil pessoas já diz algo sobre o nível cultural de seu povo no tempo de Péricles. Como é explicado no livro, na Atenas de então, como em outras cidades, todo mundo ia ao teatro; o ingresso custava um valor simbólico, e os que mesmo assim não pudessem pagar, recebiam ingressos gratuitos, custeados por um fundo do tesouro público destinado a fins culturais e artísticos. O resultado disso, e de outras ações semelhantes, podia ser sentido dando-se uma volta pelo mercado para ouvir as conversas: havia gente que nem mesmo sabia ler discutindo pontos de filosofia ou trocando análises argutas sobre a política da cidade. É claro que era bem mais complicado governar gente assim do que um povo que mal sabe falar, e, mesmo assim, Péricles e outros ditadores fizeram tudo ao seu alcance para que o teatro, a filosofia, a poesia, a literatura em geral, e todas as outras formas de engrandecimento cultural, florescessem o máximo possível, promovendo uma elevação contínua das capacidades intelectuais de seus povos. (A palavra "ditador" tem um sentido odioso para nós, mas na época queria dizer algo diferente.) A única explicação para isso é que possuíam virtude, uma palavra (e um conceito) que nos soa tão pouco familiar nos dias de hoje.

Por fim, preciso fazer um alerta. O que despertou em mim a vontade de reler O Minotauro foi o acaso de encontrar (numa daquelas feirinhas temporárias de livros que aparecem e desaparecem periodicamente nos corredores de certos shoppings) uma pilha de exemplares de uma edição recente publicada por uma para mim desconhecida editora Pé da Letra. Cada exemplar custava módicos dez reais, então adquiri um e me preparei para um delicioso reencontro com um pedaço tão querido da minha infância… Sabe de nada, inocente. Trata-se de uma edição de péssima qualidade (vai ver é por isso que é barata) e, muito pior que isso, toda estropiada pela censura politicamente correta, algo que, pensando bem, não é nenhuma surpresa, pois antecedentes não faltam (vejam aqui). Entre os personagens do Sítio há um que é muito significativo, apesar de só aparecer uma vez ou outra, o Tio Barnabé, que é uma espécie de personificação da sabedoria popular dos rincões interioranos do estado de São Paulo na época de Monteiro Lobato; pelo que me lembro, sua principal aparição é no livro O Saci, no qual ele conta tudo sobre o próprio, para atender à curiosidade de Pedrinho, menino da cidade. Pois bem… Em O Minotauro, Emília, tentando explicar a um personagem grego o hábito moderno do fumo, cita Tio Barnabé como exemplo:

Lá no Sítio há o Tio Barnabé, um negro de mais de noventa anos, que não tira o cachimbo da boca. Os médicos dizem que se ele não fumasse estaria já com cem anos.

Isso era o que dizia o texto original… Na edição woke da Pé da Letra, a palavra negro foi substituída por senhor. Eu sei, não tem lógica, nem coerência, nem honestidade intelectual alguma: esperar qualquer uma dessas coisas dessa galera lacradora é como esperar que uma macieira dê jacas. Hoje em dia certas livrarias têm uma estante separada para livros de "autoria negra", onde colocam, entre outros, Machado de Assis, que, para mim, sempre foi "apenas" o maior escritor brasileiro e um dos maiores do mundo em todos os tempos; o fato de ele ter sido negro (na verdade era mulato) nunca sequer entrou nas minhas considerações. Por outro lado, simplesmente dizer que um personagem é negro é considerado ofensivo ao ponto de precisar ser censurado. Se refletirmos a respeito, as duas coisas (e muitas outras) apontam para uma mesma realidade: o Brasil, que sempre teve uma identidade de país miscigenado, e que até recentemente, de modo geral, lidava bem com isso, está se transformando numa sociedade na qual as pessoas são classificadas e julgadas, antes de qualquer coisa, pela cor de sua pele – e os promotores dessa nova "cultura" juram que estão combatendo o racismo.

E fica pior. Procurando por Tia Nastácia nos cafundós da Grécia heroica, a mesma Emília pergunta a um pastor se por acaso a teria visto, o que dá lugar ao seguinte e impagável diálogo:

– Que jeito tem essa criatura? – perguntou o pastor.
– Uma beiçuda – respondeu Emília – com reumatismo na perna esquerda, nó na tripa, analfabeta, mil receitas de doces na cabeça, pé chato, gengiva cor de tomate, assassina de frangos, patos e perus, boleira aqui na pontinha, pipoqueira, cocadeira…
– Pare, Emília! – gritou Pedrinho. – Estou vendo que o pó desandou você duma vez.
Foi inútil o berro. Emília estava mesmo desandada e continuou:
– Uma negra pitadeira dum pito muito preto e fedorento. Não sabe o que é pito? Ai, meu Deus do céu! Estes gregos não sabem nada de nada. Mas beiço o senhor sabe o que é, não? Pois basta isso. Não viu uma velha cor de carvão, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de beiços deste tamanho na boca? Se viu, é ela.
– Não repare, pastor – disse o menino. – Emília é como certos despertadores que às vezes desandam.
O pastor ficou na mesma, porque não sabia o que era despertador.

(Não farei comentários sobre os "outros efeitos" do pó de pirlimpimpim que possibilita todas essas viagens no tempo e no espaço; sei que é um ponto problemático, mas mesmo assim não sou a favor de mutilar o texto.)

Senhoras e senhores, com vocês versão da Pé da Letra:

– Que jeito tem essa criatura? – perguntou o pastor.
– Lábios carnudos – respondeu Emília. – (…) Uma senhora pitadeira dum pito muito preto e fedorento. Não sabe o que é pito? Ai, meu Deus do céu! Estes gregos não sabem nada de nada. Mas lábios o senhor sabe o que é, não? Pois basta isso. Não viu uma senhora, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de lábios carnudos? Se viu, é ela.

Emília do Sítio do Picapau Amarelo, a marquesa de Rabicó em pessoa, referindo-se a Tia Nastácia não mais como uma "negra beiçuda", e sim como uma "senhora de lábios carnudos"… Lábios carnudos. Pois é. É isso. Suponho que já devamos agradecer por terem permitido que ao menos o pito continuasse a ser descrito como preto. Alguém pode me explicar como, de que raio de maneira omitir a palavra negro (como se o mero ato de mencionar a etnia de uma pessoa fosse ofensivo por si) ajuda a "combater o racismo"? Por que é que, em um momento, separar escritores uns dos outros pela cor da pele é importante, e em outro, é preciso adulterar um texto escrito há mais de 80 anos só porque ele tinha a "ousadia" de descrever as características físicas de uma personagem, entre elas o fato de ser negra? Vocês podem dizer "ei, não ponha tudo no mesmo saco: quem teve a ideia de jerico de criar a 'estante da autoria negra' foi uma pessoa, e quem fez essa barbaridade contra a obra de Monteiro Lobato foi outra". É, mas ambas foram movidas pela mesma ideologia, e, para essa, não há problema algum em dizer uma coisa agora e o seu exato oposto daqui a cinco minutos. Quando não se acredita que exista uma verdade, incoerência e hipocrisia não são motivo de vergonha.

Vamos mais longe. Admitamos por um momento que as falas de Emília no texto original de O Minotauro sejam preconceituosas: isso nos dá o direito de "corrigir" o que o autor escreveu? Eu entenderia se o editor acrescentasse ao livro uma nota preliminar explicando que a linguagem e os conceitos da época do autor eram diferentes dos atuais, mas colocar uma expressão como "lábios carnudos" na boca da Emília é um total despropósito, algo como fazer o Cebolinha, de repente, começar a pronunciar todos os erres corretos. Pior? Provavelmente pior. Há mais exemplos, entre os quais sobressai o momento em que Tia Nastácia, já resgatada, emociona-se ao rever sua querida patroa D. Benta e corre para abraçá-la, gritando: "Sinhá! (…) Sou eu, sua negra velha, Tia Nastácia…" Na edição da Pé da Letra ela diz "sou eu, sua ajudante". Ajudante. Ajudante. AJUDANTE. Pelo menos não puseram "colaboradora", que é como agora são chamados os que antigamente eram "empregados" ou "funcionários", mas soa igualmente morto, frio, sem emotividade, sem as conotações afetuosas do "sua negra velha". Sei o que estão pensando e concordo plenamente: é deprimente mesmo.

