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sábado, fevereiro 12, 2011

O Imperador - Os Deuses da Guerra

E eis, finalmente, a conclusão da grandiosa série O Imperador! Mais uma vez, Conn Iggulden tomou certas liberdades em prol de seus objetivos literários, o que não tira o valor de sua obra como uma maneira envolvente e agradável de adquirir conhecimento histórico: bastará uma consulta a qualquer biografia resumida de Júlio César para que um leitor de habilidade mediana consiga acertar as coisas e ficar com uma noção muito boa de como foi a vida de um dos homens mais extraordinários que já pisaram neste planeta.

César, à frente de cinco legiões que o idolatram, acaba de transformar a rica e rebelde Gália na mais nova província romana, quando recebe a notícia de que o velho Crasso, que costumava ser o fiel da balança no delicado equilíbrio de poder entre ele e Pompeu, acaba de morrer. Pompeu, algum tempo antes, foi investido pelo Senado com o poder de ditador, a fim de que pudesse combater o crime organizado e salvar Roma do caos que ameaçava tragá-la - o que, é preciso reconhecer, fez com muita competência. Só que, passado o perigo, recusou-se a largar o osso, e é ainda na qualidade de ditador que ele envia a César a ordem de deixar suas legiões na Gália e retornar a Roma sozinho. E César, é claro, sabe que fazer isso significaria morte certa, de modo que decide desafiar a autoridade de Pompeu e marchar para o sul com a maior parte de seu exército, deixando na Gália apenas um número suficiente de homens para que a paz seja mantida. Há um episódio que Iggulden não narra, mas é um dos mais famosos da trajetória de César: ao chegar às margens do riacho conhecido como Rubicão, e ciente de que atravessá-lo levando o exército será considerado por Pompeu como um ato de guerra civil, César atravessou, declarando: "Alea jacta est" ('A sorte está lançada').

Guerra civil. Eis uma coisa que vai contra tudo o que fez Roma grande. Os gregos poderiam ter-se antecipado aos romanos e se tornado os senhores de um império que dominaria o mundo conhecido durante séculos (Alexandre, ao morrer, deixou tudo pronto para isso), se não fosse pelo fato de gostarem tanto de lutar uns contra os outros e por sua incapacidade de se unirem em torno de objetivos comuns. Os romanos levaram a melhor justamente porque se mostraram capazes disso - e, com o tempo, também estenderiam o mesmo sentimento aos não-romanos, fazendo de vários outros povos parte tão vital do Império quanto eles próprios. César sabia muito bem da primeira parte, e provavelmente era um dos poucos homens de sua época que também anteviam a segunda, e mesmo assim encarou a guerra civil; pode tê-lo feito por ambição pessoal ou por acreditar sinceramente que podia dar a Roma um futuro que Pompeu não podia, mas o mais provável é que tenha sido por um misto das duas coisas. De todo modo, voltando ao livro, ele marcha sobre Roma com suas legiões; Pompeu, inferiorizado em número de homens, foge para a Grécia, acompanhado pela maioria dos senadores, e assume o comando das legiões lá estacionadas, o que o coloca em vantagem numérica. Feito isso, espera pelo ataque de César, que, sem a menor dúvida, virá.

César toma posse de Roma sem derramar uma gota de sangue - o povo o recebe alegremente e o elege cônsul pela segunda vez, além de eleger um novo Senado, o que automaticamente coloca fora da lei a ditadura de Pompeu: para a maioria do povo da capital, César é seu governante legítimo. Mas ocorre algo desagradável: quando César indica Marco Antônio para o segundo posto de cônsul (eram sempre dois), Brutus fica indignado, considerando que Júlio deveria partilhar o poder com ele. Na verdade, como César explica a Marco Antônio (um tanto tarde demais: deveria ter explicado a Brutus, antes de fazer a indicação), não se trata de chutar ninguém para escanteio, mas simplesmente de distribuir as funções de acordo com os talentos de cada um. Marco Antônio é o homem certo para governar Roma enquanto César vai à Grécia haver-se com Pompeu - e Brutus, como o general formidável que é, será uma peça essencial para alcançar a vitória. Ou melhor, seria.

