segunda-feira, setembro 20, 2021

Capa, Espada e Lacração

Já fui leitor assíduo e inclusive assinante da revista Aventuras na História, que várias vezes me forneceu informações úteis aqui para o blog – pelo menos uma vez, aliás, ela foi a fonte mais importante. Parei de acompanhar ao sentir em suas matérias uma tendência cada vez maior para o politicamente correto, o que, coincidência ou não, começou a acontecer por volta de 2014, quando a revista foi vendida pela editora Abril, que a publicava até então, para a editora Caras (sim, a da revista de fofocas), que, por sua vez, é vinculada ao UOL, que só não ostenta o título de "portal oficial da lacração" porque a concorrência é feroz. Mesmo assim, e pelo menos até a época em que parei de ler a revista, eu, apesar de ter notado que as interpretações eram, por vezes, enviesadas, ainda confiava, em linhas gerais, nas informações concretas ali fornecidas, até março do ano passado, quando… Bem, é melhor começar pelo começo.

Acho que isso acontece com todos vocês: ao abrir o aplicativo do Google no meu celular para fazer uma busca qualquer, o referido aplicativo me apresenta uma série de notícias, matérias, anúncios etc., que seu algoritmo presume, baseado no meu histórico de buscas, que poderão ser do meu interesse. Como minhas buscas muitas vezes envolvem personalidades ou eventos históricos, é frequente que o app me recomende matérias do site da Aventuras na História, ou apenas AH, como ela se intitula agora. Em março de 2020, dizia eu, ao abrir mais uma vez o tal do Google, me deparei com uma dessas matérias, artigos, ou como quer que eles chamem, assim intitulada: Livro de receitas de 3500 anos indica que os antigos romanos inventaram o hambúrguer. Era evidente, ao menos para mim, que "algo errado não estava certo": como poderia um livro de 3500 anos indicar fosse o que fosse relacionado a Roma, cidade que não existiria ainda por mais de sete séculos, já que a data tradicional de sua fundação é em 753 a.C.?… Mandei um e-mail para a revista apontando o erro e recebi em resposta uma mensagem curta agradecendo pelo aviso (não consigo deixar de achar inacreditável que alguém que escreve para uma revista especializada em História precise que um leitor lhe "avise" sobre a data da fundação de Roma) e dizendo que a notícia já tinha sido "atualizada". Uma busca no site depois dessa resposta mostrou que a tal "atualização" consistiu na discreta remoção da notícia em causa. E foi isso.

Aí, na semana passada, ao abrir o Google, achei a chamada para outra notícia na AH, assinada por Isabela Barreiros e intitulada da seguinte forma: Embranquecido e reconhecido apenas no século 21: a saga de Alexandre Dumas. E o subtítulo: O autor de Os Três Mosqueteiros se inspirou na vida do pai para escrever clássicos da literatura. Os problemas já começam aí: como alguém que só foi reconhecido no século XXI – ou seja, em algum momento durante os últimos 21 anos – pode ter obras que já são consideradas clássicos? Um livro só começa a ser chamado de clássico depois de ter suas qualidades amplamente reconhecidas tanto pelo público quanto, pelo menos, por uma expressiva parcela da comunidade acadêmica, e depois que sua influência já pode ser sentida nas obras de autores mais jovens. Isso tudo demora, no mínimo, uma geração, e normalmente mais. Portanto, não há como Dumas ter primeiro se tornado clássico para só depois ser "reconhecido"; trata-se de uma impossibilidade lógica. Se você afirma que Dumas só foi reconhecido no século XXI, está dizendo, por implicação, que suas obras ficaram no ostracismo durante os séculos XIX (época do autor, que viveu de 1802 a 1870) e XX, o que definitivamente não é o caso: Os Três Mosqueteiros, cuja primeira edição é de 1844, foi um sucesso estrondoso e imediato, fazendo do autor um homem rico, e continuou a ser um sucesso durante todo o tempo transcorrido de lá para cá, tornando-se, entre outras coisas, um dos livros com maior número de adaptações para o cinema e a TV. Quem foi criança durante os anos 1980 talvez se lembre até do desenho animado que, no Brasil, era chamado D'Artagnan e os Três Mosqueteiros, uma coprodução Espanha/Japão, na qual os personagens de Dumas eram representados por simpáticos cachorros e outros animais (o título original era D'Artacán y los Tres Mosqueperros, um trocadilho com as palavras cán e perro, ambas significando cão em castelhano). Todo mundo já ouviu a frase "um por todos e todos por um", e tem sido assim há quase 200 anos, então como é possível dizer que Alexandre Dumas só foi "reconhecido" recentemente?

Continuando a ler o texto, os absurdos prosseguem, ao mesmo tempo em que a intenção por trás vai-se fazendo clara (se é que dizer que alguma coisa é "clara" também já não é considerado racismo). Cito:

Em 2002, o então presidente da França, Jacques Chirac, foi responsável por um projeto que exumou os restos mortais de Alexandre Dumas da cidade de Villers-Cotterets, onde ele nasceu em 24 de julho de 1802, e os enterrou novamente no Panteão, mausoléu do Estado francês. O autor das obras clássicas da literatura Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte-Cristo, entre inúmeras outras, foi colocado em uma cripta ao lado de outros romancistas tão importantes quanto ele, como Victor Hugo, e outras figuras históricas francesas notáveis, como Voltaire. Foi apenas naquele ano que o escritor recebeu o reconhecimento máximo de seu país natal. Durante a cerimônia que colocou Dumas onde ele sempre deveria ter estado, Chirac reconheceu o motivo que levou a importante figura a não ter sido originalmente enterrada ali: o racismo.