Entretanto, Monteiro Lobato ainda é Monteiro Lobato e assim será sempre; esse tipo de vandalismo praticado contra sua obra apenas reflete os tempos nojentos que estamos atravessando, e que, Deus o permita, ficarão para trás e serão lembrados somente como uma lição a ser aprendida. E, como eu não queria dar o serviço pela metade, tratei de procurar por outra edição que pudesse ser lida sem causar náuseas. A L&PM tem uma, dentro de sua coleção L&PM Pocket, que, até onde pude verificar, respeita o texto original. Ou então, se vocês forem da mesma geração que eu e estiverem se sentindo nostálgicos, pode valer a pena dar uma fuçada na Estante Virtual para tentar conseguir um exemplar de uma das velhas edições da Brasiliense (editora fundada pelo próprio Lobato), com as pra lá de clássicas ilustrações de Manoel Victor Filho.

quinta-feira, outubro 16, 2014

Hércules


Ir ao cinema para ver um desses filmes baseados em mitologia que andam surgindo nos últimos anos é um grande risco para criaturas como eu, que adoram mitologia desde sempre. O espectador comum, que pouco entende do assunto e não se importa especialmente com ele, não tem o que temer… Já nós, estamos sujeitos a ter um fim de semana estragado e uma crise de nervos pela falta de uma fuça que possamos socar pelo sacrilégio. E é mesmo uma loteria: você pode ver desde coisas legais como A Odisseia (a versão com Armand Assante, de 1997) ou Fúria de Titãs (o de 1981) até horrores como Troia, Fúria de Titãs 2010 ou Imortais - para falar a verdade, esse eu nem tive coragem de ver, depois do que ouvi de alguns amigos. Felizmente, Hércules não se inclui na categoria dos desastres, aqueles a que o velho Zeus responderia com certeiros raios na cabeça do diretor e do roteirista. Não é um grande filme, mas também não é revoltante. E me fez achar que essa poderia ser uma ótima deixa para outro texto nos moldes do que escrevi sobre Perseu: um olhar geral à lenda e, dentro disso, comentários sobre o filme. Talvez algum de meus leitores ache interessante - e, independente disso, sem a menor dúvida, eu me divertirei muito escrevendo-o!

Eu naturalmente já tinha lido alguma coisa sobre Hércules antes, provavelmente algum resumo bem sucinto de sua vida e principais façanhas, em algum livro sobre mitologia, mas meu primeiro contato mais minucioso com o herói foi por meio do livro Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, que li quando tinha uns dez ou onze anos de idade. Em várias de suas obras além dessa, é fácil perceber que Lobato era um admirador apaixonado da cultura helênica - sua história, mitologia, instituições e legados. Hoje, me parece que ele tinha uma visão um tanto idealizada demais: parecia crer que os gregos foram a única civilização que "acertou", que nada antes deles se comparava e que tudo o que veio depois foi retrocesso. O autor apresentava como fato indiscutível que tudo da Grécia era superior, desde o sistema de governo até o vestuário, e, como escrevia em plenos tempos da Segunda Guerra Mundial, também dava vazão a sua indignação ante as notícias que chegavam da Europa dando conta de milhares de mortes sem sentido - e fazia isso pintando a Grécia antiga como um lugar onde a verdadeira sabedoria havia criado a paz perfeita. À luz do que sei agora, acho muito estranho que alguém que estudou tanto o mundo antigo quanto Lobato obviamente o fez, aparentemente não conhecesse o outro lado da moeda. Enxergar a Grécia apenas pelo que tinha de belo e grandioso é tão ingênuo quanto a ideia que muita gente tem de um "paraíso terrestre" no Brasil, ou nas Américas em geral, antes da chegada dos europeus. Os índios não eram perfeitos e os gregos também não: tanto os primeiros quanto os últimos eram simplesmente humanos, que lutaram guerras terríveis uns contra os outros e tinham costumes que nos deixariam horrorizados. Mas isso não é o mais importante aqui.

Os Doze Trabalhos de Hércules parece ter nascido de um "gancho" que Monteiro Lobato forneceu a si mesmo em O Minotauro, um livro mais curto e que também colocava os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo na Grécia antiga. Por essa ocasião, Pedrinho, Emília e o Visconde de Sabugosa teriam assistido a um dos Doze Trabalhos do herói, a destruição da hidra de Lerna, e daí em diante, naturalmente, não sossegariam enquanto não assistissem aos outros onze. E assim foi que o trio voltou aos tempos heroicos da Grécia por meio do "pó de pirlimpimpim" - por falar nisso, um dos maiores problemas que os editores de hoje encontram na hora de apresentar a obra de Monteiro Lobato a novas gerações de crianças. O tal pó tinha que ser aspirado pelo nariz, causava inconsciência, e, quando a pessoa acordava, estava em outro lugar e/ou outra época - tudo lembrando perigosamente outro pó e outras "viagens". Mas, dizia eu, Pedrinho, Emília e o Visconde vão novamente à Grécia antiga, desta vez com o objetivo expresso de acompanhar Hércules em seus famosos trabalhos. Rapidamente fazem amizade com o herói e passam a ser seus companheiros indispensáveis, eles os três e mais um jovem centauro a quem Emília põe o nome tipicamente "emiliano" de Meioameio. De modo que não é um Hércules solitário, e sim esse curiosíssimo quinteto que atravessa diversas vezes a Grécia e terras vizinhas para cumprir os trabalhos determinados pelo rei Euristeu, que detesta o herói e fica decepcionado cada vez que o vê voltar com vida. Lobato apresenta um Hércules que facilmente cativa o jovem leitor: além de sua coragem e da força proverbial, ele tem um coração de ouro, mas não um cérebro no mesmo nível - o autor declara-o "burrão de nascença como todos os grandes atletas" (hoje isso seria considerado preconceituoso!). Se formos analisar a lenda em uma de suas versões clássicas, a questão da inteligência, ou falta dela, de Hércules, é controvertida - afinal, nem todos os Doze Trabalhos poderiam ter sido levados a bom termo só na base da força bruta: alguns deles foram completados graças a boas ideias. Na versão de Lobato, essas ideias vêm de Emília e às vezes de Pedrinho, com a contribuição científica do Visconde; sem a presença deles, só se pode imaginar que, ou Hércules, afinal, tinha alguns neurônios, ou então que devia contar com a ajuda constante de sua meia-irmã, a deusa Atena, de quem era protegido. Talvez as duas coisas.

O Maior dos Heróis…

Hércules nasceu em Micenas (e não em Atenas, como dito no filme recente), no palácio onde reinava a mesma dinastia outrora fundada por Perseu. O rei Anfitrião tinha duas esposas, que, casualmente, estavam grávidas ao mesmo tempo - uma, dele mesmo, enquanto a outra, a bela Alcmena, esperava um filho de (adivinhem…) Zeus. A gravidez de Alcmena estava um pouco mais adiantada, de modo que tudo indicava que o filho de Zeus nasceria primeiro e seria o herdeiro do trono, mas a deusa Hera, esposa de Zeus, que sempre fazia o que podia para infernizar a vida dos inúmeros filhos que seu marido tinha com suas também inúmeras amantes, enviou uma serpente que pregou um tremendo susto na outra esposa do rei, causando o nascimento prematuro de seu filho - Euristeu. Com isso, o filho de Alcmena ficou relegado à posição de um príncipe inferior. Quando ele nasceu, a mãe, sabendo que o menino estaria na mira de Hera, tentou apaziguar a deusa dando a ele o nome de Héracles ('glória de Hera' - Hércules é a forma latinizada). Não adiantou: o primeiro ataque de Hera contra o pequeno Hércules aconteceu quando ele ainda estava no berço, e também envolveu serpentes. Duas delas, robustas e venenosas, apareceram nos aposentos de Alcmena quando ela estava ausente e atacaram o menino; quando a mãe retornou, encontrou o bebê brincando com as cobras mortas: tinha-as estrangulado, cada uma com uma mão.

À medida em que Hércules crescia, ficou logo evidente que o elemento sobre-humano estava presente nele em maior grau que nos outros semideuses: sua força era prodigiosa, sua coragem, extraordinária, e seu apetite, insaciável. Como muitos outros heróis gregos, antes e depois dele, teve como mestre o sábio centauro Quíron (sim, Quíron acumulou um currículo extenso antes de ir para o Acampamento Meio-Sangue), que fez dele um exímio arqueiro. Já para o combate corpo a corpo, Hércules elegeu a clava como arma favorita; ao contrário da maioria dos outros heróis, nunca teve grande afinidade com espadas. Praticou muitas façanhas formidáveis, algumas delas responsáveis (conforme a antiga crença popular) até mesmo por alterar a geografia: acreditava-se que o mar Mediterrâneo tivesse sido originalmente um lago, com a Europa e a África se tocando, até que o herói, com um pontapé (!), abriu o estreito de Gibraltar, que, não por acaso, os gregos, e, depois deles, os romanos, chamavam de "Colunas de Hércules". Conta-se também que, na disputa pela mão de Dejanira, sua segunda esposa, Hércules derrotou o rio-deus Aquelau, que tinha o poder de transformar-se num touro, e, durante a luta, quebrou-lhe um dos chifres: isso provavelmente é uma alegoria mitológica. Deve significar que o rio Aquelau, a certa altura de seu curso, dividia-se em dois; Hércules, ou quem quer que esteja na origem de sua lenda, pode ter construído uma barragem - obra ambiciosa para os padrões da época -, secando um dos leitos, ou seja, simbolicamente "quebrando um chifre" do deus que personificava o rio. Por fim, as terras que formavam esse leito se mostrariam muito férteis, devido ao lodo deixado pelo rio, o que daria origem à lenda da Cornucópia, o chifre miraculoso que se enchia de qualquer coisa que seu possuidor desejasse. Esses são apenas dois dentre inúmeros exemplos que a mitologia oferece, mas ilustram bem a maneira como os antigos pensavam em Hércules: um super-homem, capaz de proezas que seriam impensáveis não só para os homens comuns, mas até mesmo para a maioria dos outros heróis.

