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segunda-feira, setembro 03, 2012

O Cavaleiro da Morte

O mundo começou no caos e vai terminar no caos. Os deuses o trouxeram à existência e vão acabar com ele quando lutarem entre si, mas no tempo entre o caos do nascimento do mundo e o caos da morte do mundo existe ordem, e a ordem é feita de juramentos, e os juramentos nos unem como as fivelas de um arreio.

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O primeiro volume das Crônicas Saxônicas, intitulado O Último Reino, terminava com a Batalha de Cynuit, na qual Uhtred de Bebbanburg, de apenas 20 anos, liderou uma pequena força saxã contra um exército de dinamarqueses, e não só obteve uma vitória improvável, como ainda matou em combate singular o terrível Ubba Lothbrokson, o último ainda vivo dos três notáveis chefes vikings filhos do lendário Ragnar Lothbrok. Isso poderia ser seu passaporte para uma alta posição na corte do rei Alfredo, já que essa vitória pode ter salvo, ao menos por algum tempo, o reino de Wessex, o último na Inglaterra que ainda resiste aos invasores nórdicos (na época, a Inglaterra estava dividida em quatro pequenos reinos; os outros três eram Ânglia Oriental, Mércia e Nortúmbria, este último a terra natal de Uhtred). Acontece que, como o velho Uhtred que está contando a história reconhece, quando jovem ele era tolo, orgulhoso e teimoso – como quase todos os jovens, só que num grau pior que o da maioria. Este segundo volume começa quando o rapaz contraria os conselhos de seus companheiros mais velhos e, em vez de ir imediatamente até Alfredo e colocar aos pés do rei o estandarte de Ubba, vai primeiro ver sua esposa e filho. Quando, no dia seguinte, ele finalmente chega ao acampamento de Alfredo, é para descobrir que seu desafeto Odda, o Jovem, filho de Odda, o Velho, chegou primeiro e contou uma história diferente.

Uhtred tem algum respeito por Odda, o Velho, que lutou ao seu lado em Cynuit e está agora moribundo devido aos ferimentos sofridos, mas Odda, o Jovem, que ele considera um covarde, mal participou da batalha. Compreensivelmente enfurecido, Uhtred invade a igreja improvisada do acampamento, onde o devoto Alfredo está orando, para reclamar o crédito por sua façanha, e, esquentado como sempre, acaba desembainhando sua espada na presença do rei – o que, conforme uma lei recentemente promulgada em Wessex, pode ser punido com a morte. Alfredo, imbuído de espírito cristão, o perdoa, só que Uhtred, com o mesmo ato, tornou-se culpado também de outro delito, que foi o de perturbar o andamento do serviço religioso, e esse quem tem que perdoar é Deus. Assim, Uhtred acaba obrigado a vestir um manto de penitente e arrastar-se de joelhos pelo chão enlameado do acampamento até o altar – o que para ele, criado entre os dinamarqueses, é uma humilhação grave. Ele nunca gostou muito do rei, a quem considera um carola manipulado por padres (embora seja impossível negar sua sagacidade), e, depois desse incidente, a antipatia ganha contornos de ódio. Isso faz com que volte a pensar em juntar-se aos dinamarqueses, mesmo tendo passado os últimos dois anos lutando contra eles. Poderíamos falar em lealdades conflitantes, mas a verdade é que Uhtred nunca foi realmente leal a lado nenhum – somente a homens específicos, e, até esse momento de sua vida, esses homens, além de poucos, eram quase todos dinamarqueses.

Como dito, Uhtred é nortúmbrio (ou nortumbriano? Hum…), mas, antes de mais nada, é saxão; e, como sua terra natal é agora uma província dos dinamarqueses, governada por um rei-fantoche, é apenas lógico que, como um saxão livre, ele se submeta ao único rei saxônico de verdade que resta na Inglaterra – e esse é Alfredo de Wessex. Além disso, a esposa de Uhtred é de Wessex, e o casamento fez dele senhor de terras herdadas da família dela. Dessa forma, por menos que goste, ele é súdito de Alfredo, e se vê forçado a acomodar-se em suas terras, tentando, sem muita habilidade, fazê-las prosperar, e lutando contra um enorme tédio.

Durante certo tempo, Uhtred foi comandante da pequena frota de Alfredo; seu antigo navio, o Heahengel ('Arcanjo' em anglo-saxão), está se deteriorando numa praia próxima de sua casa, e olhar para a embarcação abandonada aumenta a depressão do guerreiro… Até que seu antigo imediato, Leofric, aparece em outro navio, trazendo a bordo um time de carpinteiros navais e a ordem de consertar o Heahengel e pô-lo novamente a flutuar. A operação deverá demorar cerca de um mês… E, enquanto os carpinteiros trabalham, Uhtred, Leofric e sua tripulação partem em busca de aventuras, sob o pretexto de "patrulhar a costa". Não por coincidência, a primeira parte do livro intitula-se simplesmente Viking, palavra que, hoje em dia, é muitas vezes usada como sinônimo de "nórdico", como designação de todo um povo, mas que, na origem, era aplicada aos homens que tomavam parte em expedições piratas – que é exatamente o que Uhtred e seus companheiros fazem. A bordo do Fyrdraca ('Dragão Flamejante'), como apelidaram seu navio, eles percorrem a costa de Cornwalum (região do sudoeste da Inglaterra, hoje chamada Cornwall em inglês, Cornualha em português), saqueando indistintamente navios dinamarqueses ou ingleses e procurando por outras maneiras de obter algum ouro e prata.

