Portanto, eu já tinha alguma familiaridade com o universo de Lobato quando cheguei à idade escolar, e tive a sorte de ter professoras que me incentivaram a ler (coisa que meus pais também faziam em casa) e tinham especial reverência para com o autor: provavelmente elas próprias o haviam lido na infância. E foi o que eu também fiz. Na já famosa biblioteca do SESI perto de onde cresci (vejam aqui e aqui) existia uma edição em oito volumes contendo todas as histórias do Sítio. Peguei todos emprestados, um por um (sem me preocupar em seguir a ordem numérica), embora precise confessar que "dropei" algumas histórias, como O Poço do Visconde e Aritmética da Emília, porque o que queria eram aventuras, de modo que achei esses livros "didáticos" demais (mas li a História do Mundo para as Crianças de cabo a rabo; sempre tive uma "coisa" com História). Ainda tenho planos de corrigir esses meus deslizes da infância.
Está claro que, se o objetivo da expedição é resgatar Tia Nastácia das garras de algum monstro mítico, o período histórico ao qual os aventureiros devem se dirigir é aquele anterior à Guerra de Troia, em plena Idade do Bronze, quando se supõe que tenham vivido os grandes heróis gregos como Hércules, Teseu, Jasão e tantos outros; entretanto, o mergulho no passado é feito, por assim dizer, de forma gradual. A primeira parada é a Atenas do século V a.C., o assim chamado "século de Péricles", período em que, sob a administração inteligente desse notável ditador de múltiplos talentos, a cidade conheceu seu apogeu cultural. As Guerras Greco-pérsicas tinham-se encerrado com a vitória dos gregos, e, livres dessa ameaça externa, estes últimos puderam dedicar um volume sem precedentes de recursos e trabalho às artes plásticas, à arquitetura e à literatura. D. Benta, uma senhora de muita cultura, sempre teve esse como seu período favorito na História grega, e acaba decidindo ficar ali mesmo, com sua neta Narizinho, enquanto Pedrinho, Emília e o Visconde continuam sua odisseia no passado em busca de Tia Nastácia. Para isso, os três viajam para os tempos da "Grécia heroica", que, para os gregos dos dias de Péricles, já são um passado remoto. A partir daí, o livro alterna capítulos ambientados nas duas épocas. Como hóspedes de Péricles, D. Benta e Narizinho têm a chance de conhecer grandes vultos das artes, ciências e filosofia da Grécia, como os escultores Fídias e Policleto, o historiador Heródoto, o dramaturgo Sófocles, o filósofo Sócrates, entre outros. Enquanto isso, nos tempos míticos, Pedrinho, Emília e o Visconde sobem o monte Olimpo para xeretar como vivem os deuses, assistem escondidos Hércules liquidar a terrível hidra de Lerna no segundo de seus famosos Doze Trabalhos, e, é claro, vão ao resgate de Tia Nastácia, depois de terem consultado o célebre Oráculo de Delfos para descobrir-lhe o paradeiro.