Não obstante, embora haja muitas, as aventuras mais famosas da carreira do filho de Alcmena são, sem dúvida, aquelas que ficaram conhecidas como os Doze Trabalhos de Hércules. Segundo a lenda, a deusa Hera, que parecia nunca se cansar de perseguir o enteado, certa vez lançou sobre ele uma praga de loucura, que, embora temporária, durou o suficiente para que Hércules praticasse o crime que por pouco não arruinou sua vida: descontrolado, ele assassinou a primeira esposa, Mégara, e os três (ou sete; depende da fonte) filhos do casal. Ao voltar a si e ver o que havia feito, o herói, como diríamos hoje, entrou em depressão. Recolheu-se a uma região selvagem, onde passou a viver isolado, alimentando-se do que caçava e evitando todo contato humano. Foi resgatado por seu amigo Teseu, que, depois de uma extensa busca, conseguiu localizá-lo e o convenceu a consultar o oráculo de Apolo, em Delfos, para saber qual penitência poderia livrá-lo de sua culpa. Quando ele assim fez, ouviu em resposta que devia prestar doze anos de serviços a seu irmão de criação, o rei Euristeu. É interessante registrar que, também dependendo da versão (é sempre assim em mitologia), o nome que o herói recebeu da mãe ao nascer foi Alcides, que significa apenas "descendente de Alceu", em referência a um de seus ancestrais. Segundo essa versão, o nome Héracles foi dado pela pitonisa - a sacerdotisa que servia de voz ao deus no oráculo - justamente por ocasião dessa consulta, e assim ele seria conhecido daí em diante.

Talvez Euristeu tenha recebido ajuda de Hera para selecionar as tarefas mais difíceis e perigosas que pudesse haver no mundo da época; ou isso, ou ele realmente se esmerou na escolha. A ordem de realização dos trabalhos, como não poderia deixar de ser, varia conforme a fonte, mas, de um modo geral, é como segue…

  1. Matar o leão de Nemeia. Esse temível animal, além de ser muito maior e mais feroz que os leões comuns, era, ao que se dizia, invulnerável.
  2. Matar a hidra de Lerna, uma serpente venenosa gigante com nove cabeças, sendo que, se uma fosse cortada, duas outras cresceriam no mesmo instante.
  3. Capturar, viva, a corça de Cerínia, de chifres de ouro e cascos de bronze, que corria a uma velocidade espantosa, sem jamais se cansar.
  4. Capturar o javali de Erimanto, um verdadeiro tanque de guerra vivo, que arrasava tudo em seu caminho.
  5. Limpar as cavalariças de Áugias. Esse rei possuía milhares de cavalos, e as vastas cavalariças onde os mantinha não eram limpas havia décadas.
  6. Matar ou afugentar as aves carnívoras do lago Estínfale. Essas enormes aves de rapina devoravam indistintamente homens e animais pela região ao redor do lago, e eram cobertas por penas de bronze, o que as fazia quase invulneráveis a flechas ou lanças.
  7. Capturar o grande Touro de Creta, um animal enlouquecido que já matara muitas pessoas nessa ilha.
  8. Matar os cavalos de Diomedes, rei da Trácia, que se alimentavam de carne humana.
  9. Obter o cinturão de Hipólita, a rainha das amazonas.
  10. Roubar os bois de Gerião, um gigante de três cabeças.
  11. Obter um pomo de ouro do jardim das Hespérides.
  12. Capturar Cérbero, o cão de guarda do reino de Hades, o deus do mundo dos mortos.

É de se imaginar que passar por tão tremendas experiências mudaria qualquer pessoa, mas Hércules parece não se ter deixado afetar mais que o necessário. Terminado o período de penitência, já livre da servidão a Euristeu, retomou o modo de vida que, pensando bem, era o único possível para um homem como ele: o de aventureiro, sempre em busca de oportunidades para novos feitos heroicos. Eventualmente, ganhou o direito à mão de Dejanira - depois de derrotar Aquelau e outros rivais poderosos - e em companhia dela empreendeu a viagem de retorno a Micenas. Às margens do rio Eveno, o casal encontrou Nesso, um centauro que Hércules conhecia. O que o herói não sabia, porém, era que Nesso o odiava, por ter, anos antes, matado em combate vários parentes seus. O centauro, dissimulado, o cumprimentou afavelmente e ofereceu ajuda, prontificando-se a transportar Dejanira até a margem oposta. Uma vez fora do alcance de Hércules (ou assim pensava), tentou escapar com a moça, planejando raptá-la. Hércules, é claro, agiu depressa: atirou uma flecha que acertou Nesso em cheio. Antes de morrer, o centauro ainda teve tempo de dizer a Dejanira que seu sangue tinha um poder miraculoso. Apontando para a túnica que ela usava, e que ficara respingada de sangue, ele disse que ela devia guardá-la bem: se Hércules um dia parecesse cansado dela, tudo o que precisaria fazer seria conseguir que ele a vestisse, e teria de volta o afeto do marido, mais forte que antes. Dejanira guardou a túnica, mas durante muitos anos não voltou a se lembrar dela.

Certa ocasião, durante uma de suas expedições, Hércules salvou uma princesa de nome Iole, e pensou que seria uma boa ideia casá-la com seu filho Hilo. Levando consigo a jovem, pôs-se a caminho para a corte do rei Eurites, pai dela, a fim de propor o arranjo, e, acontecendo de passar próximo de Micenas, mandou um emissário à sua casa, para dar notícias a Dejanira e buscar algumas roupas e outros itens de que precisava. Ao encontrar a esposa do herói, o tal emissário descreveu com cores tão vivas a beleza de Iole, que Dejanira ficou mordida de ciúmes, e convenceu-se de que a intenção alegada de fazer dela sua nora não passava de um pretexto, e de que Hércules estava era apaixonado pela garota. Isso lhe trouxe de volta à memória as palavras de Nesso, e, acreditando na promessa do centauro, ela incluiu a velha túnica entre as roupas que mandou para o marido (os trajes masculinos e femininos não eram tão diferentes na época).

Gostaria que vocês não esquecessem que é de mitologia grega que estamos falando, e, portanto, de um mundo onde nenhuma maravilha - e nenhum horror - é fantástica demais para existir, então não se apressem em julgar Dejanira uma tonta. Como a maioria de nós, ela tinha uma tendência a acreditar no que desejava, e, além disso, um centauro com poção do amor correndo nas veias será mais inacreditável que cavalos carnívoros ou uma serpente de nove cabeças? De qualquer forma, Nesso a enganou: a única coisa que havia de especial em seu sangue era o veneno da hidra de Lerna. O centauro sabia que, depois de matar a hidra, Hércules untara as pontas de suas flechas com o veneno do monstro, e que esse era um veneno tão potente, que também tornava venenoso o sangue daqueles que matava. A mentira que contou a Dejanira foi a maneira que encontrou para, mesmo depois da morte, conseguir vingar-se do herói.

Quando Hércules vestiu a túnica, sentiu-se como se tivesse entrado numa fogueira. Tentou livrar-se dela, mas o tecido se agarrava a seu corpo e arrancava pedaços de pele e carne. Sabendo que seu fim havia chegado, ele construiu às pressas uma pira funerária, deitou-se sobre ela e ordenou a seu escudeiro, o jovem Filoctetes, que a acendesse. A clava e a pele do leão de Nemeia queimaram junto com o herói, mas Filoctetes herdou o arco e as flechas, com os quais ainda teria um papel importante a desempenhar na Guerra de Troia, décadas mais tarde. Quanto a Dejanira, ao saber do acontecido, suicidou-se. Um final trágico bem ao gosto grego, sem dúvida - mas que não é realmente o final. A lenda conta que Zeus chamou seu filho para o monte Olimpo e fez dele um deus, e a verdade é que fé em Hércules nunca faltou: templos e monumentos dedicados a ele espalhavam-se não só pela Grécia, mas também pela Albânia, Bulgária, parte da Turquia, Sicília e sul da Itália - todas regiões que os gregos conquistaram. O culto de Hércules difundiu-se ainda mais durante o período romano, e continuaria popular até o advento do cristianismo.