Uma dessas oportunidades se apresenta quando um certo "rei" Peredur lhes propõe que o sirvam como mercenários, o que ele espera que lhe garanta a vitória contra um "rei" vizinho (como Uhtred explica, naquela região qualquer chefe de vilarejo que pudesse juntar 50 homens armados se intitulava rei). Como o Fyrdraca recebeu como disfarce uma cabeça de dragão, como aquelas usadas nas proas dos navios dinamarqueses, Peredur toma Uhtred e seus homens por vikings de verdade. Quando Uhtred descobre que o rival de Peredur também contratou mercenários nórdicos, percebe que a coisa não será a moleza que ele estava esperando. O líder dos mercenários do lado inimigo é um homem conhecido como Svein do Cavalo Branco, cuja fama já chegara aos ouvidos de Uhtred. Os dois sabem que, se lutarem, independentemente do resultado, ambos perderão muitos homens; assim, acabam entrando num acordo: os dois bandos se unem, arrasam a vila de Peredur e dividem a pilhagem (a essa altura, não é surpresa para ninguém que Uhtred não tenha qualquer problema em trocar de lado sempre que acha conveniente).

O item mais valioso que ele obtém ao saquear a vila é Iseult, uma das esposas do agora falecido Peredur, uma jovem de surpreendente beleza que, dizem, nasceu durante um eclipse, o que faz dela uma "rainha das sombras", conforme uma tradição pagã que sobrevive entre aquele povo ainda em processo de cristianização. Segundo a crença geral, uma rainha das sombras possui poderes proféticos enquanto permanecer virgem, razão essa pela qual Peredur nunca a tocou. Quanto a Uhtred, não dá para dizer que ele não seja supersticioso (longe disso), mas parece que, em sua escala de prioridades, os impulsos masculinos têm precedência sobre as crendices: Iseult torna-se sua amante e ele a leva consigo ao voltar para casa, uma vez terminado aquele mês de aventuras.

Quando, no inverno seguinte, Uhtred é chamado a Cippanhamm (a atual Chippenham, que servia de capital) para falar com Alfredo, ele é acusado de dois crimes. O primeiro é o de ter levado os homens e um dos navios do rei à guerra sem ter recebido ordens para isso – e desse ele sabe que é culpado, embora, é claro, negue. A segunda acusação é a de ter-se juntado aos dinamarqueses para atacar Cynuit, onde estava sendo construída uma igreja para celebrar a vitória saxônica obtida no local – obtida por ele, Uhtred. A igreja em construção foi queimada, e dezenas de monges e aldeões, mortos. Desse ataque ele não participou, mas não há escapatória: ou ele será inocentado dos dois crimes, ou considerado culpado de ambos, e, no segundo caso, morre. Diante disso, Uhtred pede e obtém o direito a um julgamento por combate – uma tradição entre os saxões e outros povos germânicos, que acreditavam que Deus, ou os deuses, dariam a vitória a quem estivesse dizendo a verdade. Uhtred, naturalmente, será o seu próprio campeão; para enfrentá-lo, Odda, o Jovem, sempre ansioso por vê-lo morto, oferece como campeão o mais temido de seus homens, um guerreiro gigantesco, de estupenda força e levemente retardado chamado Steapa Snotor. A narração do duelo deixa-nos a todos com a respiração suspensa, mas ele é interrompido: exatamente quando Uhtred e Steapa estão lutando, os dinamarqueses atacam Cippanhamm.

Uhtred, que cresceu entre os dinamarqueses, fala a língua deles e sempre gostou de seu modo de vida, fica fortemente tentado a se aproveitar do caos para mais uma vez mudar de lado e ajudar a arrasar e pilhar a cidade, mas, talvez pensando na esposa e no filho, não o faz; em vez disso, escapa de Cippanhamm, acompanhado apenas por Leofric, Iseult e mais uma mulher, e sem ter a menor ideia se o rei Alfredo escapou também ou se foi capturado ou morto pelos pagãos. Mas a resposta é favorável: depois de penarem muito viajando a pé em pleno inverno, e de várias peripécias, Uhtred e seu grupo reencontram Alfredo nos pântanos de Sumorsӕte (Somerset), uma região vasta e traiçoeira, pouquíssimo povoada, cujos raros e espalhados habitantes, em muitos casos, nunca ouviram falar nem sequer do rei Alfredo, quanto mais dos dinamarqueses. É uma região de pântanos salobros, pântanos de maré, que durante a maior parte do tempo são rasos demais até mesmo para os navios vikings, de modo que ali o rei e seu punhado de seguidores restantes estão em relativa segurança. É a partir dessa base de operações que Alfredo planeja e começa a executar a gradual retomada de seu reino – com a ajuda de Uhtred, que o serve de má vontade, mas demonstrando capacidade, e tendo a vantagem de conhecer os dinamarqueses e seu modo de pensar: entre outras coisas, ele sabe que os invasores provavelmente conseguiriam tomar o pântano, mesmo com as dificuldades de navegação, caso agissem todos juntos, mas é difícil que isso aconteça, por causa de uma rivalidade entre Guthrum, que ficou sendo o principal chefe dinamarquês após a morte de Ubba e seus irmãos, e Svein, o mesmo que Uhtred conheceu em Cornwalum, e que reluta em submeter-se ao comando de Guthrum. É graças a essa rixa que Alfredo tem uma chance, e ele não pretende desperdiçá-la.

