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sexta-feira, janeiro 17, 2014

Spartacus - Deuses da Arena + Sangue e Areia

Comprei os DVDs da série Spartacus todos de uma tacada só – o box custava consideravelmente mais ba­rato que comprar as temporadas separadamente, de modo que decidi que valia a pena aprofundar um pouco mais a mão no bolso na hora, considerando a economia que isso representaria a médio prazo. A caixa traz as três temporadas oficiais (Sangue e Areia, Vingança e Guerra dos Condenados), mais a minissérie prequel Origens: Deuses da Arena. Esta última foi produzida depois de Sangue e Areia, mas, como é próprio das prequels, narra fatos que ocorreram antes. Conforme vim a saber, o ator principal, Andy Whitfield, acabava de gravar Sangue e Areia, que seria a primeira temporada da série (em 2009/2010) quando foi diagnosticado com câncer. Enquanto Whitfield se tratava, os produtores executivos Sam Raimi (Homem-Aranha, Arraste-me Para o Inferno, entre outros) e Rob Tapert, além do criador da série, Steven S. DeKnight, decidiram aproveitar a estrutura e o elenco já montados para filmar Deuses da Arena, que, mesmo que não tivesse mais nenhuma qualidade (mas tem, e como!), já mereceria reconhecimento só pelo fato de não sofrer do mal que aflige quase todas as prequels: aquela coleção de eventos obviamente criados só para moldar-se aos fatos posteriores já conhecidos pelo públi­co, e que o espectador, por mais boa vontade que tenha, não consegue deixar de achar que ficaram artificiais (quem assistiu às duas trilogias de Star Wars sabe do que estou falando). Em Deuses da Arena, tudo se ajusta com naturalidade, chegando a dar a sensação de que a minissérie era algo que havia sido escrito antes, que, por um ou outro motivo, não ha­via sido produzido, e que foi desengavetado quando a oportunidade surgiu.

Infelizmente, o tratamento de Andy Whitfield não deu o resultado esperado, e ele faleceu em 2011, aos 39 anos de idade. Para substituí-lo no papel de Spartacus, foi recrutado o ator Liam McIntyre, que é quem aparece em Vingança e Guerra dos Condenados. Já que eu estava com tudo nas mãos, decidi assistir na ordem cronológica. Neste post, falarei sobre Deuses da Arena e Sangue e Areia, que são as partes que assisti até o momento – além de me permitir dar um pouco de vazão ao meu gosto por escrever sobre História (ah, vocês já tinham percebido? risos).

E, creiam-me, trata-se de entretenimento de altíssimo nível. Pessoalmente, não costumo aguentar longos perío­dos diante de uma tela: não consigo assistir a mais de um filme de longa metragem num dia, ou mais que dois epi­sódios de um seriado em sequência (muito excepcionalmente, três). Isso dá uma medida do quanto Deu­ses da Arena me prendeu a atenção: assisti a seus seis episódios no curto intervalo de menos de 24 horas, entre uma noite de sexta e a tarde do sábado, salientando que cada episódio tem em torno de uma hora de duração – o normal para séries de ação ou drama é de pouco mais de 40 minutos. Uma experiência muito intensa, quase hipnótica, que até me animou a perdoar as imprecisões históricas que percebi. O visual é perfeito, de encher os olhos, e a série não esconde (na verdade, escancara) que sua principal influência para as cenas de ação épica foi o filme 300: tal como nele, as sequências de luta são cheias de paradinhas e alternam a todo momento entre a velocidade normal e o slow-motion. Na verdade, 300 não foi pioneiro no uso desses recursos, pois, afinal, Matrix veio antes... De todo jeito, o resultado são imagens para fazer qualquer fã de filmes épicos babar o colarinho. É surpreendente pensar que algo de tal nível não foi feito para o cinema, e sim para a TV. Tudo isso se aplica também a Sangue e Areia, cujos 13 episódios "devorei" durante os dois finais de semana seguintes.