…em um filme banal

Talvez o principal mérito de Hércules (2014, dirigido por Brett Ratner e estrelado por Dwayne Johnson no papel do herói) esteja em ter um roteiro original: os célebres Doze Trabalhos e outros feitos conhecidos de Hércules são apenas citados, e provavelmente é melhor assim. O filme já começa com uma bola fora, embora, na certa, pouquíssima gente tenha notado: a data mencionada é 358 a.C. - o que, para os padrões da História grega, já é uma época recente e bem documentada; os monstros fabulosos e os heróis sobre-humanos pertencem a um passado muito mais remoto e misterioso. Para dar uma ideia, 358 a.C. é apenas dois anos antes do nascimento de Alexandre, que, por sinal, acreditava ser descendente (bem distante) de Hércules, cuja lenda já era antiga em sua época. Os personagens Anfiarau (Ian McShane) e Autólico (Rufus Sewell) também declaram que "quem morrer a serviço de uma causa justa irá para os Campos Elísios, onde estão os grandes heróis, como Teseu, Odisseu e Aquiles"; como já vimos, Teseu era contemporâneo de Hércules, enquanto Odisseu (também chamado Ulisses) e Aquiles lutariam na Guerra de Troia, de modo que provavelmente ainda nem haviam nascido. Ou seja, a cronologia desse filme é digna do seriado da Xena.

A primeira cena do filme (sem contar os pequenos trechos de narração que a antecedem) é idêntica à de O Escorpião Rei (2002), primeiro filme a garantir a Johnson uma maior exposição como ator - ele ainda usava seu nome de lutador de wrestling, The Rock. A cena, aliás, já não era propriamente a coisa mais criativa do mundo, mesmo em 2002: o amigo/parente do herói está nas mãos de inimigos, prestes a ser morto ou coisa pior, quando O Cara em pessoa aparece para salvá-lo, sempre no último momento possível. A seguir, somos apresentados ao bando de Hércules, composto por personagens tirados de várias lendas diferentes, a maioria sem ligação com a dele. Conheço bem a história de Atalanta, mas sei pouco sobre Tideu (Aksel Hennie), e nada sobre Anfiarau ou Autólico. É claro que poderia fazer uma rápida pesquisa e reunir informação sobre todos, mas receio que este texto já vai ficar enorme sem isso (risos). Então, comento apenas que Tideu é citado na Ilíada como pai de Diomedes (nada a ver com o rei que tinha os cavalos comedores de gente; este Diomedes era um herói intrépido, que se destacou na Guerra de Troia), e tendo, ele próprio, praticado feitos notáveis durante o famoso episódio dos Sete Contra Tebas - ou seja, o Tideu original devia ser muito diferente do selvagem incapaz de falar, retratado no filme. Quanto a Atalanta, sua interpretação pela atriz norueguesa Ingrid Bolsø Berdal acrescenta uma bem-vinda dose de beleza, o que não faz mal a filme algum. De toda essa turma, o único a realmente ter ligação com Hércules é seu sobrinho Iolau (Reece Ritchie), que também se consagrou como herói em "carreira solo", embora, claro, sem nunca chegar aos pés do tio. Em todo caso, participou da caçada à hidra e de outras aventuras ao lado dele, lutando - não era uma espécie de relações-públicas, como mostrado no filme.

O enredo é simples. Hércules e esse grupo de companheiros ganham a vida como mercenários, e seu mais novo empregador é um certo lorde Cotys, da Trácia (John Hurt). Esse lorde está enfrentando uma guerra civil contra um líder rebelde de nome Rhesus, que, pelo que se diz, aterroriza o interior do país, matando e pilhando, à frente de um exército de centauros. O exército de Cotys sofreu grandes perdas, e, para repô-las, só há os novos recrutas - simples camponeses sem qualquer experiência militar. A tarefa de Hércules e seus amigos consiste em treinar esses homens e depois comandá-los na campanha contra Rhesus. Enquanto a história vai sendo contada, pistas vão surgindo sobre o passado do herói, principalmente sobre o episódio triste e traumático da morte de Mégara e dos filhos - que, só para dar uma dica, não é exatamente como na lenda. Mais: também vão aparecendo as evidências de que, embora Hércules seja, sem dúvida, um dos guerreiros mais poderosos do mundo em seu tempo, pode ser que nem tudo o que se conta sobre ele seja bem como dizem. Isso levanta a indagação que talvez seja o ponto central do filme: o que faz de alguém um herói? Poder ou espírito? A dimensão de suas façanhas, ou a coragem necessária para realizá-las? Junto com isso, o desenrolar dos acontecimentos vem mostrar que a situação na Trácia é um tanto diferente do que a princípio parecia, o que irá exigir de Hércules e dos outros uma decisão difícil.

Quando Hércules acabava de estrear, li em algum lugar da internet um comentário que dizia que ele "desconstruía" a lenda, o que, na minha opinião, seria uma coisa idiota de se fazer. As lendas devem ser deixadas em paz. Entretanto, quando vi o filme, minha impressão foi bem diferente: Brett Ratner não realizou nenhuma grande obra, mas é inocente de qualquer intenção de "sabotar" a lenda de Hércules reduzindo-a a um punhado de fatos comuns. O recado que a produção procura dar é o de que o mais importante na lenda não são os detalhes fantásticos, mas a essência da história, aquilo que podemos aprender com ela. Não importa tanto se Hércules tinha a força de dez homens ou se não tinha, se ele enfrentou monstros fabulosos ou só ameaças naturais; aliás, não importa tanto nem mesmo se houve um Hércules de carne e osso ou se não houve. O importante é compreendermos que o heroísmo não reside em superforça nem em sangue divino, e sim em um determinado tipo de atitude diante de desafios ou situações adversas, quando uma pessoa está lutando por alguma coisa maior que ela própria. O heroísmo está acessível a todo ser humano, mas são poucos os que o alcançam, e, dos que alcançam, a maioria continuará anônima para sempre.

terça-feira, julho 30, 2013

O Filho de Netuno

Bem que eu tentei, juro que tentei: meu plano original era alternar alguma outra leitura antes de pegar o segundo volume de Os Heróis do Olimpo, mas foi impossível conter a curiosidade, de modo que acabei emendando este O Filho de Netuno assim que terminei O Herói Perdido. Em parte, isso foi porque, neste último, não se tinha qualquer notícia de Percy Jackson, a não ser o fato de que ele havia desaparecido, e porque o segundo volume, já no próprio título, prometia informações sobre o paradeiro do aluno favorito do centauro Quíron. E assim foi!

Já próximo ao final de O Herói Perdido, ocorreram algumas revelações. A mais espetacular delas foi a de que o Acampamento Meio-Sangue não era tão único quanto (quase) todos acreditavam: do outro lado do país, na Califórnia, não longe da capital San Francisco, fica o Acampamento Júpiter, também habitado por semideuses - mas semideuses romanos, e não gregos como Percy e seus companheiros. Explicar isso seria inevitavelmente um pouco complicado, mas Rick Riordan conseguiu fazê-lo muito bem, e com o mérito adicional de ampliar um pouco mais a compreensão de seus jovens leitores acerca da cultura clássica. Vou tentar resumir a ópera.

Ocorre que, como já comentado em O Ladrão de Raios, os deuses "gregos" só são chamados assim porque foi na Grécia que nasceram - a mesma Grécia onde também nasceu a civilização ocidental, sem que isso represente coincidência alguma, em absoluto. Segundo Riordan, ao longo da história, os deuses sempre habitaram na nação que, num determinado período, melhor representasse essa civilização. A primeira nação para a qual se mudaram ao deixarem a Grécia - e também a última a acreditar massivamente nos olimpianos e a lhes prestar culto público - foi justamente Roma. E, embora Roma tivesse certos deuses (em geral, menores) que eram exclusivamente romanos, os principais eram os mesmos que foram herdados dos gregos ("principais", ao menos, em termos de culto público; não vou falar aqui do culto familiar aos ancestrais, que, para a maioria dos romanos, era a religião que realmente importava: embora trate-se de assunto fascinante, essencial para a compreensão da Antiguidade, e conhecido por pouquíssima gente, faria com que eu me estendesse demais). Porém, é importante ter em mente que, ao contrário do que muitos pensam, os romanos não se limitaram a importar os deuses gregos e mudar-lhes os nomes; os deuses até podiam ser os mesmos, mas todos eles eram vistos de forma diferente - no caso de alguns, radicalmente diferente. O melhor exemplo é provavelmente Ares/Marte, o deus da guerra. Para os gregos, tudo o que Ares representava era a sanguinolência e a loucura da batalha, e por isso ele não estava entre os deuses mais benquistos ou cultuados: mesmo quando necessitavam de assessoria divina para assuntos bélicos, eles geralmente preferiam dirigir-se a Atena, que era identificada com a estratégia militar. Já para os romanos, Marte significava coragem, masculinidade e honra. Templos grandiosos foram erigidos para ele, seu culto era um dos mais populares, e os legendários fundadores da cidade, Rômulo e Remo, eram tidos e havidos por seus filhos. Este trecho de O Filho de Netuno, que reproduz um diálogo entre Percy e Marte, serve bem para ilustrar a diferença:

– Você é o deus da guerra (…). Não quer massacres sem fim?
– (…) Sou o deus de Roma, criança. Sou o deus do poderio militar utilizado em causas justas. Protejo as legiões. Fico feliz em esmagar inimigos sob meus pés, mas não luto sem motivo. Não desejo guerras sem fim. Você descobrirá isso. Você servirá a mim.

