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quinta-feira, outubro 04, 2007

O 13.º Guerreiro


De um livro pouco conhecido de Michael Crichton (autor do blockbuster Jurassic Park, além de outros livros/filmes de sucesso mais discreto, como Congo e Linha do Tempo) originou-se este ótimo filme de aventuras dirigido por John McTiernan e estrelado por Antonio Banderas. Além de adrenalina, o DVD também oferece ao espectador mais atento a questões culturais uma série de detalhes interessantes de se observar. Por sinal, as proporções relativas do sucesso alcançado pelas obras de Crichton adaptadas para a tela reflete a grande e inevitável injustiça da indústria cinematográfica: O 13.º Guerreiro é incomparavelmente mais interessante que todas as correrias de T. Rex e Velociraptors pelo parque.

O título original do livro era Eaters of the Dead - ('Os devoradores de mortos'). Não tive o prazer de lê-lo ainda, mas uma pesquisa a respeito me informou que Crichton utilizou o velho truque de apresentar a história como sendo a transcrição de um "antigo manuscrito", nesse caso de autoria do árabe Ahmad Ibn Fadlan, datado do ano 922. Exilado do "mundo civilizado" (o que, nessa época, significava principalmente os países árabes, que superavam em muito a Europa cristã em matéria de ciência e desenvolvimento cultural), Ahmad é enviado para o norte, para atuar como embaixador num país distante. Mas não chega ao destino: às margens do Volga, encontra um bando de vikings e acaba tendo que acompanhá-los numa arriscada viagem para socorrer um reino ameaçado por um mal antigo e misterioso. Um oráculo determina que a expedição deve ser composta por homens em número idêntico ao dos meses no calendário dos nórdicos - treze - e que o último não deve ser viking. Sobra para Ahmad.

Embora eu seja um apaixonado pela cultura, história e mitologia dos povos nórdicos, não posso me dizer um grande conhecedor. Entretanto, até onde pude ver, o visual do filme é bem cuidado: arquitetura, figurinos, armas e, o mais importante, nada de elmos com chifres, coisa que pertence a uma visão caricata dos vikings. Não que tais capacetes não existissem, mas eram raros e usados somente em cerimônias religiosas ou ocasiões de gala - por exemplo, era bem visto para um chefe comparecer a uma festa importante usando sua melhor roupa e um capacete com chifres. Já em batalha, tal objeto seria apenas um peso desnecessário e um alvo fácil para os golpes do inimigo.

Nota-se que a história do filme é parcialmente inspirada no poema épico Beowulf, um dos mais antigos representantes da literatura inglesa - escrito ainda em anglo-saxão, língua ancestral do inglês moderno, e datado entre os anos 700 e 1000. E, sim, foi escrito na Inglaterra, apesar da temática nórdica, e provavelmente antes das invasões dinamarquesas do século X. É claro que no poema não havia nenhum árabe envolvido, e no filme o nome do herói mudou ligeiramente: Beowulf virou Buliwyf. Além disso, não é ele o protagonista, e sim Ahmad.

O mal que os treze guerreiros são convocados a enfrentar é uma horda de criaturas aparentemente semi-humanas, semi-animais, que se escondem em cavernas e atacam em noites brumosas, matando todos que encontram com incrível brutalidade. Seu número parece ilimitado, de modo que apenas lutar com eles e matá-los é inútil: a parte mais difícil da missão consiste em encontrar um meio de detê-los.


Há diversas sugestões de que o wendol - coletivo que designa os monstros - é na verdade uma raça de origem muito primitiva: num dos lugares por onde semearam a morte, eles perdem um ídolo, uma pequena estátua feminina com seios e nádegas enormes, ou seja, uma deusa representando a fertilidade, tal como era figurada pelo homem de Cro-Magnon há mais de 30 mil anos. São aparentemente governados por uma "rainha-mãe" e pelo companheiro dela, que lidera o wendol nos ataques e usa chifres como insígnia. Tudo elementos de uma simbologia de origem pré-histórica: a Grande Mãe e o Deus Chifrudo...