Como todo bom autor de ficção histórica, Bernard Cornwell demonstra habilidade na arte de entrelaçar personagens e eventos reais e fictícios, formando um todo plausível. É fato, por exemplo, que, no século IX, a Inglaterra esteve muito perto de deixar de existir devido às invasões nórdicas, e que Alfredo foi o líder que tornou possível a sua salvação: se não fosse por ele, é provável que, onde está hoje o Reino Unido, houvesse, ao invés, um ou mais países escandinavos. Entretanto, é claro que ele não fez isso sozinho, e Uhtred, mesmo tendo sido inventado, representa um dos tipos de homem com quem Alfredo precisou contar. Já que está lidando com eventos históricos (ainda que misturados com ficção), Cornwell opta por deixar de lado as idealizações: seu Uhtred, embora corajoso e bom guerreiro, dificilmente poderia ser chamado de herói, por causa de sua moralidade discutível – cujo principal exemplo é a já comentada facilidade com que ele troca de lado, não só na guerra entre saxões e dinamarqueses, mas em qualquer conflito no qual se veja envolvido. Como deve lembrar quem leu meu post sobre o primeiro volume das Crônicas Saxônicas (melhor ainda, quem leu o próprio livro), Uhtred já era um garoto crescido, com seus dez ou onze anos, quando foi capturado pelos dinamarqueses e adotado pelo chefe Ragnar (nada a ver com o legendário pai de Ubba; na verdade esse nome devia ser comum). O autor não fez a coisa dessa forma sem bons motivos: Uhtred já tinha idade suficiente para lembrar-se com clareza da vida que teve com seu próprio povo, ele já se entendia como um saxão, o que é bem diferente do que aconteceria se tivesse sido capturado ainda bebê, pois, nesse caso, na certa se consideraria simplesmente um dinamarquês – mesmo que os pais adotivos lhe contassem sobre suas origens – e agiria como tal. Com a história de vida que teve, entretanto, ele se sente ao mesmo tempo saxão e dinamarquês, o que, na prática, é a mesma coisa que não ser nenhum dos dois. Ao ler, não temos a impressão de que Uhtred seja atormentado por grandes conflitos internos, mas isso pode ser porque é ele mesmo, na velhice, quem está contando a história, e, como homem rude e prático que sempre foi, talvez ache bobagem demorar-se falando de seus próprios estados de espírito.

Duas curiosidades históricas para concluir. Primeira: durante sua expedição a Cornwalum, Uhtred conhece um monge do País de Gales, de nome Asser, que, segundo ele, viria, mais tarde, a importuná-lo muito. O protagonista, que já tem pouca simpatia por cristãos em geral, e reserva uma especial má vontade para com padres e monges, parece gostar ainda menos desse monge em particular que da maioria dos outros (parece que, no texto original, ele se aproveitava do nome do cara para fazer um trocadilho nível quinta série com ass, que significa asno). Trata-se de personagem histórico, e não qualquer um: Asser viria a ser bispo de Sherborne e foi um importante cronista, sendo que a maior parte do que sabemos sobre a vida e o reinado de Alfredo vem de seus escritos. Segunda: assim como o primeiro volume, este também termina com uma batalha, mas uma de proporções e importância muito maiores, a Batalha de Ethandun, travada no ano 878 (Ethandun era o antigo nome da atual Edington, no condado de Wiltshire). Não vou contar seu desfecho: quem conhece a história da Inglaterra já sabe, e quem ainda não conhece, na certa vai preferir ler o livro, o que, sem a menor dúvida, vale a pena fazer.

segunda-feira, julho 18, 2011

O Último Reino

Gênero popular no exterior há muito tempo, a ficção histórica só começou a receber investimento digno de nota das editoras nacionais há alguns anos. Por menos que o hábito de ler seja difundido no Brasil, ao olho do "consumidor" tudo indica que o setor editorial viveu uma evolução: os editores parecem ter parado de publicar só o que eles "achavam" que venderia, e procurado saber o que o público queria ler. O preconceito (que eu já ouvi ser expresso até mesmo por pessoas de quem, considerando a cultura que obviamente possuíam, eu não esperaria isso) de que o brasileiro só quereria narrativas que tivessem a ver com seu próprio cotidiano, e não teria o menor interesse por histórias sobre a Antiguidade ou a Idade Média – períodos históricos que nosso país não viveu – parece estar, felizmente, acabando.