Aí a autora já começa a revelar a intenção lacratória por trás da matéria. A seguir diz que, embora Dumas "fosse negro", ele "foi representado inúmeras vezes como um homem branco; algo que já aconteceu e continua acontecendo com figuras históricas negras". Não me deterei no fato de a autora evidentemente não saber o que significa "inúmeras". A informação de que o pai do escritor, Thomas-Alexandre Dumas (cujo nome de batismo era Thomas-Alexandre Davy de La Pailleterie), nasceu no Haiti, então colônia francesa, e era filho de um marquês francês com uma escrava negra é interessante e, para mim, nova, assim como o fato de ele ter-se tornado um proeminente general no exército da França e tido uma vida cheia de aventuras, o que forneceu parte da inspiração para as histórias que seu filho viria a escrever. Agora, dizer que Dumas era negro soa como uma óbvia tentativa de vitimizá-lo, e, pelo pouco que sei sobre sua personalidade, ele não teria ficado nada contente de ser retratado dessa forma (e antes que alguém levante alguma bandeira, com "dessa forma" quero dizer como vítima, não como negro). Primeiramente, se uma das avós do escritor era negra, isso significa que ele seria, no máximo, um mulato claro. Não estou afirmando que até mesmo isso não fosse motivo frequente de discriminação contra alguém que viveu na França do século XIX, mas é interessante observar como esse pessoal "progressista" escolhe cuidadosamente o viés através do qual irá mostrar os fatos. Dumas era o que hoje chamaríamos de "pardo" – e, como alguns comentaristas da internet já observaram com sagacidade ao abordarem situações parecidas, esse tipo étnico é muito "versátil", podendo ser apresentado como negro ou como branco, conforme a conveniência de quem fala ou escreve. Como era para pintar Dumas como um grande escritor injustamente menosprezado, o texto fala dele como sendo negro; se, ao invés disso, o objetivo da matéria fosse contar sobre suas safadezas, na certa seria considerado branco. Enfim, é o "pardo de Schrödinger".

(E sim, Dumas foi um escritor maravilhoso e também um safado de primeira ordem: casado com a atriz Ida Ferrier-Dumas, os casos extraconjugais faziam parte de sua rotina. Teve vários filhos, dos quais o único a ficar famoso foi o também escritor Alexandre Dumas Filho, autor do célebre romance e peça teatral A Dama das Camélias. E esse era filho de uma de suas amantes, não da esposa.)

Poucos anos depois da morte de Dumas Pai, seu amigo, o escultor Albert-Ernest Carrier-Belleuse, convenceu a municipalidade de Villers-Cotterêts a homenageá-lo com um monumento, que ele próprio esculpiu e foi inaugurado em 1884, na praça central da cidade, bem em frente à prefeitura, onde está até hoje. Há outra estátua de Dumas em Paris, também de fins do século XIX. Se isso não puder ser considerado reconhecimento, então que diabos "reconhecimento" significa, afinal de contas?

Como curiosidade, o general Thomas-Alexandre Dumas, cuja pele era certamente mais escura que a do filho, também tinha uma estátua em sua homenagem; os nazistas a derrubaram durante a ocupação de Paris (1940-44), junto com estátuas de vários outros heróis de guerra, porque achavam que a contemplação das imagens desses homens poderia incitar orgulho patriótico nos franceses.

Não pela primeira e certamente nem pela última vez, vejo-me diante de um exemplo da veracidade daquele provérbio gramatical que sei que já citei por aqui: "Mais importante que o verbo é o advérbio", o que significa que o modo como se faz alguma coisa é mais importante (ou, ao menos, mais revelador) que a coisa em si que está sendo feita. A transferência dos restos mortais de Dumas é um fato curioso, que os fãs do escritor, sem dúvida, teriam gostado de conhecer, mas a atitude da AH de, em vez de simplesmente informar, meter no meio um libelo "antirracista", parece coisa de quem quer ficar bem na foto com o público politicamente correto – sem contar que tal libelo é totalmente desnecessário, já que a cor da pele de Dumas não o impediu de ser um dos escritores mais amados e mais lidos de todos os tempos, dentro e fora da França, tendo inclusive colhido em vida os frutos materiais de seu trabalho, um privilégio que muitos escritores não tiveram. Estou ciente de que, na visão binária e pouco inteligente da militância "progressista", o simples fato de eu estar questionando isso já faria de mim um racista – o que seria, no mínimo, uma idiotice de minha parte, já que, como Dumas, tenho ancestrais negros, além de portugueses, espanhóis e índios, e isso é só a parte que eu sei (espero não estar chocando ninguém com a revelação de que nem todo gaúcho é loiro de olhos azuis). Com uma árvore genealógica dessas, quem me sobra pra discriminar? Os orientais? Opa, também não: estou namorando uma há anos. Porém, não consigo ter expectativas muito boas quanto aos rumos que a sociedade atual vai tomando à medida que a imprensa em geral vai deixando para trás o ideal de apresentar os fatos de forma objetiva, com o mínimo possível de filtros ideológicos – coisa que, no passado, já foi considerada questão de honra para jornais e revistas. Hoje, a ideologia parece estar em tudo, e, cada vez mais, parece que difundi-la é mais importante que informar.