Deuses da Arena e Sangue e Areia tratam basicamente de gladiadores, e, sendo assim, exibem muitas cenas de luta. Muito esforço parece ter sido investido em tornar essas cenas tão realistas quanto possível, sem poupar o público da visão chocante de mortes e ferimentos – mas apenas quando isso era cenicamente interessante: a produção também não teve qualquer pudor de mostrar alguns absurdos, sempre que achasse que renderiam cenas impactantes. Quando alguém é degolado ou decapitado, por exemplo, o jorro do sangue, impulsionado pelas batidas finais do coração, parece real (quero dizer, tal como eu ima­gino que seria, já que nunca vi e espero nem ver tal coisa ao vivo); por outro lado, há uma cena em que Spartacus decepa as duas pernas de um oponente, aparentemente sem fazer qualquer esforço, com a facilidade de quem corta um par de linguiças – na verdade, cortar um membro não é tão fácil assim: exige uma lâmina muito afiada e uma enorme força física. Para completar, até ser eliminado com um último golpe, o sujeito fica se arrastando pela arena sem que sangue algum saia dos tocos de suas pernas!...

Os detalhes do dia-a-dia num ludus (palavra latina para escola, também aplicada às escolas especiais para o treinamento de gladiadores) foram bem pesquisados e reproduzidos, mas, em contraste com tal realismo, notei deslizes quanto à parte técnica dos jogos. Na Roma antiga (e no mundo da época), cada gladiador pertencia a uma classe específica, de acordo com as armas e técnicas de luta que utilizava, e cada classe especializava-se em enfrentar uma ou, no máximo, duas outras; na série, cada lutador enfrenta oponentes dos mais diferentes tipos, o que é com­preensível: os realizadores devem ter optado por fazer essa concessão a fim de dar mais variedade e dina­mismo às cenas de combate, tanto no treinamento dos gladiadores quanto nas lutas para valer. Além dis­so, não me consta que houvesse classes de gladiadores lutando com enormes machados e até martelos (o que, considerando o peso dessas armas, os tornaria oponentes muito lentos, presas fáceis para um espa­dachim bem treinado, por exemplo), e menos ainda que as regras rígidas que regiam os combates na are­na permitissem que um único gladiador enfrentasse dois, três ou até quatro oponentes ao mesmo tempo. Os mesmos deslizes estão presentes em Gladiador, de Ridley Scott, que segue sendo um de meus filmes preferidos... Portanto, como diriam os espectadores numa arena romana, missio ('misericórdia'): sejamos in­dulgentes.

A história narrada gira em torno de Quinto Lêntulo Batiato (John Hannah, da trilogia A Múmia), um influente lanista (proprietário de ludus) da cidade de Cápua, no centro-sul da Itália, no último século antes de Cristo. Batiato representa a terceira geração de sua família a dedicar-se ao negócio dos gladiadores, mas nutre outras ambições, a maior delas a de ingressar na política, e um dia, quem sabe, chegar ao senado de Roma – o que, salvo em casos muito excepcionais, era a mais alta posição de poder a que um homem podia esperar chegar naqueles tempos. Em seus esforços para conseguir isso, ele conta com o auxílio de sua bela, astuta e inescrupulosa esposa, Lucrécia (Lucy "Xena" Lawless). Se nada mais de positivo puder ser dito sobre o casal, parece que os dois realmente se amam, numa época em que quase todos os casamentos eram arranjados. Lucrécia quer ver o marido conquistar poder e glória, e, para ajudá-lo, lança mão de todos os recursos ao seu alcance, lícitos ou não; Batiato, por sua vez, dá muito valor à inteligência da esposa e sempre se mostra feliz e agradecido pelo apoio dela. Não parece ter qualquer relevância o fato de ambos amiúde dedicarem-se a passatempos sexuais com seus escravos – ele às claras, exercendo suas prerrogativas de homem, ela mais discretamente, mas com igual entusiasmo. Aliás, nudez e sexo (nunca explícito, mas por vezes bastante "gráfico") fazem parte da série tanto quanto as lutas entre gladiadores, tentando retratar como era a vida numa época e numa cultura em que essas coisas não eram tabus.

(E, caso estejam se perguntando, a resposta é sim: em Spartacus, toda a geração masculina que cresceu assistindo a Xena: a Princesa Guerreira e imaginando Lucy Lawless nua tem a chance de finalmente realizar o sonho – risos.)