E nessa "fase de transição", nada melhor que apostar no mais seguro: publicar primeiro as obras dos monstros sagrados do gênero, os que já tiveram seu desempenho testado e aprovado nas livrarias gringas. Um destes é o britânico Bernard Cornwell, autor de uma celebrada trilogia sobre o rei Artur e também desta "pentalogia" (essa palavra existe?) intitulada As Crônicas Saxônicas, da qual O Último Reino é o primeiro volume, sobre mais uma invasão nas Ilhas Britânicas: desta vez, a dos vikings.

Talvez meus leitores já saibam isso, mas a história dessas ilhas foi feita de invasões. Não há registro de quando seus primeiros habitantes chegaram lá (na verdade, nem sequer é conhecida a identidade exata desses primeiros habitantes), mas depois, onda sobre onda, vieram pictos, celtas, romanos, saxões, vikings e normandos. Cada povo subjugou (ou tentou subjugar) seus antecessores e controlou as ilhas à sua própria maneira enquanto pôde. Em seu tempo, o rei Artur, ou quem quer que tenha sido a figura histórica que deu origem à sua lenda, tentou defender a Bretanha de modo a preservar o modo de vida que então existia nela, oriundo da miscigenação das culturas celta e romana. Os invasores que ele teve que enfrentar eram diversas tribos germânicas que costumavam ser designadas, de forma genérica, pelo nome da mais poderosa e numerosa delas: os saxões, originários da região nordeste da atual Alemanha.

Esses bárbaros já cobiçavam as terras da Bretanha há muito tempo, mas, enquanto ela foi uma província do Império Romano, de um modo geral o poderio militar deste último a manteve a salvo. Quando, em 410, Roma oficialmente retirou-se da Bretanha, a oportunidade há tanto aguardada pelos saxões parecia finalmente ter chegado. O interessante é que, apesar disso, uma invasão em grande escala só foi acontecer cerca de um século depois!... O porquê desse fato não é claro, já que uma das consequências da saída dos romanos foi a interrupção de qualquer registro histórico confiável, mas é inevitável concluir que, para terem conseguido defender-se sozinhos por todo esse tempo, os bretões devem ter tido uma liderança forte, capaz de pacificar os conflitos internos e unir o país contra o inimigo comum. É aí que entra Artur, tenha ele sido um homem ou vários, que a lenda aglutinou numa única figura.

Seja como for, quem quer que Artur tenha sido, o que quer que ele tenha feito, o dia dos saxões tardou, mas chegou. Entre os séculos VI e VII, eles ocuparam toda a atual Inglaterra; como os romanos antes deles, os saxões pouparam a maior parte da Escócia e da Irlanda, por serem de acesso difícil e aparentemente não oferecerem recursos naturais ou terras férteis em quantidade suficiente para recompensar o esforço da conquista – motivo pelo qual, ainda hoje, grande parte das populações desses países continua a falar línguas de origem celta e a cultivar tradições culturais desse povo.

Ao chegarem à Bretanha, os saxões já encontraram grande parte da ilha cristianizada devido à influência romana – um fato que rapidamente trataram de "corrigir" a fio de espada. Em poucas décadas, o paganismo germânico predominava de modo absoluto na ilha, ainda que por pouco tempo: o esforço conjunto de monges irlandeses e de novos missionários enviados de Roma foi gradualmente fazendo com que os saxões fossem abraçando o cristianismo. De modo que é num país basicamente cristão, na segunda metade do século IX, que vive o herói de O Último Reino: Uhtred, filho de Uhtred, um ealdorman (chefe) saxão.


E é esse país que hordas de vikings invasores, a maioria oriundos da Dinamarca, estão atacando. Por muito tempo a costa inglesa, assim como a de boa parte da Europa, já havia sofrido com as incursões piratas desse povo do norte, que combinava um gosto selvagem pela luta e pela carnificina com uma paixão pelo desbravamento – e, durante os últimos tempos, uma necessidade premente de expansão, já que a pouca terra fértil disponível em seus países gelados e montanhosos já não era capaz de sustentar sua população em crescimento. A diferença é que desta vez os homens do norte não iriam contentar-se em encher seus navios com o produto da pilhagem e ir embora: vinham para ficar, para tomar a terra e transformá-la em colônia sua. Era o ciclo se repetindo mais uma vez: os saxões, outrora invasores temidos, eram agora os habitantes estabelecidos na Inglaterra (nome esse, aliás, que o país havia ganho recentemente: vem dos anglos, outra tribo germânica que a invadira ao lado dos saxões) e precisavam defender-se contra novos invasores, tão brutais e sanguinários quanto eles próprios já tinham tido a fama de serem. E, embora os saxões, ao tempo em que invadiram a Bretanha romana, tivessem também outra fama, a de hábeis marinheiros (tradição que se perdeu com o tempo), os vikings os superavam de longe nessa parte: o mar era praticamente a vida deles. Seu tipo característico de navio, o drakkar ('dragão') era uma pequena maravilha de engenharia náutica: menor que os navios de outros povos da época, extremamente ágil e manobrável, capaz de navegar para a frente ou para trás, tinha no fundo achatado seu principal segredo, pois graças a ele gozava de extrema estabilidade (leia-se: era quase impossível virar um drakkar) e podia navegar até mesmo em águas muito rasas, o que permitia aos vikings subir rios com facilidade e desembarcar direto do navio para terra firme, sem necessidade de botes.