Mas o mais interessante é o choque de culturas, que o livro deve desenvolver muito mais, já que no filme só há tempo para rápidas pinceladas. Ahmad é um homem culto, sofisticado, que a princípio se choca na presença daqueles "bárbaros", mas aos poucos aprende a reconhecer suas qualidades e a criar laços de amizade com eles. Fica atordoado com a alegria constante e ruidosa dos nórdicos, que brincam e gargalham quase o tempo todo, seja a bordo de um navio a ponto de ir a pique numa tempestade, ou pouco antes de uma batalha em tremenda desvantagem numérica contra um inimigo apavorante. Tanto ele quanto o espectador compreendem um pouco melhor essa atitude quando um dos guerreiros diz a Ahmad mais ou menos isto: "Nosso destino já estava escrito antes de nascermos, e assim também o momento de nossa morte. Esconda-se num buraco se quiser, mas isso não o fará viver nem um minuto a mais. O homem nada ganha com o medo". Essa filosofia fatalista explica a coragem por vezes beirando a insensatez que sempre caracterizou os guerreiros nórdicos, e é idêntica à que norteava os heróis gregos nos poemas homéricos: o homem não escolhe o momento de sua morte, mas pode escolher o modo como irá encará-la.

Enfim, seja com um olhar cultural ou apenas por diversão, recomendo plenamente que O 13.º Guerreiro seja visto. Vale bem mais a pena do que muitos outros filmes sobre os quais se fez bem mais barulho!

domingo, novembro 27, 2005

Os Filhos da Terra

Muitos anos atrás (eu era criança), li na revista Istoé uma crítica que nunca mais esqueci, a respeito do filme A Guerra do Fogo, do diretor francês Jean-Jacques Annaud, inspirado no romance de mesmo nome, do belga J. H. Rosny. A crítica começava com uma reflexão sobre o fenômeno da nostalgia coletiva que parecia estar atingindo a humanidade, que, vivendo num mundo cheio de engenhocas tecnológicas mirabolantes (tanto quanto se podia falar tal coisa na década de 80), passava a sentir saudades do passado, o que, depois de produções como Excalibur e Conan, o Bárbaro, fez com que A Guerra do Fogo, que vai ainda mais fundo no passado e nos leva de volta à pré-história, tivesse se tornado um grande sucesso de público. De fato, ao menos para certo tipo de pessoas (incluo-me), existe um fascínio todo especial nesse mundo primitivo por onde se deslocavam nossos ancestrais, lutando dia a dia por uma precária sobrevivência em meio a uma natureza hostil. Embora hoje pareça difícil acreditar, houve um tempo em que a humanidade era apenas mais uma espécie, ou espécies, que, como qualquer outro animal, lutava com todas as armas para escapar da implacável lei da seleção natural, que elimina sumariamente da face do planeta as espécies que não se adaptam satisfatoriamente às condições de vida de cada era. Com um agravante: por ter inteligência, o homem também buscava compreender a razão de ser disso tudo, questão essa que jamais preocupou os mamutes ou os tigres de dentes de sabre. E não havia ciência para explicar os porquês das coisas: tudo era mistério, e o homem estava perpetuamente à mercê de forças que não dominava ou sequer compreendia.

Valendo-se de uma grande quantidade de novos dados arqueológicos que não eram conhecidos na época de Rosny, a escritora norte-americana Jean M. Auel decidiu dedicar-se a um projeto extremamente ambicioso, a saga dos Filhos da Terra, do qual Ayla, a Filha das Cavernas, é o primeiro volume. O título original do livro era The Clan of the Cave Bear - literalmente, 'O Clã do Urso da Caverna'. A saga, hoje, conta com pelo menos cinco volumes, mas, a partir do segundo, O Vale dos Cavalos, já começa a descambar para o mais elementar romance sentimental, com o impressionante painel do mundo pré-histórico servindo apenas de pretexto. Ayla, a Filha das Cavernas, entretanto, contém uma das narrativas mais poderosas e convincentes que já tive oportunidade de ler, onde os terrores e mistérios do mundo pré-histórico, e o esforço heróico do homem para lidar com a realidade que esse mundo lhe impunha, assumem dimensões épicas.

Todos nós já vimos aquela clássica gravura que ilustra a evolução da espécie humana, mostrando alguns dos nossos ancestrais andando em fila. Iniciando com algo parecido com um gibão, ela apresenta várias espécies primitivas e (se a memória não me trai) passa pelo homem de Neanderthal segurando uma ferramenta de pedra, pelo Cro-Magnon de lança ao ombro, e termina com o homem moderno, novamente de mãos vazias, como a sugerir que sua mais importante arma e ferramenta é o próprio cérebro. Não se trata de uma imagem totalmente incorreta, mas tem a falha de dar a impressão de que cada espécie se sucedia à anterior em linha reta, sem desvios ou ramificações, o que, é claro, não foi o caso: por vezes, ao longo das eras, até três ou quatro espécies diferentes de seres humanos tiveram de partilhar o mesmo ambiente. Na Europa pós-Era Glacial, há cerca de 35 mil anos, onde está ambientada a narrativa de Auel, conviviam duas espécies: o homem de Cro-Magnon - praticamente idêntico a você e a mim - e o homem de Neanderthal.