Dito tudo isso, o leitor já estará em condições de compreender a ideia de alguns semideuses serem "gregos", e outros, "romanos": tudo depende de como seu pai ou mãe divinos hajam se apresentado na ocasião em que os geraram. Não fica claro o que leva o deus ou deusa a preferir aparecer em sua "forma grega" ou "forma romana" num determinado momento; é provável que essa decisão seja motivada por impulsos subjetivos e sem razão aparente, já que os deuses mitológicos têm dessas coisas tanto quanto os seres humanos.


Acontece então que Percy "acorda" num casarão em ruínas e cercado de florestas, na companhia de uma alcateia liderada por uma deusa-loba, Lupa (nome que significa simplesmente "loba"; ela vem a ser a loba que amamentou e protegeu Rômulo e Remo quando bebês, e que, por isso, Marte recompensou com a imortalidade). O rapaz teve a memória apagada, da mesma forma como aconteceu com Jason no livro anterior - um estratagema da deusa Hera/Juno, que promoveu essa "troca de líderes", como ela própria definiu: com isso, ela pretende que os dois acampamentos, separados por um histórico de séculos de inimizade, iniciem uma nova era de cooperação. Lupa mantém Percy vivendo com a alcateia por algum tempo, enquanto lhe dá a instrução básica, e então o envia para o sul, para o Acampamento Júpiter, a fim de encontrar seus pares.

O Acampamento Júpiter é muito diferente do Meio-Sangue. Em vez de ficarem agrupados conforme sua filiação divina, os campistas seguem uma organização militar, bem à maneira romana. Segundo Rick Riordan, a Legio XII Fulminata - a Décima-Segunda Legião, "Armada de Raios" - teria sobrevivido ao colapso do Império Romano do Ocidente e fundado o acampamento, que, desde então, já teria mudado de lugar diversas vezes. A legião, atualmente, é bem menos numerosa do que nos velhos tempos: apenas algumas centenas de soldados, na maioria adolescentes, o que talvez seja compensado pelos poderes e habilidades especiais que possuem. Nem todos são filhos de deuses: muitos já são a terceira ou quarta geração - filhos ou netos de semideuses. Perto do acampamento, e, como ele, escondida do mundo exterior, fica a cidade de Nova Roma, habitada basicamente por veteranos da legião e por suas famílias. Trata-se de uma cidade de verdade, onde uma pessoa pode viver, estudar, trabalhar e criar filhos - e, de fato, muitos dos atuais legionários nasceram lá mesmo. Isso deixa Percy com um pouco de inveja, pois não existe nada parecido para o pessoal do Acampamento Meio-Sangue; aliás, parece ser mais ou menos um consenso entre os semideuses gregos que eles devem aceitar a ideia de que dificilmente viverão o bastante para construir uma família. Saber que tal lugar existe leva Percy a pensar em coisas nas quais nunca se atrevera a pensar antes: ele e Annabeth adultos, casados, com filhos.

Porém, há muita coisa para mantê-lo ocupado em um prazo muito mais curto. Gaia (a terra), a mãe dos titãs, está despertando de seu sono de eras, e isso não é nada bom. Depois que os olimpianos derrotaram os titãs pela primeira vez, milênios atrás, ela gerou uma nova leva de filhos, os gigantes, que também lutaram contra os deuses e foram derrotados. E a história está se repetindo: os deuses e os semideuses, juntos, venceram outra vez os titãs, como visto em O Último Olimpiano, e, como antes, Gaia envia os gigantes em busca de uma revanche. Um exército de monstros de todos os tipos está a caminho para arrasar Nova Roma e o Acampamento Júpiter, sendo liderado por Alcioneu, um dos primeiros gigantes a despertarem (ou renascerem?). Isso seria uma grave ameaça de qualquer forma, mas é ainda pior nesse momento, porque Tânatos, o deus da morte, lugar-tenente de Hades, está aprisionado, e, por causa disso, os monstros que os heróis matam teimam em não permanecer mortos, recompondo-se em questão de minutos. Para que a legião possa ao menos ter uma chance na batalha que se aproxima, um grupo de bravos legionários terá que descobrir o local onde Tânatos está sendo mantido preso, e encontrar um meio de libertá-lo. A missão caberá, é claro, ao mais novo recruta da Fulminata, Percy Jackson - que, embora novato na legião, não o é em aventuras perigosas -, e a dois companheiros com características e backgrounds muito curiosos, e com quem ele fez amizade instantaneamente: dois novos nomes a se juntarem à já extensa galeria de personagens memoráveis desse universo.

Frank Zhang é um canadense descendente de chineses; grande e forte, mas com cara de bebê, é muitas vezes alvo de chacota entre os companheiros por causa disso, e também por ser um desses desafortunados sujeitos que, por alguma razão que nem a ciência explica, parecem ter duas mãos esquerdas: é desajeitado e desastrado em quase tudo o que faz. A única coisa em que Frank é realmente bom é em arco e flecha, arma que os romanos mais ou menos desprezavam: embora reconhecessem sua utilidade tática no campo de batalha, consideravam-na indigna dos esforços de um cidadão romano, de modo que a deixavam para as tropas auxiliares, recrutadas entre os povos aliados ou conquistados. A mãe de Frank, que era do exército canadense, morreu em ação no Afeganistão há pouco tempo, e ele ainda não foi "reclamado", isto é, seu pai divino ainda não se revelou. Ele tem uma certa esperança de que seja Apolo, o que ao menos lhe daria uma desculpa para preferir o arco. Será?

Opinião parecida à que tinham sobre arqueiros, os romanos também dedicavam à cavalaria: era coisa para bárbaros. Um romano devia ser um legionário, combater na infantaria, com lança, espada e escudo, enfrentando o inimigo homem a homem. Entre outros, esse é mais um fator a gerar identificação entre Frank e sua melhor amiga, Hazel Levesque: ela gosta de cavalos e leva jeito com eles, mas, tal como a de Frank, sua habilidade não é muito valorizada na legião. Hazel é uma garota negra que cresceu em Nova Orleans, onde sua mãe ganhava a vida lendo sortes e vendendo amuletos, até que, de tanto fingir que mexia com as coisas do além, acabou, acidentalmente, invocando o próprio deus dos mortos, Plutão (ou Hades, caso prefiram o nome grego), que, como vocês já devem ter deduzido, viria a ser o pai de sua filha. Isso tudo não aconteceu na Nova Orleans de hoje: Hazel viveu nas décadas de 30 e 40 do século XX, e foi nessa mesma época que morreu, com apenas 13 anos e sob circunstâncias terríveis. Foi trazida de volta há meses apenas, por obra de um meio-irmão seu, que Percy, aliás, conhece bem, ainda que não se lembre no momento. O passado de Hazel esconde um segredo terrível.