Quando Deuses da Arena começa, o grande anfiteatro de Cápua ainda está em obras, e as lutas acontecem numa acanhada arena improvisada, na qual os espectadores ficam tão próximos dos gladiadores, que arriscam ser atingidos por sangue espirrado, ou pior, por golpes perdidos (as duas coisas acontecem!). Batiato, que concorre com outros lanistas pela liderança no fornecimento de lutadores para os jogos, está particularmente interessado em assegurar a presença de seus homens nos eventos que marcarão a inauguração da nova arena. A melhor carta que tem na mão é o gaulês Gannicus (Dustin Clare), treinado em seu ludus e, segundo a opinião geral, o melhor gladiador de Cápua e região. Só que colocar lutadores na arena nos jogos importantes – com todo o dinheiro e prestígio que isso pode trazer – é um prêmio buscado por muitos, e disputado de modos bem mais escusos que pelo simples confronto honesto de habilidades de combate entre gladiadores oriundos dos diferentes ludi. Tráfico de influências, troca de favores, corrupção, intimidação, assassinato, nenhum desses expedientes é descartado por quem busca a proeminência nesse meio.

Para tentar ganhar as boas graças de Túlio, um figurão da cidade, Batiato compra por valor absurdo um escravo aparentemente comum pertencente a ele: outro gaulês, Crixus (Manu Bennett), que até então trabalhava carregando pedras na construção da arena, e por quem, a princípio, ninguém dá nada como gladiador. Só que ele se mostra tão determinado, que não demora a ganhar a marca da irmandade (um "B", de Batiato, gravado a ferro em seu antebraço), que distingue os gladiadores de verdade dos simples aspirantes, que ainda convivem com o pavor de serem vendidos para as minas – um destino muito pior que lutar na arena. A seguir, Crixus vai galgando posições até ser considerado o melhor murmillo da casa de Batiato, e depois, o melhor de toda Cápua – até já haver quem o considere capaz de ganhar o título de campeão da cidade, que atualmente pertence a Gannicus. Há entre os dois uma rivalidade pontuada de respeito: para Crixus, Gannicus é um grande gladiador; para Gannicus, Crixus é um novato que demonstra suficiente coragem e força de vontade para ser capaz de ameaçar-lhe a posição.

Obs.: O murmillo é a classe de gladiador que luta com um gládio (espada curta), e um escudo grande. O gládio era uma das armas mais comuns no mundo romano, usada também pelos legionários, e deu origem à própria palavra gladiador: parece que, no começo da história dos jogos, era a única arma permitida – a diversificação de estilos veio mais tarde. Gannicus é um dimachaearus, que usa duas espadas e uma técnica totalmente diferente, já que, como não porta escudo, as espadas precisam encarregar-se ao mesmo tempo do ataque e da defesa. Spartacus, por fim, começa como um thrax (trácio; casualmente, ele é nativo da Trácia, cujos guerreiros inspiraram essa classe de gladiador), usando a sica (espada curva) e um escudo menor que o do murmillo. Mais tarde, Batiato determina que ele passe a atuar como dimachaearus.

O melhor amigo de Gannicus é Enomaus (Peter Mensah, o emissário persa de 300), um gladiador mais velho, que vive desde criança na casa de Batiato. Foi adquirido no tempo em que o ludus ainda era dirigido pelo pai de Quinto, e praticamente cresceu junto com o atual chefe. Enomaus era o principal gladiador da casa até ser gravemente ferido, cerca de um ano antes, ao enfrentar Theokoles, conhecido como "a Sombra da Morte", provavelmente o gladiador mais temido da República (lembrem-se de que, nessa época, Roma ainda não era um império). O longo período que Enomaus teve que ficar longe da arena depois disso deu oportunidade à ascensão de Gannicus – um fato que não abalou a amizade dos dois –, mas, ao mesmo tempo, o ocorrido revestiu Enomaus de uma espécie de aura mística, pois diz-se que ele foi o único homem a sobreviver a uma luta com Theokoles. Só agora ele está plenamente recuperado, e anseia pelo dia de seu retorno à arena, para provar a Batiato, ao público e, principalmente, a si mesmo, que ainda é um grande gladiador. Porém, seu desejo não está destinado a realizar-se, pois, em vez disso, ele acaba sendo designado para o posto de doctore, um misto de professor e feitor, responsável pelo treinamento dos gladiadores e por supervisionar seu comportamento.