Brutus, cansado de dedicar a vida a serviço de um líder que ele acha que nunca vai reconhecer seu verdadeiro valor, decide ir para a Grécia e colocar-se sob as ordens de Pompeu - mas, naturalmente, é recebido com desconfiança, pois todos conhecem sua fama e sabem que sempre foi um dos partidários mais leais de César; por tudo o que Pompeu e seu lugar-tenente, Labieno, sabem, poderia ser um espião. E aqui está mais uma liberdade do autor: Brutus torna-se amante de Júlia, filha de César e esposa de Pompeu, que está na Grécia com ele, já tem um filho crescido e acaba engravidando do segundo - que pode muito bem ser de Brutus. Na verdade, nessa época Pompeu já estava casado com outra mulher, pois Júlia morreu no parto do primeiro filho, quando César ainda estava na Gália. É mera licença artística e, de certa forma, justiça poética, como se Brutus tivesse pensado: "Júlio 'pegou' minha mãe, então por que não posso 'pegar' a filha dele?"

O quanto Brutus era estimado por César fica evidente no fato de que sua deserção para o lado de Pompeu é histórica, como também o é o perdão oferecido por seu antigo comandante. Certo, César deu anistia a todos os que lutaram contra ele na guerra civil, mas uma coisa é perdoar soldados que estavam do outro lado desde o início, cumprindo seu dever para com seu comandante legítimo, e outra bem diferente perdoar um traidor. Nas legiões, a pena para a traição sempre foi a morte, e César não era o tipo de homem que tivesse por costume abrir exceções para favorecer amigos. O autor desenha a personalidade de Brutus de uma maneira bastante complexa e, pode-se dizer, humana, e, como tal, cheia de contradições. Ele é essencialmente um homem decente, mas não consegue esconder de si mesmo que as motivações que o levam a participar do assassinato de seu velho amigo não são somente patrióticas: ao zelo pela manutenção da República soma-se, sim, uma boa dose de inveja.

Iggulden vai empilhando gradualmente os motivos que levariam à vitória final de César na guerra civil, apesar de estar enfrentando um general quase tão astuto quanto ele próprio, mais velho e experiente, e com a vantagem dos números (Pompeu comandava onze legiões, cerca de 55 mil soldados, contra as sete de César, 35 mil; praticamente dois terços de todo o exército romano estavam envolvidos). O que acaba ditando o resultado parece ser o fato de que, enquanto Pompeu hesita, César toma decisões rápidas. Também pesa o uso ardiloso da propaganda: muitos dos legionários sob o comando de Pompeu são de opinião que César é mesmo o legítimo governante de Roma e de que Pompeu deveria submeter-se a ele. Deserções ocorrem e são punidas com brutalidade exemplar, o que vai minando mais e mais a confiança e a lealdade dos soldados de Pompeu, já insatisfeitos por estarem lutando contra compatriotas.

A guerra civil tem seu lance final quando, derrotado em Farsália (outras fontes dão Farsalos), Pompeu foge para o litoral, de onde embarca para o Egito - e é ao partir em sua perseguição que César, sem saber, está rumando para a última grande aventura de sua vida, aquela sobre a qual mais livros foram escritos e mais filmes rodados. Talvez tenha sido justamente por isso que Conn Iggulden optou por narrar essa parte da história de uma maneira tão resumida: fiquei surpreso ao perceber que já lera dois terços do livro sem que César houvesse posto os pés no Egito ainda. E dou-lhe razão: a vida de César foi de tal modo intensa e atarefada, que, a menos que o autor quisesse chegar a um quinto e, quiçá, a um sexto volume, era necessário ser enxuto em alguma parte. Melhor que fosse essa parte, já que não faltam opções a quem quiser conhecê-la em mais detalhes: basta ler uma biografia de Cleópatra - existem várias, algumas delas muito boas. Pela mesma razão, embora eu mesmo pudesse tecer diversos comentários sobre a relação do grande general e cônsul romano com a jovem rainha do Egito - relação que foi um retrato fiel do papel que suas respectivas civilizações representavam no mundo da época -, prefiro deixar isso para outra ocasião, pois trata-se de tema que merece mais do que umas poucas palavras. Em vez disso, meus dedos estavam coçando para escrever sobre as consequências dramáticas da traição de Brutus (o que já fiz) e sobre o perfil de Otaviano. Vamos a isso...