Acho que tudo o que posso dizer à guisa de conclusão é que gostaria de ter comentado O Filho de Netuno logo após seu lançamento, pois assim, talvez meu texto pudesse ter servido para atiçar o apetite de alguns fãs que ainda não o tivessem lido. Infelizmente, minha capacidade de ler e comentar é limitada (hehehe!), enquanto a fila de livros aguardando a vez, além de enorme, não cessa de crescer. Em todo caso, se ainda houver algum fã de Riordan que não o tenha lido, sugiro que não perca mais tempo… Na verdade, esse é um bom conselho até para os que (ainda) não são fãs.

terça-feira, junho 11, 2013

O Herói Perdido

Comentei aqui no blog, tempos atrás, que a saga de Percy Jackson e os Olimpianos só tinha um defeito, e era o fato de que teria que acabar uma hora ou outra. E assim foi: depois de apenas cinco volumes, seus numerosos e entusiásticos leitores tiveram que dar adeus às férias no Acampamento Meio-Sangue. O autor, Rick Riordan, tentou explorar novas searas da mitologia nas Crônicas dos Kane, de inspiração egípcia, mas estas, embora de leitura sem dúvida agradável, não conseguiram despertar o mesmo grau de paixão, talvez não por qualquer demérito do tio Rick como narrador, mas apenas porque a mitologia egípcia não tenha a mesma riqueza e dinamismo que a grega, e por isso não se preste tão bem a aventuras heroicas. Riordan agraciou os fãs com Os Arquivos do Semideus, pequeno volume que pode ser considerado um anexo à saga, contendo três aventuras de Percy muito curtas para renderem livros próprios, além de curiosidades, passatempos, supostas entrevistas com vários personagens… Esse tipo de material. A propósito, embora, pelo menos no Brasil, o lançamento de Os Arquivos… tenha sido simultâneo ao do último livro da série, intitulado O Último Olimpiano, a ordem cronológica (Epa! Qualquer coisa que envolva “Cronos” é assunto delicado…) correta para a leitura é colocar Os Arquivos… antes, mais exatamente entre A Batalha do Labirinto e O Último Olimpiano.

Ainda que Os Arquivos do Semideus tenha alegrado os fãs, é claro que estava muito longe de ser suficiente para satisfazê-los: afinal, O Último Olimpiano terminava com uma profecia sobre "sete semideuses atendendo a um chamado", e todo amante de mitologia sabe que é inútil resistir a uma profecia. Sendo assim (Oba!), Riordan está de volta ao universo de Percy Jackson e os Olimpianos com uma nova saga, intitulada Os Heróis do Olimpo.

O Herói Perdido, primeiro volume dessa nova fase, adota uma estratégia narrativa diferente da utilizada na saga anterior, que era narrada sempre em primeira pessoa pelo protagonista Percy. Aqui, a narrativa é em terceira pessoa, mas o ponto de vista varia: cada capítulo traz no início o nome de um dos três personagens centrais - Jason, Piper ou Leo -, e os acontecimentos narrados nele são mostrados segundo os pensamentos e as percepções desse personagem. Também temos acesso a algumas das recordações que cada um deles traz de sua vida pregressa - exceto no caso de Jason, por motivos que veremos.

Jason repentinamente desperta num ônibus escolar, sem ter ideia de como foi parar ali, e em companhia de Piper e Leo, que se dizem respectivamente sua namorada e seu melhor amigo, embora ele não se lembre de alguma vez ter visto qualquer um dos dois antes daquele momento. E isso nem é o pior: tirando o fato de chamar-se Jason, tampouco se lembra de alguma coisa sobre si próprio, não sabe quem é ou de onde veio. O ônibus pertence a uma instituição chamada Escola da Vida Selvagem, para jovens "desajustados", que por motivos diversos não se encaixam em escolas comuns (e, sim, no caso de alguns deles, isso envolve dislexia combinada a transtorno de déficit de atenção e hiperatividade - um quadro que todo leitor de Rick Riordan sabe muito bem o que pode significar), e o destino da excursão é o Grand Canyon, no Arizona. Ao chegarem lá (surpresa!), os estudantes são atacados por perigosos seres míticos - nesse caso, espíritos da tempestade, e, mesmo sem saber como, Jason reconhece na hora o que eles são. Leo e Piper não reconhecem, mas ao menos veem as criaturas, enquanto os outros, com os olhos toldados pela Névoa, só veem uma tempestade. Em rápida sequência, Jason descobre mais três coisas: a primeira é que uma estranha moeda de ouro que traz no bolso pode, em momentos de perigo, transformar-se numa espada; a segunda é que ele próprio possui com essa arma uma habilidade que sugere um talento natural aprimorado por anos de treinamento; e a terceira é que pode, dentro de certos limites, controlar e dirigir os ventos com a força de sua vontade, o que lhe permite até mesmo deslocar-se através do ar, quase como se voasse.

Depois de uma batalha desesperada, na qual ele tem a chance de experimentar essas capacidades recém-descobertas, Jason e seus amigos são surpreendidos pela chegada de uma carruagem voadora, puxada por cavalos alados e transportando um grupo de semideuses liderados por ninguém menos que Annabeth Chase. E Annabeth está aflita com o desaparecimento de seu namorado, Percy Jackson (pois, depois de cinco anos arreliando um com o outro, ela e Percy finalmente se acertaram, o que aconteceu no finalzinho de O Último Olimpiano), seguindo qualquer pista que pareça capaz de ajudar a encontrá-lo. Ela veio ao Grand Canyon porque teve um sonho sugerindo que nesse local encontraria um semideus usando um único calçado, que estaria, de alguma forma, ligado ao sumiço de Percy - e, ao chegar, dá de cara com Jason calçando um só tênis, pois perdeu o outro durante a luta contra os espíritos da tempestade. Quem conhece mitologia reconhecerá a referência à história do herói Jasão (que, em inglês, é Jason), que também foi identificado como o agente de uma profecia por estar usando apenas uma sandália. Jason, Piper e Leo são, então, conduzidos ao Acampamento Meio-Sangue, onde espera-se que ao menos alguns dos mistérios que envolvem o trio possam ser esclarecidos.

Piper McLean é linda, inteligente e um pouco rebelde. De certa forma, está acostumada a ser uma "meio-sangue", pois seu pai, Tristan McLean - um famoso ator de cinema - é um índio cherokee. Da mãe, tudo o que Piper sabe é que era branca e que foi embora pouco tempo depois de seu nascimento. Tristan, que teve uma infância pobre e sem perspectivas numa reserva indígena, acredita estar fazendo o melhor pela filha ao criá-la em meio à riqueza, mas Piper sofre com a frustração mais comum entre os filhos de ricos e famosos, que é a de apenas muito raramente receber alguma atenção ou desfrutar da companhia de seu ocupado e requisitado pai. E, como fazem muitas crianças que vivem essa realidade, ela encontra uma maneira (por mais estúpida que seja) de obrigá-lo a prestar atenção nela. Piper foi diagnosticada com cleptomania, mas seu método é um tanto diferente do usual: em vez de afanar coisas em lojas, ela simplesmente pede aos vendedores - e eles lhe dão. Por alguma razão, a maioria das pessoas acha extremamente difícil negar qualquer coisa que Piper peça, e qualquer ideia, proposta ou sugestão, não importa o quão absurda, passa a parecer convincente quando é ela quem a expõe. Ao que tudo indica, finalmente é chegada a hora de descobrir de quem ela herdou habilidades tão incomuns, mas Piper não tem bem certeza se quer mesmo saber.

Leo Valdez é um hispano-americano de Houston com um cacoete extraordinário para inventar, construir e consertar coisas. Sempre acreditou que devesse isso ao exemplo da mãe, que tinha uma oficina e loja de ferragens, mas parece agora que o talento talvez venha de ambos os lados da família. Desde que perdeu a mãe, num incêndio tão misterioso quanto trágico, aos oito anos de idade, ele já fugiu de uma ampla variedade de instituições e lares adotivos, até chegar à Escola da Vida Selvagem e daí ao Acampamento Meio-Sangue, onde, pela primeira vez na vida, tem um vislumbre do que seria a sensação de pertencer de fato a algum lugar. Além de tudo isso, Leo se debate com um conflito interno sobre o qual nunca desabafou com ninguém: por natureza, é um amigo fiel e dedicado, mas uma parte sua, da qual ele não se orgulha, sente-se incomodada com o eterno papel de coadjuvante que parece ser seu destino, enquanto Jason - o "cara bonito e corajoso" - colhe as glórias. Só o tempo dirá o que pode vir a depender da solução desse conflito.

E Jason… É Jason. Seu passado é um mistério até para ele mesmo. Qualquer olho experiente em reconhecer semideuses identifica-o logo de saída como sendo um, e as habilidades que possui deixam óbvio que foi muito bem treinado, mas, até onde se sabe, o único lugar onde poderia ter recebido esse tipo de treinamento é o próprio Acampamento Meio-Sangue, e ninguém ali o conhece. As únicas possíveis pistas são uma estranha tatuagem em seu antebraço, mostrando a imagem de uma águia e as letras SPQR, e o fato de que ele prefere referir-se aos deuses por seus nomes latinos ao invés dos gregos (para pessoas familiarizadas com as coisas da Antiguidade, isso será suficiente para que comecem a ligar os pontos e a fazer uma ideia de qual pode ser a origem do personagem, mas imagino que, para a maioria dos leitores adolescentes de Riordan, esses indícios só agucem a curiosidade).