Quando a cidade inglesa de Eoferwic (que os romanos haviam antes chamado de Eboracum, e hoje tem o nome de York) é sitiada e invadida pelos dinamarqueses, Uhtred, o pai, tomba durante a batalha, e Uhtred, o filho, então com cerca de dez anos de idade, cai prisioneiro dos invasores. Um dos chefes vikings, Ragnar, simpatiza com ele e toma-o sob seus cuidados. Uhtred, que nunca recebeu muita atenção de seu pai verdadeiro, e não é, por natureza, muito propenso a qualquer tipo de lealdade, rapidamente toma gosto pelo modo de vida viking, afeiçoa-se ao pai adotivo e aos novos amigos que faz. E, acompanhando os nórdicos, é testemunha ocular da queda de três dos quatro reinos ingleses diante deles: Nortúmbria, Mércia e Ânglia do Leste, todas se rendem, entregando seus campos para serem tomados, as cidades para serem pilhadas, e o povo para ser trucidado ou escravizado. Até que só resta um reino que ainda resiste à sanha dinamarquesa: Wessex, governado primeiro pelo rei Æthelred e depois por seu irmão mais novo, Ælfred – que passaria à História como Alfredo, o Grande.

A região de Wessex, embora não mais seja um reino, ainda hoje conserva o mesmo nome, uma contração de West Saxons – os Saxões do Oeste. Parecia muito improvável que Alfredo algum dia chegasse ao trono, já que era o mais novo de seis irmãos, mas isso acaba acontecendo, e não pouca gente considera o fato um desígnio de Deus – o Deus cristão, que Alfredo cultua e que os dinamarqueses desprezam porque Seus mandamentos estimulam a piedade e a compaixão, que, para eles, são sinônimo de fraqueza. O primeiro contato que Uhtred tem com Alfredo não o impressiona muito: o então jovem príncipe parece ser um pateta que vive cedendo às tentações da carne para logo em seguida choramingar arrependido do pecado. Entretanto, o desígnio de Deus, se foi um desígnio, mostra-se acertado, pois, ao longo dos anos seguintes à sua coroação, Alfredo prova ser um líder sagaz, provavelmente o único dentre os reis possíveis que realmente tinha condições de frustrar o plano dos vikings de transformar a Inglaterra numa grande Dinamarca. Por esse tempo, Uhtred, já um jovem guerreiro, perdeu o pai adotivo dinamarquês, assassinado por um rival também dinamarquês, e acalenta o plano de vingá-lo e de recuperar o antigo domínio de seu pai verdadeiro, na Nortúmbria, agora nas mãos de um tio usurpador. Como um passo nessa direção, acaba pondo-se a serviço de Alfredo na luta contra os dinamarqueses (realmente, lealdade não é o forte desse sujeito), o que, embora ele não saiba, é apenas o começo de uma longa saga na qual não faltarão intriga, aventura e batalhas sangrentas.

Bernard Cornwell escreve magnificamente! Não deve nada a um Conn Iggulden, a um Steven Pressfield ou mesmo a uma Mary Renault, figuras coroadas da ficção histórica de língua inglesa. As Crônicas Saxônicas caíram do céu para quem tem curiosidade sobre a formação da Inglaterra moderna, mas ficava intimidado com o volume da informação, com a dificuldade de separar o essencial do secundário nos textos de História tradicionais, e com o conhecimento prévio que eles muitas vezes pressupõem – para não falar na necessidade de saber inglês. Apresentar fatos históricos usando-os como pano de fundo para a trajetória de um ou mais personagens fictícios é uma fórmula antiga, mas sempre foi e continua sendo eficiente, desde que o autor tenha duas habilidades em grau alto: a de um bom forjador de narrativas e a de um pesquisador, além do condão de fundir as duas coisas de forma convincente. E Cornwell passa no teste em todos os quesitos. Não acho que eu vá escrever um post sobre cada volume das Crônicas como fiz com O Imperador de Iggulden, mas que elas mereceriam isso, não há dúvida. Também há pouca dúvida de que terei coisas a dizer sobre outras obras do autor num futuro não muito distante. Por ora, adianto que As Crônicas Saxônicas pode ser amplamente recomendado a todos os leitores que se interessam pela cultura viking, pela história da Inglaterra e pelo mundo medieval de forma geral.