Por falar nisso, é interessante a ênfase que Deuses da Arena põe numa particularidade dos gladiadores: em sua maioria, eles eram escravos (havia gladiadores livres, mas esses eram exceções), e estavam entre os raros escravos a quem era permitido, e até estimulado, que mantivessem um certo tipo de orgulho. Muitos deles realmente sonhavam com a glória na arena, não só pela esperança de liberdade e talvez até de riqueza que isso poderia trazer, mas pela glória em si, e dedicavam lealdade a seu lanista. No que diz respeito a merecer uma tal lealdade, Batiato mostra-se um tanto ambivalente: em muitos momentos, até dá a impressão de ser um senhor justo, que dá valor às capacidades de seus escravos e ouve o que eles têm a dizer – mas, quando se trata de pavimentar seu caminho até o poder, não se detém diante de nada, e não hesita em submeter seus homens a qualquer tipo de situação, mesmo as mais humilhantes.

Passando de Deuses da Arena para Sangue e Areia, somos apresentados à figura central da série, Spartacus em pessoa. Muito pouco ou quase nada é sabido sobre o Spartacus histórico; Plutarco, assim como outros historiadores menos notórios, registrou que ele era provavelmente de origem trácia (a província romana da Trácia incluía partes das modernas Bulgária, Grécia e Turquia) e que serviu numa das chamadas auxiliae, tropas auxiliares do exército romano nas quais se alistavam não-cidadãos nativos dos países conquistados. E teria desertado de sua unidade, o que era um dos piores crimes previstos no código militar romano: um legionário desertor, se capturado, seria sumariamente executado, enquanto um membro das auxiliae culpado do mesmo delito seria condenado à escravidão – que foi o que aconteceu com Spartacus. Para compreender a diferença de status envolvida, basta lembrar que, para ser um legionário, você precisava ser cidadão romano por direito de nascimento, enquanto os soldados auxiliares somente ganhavam a cidadania (transmissível aos descendentes) ao final de seu tempo de serviço, que variou conforme a época – podia ser de 15 a 25 anos. Na série, a fim de criar empatia do público para com o herói, Steven S. DeKnight fez com que tanto o alistamento quanto a deserção de Spartacus ocorressem por motivações louváveis: ele aceita entrar para as tropas auxiliares não como uma opção de carreira, mas unicamente porque os romanos prometem que, juntos, expulsarão definitivamente os guetas (não faço ideia de que povo seja esse), inimigos dos trácios que ameaçam suas cidades. Já a deserção acontece quando seu comandante romano, quebrando a palavra dada, ordena que as legiões da Trácia (acompanhadas de suas auxiliae), marchem para o leste a fim de se unirem às forças que enfrentam a rebelião de Mitrídates, o que significaria deixar a própria Trácia à mercê dos guetas. Spartacus, então, foge para tentar salvar a vida de sua esposa, Sura (Erin Cummings, uma gata, por falar nisso). Porém, é claro, os dois são capturados e separados, e Spartacus acaba indo parar em Cápua. Toda essa parte, que fique claro, é fictícia: não se sabe nada sobre a vida de Spartacus antes de se tornar um gladiador, e é muito provável que, na realidade, sua deserção tenha ocorrido sob circunstâncias muito menos heroicas. Mas isto é ficção, não História, então vamos adiante.