Como citei de passagem no comentário de A Morte dos Reis, Iggulden optou por criar uma proximidade maior entre Júlio César e Otaviano - que, aliás, só passaria a ser chamado assim depois de sua adoção por César: seu nome original era Caio Otávio Turino; com a adoção, passou a chamar-se Caio Júlio César Otaviano, ou seja, o nome igual ao do pai adotivo, acrescido do "Otaviano" para distinguir os dois e lembrar que, por nascimento, ele pertencera à família dos Otávios. Porém, por comodidade, continuarei a chamá-lo de Otaviano.

Historicamente, Otaviano era neto de uma das irmãs mais velhas de César, nasceu em 63 a.C., quando o próprio César estava com cerca de 37 anos de idade e começava a ficar famoso, e estava na adolescência - um jovem extremamente inteligente e promissor - quando o tio-avô, não tendo (até então) tido nenhum filho homem, decidiu adotá-lo. Estava com 18 anos quando César foi assassinado, empenhou-se ferozmente em caçar e punir seus assassinos, e foi um dos principais personagens no cenário político dos anos seguintes, acabando, em 27 a.C., por sagrar-se imperador, com o nome de César Augusto. Aliás, foi o primeiro imperador de Roma.

Conn Iggulden quis que Otaviano fosse um dos companheiros de César durante seus longos anos de campanhas militares, e, para tanto, começou por alterar o grau de parentesco e a diferença de idade: o sobrinho-neto transformou-se em um primo apenas alguns anos mais jovem. Além disso, o perfil do personagem também mudou: na série, Otaviano é um perfeito guerreiro romano, um espadachim excepcional, treinado por Rênio e Brutus. Comanda uma legião e, a partir da deserção de Brutus, também se torna o líder dos extraordinarii, a cavalaria de César. O verdadeiro Otaviano não era guerreiro de forma alguma: apenas tangenciou o serviço militar e talvez nunca tenha participado diretamente de uma batalha - eis um ponto em que não puxou a seu destemido tio-avô, que nunca deixou de lutar ao lado de seus soldados. O que não quer dizer que fosse um covarde: como diz Cômodo no filme Gladiador, existem diferentes formas de coragem. E de passagem, é sempre bom lembrar que Otaviano não se notabilizou entre os imperadores apenas por ter sido o primeiro: esteve entre os quatro ou cinco melhores durante os 500 anos nos quais Roma teve imperadores.

Tive a impressão de que os últimos dias de César foram narrados de uma maneira simplificada, como se o autor não quisesse se estender muito mais - o que é compreensível, ao fim de uma história de mais de 1600 páginas. Depois de ajudar Cleópatra a tomar o poder, César vive um caso de amor com ela; tudo indica que ela o tenha seduzido por interesse, mas depois acabado apaixonada de verdade. É Cleópatra quem dá a César o único filho homem que ele terá. É histórico que César levou-a a Roma ao voltar, talvez pretendendo divorciar-se de sua esposa, Calpúrnia, e oficializar o enlace, o que uniria os dois impérios, mas não viveu o suficiente para isso. O episódio em que Marco Antônio tenta colocar uma coroa na cabeça de César aparece aqui de modo muito diferente do que eu conhecia, e as motivações por trás dele, muito diferentes das que eu imaginava. Na narrativa de Iggulden, o próprio César pede a Antônio que venha com a coroa no momento de seu triunfo, e tira-a da cabeça desapontado quando percebe que o povo não gostou nem um pouco da ideia (sempre a velha prevenção contra reis e realezas, passada de pai para filho entre os romanos desde os tempos do domínio etrusco). Sempre acreditei, e ainda acho mais provável, que a ideia tivesse sido de Marco Antônio e outros, e que César houvesse se recusado a ser coroado justamente porque sabia que isso criaria antipatia entre a população e daria munição a seus opositores, que já adoravam compará-lo aos antigos e tirânicos reis etruscos, derrubados pela rebelião que instaurou a República.