No acampamento, fica-se sabendo que a situação é grave. Além do desaparecimento repentino e inexplicado de Percy, tudo o que se tem de concreto é que o Olimpo está "fechado": nenhum dos deuses responde a qualquer tentativa de comunicação, e, a menos que haja um motivo sério para isso, o fato constitui uma violação do acordo que os olimpianos aceitaram ao final da Segunda Guerra dos Titãs (detalhes em O Último Olimpiano), cujo ponto principal era que deveriam parar de ignorar seus filhos mortais. Parece pouco provável que as duas coisas, tendo acontecido simultaneamente, não estejam ligadas de alguma forma. Rachel Dare, o oráculo oficial do acampamento, consegue acrescentar alguns elementos ao quadro. Leo, Jason e Piper são três dos sete meios-sangues de que fala a profecia, e são também os campeões escolhidos pela deusa Hera - rainha do Olimpo, esposa do todo-poderoso Zeus - para libertá-la de um cativeiro onde está sendo mantida por um inimigo misterioso. Assim, eles partem numa missão no dia seguinte ao de sua chegada ao acampamento, mas não sem que seus respectivos progenitores divinos tenham se revelado. O transporte é providenciado por Leo, que consegue encontrar o já lendário dragão mecânico de bronze, construído décadas atrás pelos semideuses do chalé de Hefesto para guardar as divisas do acampamento, mas que agora encontra-se desgovernado vagando pelas florestas, um perigo para os campistas e para transeuntes desavisados (sua história é narrada em mais detalhes na aventura Percy Jackson e o Dragão de Bronze, que está em Os Arquivos do Semideus). Leo, então, consegue localizá-lo, consertá-lo, e até adaptar-lhe um par de asas, que originalmente não possuía, convertendo-o numa poderosa montaria voadora, a bordo da qual ele, Jason e Piper partirão em sua primeira missão.

Uma missão para fã nenhum de Rick Riordan botar defeito. Todos os ingredientes que nos acostumamos a esperar estão lá em fartas doses: referências mitológicas, aventura, humor e surpresas - muitas surpresas. Com algumas novidades importantes: literariamente, Riordan apresenta-se em franca evolução como escritor, oferecendo-nos personagens bem mais complexos, com uma parte psicológica bem mais trabalhada, enquanto, do ponto de vista dos elementos internos da narrativa, o mundo mítico e fantástico do autor ficou muito maior, com um sem-número de novas possibilidades. A edição nacional, de modo geral, está bem cuidada, com alguns pequenos e perdoáveis problemas de português e, pelo que percebi e me lembro, apenas um deslize mais sério: durante uma luta contra um gigante, Jason refere-se si próprio como "protetor da Primeira Legião"… É óbvio que era para ser pretor, mas todos sabemos que há pessoas que, ao se depararem com uma palavra que não conhecem, preferem acreditar que foi erro de grafia e substituí-la por qualquer outra que conheçam e que seja parecida, mesmo que fique totalmente fora de contexto (por que cargas d'água uma legião precisaria de um "protetor"?). Seria tão mais simples e honesto consultar o dicionário… Pessoas assim estão por toda parte - inclusive, infelizmente, nas editoras que publicam o que lemos -, mas isso não vai prejudicar a enorme diversão que espera pelos fãs do tio Rick nessa nova saga, que tem tudo para ser ainda mais empolgante que a anterior.

sexta-feira, novembro 30, 2012

Góticos

Quando encontrei esta antologia na Livraria Curitiba do shopping Estação, na capital paranaense, há alguns dias, vi-me diante de um pequeno dilema: praticamente metade dos contos que a integram, eu já possuía em outras coletâneas - alguns deles, em mais de uma. Mesmo assim, acabei decidindo pela compra: os textos que eu ainda não conhecia eram irresistíveis, já valendo, só eles, o valor a ser pago, aliás muito razoável. Minha namorada Cintia, que estava comigo na ocasião, observou que, a julgar pela capa, deve tratar-se de uma edição visando o público adolescente do sexo feminino - leia-se: as fãs de Crepúsculo. Se assim for, e se o alvo for atingido, ótimo: é bom que essa faixa de público tenha a chance de conhecer um pouco do melhor que a literatura gótica já produziu, e de ter um contato direto com a ficção de horror no sentido estrito do termo. Pelas páginas deste volume desfilam nomes veneráveis da literatura do sobrenatural como Bram Stoker, Mary W. Shelley, Edgar Allan Poe e Joseph Sheridan Le Fanu; outros que, embora famosos, não costumam ser imediatamente associados ao horror, como Robert Louis Stevenson (autor do clássico romance de aventura de piratas A Ilha do Tesouro, mas também da não menos clássica novela de horror O Médico e o Monstro), Sir Arthur Conan Doyle (criador do mais famoso detetive da ficção, Sherlock Holmes) e o francês Théophile Gautier, melhor conhecido por sua poesia; e, por fim, nomes que bem mereceriam ser mais conhecidos do que são, como W. W. Jacobs e a figura fascinante, mesmo que apagada pelas circunstâncias, de John William Polidori. Por fim, é preciso notar, para crédito do organizador Luiz Antônio Aguiar, que foi uma bela ideia não fazer do livro uma coletânea apenas de contos, mas de textos góticos ou sobre o movimento literário gótico de maneira geral: além dos contos, ele também inclui poemas de Byron e Goethe (seria difícil pensar em dois poetas que melhor representassem essa corrente estética) e interessantes ensaios curtos assinados por Pedro Bandeira (nome coroado da literatura teen no Brasil, criador da série Os Karas, cujo piloto é o merecidamente aclamado A Droga da Obediência), Luiz Raul Machado, Daniel Piza, e pelo próprio Aguiar. O problema com esses ensaios é que parecem ter sido escritos mediante um convite genérico feito separadamente a cada autor, sem obedecer a um plano geral para o livro, o que acaba fazendo com que alguns temas sejam abordados de forma repetitiva, enquanto outros pontos interessantes ficam sem receber atenção.

Góticos, portanto, tem a clara intenção de servir de porta de entrada para os jovens leitores (ou leitoras) do século XXI travarem conhecimento com os grandes nomes da literatura de horror, e isso explica por que a maioria dos autores que nele marcam presença vêm representados por trabalhos que estão entre os mais famosos que produziram - eis o motivo pelo qual muitos dos contos já são conhecidos de quem já acumulou certa experiência no gênero, como este que vos escreve. Conan Doyle, por exemplo, comparece com o delicioso e arrepiante Lote 249, também presente na coletânea Encantamentos; pouca gente sabe, mas Doyle foi o primeiro a usar uma múmia como personagem de horror. De Edgar Allan Poe, temos A Queda da Casa de Usher, clássico absoluto, a "mãe" de todas as histórias de casas assombradas. Infelizmente, esse conto, tal como aparece no livro, constitui mais um desagradável exemplo do grande problema que é a falta de cultura geral para um tradutor de literatura: no rol dos livros que o narrador anônimo lê em companhia de seu amigo em vias de enlouquecer, Roderick Usher, há uma tentativa de informar nas notas de rodapé a tradução dos títulos, que, no original, estão em diversas línguas. O tradutor Domingos Demasi meramente informa ao leitor que títulos como Belphegor e Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae "não têm tradução"... Ora, é claro que Belphegor não terá tradução se a pessoa simplesmente tentar achá-lo num dicionário como se fosse um substantivo comum, mas alguém com um pouco de conhecimento de ocultismo saberia que esse é o nome de um dos demônios favoritos dos satanistas medievais, um demônio identificado com o elemento fogo e que, dos Sete Pecados Capitais, presidia o da preguiça. Já o outro título, em latim, encerra um trocadilho genial e totalmente pertinente com o tema da história: numa tradução literal, significaria a "vigília dos mortos segundo o coro da igreja de Mogúncia" (cidade alemã que em latim é Moguntia, em alemão Mainz); só que vigiliae mortuorum pode tanto ter o inocente significado de uma vigília de oração na intenção das almas dos mortos, quanto pode querer dizer algo parecido com "despertar os mortos"... É um desperdício privar o leitor dessa sacada magistral de Poe. A impressão que dá é de que o senhor tradutor conclui que uma coisa "não tem tradução" quando ela não se enquadra em sua experiência anterior e tampouco é resolvida pelo Google Translator.