Como dito antes, a pena para um soldado das auxiliae que desertasse era a escravidão; portanto, o mais provável é que o Spartacus histórico, ao ser capturado, tenha sido enviado a um mercado de escravos, e lá, devido a seu tamanho, força e experiência militar, naturalmente tenha sido comprado para ser treinado como gladiador. DeKnight, porém, quis que a entrada do herói no mundo das arenas acontecesse em grande estilo, então pôs em seu roteiro que ele foi condenado à morte (a fidelidade ao aspecto histórico não foi uma preocupação). Era comum, naqueles tempos, que as execuções públicas de criminosos condenados fossem realizadas na arena, antes de começarem os jogos propriamente ditos – e daí até alguém pensar num modo de tornar essas execuções mais "emocionantes", foi um pulo. Então, em vez de serem simplesmente conduzidos amarrados até o centro da arena e lá decapitados sem mais delongas, os criminosos maiores (em tamanho) e mais fortes passavam a receber uma arma e a ter que enfrentar gladiadores treinados, encarregados de sua execução. É claro que essas lutas costumavam ser muito curtas e que, de modo geral, pouca diferença faziam em relação a uma execução comum, a não ser por prolongarem o sofrimento do condenado, mas surpresas podiam acontecer. A possibilidade de um condenado realmente derrotar um gladiador era quase nula, mas, se ele lutasse bem e ganhasse a simpatia do público, este último podia clamar ao organizador dos jogos que lhe concedesse clemência; nesse caso, a sentença de morte podia ser comutada para a de escravidão – o que até poderia, sim, ser o passaporte para uma carreira bem-sucedida como gladiador e, quem sabe, um dia, para a liberdade. Isso podia realmente acontecer, e é a alternativa que DeKnight adota, mas, é claro, de modo extremamente hiperbólico, fazendo com que Spartacus, seminu e armado apenas com uma espada, derrote não um, mas quatro gladiadores totalmente equipados. Ele é, então, comprado por Batiato e vai parar no ludus deste, onde viverá muitas "aventuras sangrentas" (citação à fala do lanista Proximo, de Gladiador, devidamente creditada).

Como seria de se esperar, a vida no ludus é brutal, e um recruta recém-chegado precisa provar seu valor várias vezes e de diversas maneiras antes que os gladiadores veteranos se dignem sequer a lhe dirigir a palavra sem ser para insultar e provocar. Spartacus faz amizade com Varro, um cidadão romano reduzido à escravidão por dívidas de jogo, e constantemente se desentende com Crixus – é difícil dizer qual dos dois provoca o outro mais vezes. A princípio considerado por Batiato e por Enomaus como um animal indomável, o trácio vai aos poucos entrando nos eixos, quando o lanista lhe acena com a promessa de que poderá encontrar sua esposa e trazê-la para que os dois fiquem juntos e um dia obtenham sua liberdade. É essa esperança que ainda empurra Spartacus para a frente e o anima a sobreviver, mesmo quando isso parece impossível; porém, ele descobrirá que o talento de certos homens para a perfídia e a traição é maior do que poderia imaginar, e que apenas coragem e habilidade com a espada não podem defendê-lo contra esses males.

Um grande problema de filmes ou séries com ambientação histórica é que as pessoas que não pos­suem conhecimento prévio sobre o assunto (ou seja, a maioria do público) tendem a aceitar o que é mostrado como realidade, o que nem sempre é o caso... Aliás, na vasta maioria das vezes, não é. Só para dar um exemplo, há um gladiador chamado Barca, de quem se diz que é nativo de Cartago (que a dublagem chama de "Cártago"... Não pela primeira vez, dói ver a falta de cultura dos tradutores que andam por aí), e que, quando "os cártagos" (Arrrgh...) foram derrotados pelos romanos, milhares deles morreram nas arenas, sendo Barca um dos poucos que sobreviveram. Acontece que os romanos destruíram Cartago ao vencerem a Terceira Guerra Púnica, em 146 a.C. (detalhes aqui), mais de 70 anos antes da revolta de Spartacus... Isso dá uma ideia do grau de preocupação com a História que norteou os responsáveis pela série. O próprio Rob Tapert, num dos extras (aqueles a que ninguém assiste) incluídos no último disco de Sangue e Areia, diz que perguntou a Steven S. DeKnight o quanto ele sabia sobre História e, ao ouvir em resposta "muito pouco", respondeu: "Ótimo, pois não ligo a mínima para isso". Creio que isso diz tudo. Então, a quem estiver me lendo sem ter ainda visto a série e tenha planos de fazer isso, reitero que é entretenimento de primeira classe – mas só. No máximo vinte por cento do que você vai ver é História, e o restante é ficção. Se isso estiver bem claro e presente na mente durante todo o tempo, Deuses da Arena e Sangue e Areia podem ser recomendados com entusiasmo a qualquer fã de épicos da Antiguidade. Embora tenha sido feita para a TV, a série nada fica a dever às melhores produções desse tipo feitas para o cinema desde 2000, quando Ridley Scott e seu Gladiador resgataram o gênero do limbo onde se encontrava havia décadas.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