Quanto ao assassinato, esse narra-se em poucas páginas, chegando a parecer estranho que seja uma passagem tão breve a pôr fim a uma história tão longa, o que imagino que esteja certo: quem ouviu a notícia deve ter experimentado uma sensação de absurdo. Como podia um homem que fizera tantas coisas grandiosas, durante tanto tempo, desaparecer assim, de uma hora para outra? Quando generais romanos eram homenageados com triunfos, um sacerdote os acompanhava na carruagem que os levava, com a tarefa de dizer-lhe a intervalos regulares: "Lembra-te de que és mortal". César foi lembrado desse fato da maneira mais implacável possível: apesar de tudo o que fora e fizera, não podia haver dúvida de que continuava a ser mortal, pois não escapou à ação do caos inerente que rege a existência humana - depois de sobreviver a tantas batalhas, foi morto por pessoas em quem confiava, num lugar que deveria ser seguro.

Sei que já disse ou dei a entender isso várias vezes durante os últimos meses, mas não é possível concluir sem dizê-lo de novo: O Imperador é uma grande e maravilhosa série, que recomendo sem restrições a quem, como eu, ama o mundo antigo greco-romano, ou simplesmente gosta de biografias bem escritas... além de não se intimidar com leituras extensas! Conn Iggulden finaliza a nota histórica deste último volume dizendo que "nos próximos anos posso ter de escrever uma história do que ocorreu depois do assassinato". E sem dúvida deveria fazê-lo: a vida de César deu início a um grande ciclo, que sua morte não encerrou. Personagens como Otaviano, Brutus, Marco Antônio, Cleópatra e muitos outros ainda realizariam muitos feitos dignos de serem narrados e teriam papéis fundamentais no nascimento do mais duradouro e influente império que o mundo ocidental já viu.

sábado, janeiro 22, 2011

O Imperador - Campo de Espadas

O terceiro volume da série O Imperador começa na Espanha, para onde Júlio César foi mandado após sua participação na campanha contra Espártaco, no final de A Morte dos Reis. O cônsul Pompeu o designou para esse posto justamente para tentar evitar que o jovem general, cuja extraordinária inteligência e coragem estavam se tornando notórias, ganhasse excessiva popularidade entre os habitantes de Roma, o que poderia acabar por catapultá-lo para uma arrasadora carreira política - e Pompeu viveria o suficiente para constatar que seus temores não eram infundados. Aliás, a natureza da relação entre Pompeu e César parece ser outra liberdade tomada por Conn Iggulden: segundo ele, os dois tratam-se com respeito mútuo, mas também com muita desconfiança, enquanto mais de uma fonte histórica afirma que eram verdadeiramente amigos, apesar das disputas políticas que acabariam por colocá-los em lados opostos de uma guerra civil. Sem esquecer que Pompeu, viúvo e de meia-idade, casou-se com a filha adolescente de César, que morreria de parto enquanto o pai ainda estava envolvido com a campanha na Gália.