Este último, que muita gente pensa que era um semimacaco, na realidade possuía uma cultura bastante complexa, o que este livro retrata magnificamente. O fio condutor é a história de Ayla, uma menina da espécie Cro-Magnon, que, após ficar órfã durante um terremoto, é encontrada e adotada por um clã de neandertalenses - o Clã do Urso da Caverna, assim autodenominado porque, na religião em que acreditam, o Urso da Caverna é o mais poderoso de todos os espíritos, e é à sua proteção que eles se confiam. Para servir de ponte entre o mundo dos homens e o dos espíritos, cada clã tem um feiticeiro - o mog-ur -, que adota como totem o próprio Urso da Caverna.

São justamente Creb, o mog-ur do clã, e sua irmã Iza, a curandeira, que passam a fazer as vezes de pais para Ayla. Creb, aleijado desde a infância, nunca foi capaz de caçar, mas esse fato, que teria significado desgraça e vergonha para a maioria dos homens daquele povo, acabou proporcionando-lhe uma posição única em sua sociedade: sem precisar preocupar-se com as atividades comuns dos outros homens, pôde dedicar todo o seu tempo à meditação e à observação da natureza, e assim tornou-se o mais poderoso feiticeiro que o clã jamais teve. Graças à sua sensibilidade privilegiada, ele logo percebe que as diferenças entre aquela estranha criança e o povo que a adotou vão muito além da aparência.

É particularmente interessante a passagem em que Creb tenta ensinar a Ayla os segredos dos números - e fica espantado ao ver a menina "pegar" instantaneamente conceitos que ele próprio só conseguiu dominar após muitos anos de meditação profunda. Ocorre que Ayla, como todos de sua espécie, tem uma conformação cerebral diferente da de Creb e seu povo: enquanto o Homem de Neanderthal tinha a parte traseira do cérebro muito desenvolvida, o de Cro-Magnon desenvolveu mais a parte frontal. O resultado disso é que o neandertalense devia ter uma memória prodigiosa, mas era fraco em raciocínio abstrato, o que tornaria muito difícil imaginar qualquer número maior do que os que pudesse contar com os dedos, e quase impossível executar operações aritméticas. Já nós, não temos tanta facilidade para memorizar, mas, em compensação, desenvolvemos a matemática e o pensamento criativo, que tornaram possíveis todas as invenções. É importante salientar, entretanto, que isso não significa que sejamos mais "inteligentes" que aqueles nossos parentes hoje extintos: simplesmente, nossa inteligência se desenvolveu numa direção, e a deles, em outra.

Ayla é ensinada a portar-se e a trabalhar como fazem as mulheres dos clãs, tendo que superar inúmeras dificuldades para adequar suas diferenças ao tipo de comportamento que é esperado dela. O livro é cheio de detalhes fascinantes sobre a vida diária entre os neandertalenses, desde a procura e o tratamento das ervas medicinais até a fabricação de artefatos de sílex. As cenas de caçadas são espetaculares - a inteligência do homem triunfando sobre a força bruta do bisão, do mamute, do urso. As cerimônias religiosas oficiadas por Creb (em geral, assistidas apenas pelos homens) transmitem um sentido indescritível de profundo mistério, que não deixa de ser impressionante nem mesmo para a mente moderna "esclarecida", desde que se tenha alguma sensibilidade e não se queira julgar por padrões atuais a mentalidade de homens que viveram há 35 mil anos.

É também muito digna de nota a habilidade com que Auel desenha a personalidade de Ayla, que, por mais que se esforce sinceramente para agir como uma boa mulher dos clãs, não consegue deixar de transgredir tabus, porque a natureza simplesmente não a fez para viver como vive o povo que a acolheu, e esse problema segue num crescendo, até tornar impossível a sua permanência no clã onde se criou. Talvez esse conflito cultural seja parte do que falta aos livros seguintes da série, deixando um vazio que a autora procurou preencher com problemas românticos e muitas cenas de sexo. De qualquer forma, Ayla, a Filha das Cavernas, é uma leitura que recomendo plenamente.