O Imperador - A Morte dos Reis

Terminei de ler o segundo volume da série O Imperador e continuo sem saber o que o título A Morte dos Reis tem a ver com seu enredo. O primeiro, vá lá, chamava-se Os Portões de Roma porque foi nele que Júlio César entrou na cidade pela primeira vez. Agora, A Morte dos Reis?... Roma só teve quatro reis "legítimos": seu fundador Rômulo, Numa Pompílio, Tulo Hostílio e Anco Márcio, e isso foi nos séculos VIII e VII a.C.; depois, caiu sob domínio etrusco e passou a ser governada por reis provenientes desse povo, o último dos quais, Tarquínio, o Soberbo, foi derrubado em 509 a.C. Por causa do tempo vivido sob domínio estrangeiro, os romanos haviam criado uma antipatia instintiva por reis e realezas em geral, que, aos seus olhos, tinham-se tornado sinônimo de tirania; de modo que, por ocasião da queda de Tarquínio, juraram que nunca mais seriam governados por rei algum: estava fundada a República. Mais de quatro séculos antes de Júlio César nascer, como se vê.

Durante esse tempo, a República havia tentado conciliar os interesses dos diferentes setores da sociedade romana - o que, embora nunca tivesse sido fácil, era com certeza menos difícil enquanto Roma foi uma pequena nação de agricultores-guerreiros, tornando-se cada vez mais complicado à medida em que ela crescia em população, poder e riqueza. Na época em que se ambienta esta história, o sistema encontrava-se enfraquecido por disputas de poder, pelo tráfico de influências e pela corrupção - mas, mesmo assim, ainda conseguia assegurar aos romanos viver numa sociedade mais justa que 90% dos outros povos da época. Ou, pelo menos, mais próxima de ser justa.

"Sabe o que significa a palavra 'república'? (…) Poucos dos meus colegas senadores parecem entender. Vivemos uma ideia, um sistema de governo que permite a todos terem voz, até mesmo o homem comum. Percebe como isso é raro? Cada outro pequeno país que eu conheço tem um rei ou um chefe governando. Ele dá terras aos amigos e tira dinheiro dos que se desentendem com ele. É como ter uma criança à solta com uma espada. Em Roma temos o governo da lei. Ainda não é perfeito, e nem mesmo justo como eu gostaria, mas tenta ser, e é a isso que dedico minha vida. Vale minha vida; e a sua também, quando chegar a hora." Essas palavras, na verdade, estão no primeiro volume da série, e são ditas pelo senador Caio Júlio César ao filho ainda pequeno; coloco-as aqui porque é em A Morte dos Reis que tem início, propriamente, a complicada relação entre o Júlio César mais jovem e a República romana, instituição que ele começou servindo, mas à qual acabaria pondo um fim.

Os Portões de Roma termina com a tomada da capital por Cornélio Sila, arquirrival do tio e mentor de César, Mário. Este último é assassinado e todos os que o apoiavam são obrigados a fugir para evitar a vingança de Sila. O meio que o jovem Júlio encontra para escapar é alistando-se para dois anos de serviço militar no mar. É nessa situação que vamos encontrá-lo no início deste segundo volume, servindo a bordo de uma galera, com o posto de tesserário - um oficial de baixa patente, auxiliar de um centurião. Começa a destacar-se por sua coragem e capacidade de liderança por ocasião da tomada da fortaleza de Mitilene, numa ilha grega que se havia rebelado contra o domínio romano, mas mostra seu verdadeiro calibre mais tarde, quando a galera é afundada por piratas e os poucos sobreviventes são aprisionados à espera de resgate. Durante os duros e intermináveis meses de cativeiro, sua força de vontade e seu dom para inspirar coragem aos companheiros são reconhecidos por quase todos - inclusive o capitão Gadítico, antigo comandante da galera, que acaba cedendo o comando ao jovem. Quando o resgate finalmente chega, o escasso punhado de agora esquálidos e maltrapilhos oficiais navais é por fim libertado numa praia do norte da África, próximo de um povoado romano de onde, com alguma sorte, poderão tomar um navio para casa. Só que, ao invés de fazer isso, César decide tomar nas próprias mãos a tarefa de punir os piratas, tanto para restaurar seu orgulho abalado quanto para tentar reaver os vultosos resgates pagos pelas cabeças de todos eles e que, na maioria dos casos, deixaram suas famílias à beira da miséria. Para tanto, ele e seus companheiros começam a percorrer os povoados romanos da região, recrutando jovens que são na maioria filhos de legionários reformados, treinando-os por conta própria e equipando-os da melhor maneira possível.