De qualquer forma, já que teve que ir para a Espanha, Júlio faz do limão uma limonada e aproveita os quatro anos seguintes nas ensolaradas planícies desse país para aprender inúmeras coisas, treinar uma magnífica força montada, com os inigualáveis cavalos locais, para servir de apoio a sua nova legião, a Décima - sucessora da lendária Primogênita de seu tio Mário - e, como é um sujeito prático, também para amealhar uma considerável fortuna mediante a exploração das minas de ouro ibéricas. Tal riqueza, a rigor, pertence à República, mas vem a servir para tornar possíveis diversos projetos de César que, ao fim de tudo, visam o bem de Roma... De certa maneira. Ao seu lado estão todos os seus companheiros fiéis: seu primo adolescente, Otaviano; Brutus, o amigo de infância; Rênio, o mestre da espada; Cabera, o curandeiro; e Domício, um centurião da Décima. Mais importante que tudo, César mostra-se um governante consciente e visionário, que já sonha com o dia em que os povos conquistados cooperarão com Roma não por medo, mas por convicção.

Inesperadamente, Servília, a mãe de Brutus, aparece do nada, com algumas de suas "meninas" e o projeto de abrir em Valência uma filial de seu luxuoso lupanar em Roma, aproveitando o fato de que seu filho é um dos principais oficiais da legião local, o que garantirá que o estabelecimento possa operar em segurança (ela não é nada tola). O que não estava em seus planos era acabar envolvendo-se com Júlio, que, tendo ficado viúvo muito jovem e vivendo há anos numa espécie de celibato, acaba não resistindo aos encantos dela, apesar de ter a idade de seu filho - é bom lembrar que o autor tomou certas liberdades, como detalhei em minha resenha do primeiro volume, Os Portões de Roma: César e Servília realmente foram amantes, mas provavelmente sob condições bem diferentes.

Sabendo que, se ficasse na Espanha até o fim dos cinco anos designados, Pompeu simplesmente acharia outro fim de mundo para onde mandá-lo, César, numa das decisões ousadas que eram típicas dele, decide retornar a Roma um ano antes do previsto, mesmo arriscando uma severa punição. E ao retornar, com seus amigos, sua legião e a riqueza que juntou, candidata-se ao cargo de cônsul. Enquanto prepara sua campanha, acontece a tentativa de golpe de Estado capitaneada pelo senador Lúcio Sérgio Catilina (a célebre "Conjuração de Catilina"), que César ajuda a frustrar, utilizando a Décima e seus novos cavaleiros, que, após o longo treinamento na Espanha, mostram-se uma perfeita máquina de guerra - a descrição da batalha é magistral!

Eventualmente, César se elege cônsul, junto com um senador de nome Bíbilo, um perfeito banana, que só se candidatou por insistência de seu amigo, o antigo vizinho e desafeto de César, Suetônio (nada a ver com o famoso historiador: Iggulden apenas precisava de um nome romano para esse personagem fictício e, aparentemente, usou o primeiro que lhe ocorreu). Depois de garantir que Bíbilo não será um problema, César firma um acordo com Pompeu e Crasso, que, tendo deixado o cargo de cônsules, retornam a suas cadeiras no Senado: está fundado o Primeiro Triunvirato. Deixando seus dois aliados para cuidar da cidade, Júlio, já empossado como cônsul, parte para a Gália à frente de um exército, para sujeitar esse vasto e rico país bárbaro ao domínio romano.