sábado, dezembro 25, 2004

Rei Art(h)ur

Para inaugurar este diário literário, vou falar do livro que estou acabando de ler agora: Rei Artur, de Allan Massie. Embora a Ediouro venha já há algum tempo investindo massivamente em Massie (perdoem esse trocadilho horroroso; não deu para resistir), publicando em rápida sucessão vários de seus romances, este foi o primeiro livro do autor que cheguei a ler, apesar de sua série sobre imperadores romanos já me haver atraído a atenção durante visitas a livrarias. Pelo que eu soube, Rei Artur está vendendo muito bem, obrigado - e posso apostar que a maior parte desses exemplares estão sendo comprados por pessoas equivocadas, que pensam estar adquirindo o livro que deu origem ao recente filme de mesmo nome. Aliás, seria um caminho interessante a adotar nesta resenha tentar traçar um paralelo entre ambos, deixando claro, desde já, que um não tem qualquer relação com o outro: são apenas duas visões diferentes, e totalmente independentes, de uma mesma lenda, ou melhor, conjunto de lendas.

A saga do Rei Artur sempre foi um de meus ambientes lendários preferidos, talvez perdendo apenas para o ciclo da Guerra de Tróia. Um dos primeiros livros que lembro de ter lido na vida foi um volume de bolso intitulado Os Cavaleiros da Távola Redonda: acredito que era uma adaptação para o público juvenil de La Morte d’Arthur, de Sir Thomas Mallory. E uma coisa curiosa de se observar a respeito das lendas arturianas é o campo praticamente infinito que elas oferecem para variações, recriações, releituras.

Posso ilustrar isso com exemplos. Depois de ver o filme Tróia, saí do cinema com uma vontade incontrolável de torcer o pescoço do diretor. O motivo? Simplesmente que a Ilíada, na qual o filme pretende estar baseado, talvez tenha sido o livro que mais me marcou e emocionou até hoje, e que o que se viu na tela não foi uma "adaptação" dela, e sim uma grosseira deturpação. Só quem não conhece Homero pode ter gostado desse filme. Felizmente para os interesses comerciais de Hollywood, e infelizmente para a cultura da humanidade, quase todo mundo hoje em dia preenche esse requisito. Chega a me enfurecer pensar que, por causa desse filme, agora milhões de pessoas acreditam piamente que Heitor matou Menelau, que Aquiles morreu durante a tomada de Tróia, e que Agamenon era um rei covarde que morreu apunhalado por uma escrava!...

Mas vejam o que aconteceu quando fui ver Rei Arthur... Se Tróia tem pouco a ver com a Ilíada, esse outro filme não tem praticamente nada a ver com qualquer uma das (várias) versões da história de Artur que li desde que, ainda garoto, abri pela primeira vez aquele livrinho de bolso. E no entanto, e apesar de alguns furos que o filme tem, eu gostei!... Como é possível?

A explicação, na realidade, é bem simples. A história da Guerra de Tróia, apesar de, como quase todas as lendas, ter muitas variações, tem na Ilíada uma espécie de versão oficial. O poema não narra toda a guerra, na verdade focaliza apenas um curto período do décimo ano do cerco de Tróia, e não inclui o início nem o final do conflito; porém, os eventos desse período, somados a outros narrados em flashback na própria Ilíada e em seu poema-irmão, a Odisséia, compõem um painel, mesmo que fragmentário, da história da guerra, que poetas posteriores se encarregaram de completar e enriquecer; mas esse assunto posso desenvolver em outra ocasião.

O que pretendia dizer era que, embora nos detalhes haja variações para todos os gostos, naquilo que é principal a história da Guerra de Tróia tem em Homero e em seus sucessores um roteiro bem traçado, e que as pessoas que conhecem esses autores tendem a considerar suas obras como a "versão oficial" da lenda, e, por conseguinte, também tendem a se irritar com deturpações como as que citei acima. Já com a história de Artur, isso não acontece. Como existem tantas versões, e nenhuma delas é oficial, o autor que quiser recontar a lenda pode tomar liberdades sem ferir os brios de ninguém - desde que, é claro, saiba fazer isso atendo-se aos princípios mais óbvios do bom senso e do bom gosto, questões essas a respeito das quais tenho uma ou duas coisas a dizer ao Massie... Mas vou chegar lá no devido tempo.


Rei Arthur, o filme, tem como subtítulo "A verdadeira história por trás da lenda". Disse e repito que gostei do filme, mas esse slogan não passa de marketing. O máximo que se pode dizer é que esse filme possui mais embasamento histórico que produções anteriores, e, mesmo assim, mistura elementos de épocas diferentes. Geralmente se aceita que o personagem que deu origem à lenda de Artur (quem quer que tenha sido) deve ter vivido nos séculos V e/ou VI, logo depois da queda do Império Romano, e liderado os bretões romanizados na resistência contra os saxões e outros povos bárbaros que estavam se aproveitando do desaparecimento do poder romano para invadir as terras civilizadas. Mas uma teoria recente baseada em elementos arqueológicos leva as origens da lenda para o distante século II - a era de ouro do Império -, na pessoa de um certo Lucius Artorius Castus, herói romano que comandava cavaleiros sármatas - bárbaros das planícies da Rússia - recrutados para servir a Roma. O filme, como sabe quem o viu, mistura as duas idéias: resgata Artorius como o verdadeiro Artur, mas ambienta a história no século V mesmo. Nas legendas do filme, os cavaleiros são chamados de "sarmatians", como no original inglês, o que não é tão ruim: quando a gente não sabe traduzir uma palavra, o melhor é mesmo deixá-la como está. Seria bem pior se o tradutor tivesse decidido chamá-los de "samaritanos", como fez o autor de certo comentário que li sobre o filme. A mistura vai mais além: é óbvio que bárbaros russos não teriam nomes como Tristan, Gawaine, Galahad, e muito menos Lancelot; os nomes clássicos dos supostos cavaleiros de Artur foram mantidos apenas para permitir ao público estabelecer alguma relação entre a história contada no filme e as que eventualmente já conhecesse.