Por mais disparatado que pareça o plano de César, de caçar um navio pirata entre as centenas que infestam o Mediterrâneo naqueles dias (sem esquecer que achar os piratas é a parte fácil, pois, uma vez isso feito, ainda será preciso derrotá-los), o fato é que consegue levá-lo a bom termo, e nem mesmo ele imagina que essa ainda está longe de ser a maior proeza que realizará durante esse tempo de exílio. Ao aportar na Grécia, César fica sabendo de duas coisas. Uma é boa: Sila morreu, de modo que, em teoria, ele poderia voltar a Roma; a outra, nem tanto: o rei grego Mitrídates do Ponto, que certa vez já se levantara contra Roma, sendo subjugado por Sila, está encabeçando uma nova e sangrenta rebelião que já custou as vidas de centenas de cidadãos romanos. Enquanto, em Roma, os senadores discutem interminavelmente e não conseguem determinar um curso de ação por causa de suas rivalidades e picuinhas, César e seus companheiros mais uma vez encaram o desafio. Juntando os jovens recrutados na África com algumas centenas de idosos soldados veteranos, que eles mesmos reconvocam pelas cidades gregas, formam uma curiosíssima unidade onde novatos e anciãos combatem lado a lado (essa reconvocação, por falar nisso, é verossímil: os veteranos das legiões, ao retornarem à vida civil, recebiam terras ou uma quantia em dinheiro suficiente para iniciar um negócio, e juravam apresentar-se novamente a qualquer momento, caso Roma necessitasse deles). Com cerca de mil homens - um quinto do efetivo normal de uma legião -, valendo-se de táticas de guerrilha, César enfrenta o exército de Mitrídates, dez vezes maior (para saber mais detalhes e qual o desfecho da campanha, leiam o livro - hehehe).

Um dos pontos mais fascinantes (pelo menos para mim) deste segundo volume da série, é a descrição fluente e convincente da vida nas legiões, que chega a permitir até mesmo a quem jamais vestiu uma farda (como eu, por exemplo) ter um vislumbre das coisas que um soldado deve sentir e viver - e de modo especial, não qualquer soldado, e sim os das incríveis legiões romanas, de longe o melhor exército que já existiu. A carreira de um legionário típico eram 20 longos anos de disciplina férrea, treinamento intenso, trabalho exaustivo, desconforto, risco de vida e, não raro, privações - e no entanto, os que se reformavam sentiam saudades da vida na caserna e diziam a todos que aqueles tinham sido os melhores anos de suas vidas. Talvez fosse porque a legião acabava tornando-se uma espécie de família para seus integrantes - e, para os romanos, família tinha real importância -, devido ao tipo sui generis de camaradagem que só enfrentar a morte lado a lado cria entre as pessoas. Ou por causa do sentimento de orgulho e poder que vinha de fazer parte de um exército cuja disciplina e habilidade, conquistadas mediante anos de treinamento duro, não podia ser igualada por nenhum outro exército do presente ou do passado - e, embora eles não pudessem sabê-lo, nem o seria no futuro. Devia ser uma coisa extraordinária sentir-se parte de uma unidade de combate acostumada a enfrentar inimigos duas, três vezes mais numerosos, no próprio território deles - e vencer.