Mesmo sendo apenas um "aperitivo" para Os Doze Trabalhos de Hércules, livro muito mais extenso e ambicioso, O Minotauro é uma pequena joia da literatura infanto-juvenil brasileira, que, no tempo em que crianças e adolescentes ainda liam livros (bem, pelo menos algumas crianças e adolescentes liam), deve ter plantado em muitas jovens cabeças a primeira noção a respeito da importância verdadeiramente inestimável que a civilização grega teve para o mundo ocidental em todos os aspectos da vida. As conversas que D. Benta mantém com Péricles e seus eminentes convidados fazem a proeza de estarem num nível de compreensão acessível para qualquer criança esperta, sem serem rasas, e estão cheias de "iscas" para a curiosidade infantil, que provavelmente levaram muitos meninos e meninas a quererem saber mais sobre as personalidades e os acontecimentos que são mencionados. (Na época da publicação original, essas informações tinham que ser procuradas em enciclopédias, e por vezes me pergunto se não era melhor desse jeito, já que é uma tendência natural no ser humano dar mais valor àquilo que custou esforço para obter – inclusive conhecimento. Easy comes, easy goes.) E há pelo menos uma fala dela, já perto do final do livro, que só fez ficar mais atual nesses 83 anos que se passaram desde que O Minotauro foi escrito. A convite de Péricles, D. Benta e Narizinho vão assistir, com ele e seus amigos, a uma encenação da tragédia Alceste, de Eurípedes – na época, uma obra que estava estreando. Ao final da peça, conversando sobre ela com Sófocles, D. Benta declara:
O que resta a dizer depois dessas palavras? Não há nada a acrescentar, dá apenas para comentar e ilustrar, e sei de um exemplo que cai como uma luva. Quando minha namorada, Cintia, se cansa do ajuntamento de vizinhos batendo papo na calçada diante de sua porta (é aquele tipo de gente com vocabulário de umas 40 palavras, para quem "caraio" é vírgula, e que parece não saber falar baixo), ela costuma tocar música clássica bem alto. É tiro e queda: não dá 60 segundos e todo mundo some. Quer dizer, esse pessoal está tão idiotizado pela exposição a funk, "sertanejo universitário" e outras atrocidades, que positivamente não suporta ouvir Mozart; qualquer coisa que lembre arte ou cultura os repele, faz com que se sintam mal. Não se enganem, não há nada de casual nisso; muita gente trabalhou com afinco e durante muito tempo para que o nível intelectual médio do nosso povo descesse até esse ponto. Exceto por algum milagre, nenhum desses "mano" (o erro de concordância é proposital) jamais vai ler um livro na vida, nem se perguntar o que está fazendo no mundo ou por que as coisas são como são e não de outro jeito, e, para os que querem o fim da civilização ocidental (não pela sua destruição propriamente dita, e sim por meio de uma sutil e gradual remodelagem feita de dentro para fora), é ótimo que seja assim. Ainda acho que Monteiro Lobato tinha uma visão idealizada demais da Grécia antiga, mas o mero fato de que na época os teatros precisavam ter capacidade para 20, 30, 50 mil pessoas já diz algo sobre o nível cultural de seu povo no tempo de Péricles. Como é explicado no livro, na Atenas de então, como em outras cidades, todo mundo ia ao teatro; o ingresso custava um valor simbólico, e os que mesmo assim não pudessem pagar, recebiam ingressos gratuitos, custeados por um fundo do tesouro público destinado a fins culturais e artísticos. O resultado disso, e de outras ações semelhantes, podia ser sentido dando-se uma volta pelo mercado para ouvir as conversas: havia gente que nem mesmo sabia ler discutindo pontos de filosofia ou trocando análises argutas sobre a política da cidade. É claro que era bem mais complicado governar gente assim do que um povo que mal sabe falar, e, mesmo assim, Péricles e outros ditadores fizeram tudo ao seu alcance para que o teatro, a filosofia, a poesia, a literatura em geral, e todas as outras formas de engrandecimento cultural, florescessem o máximo possível, promovendo uma elevação contínua das capacidades intelectuais de seus povos. (A palavra "ditador" tem um sentido odioso para nós, mas na época queria dizer algo diferente.) A única explicação para isso é que possuíam virtude, uma palavra (e um conceito) que nos soa tão pouco familiar nos dias de hoje.
Por fim, preciso fazer um alerta. O que despertou em mim a vontade de reler O Minotauro foi o acaso de encontrar (numa daquelas feirinhas temporárias de livros que aparecem e desaparecem periodicamente nos corredores de certos shoppings) uma pilha de exemplares de uma edição recente publicada por uma para mim desconhecida editora Pé da Letra. Cada exemplar custava módicos dez reais, então adquiri um e me preparei para um delicioso reencontro com um pedaço tão querido da minha infância… Sabe de nada, inocente. Trata-se de uma edição de péssima qualidade (vai ver é por isso que é barata) e, muito pior que isso, toda estropiada pela censura politicamente correta, algo que, pensando bem, não é nenhuma surpresa, pois antecedentes não faltam (vejam aqui). Entre os personagens do Sítio há um que é muito significativo, apesar de só aparecer uma vez ou outra, o Tio Barnabé, que é uma espécie de personificação da sabedoria popular dos rincões interioranos do estado de São Paulo na época de Monteiro Lobato; pelo que me lembro, sua principal aparição é no livro O Saci, no qual ele conta tudo sobre o próprio, para atender à curiosidade de Pedrinho, menino da cidade. Pois bem… Em O Minotauro, Emília, tentando explicar a um personagem grego o hábito moderno do fumo, cita Tio Barnabé como exemplo:
Lá no Sítio há o Tio Barnabé, um negro de mais de noventa anos, que não tira o cachimbo da boca. Os médicos dizem que se ele não fumasse estaria já com cem anos.