Os "furos" a que já me referi e que consegui identificar são coisas que apenas quem está ligado no aspecto histórico notaria. São os seguintes:
  • Primeiro, na seqüência inicial, Lancelot conta como foi que os cavaleiros sármatas vieram a entrar para o serviço de Roma, o que teria acontecido por volta do ano 300, mas os soldados romanos que aparecem usam nos escudos e estandartes o monograma de Cristo, formado pelas letras gregas khi (X) e (P), sobrepostas. No ano 300 o Império Romano ainda não era cristão.
  • Segundo, a ação propriamente dita do filme transcorre no ano 452. Na verdade, os romanos se retiraram oficialmente da Bretanha em 410. Isso não significou o fim da influência da cultura romana sobre a vida dos bretões, mas uma missão militar oficial ordenada por Roma já não teria como acontecer no país em 452.
  • Terceiro, os saxões vieram da região que corresponde hoje à Alemanha, de modo que invadiram a Bretanha pelo leste e sudeste, e não pelo norte, como aparece no filme. A região ao norte da Muralha de Adriano (a atual Escócia) era realmente controlada pelos pictos (chamados no filme de "woads"), de modo que os bretões estavam encurralados entre duas invasões potenciais. Isso ajuda a entender por que aqueles tempos eram tão desesperadores para quem os viveu.
  • Quarto, por que diabos uma família romana nobre viveria ao norte da Muralha, em pleno território inimigo?
Rei Artur, o livro, foi concebido por Allan Massie como o segundo volume de uma trilogia sobre a Idade Média, que começa com O Crepúsculo do Mundo. Não li esse, mas sei que se trata da história de um nobre romano, Marcos, que vive no século V e testemunha o desmoronamento do Império. O título, inegavelmente, é bem dado: as pessoas da época, ao verem ruir a única instituição que fora capaz de garantir aos povos do Ocidente algum nível de direito, ordem e civilização, devem ter tido a nítida sensação de que o mundo estava mesmo acabando. O personagem criado por Massie faz, ou tenta fazer, um contraponto ao cenário de decadência geral, recordando os tempos mais gloriosos da história romana: ele se diz descendente de Júlio César, e, através dele, de Enéias, o herói troiano que, de acordo com a lenda, teria sido o ancestral dos fundadores de Roma. Não sei quais são as peripécias pelas quais o tal Marcos passa em O Crepúsculo do Mundo, mas no começo de Rei Artur vamos encontrá-lo governando a Bretanha, tido e havido pelos bretões romanizados como verdadeiro imperador.

Antes de continuar, é preciso fazer duas observações. A primeira é que neste livro é importante distinguir "Britânia" de "Bretanha". Massie chama de Britânia a moderna Inglaterra, e de Bretanha a região do norte da França que em outras versões é conhecida como Bretanha Menor ou Bretanha Armoricana (a pátria de Sir Lancelot). Pessoalmente, sempre preferi a designação de Bretanha para a Inglaterra, mas, doravante, enquanto estiver escrevendo sobre o livro de Massie, utilizarei a terminologia dele. A outra observação é sobre uma particularidade da estrutura narrativa: Massie finge estar reproduzindo um manuscrito medieval, supostamente redigido no século XIII por um tal Michael Scott, um erudito escocês que teria sido professor do então adolescente Frederico de Hohenstaufen, neto de Frederico Barba-roxa e futuro imperador do Sacro Império Romano-Germânico. E Scott teria escrito essa narrativa sobre Artur para a diversão e ilustração de seu nobre discípulo.