A Morte dos Reis abrange um período de vários anos, e durante grande parte desse tempo César e seu melhor amigo, Brutus, permanecem separados: enquanto o primeiro está às voltas com os piratas e com a revolta de Mitrídates, o outro acaba de concluir um período de serviço militar na Macedônia e Grécia, e, tendo alcançado o posto de centurião, retorna a Roma, onde finalmente conhece sua mãe, Servília - que, na versão de Conn Iggulden, é uma prostituta de luxo; na verdade, quando o filho a encontra, ela praticamente já deixou de exercer a profissão, limitando-se agora a administrar um dos bordéis mais suntuosos de Roma, frequentado por muitos dos homens mais notáveis e poderosos da cidade, incluindo vários senadores. Graças à natureza de suas atividades, Servília tem mais e melhores contatos nas altas rodas de poder do que muitos de seus clientes, e é graças a ela que Brutus obtém do Senado permissão para reconstituir a Primogênita, a antiga legião de Mário, que foi praticamente exterminada quando Sila tomou o poder: como sua simples existência poderia suscitar a rebeldia dos cidadãos que eram leais a Mário, os poucos sobreviventes haviam sido obrigados a abandonar a vida militar, e o nome da legião fora removido das listas oficiais. Brutus, com a ajuda de seu antigo mestre Rênio, e contando com o apoio dos senadores Pompeu e Crasso, conquistados para sua causa por Servília, trata de reunir esses sobreviventes e de começar a recrutar novos soldados, prevendo que, quando Júlio voltar a Roma, precisará de uma força que lhe seja leal.

Outros personagens históricos vão pipocando na narrativa, adaptados aos objetivos ficcionais de Iggulden. Por exemplo, quem assistiu à série Roma terá dificuldade em reconhecer Atia (pronuncie Ácia), lá uma dama ambiciosa da alta sociedade, aqui uma mulher pobre mas orgulhosa, que não esqueceu suas origens nobres e trabalha duro para sustentar-se e ao filho, Otaviano. Os graus de parentesco foram mudados para que Otaviano ficasse mais próximo de César: historicamente, Atia era sobrinha de César, filha de uma irmã mais velha dele, e, portanto, Otaviano era seu sobrinho-neto; neste livro, Otaviano transforma-se em primo de Júlio, com a diferença de idade entre os dois enormemente reduzida. Mesmo assim, é engraçado ler sobre as peripécias do moleque magricela e de cara suja que vagabundeia pelos mercados de Roma praticando pequenos furtos - para desespero da mãe - e pensar que esse mesmo moleque será um dia o primeiro imperador (o próprio Júlio César nunca foi imperador, embora, na prática, tenha tido o poder de um).

O último feito de César e Brutus (novamente reunidos) neste volume, é sua participação na repressão à rebelião de Espártaco, que sobressai entre as muitas revoltas de escravos registradas na história romana, principalmente por suas dimensões, que foram tais que alguns historiadores referem-se ao episódio como a "Guerra Servil". O exército sob o comando de Espártaco chegou a ter 80 mil homens - o dobro do efetivo somado das oito legiões enviadas para enfrentá-lo -, sem contar mulheres, crianças e outros não-combatentes, e não era formado apenas por escravos fugidos ou libertados das propriedades invadidas, mas também por camponeses livres, descontentes com sua vida de trabalho duro e poucos ganhos, e por bandidos comuns, atraídos pela oportunidade de saquear o que encontrassem pelo caminho. Pior que o tamanho do exército era o fato de Espártaco já ter sido um legionário, de modo que conhecia o estilo de luta e as estratégias dos que agora enfrentava. É fato histórico (e está no romance) que faltou muito pouco para que alcançasse Roma e a arrasasse. Já a participação de César no combate ao exército rebelde não tem evidências documentais que a comprovem, embora seja muito possível, já que é sabido que ele era, na época, um jovem oficial nas legiões. A descrição que Iggulden faz das marchas exaustivas e das batalhas desesperadas dessa campanha é um dos (muitos) pontos fortes deste segundo livro.

A Morte dos Reis, independentemente de não casar muito bem com seu título, não frustra em momento algum as altas expectativas criadas por quem leu Os Portões de Roma. Prosa marcante, personagens vivos, sequências de ação de tirar o fôlego, descrições poderosas que evidenciam por parte do autor um sólido e vasto conhecimento sobre a civilização romana - está tudo aqui. Até o momento, não estou nem um pouco cansado da série, de modo que pretendo passar imediatamente ao terceiro volume. Me aguardem...