Isso era o que dizia o texto original… Na edição woke da Pé da Letra, a palavra negro foi substituída por senhor. Eu sei, não tem lógica, nem coerência, nem honestidade intelectual alguma: esperar qualquer uma dessas coisas dessa galera lacradora é como esperar que uma macieira dê jacas. Hoje em dia certas livrarias têm uma estante separada para livros de "autoria negra", onde colocam, entre outros, Machado de Assis, que, para mim, sempre foi "apenas" o maior escritor brasileiro e um dos maiores do mundo em todos os tempos; o fato de ele ter sido negro (na verdade era mulato) nunca sequer entrou nas minhas considerações. Por outro lado, simplesmente dizer que um personagem é negro é considerado ofensivo ao ponto de precisar ser censurado. Se refletirmos a respeito, as duas coisas (e muitas outras) apontam para uma mesma realidade: o Brasil, que sempre teve uma identidade de país miscigenado, e que até recentemente, de modo geral, lidava bem com isso, está se transformando numa sociedade na qual as pessoas são classificadas e julgadas, antes de qualquer coisa, pela cor de sua pele – e os promotores dessa nova "cultura" juram que estão combatendo o racismo.
E fica pior. Procurando por Tia Nastácia nos cafundós da Grécia heroica, a mesma Emília pergunta a um pastor se por acaso a teria visto, o que dá lugar ao seguinte e impagável diálogo:
(Não farei comentários sobre os "outros efeitos" do pó de pirlimpimpim que possibilita todas essas viagens no tempo e no espaço; sei que é um ponto problemático, mas mesmo assim não sou a favor de mutilar o texto.)
Senhoras e senhores, com vocês versão da Pé da Letra:
Vamos mais longe. Admitamos por um momento que as falas de Emília no texto original de O Minotauro sejam preconceituosas: isso nos dá o direito de "corrigir" o que o autor escreveu? Eu entenderia se o editor acrescentasse ao livro uma nota preliminar explicando que a linguagem e os conceitos da época do autor eram diferentes dos atuais, mas colocar uma expressão como "lábios carnudos" na boca da Emília é um total despropósito, algo como fazer o Cebolinha, de repente, começar a pronunciar todos os erres corretos. Pior? Provavelmente pior. Há mais exemplos, entre os quais sobressai o momento em que Tia Nastácia, já resgatada, emociona-se ao rever sua querida patroa D. Benta e corre para abraçá-la, gritando: "Sinhá! (…) Sou eu, sua negra velha, Tia Nastácia…" Na edição da Pé da Letra ela diz "sou eu, sua ajudante". Ajudante. Ajudante. AJUDANTE. Pelo menos não puseram "colaboradora", que é como agora são chamados os que antigamente eram "empregados" ou "funcionários", mas soa igualmente morto, frio, sem emotividade, sem as conotações afetuosas do "sua negra velha". Sei o que estão pensando e concordo plenamente: é deprimente mesmo.
Entretanto, Monteiro Lobato ainda é Monteiro Lobato e assim será sempre; esse tipo de vandalismo praticado contra sua obra apenas reflete os tempos nojentos que estamos atravessando, e que, Deus o permita, ficarão para trás e serão lembrados somente como uma lição a ser aprendida. E, como eu não queria dar o serviço pela metade, tratei de procurar por outra edição que pudesse ser lida sem causar náuseas. A L&PM tem uma, dentro de sua coleção L&PM Pocket, que, até onde pude verificar, respeita o texto original. Ou então, se vocês forem da mesma geração que eu e estiverem se sentindo nostálgicos, pode valer a pena dar uma fuçada na Estante Virtual para tentar conseguir um exemplar de uma das velhas edições da Brasiliense (editora fundada pelo próprio Lobato), com as pra lá de clássicas ilustrações de Manoel Victor Filho.
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