Não vou resumir o roteiro do romance, para não estragar a diversão de quem quiser lê-lo, mas há alguns comentários que considero necessários. Primeiramente, senti-me incomodado pela insistência irritante com que Scott (Massie?) repete sem parar que aquela é a "verdadeira" história de Artur, pois um leitor desavisado e sem muito conhecimento é capaz de acreditar. A impressão que fica é de que o autor se esconde por trás de um narrador imaginário para poder fazer suas afirmações terminantes e categóricas sem ter que arcar com a responsabilidade por elas. Do ponto de vista histórico, há diversas incoerências e alguns absurdos: ao longo do livro fala-se várias vezes em milho - planta nativa das Américas, e que, portanto, era totalmente desconhecida pelos europeus, fosse nos tempos de Artur ou nos de Michael Scott. Em certo ponto, diz-se que a rainha Guinevere, entediada, "fazia as aias lhe lerem romances sobre cavaleiros errantes e damas a quem eles professavam devoção"; na realidade, essa espécie de romance de cavalaria só surgiria na Idade Média tardia, por volta dos séculos XIV e XV, quando a cavalaria em si já estava caindo em desuso. O cavaleiro Lancelot, que não existia nas versões mais antigas da lenda, deve ter sido criado por volta dessa época, quando as narrativas arturianas eram passadas adiante por trovadores franceses, que devem ter se ressentido com a índole excessivamente "britânica" da história e por isso decidiram introduzir um personagem que fosse francês como eles. Também a suposta traição de Artur por Guinevere e Lancelot foi inventada por esses mesmos trovadores, que acreditavam que amor era incompatível com casamento, de modo que amor verdadeiro só existiria no adultério (essa idéia é a base da temática do "amor cortês", que serviu de tema principal aos trovadores não só franceses, mas de quase toda a Europa, durante séculos; de qualquer forma, isso nada tem a ver com a lenda de Artur).

Resumindo: essa história "real" de Artur está repleta dos mesmos clichês medievais que recheiam quase todas as outras versões, e que nada têm de "reais", o que é bem curioso, já que, segundo o suposto Michael Scott, Artur seria neto daquele mesmo Marcos e teria como principal objetivo a reconstrução do Império Romano. Sendo assim, não seria preferível retratar o herói e sua época de uma maneira mais romana, o que, além disso, teria sido mais coerente com a realidade histórica por trás da lenda? Também é preciso destacar o gosto do autor por tramas ao estilo Teoria da Conspiração, o que ele demonstra neste romance criando uma história absurda na qual o papado da época teria conspirado para impedir que Artur obtivesse sucesso em seu plano imperial, e teria conseguido isso apoiando Mordred.

A origem de Mordred, aliás, é um ponto que muda um pouco neste romance. Massie fundiu em uma única personagem, que ele chama de Morgan, as duas meias-irmãs mais velhas de Artur: Morgana e Morgause (e antes que os leitores de As Brumas de Avalon me escrevam dizendo que Morgause era tia de Artur, esclareço que nas obras clássicas de Thomas Mallory e Chretién de Troyes, ela era realmente filha de Igraine e de Gorlois, duque da Cornualha, portanto irmã de Morgana e meia-irmã de Artur. Quem decidiu convertê-la em irmã de Igraine e tia de Morgana e Artur foi Marion Zimmer Bradley, autora de As Brumas..., usando de licença poética). Essa Morgan seria irmã de Artur por parte de pai, e não de mãe, como nas outras versões, e teria sido confiada por Merlin à guarda da superiora de um convento, de onde mais tarde o mesmo Merlin a tirou para entregá-la ao rei Lot de Orkney, com quem ela se casaria (tudo tramado por Merlin) e teria os filhos Gawaine, Agravaine e Gaheris - além de Mordred, nascido de uma relação incestuosa entre Morgan e Artur, que se encontram por acaso (será?) e sem saber que são irmãos.

Talvez a personagem cujas modificações de uma versão para outra são mais curiosas de observar e comparar seja a rainha Guinevere. Na maioria das versões ela é filha de Leodegranz, um rei bretão menor, vassalo e aliado de Artur; no filme recente, é uma guerreira picta, ou "woad"; e no livro de Massie, é uma princesa saxã (!), cujo pai, derrotado em combate por Artur, aceita uma aliança com ele e, para selar o acordo, dá-lhe a filha em casamento.

Enfim, Rei Artur de Allan Massie é uma versão toda modificada (até aí, nada de errado...), narrada com pedantismo, e que raramente chega a prender o leitor. De bom, tem a interessante descrição da organização da Távola Redonda e da estrutura de governo implantada por Artur na Britânia, e que, enquanto dura seu reinado, dá ao país um período de prosperidade comparável ao do tempo dos romanos. Além disso, o autor, talvez sem querer, proporciona aos leitores um pouco mais instruídos uma oportunidade de refletir sobre o valor da cultura e da erudição, valor esse tão menosprezado no mundo moderno, onde o único tipo de conhecimento considerado importante é o conhecimento técnico. A grande maioria das pessoas jamais chegará a compreender por que é importante conhecer a história dos povos antigos e as obras dos grandes autores da literatura universal, nem saberá o prazer todo especial que há, por exemplo, em ler sobre Artur dizendo a Gawaine que "a arte de governar consiste em impor o costume da paz, poupar os conquistados e subjugar os orgulhosos", e saber que ele está citando Virgílio. E isso, permitam-me dizer, é lamentável. A supervalorização da técnica em detrimento do conhecimento humanístico é sem dúvida a grande responsável pelo empobrecimento cultural que hoje atinge a maior parte da humanidade, incluindo as pessoas que têm estudo, mas simplesmente não conseguem entender qual o sentido de gastar tempo lendo coisas que não têm relação com sua profissão - ou, em bom português, coisas que não servem para ganhar dinheiro.