Bram Stoker é representado por O Hóspede de Drácula, história curta que é quase presença obrigatória em antologias de contos vampirescos, e também uma boa pedida para coletâneas voltadas para o sobrenatural em geral, como esta. Esse conto, a propósito, até hoje gera controvérsia entre fãs e estudiosos da obra de Bram Stoker: enquanto uns o consideram um trecho excluído de Drácula, outros creem que foi concebido desde o início como um conto independente, embora ambientado no mesmo universo. Luiz Antônio Aguiar expõe a interessante hipótese de que o texto teria sido escrito para ser o capítulo inicial do romance, mas que Stoker o cortou ao perceber que havia ido muito fundo, logo de cara, no clima sobrenatural: o autor acabou preferindo que a imersão do leitor no ambiente tenebroso da história fosse gradual, efeito que conseguiu ao dar aos primeiros capítulos da versão definitiva uma aparência de normalidade que ia aos poucos sendo modificada por meio de sugestões sombrias. O leitor atento notará que a frase que Jonathan Harker (pois está na cara que é ele o viajante inglês sem nome que protagoniza o conto) encontra gravada num túmulo ("Os mortos viajam depressa"), e que não aparece no romance, foi resgatada por Francis Ford Coppola em seu filme Bram Stoker's Dracula (1992), bem como alguns outros detalhes do conto. É pena que Aguiar prejudique a boa impressão que seu posfácio à história de Stoker causa ao leitor, ao cometer um dos erros mais vergonha-alheia que me lembro de já ter encontrado impressos em livro: "...vemos Jonathan chegando ao castelo do conde-vampiro, na Pensilvânia". Transilvânia, Aguiar, Transilvânia, que fica na Romênia, pelo amor de Deus! O estado norte-americano da Pensilvânia nada tem a ver com isso; até onde sabemos, Drácula nunca pôs o pé lá.

E, como é de vampiros que estamos falando, não posso deixar de dizer algumas palavras sobre John William Polidori, perfeito exemplo de um talento promissor que foi perdido sem produzir aqueles que poderiam ter sido seus melhores frutos, e hoje lembrado principalmente pelo fato de sua biografia estar estreitamente entrelaçada com as de mais de um nome essencial da literatura gótica. Nascido em Londres em 1795, filho de mãe inglesa e pai italiano, foi amigo e médico pessoal do aristocrata e poeta, barão George Gordon Byron, que passaria à posteridade simplesmente como Lord Byron e foi, poder-se-ia dizer, uma das primeiras "celebridades" da História, no sentido que damos hoje a essa palavra. Ocorreu que, durante o verão de 1816, Polidori encontrava-se numa casa de campo às margens do lago Genebra, na Suíça, em companhia de Byron, de seu amigo e também poeta Percy Bysshe Shelley, e da jovem esposa deste, Mary, quando, depois de terem lido diversas histórias de fantasmas uns para os outros, o anfitrião propôs que cada um do quarteto escrevesse também uma; essas histórias depois seriam lidas pelo grupo, e escolheriam a melhor. Byron e Shelley nunca terminaram as histórias que começaram com vistas a esse desafio, mas Polidori escreveu The Vampyre, que muitas fontes apontam como a primeira história de vampiro publicada em língua inglesa, enquanto Mary Shelley produziu um conto ao qual chamou O Moderno Prometeu, que mais tarde desenvolveria sob a forma do romance Frankenstein, hoje uma obra essencial tanto para a literatura de horror quanto para a de ficção científica.

(Julgo necessário fazer um parêntese para esclarecer aos não iniciados em mitologia que o Prometeu do título nada tem a ver com o verbo "prometer"; refere-se ao titã Prometeu, que, no mito grego, roubou dos deuses o segredo do fogo para dá-lo aos homens, o que arrancou estes últimos da animalidade e tornou possível o surgimento da civilização. Como castigo, Zeus acorrentou Prometeu ao topo de uma montanha, onde diariamente um gigantesco abutre ia devorar-lhe o fígado, que crescia novamente durante a noite, de modo que seu tormento jamais tivesse fim - mas teve, séculos mais tarde, quando o herói Hércules subiu a montanha, matou o abutre e libertou Prometeu. O que nos interessa diretamente aqui, porém, é notar o paralelo que Mary Shelley traça entre o titã e seu herói Victor Frankenstein: ambos metem-se com segredos que não deveriam conhecer e pagam o preço de sua ousadia. Um ponto de vista tipicamente romântico - pois o gótico, é bom não esquecermos, nada mais foi do que uma ramificação do movimento artístico designado genericamente como Romantismo. Aliás, embora isso seja uma definição um tanto simplista, pode-se dizer que o gótico caracterizava-se precisamente por levar aos extremos certos elementos que outras correntes românticas cultivavam de forma mais moderada.)

Voltando a falar de Polidori, ele só publicou uma outra obra digna de nota, um poema intitulado The Fall of the Angels, com claras influências de Byron, em 1821. Morreu nesse mesmo ano, sem ter completado 26 anos. Nas páginas de Góticos, podemos ter o prazer de ler The Vampyre, conto que, mesmo com muitas marcas do amadorismo de seu autor (que, embora já então formado em medicina, tinha meros 20 anos quando o escreveu), demonstra um inegável dom para criar a atmosfera tenebrosa necessária ao bom horror gótico, e dá uma ideia do formidável escritor que Polidori poderia ter-se tornado, caso vivesse o suficiente. É interessante notar que o vampiro dessa história não mora em nenhum castelo isolado - em vez disso, transita livremente pela alta sociedade inglesa - e não se alimenta apenas de sangue, mas também de atos perversos em geral, comprazendo-se em espalhar ruína, degradação e morte por onde passa.

Também no terreno do vampirismo, embora de maneira mais lírica, situa-se o conto A Amante Morta, de Théopile Gautier, que aparece em outras coletâneas como A Morte Amorosa, A Morta Apaixonada, entre outros títulos, todos com alguma sutil diferença em relação uns aos outros. Nele, um jovem padre se vê desviado, ainda que apenas na esfera dos sonhos e pensamentos (ou assim ele acredita) de sua vocação virtuosa ao apaixonar-se pela misteriosa Clarimonde, a mais bela das mulheres, cujo único defeito, aparentemente, é o de não pertencer ao mundo dos vivos.

Um autor essencial para a literatura vampiresca, mas que, no conto aqui presente, decidiu seguir outro rumo, é o irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, cujo Carmilla (1872) plasmou várias das características que hoje associamos automaticamente aos vampiros, além de ter sido, juntamente com o já citado The Vampyre de John Polidori, a mais direta influência para que o igualmente irlandês Bram Stoker - contemporâneo, conhecido e admirador de Le Fanu - viesse a dar à luz (ou às trevas?) o mais famoso livro de vampiros de todos os tempos, cujo título acho desnecessário repetir. Le Fanu deve ter causado certa comoção, em sua época, ao descrever em Carmilla a paixão sentimental e erótica entre uma bela vampira e sua igualmente bela vítima - do sexo feminino. Aqui em Góticos, entretanto, o que o organizador nos oferece é um conto curto no qual Le Fanu preferiu ousar menos: Dickon, o Diabo, é uma história de fantasmas tradicional, sem nada de muito surpreendente, mas, ainda assim, de uma tremenda força ao descrever a aparição do falecido senhor de uma antiga mansão campestre, com uma sutileza que arrepia muito mais que o horror escancarado de grande parte da ficção espectral moderna, seja literária ou cinematográfica.

Retornando por um instante a Mary Shelley, em Góticos tive uma agradável surpresa ao ler um conto seu que não conhecia, Transformação, que apresenta um protagonista totalmente típico do Romantismo - um jovem fidalgo impetuoso, de espírito rebelde (está bem, vá: um playboy renascentista desmiolado), que dilapida a fortuna da família numa vida boêmia e, com isso, arruína suas chances de desposar a jovem que ama. Para não fugir a nenhum chavão romântico, esse personagem é italiano de Gênova e chama-se Guido. O tempero macabro nesse até aí manjadíssimo plot surge quando ele encontra um anão demoníaco e decide aceitar sua proposta para uma troca temporária de corpos, acreditando que isso lhe dará os meios de consertar as bobagens que fez... Não é preciso dizer que as coisas não serão tão fáceis.

Góticos pode ser recomendado sem medo (ou com ele...), já que cumpre bem aquilo a que se propõe, tendo a vantagem de juntar num só lugar um expressivo punhado dos autores e obras mais indispensáveis a quem pretende começar a se arriscar em meio às trevas da melhor ficção de horror. Como, além da qualidade de seus textos, é uma edição de baixo custo, tem tudo para alcançar boas vendagens, e não seria má ideia se isso encorajasse seu coordenador e seus editores a organizar novos volumes: o lançamento de Góticos II, III e assim por diante não seria nenhum exagero, pois ainda há uma enormidade de excelentes textos e autores do mesmo gênero merecendo tornar-se acessíveis a um maior número de leitores. Tendo apenas o cuidado de corrigir as pequenas falhas citadas acima, Luiz Antônio Aguiar ainda poderá nos guiar através de muitas horas e páginas cheias dos mais deliciosos calafrios.