E a narração da campanha gaulesa é uma das melhores coisas de toda a série. César sempre confiou na disciplina e na superioridade tática de suas legiões, que costumavam ser determinantes ao enfrentar inimigos geralmente pouco organizados, mas agora está diante dos gauleses, que, além de muito corajosos e fortes, não são totalmente ignorantes da arte da guerra, combatendo com um certo planejamento e, de acordo com Iggulden, adotando uma formação de combate semelhante à falange grega (que, se não tinha a mesma agilidade e capacidade de manobra da legião romana, ainda assim estava longe de ser um adversário desprezível), sem falar na enorme superioridade numérica. César explora com inteligência as rivalidades que separam as diferentes tribos gaulesas, conquistando a colaboração de algumas e enfrentando outras em batalha - e o maior empecilho que encontra pela frente é um certo Cingeto, filho do rei da tribo dos arvernos, que aparece no livro ainda como um jovem de cabeça quente que não vê com bons olhos a presença romana em seu país, e, mesmo não sendo o filho mais velho, acaba sucedendo ao pai, quando então tem seu nome mudado para Vercingetórix (o sufixo -rix acrescentado ao nome significa rei; não há como não notar que é quase igual ao latim rex, o que é apenas um entre os inúmeros indícios que apontam a provável origem comum de latinos e celtas). O gênio impetuoso não impede Cingeto de ser astuto o bastante para compreender que as divisões entre seu povo favorecem os conquistadores, e trabalha para unir as tribos contra o inimigo comum.


É em Campo de Espadas que o fiel Brutus, amigo mais antigo de Júlio, começa a questionar a própria lealdade ao ver a megalomania que parece ter-se apossado de seu chefe: Júlio parece obcecado por colocar seu nome na História ao lado do de Alexandre, levando suas legiões a terras cujos habitantes nunca ouviram falar de Roma (e a verdade é que, como conquistador, César superaria Alexandre, pois este, embora tenha conquistado uma extensão maior de terras, não foi capaz de impor aos povos dominados a marca de sua cultura: seu vasto império se desfez em poucas décadas após sua morte. Já César conquistou países que pertenceriam ao Império Romano durante séculos e mostram até hoje a influência romana em suas línguas, cultura e sociedade). Porém, para Brutus, que o conhece desde que eram meninos, o que parece é que César pensa apenas em engrandecer o próprio nome, forjar a própria lenda. Ao mesmo tempo, a amizade que parecia inabalável é sacudida por mágoas pessoais, principalmente o fato de Brutus nunca ter aceitado de fato a relação amorosa entre seu amigo e sua mãe, e a confiança que César passa a depositar em Marco Antônio, a quem conhece na Gália, o que leva Brutus a sentir-se posto de lado.

A fim de não alongar demais uma história já tão grande, o autor optou por não narrar a primeira e fracassada expedição de César à Bretanha - há um corte e ele já aparece dando início à segunda, a que seria bem-sucedida. Apenas as recordações de Júlio revelam alguns dos detalhes da primeira tentativa: esperando encontrar pouca resistência, ele invadiu a grande ilha sem levar sua cavalaria, que seria muito difícil de transportar. O mau tempo fez sua parte, tornando o desembarque dramático, e a isso vieram somar-se os ataques dos guerreiros bretões, usando uma arma que, embora já fosse considerada ultrapassada na época, provou ainda ser capaz de fazer sérios estragos: carruagens de guerra. A bordo delas, os nativos alvejavam os legionários com flechas e dardos e depois fugiam antes que eles pudessem chegar perto o suficiente para revidar, o que acabou por minar-lhes completamente o moral e forçou César a ordenar a retirada depois de apenas 16 dias. No ano seguinte, aproveitando as lições aprendidas, retornou e submeteu os bretões. Mesmo assim, essa invasão é um claro exemplo de uma campanha com fins "publicitários", já que demonstrou-se impossível para Roma, naquele momento, manter uma verdadeira estrutura de ocupação na Bretanha, e César sem dúvida sabia que assim seria. No fundo, o real objetivo dessas duas expedições era punir os bretões por haverem apoiado os gauleses contra Roma, além de impressionar estes últimos e desencorajá-los de resistir ao domínio romano, e também colher para o próprio César uma glória pessoal que mais tarde o favorecesse em suas ambições políticas. Mais uma coisa a pesar nos desgostos de Brutus para com seu amigo e comandante. Para constar, registro que a Bretanha só seria verdadeiramente conquistada sob o imperador Cláudio, cerca de um século depois.

É no retorno da Bretanha que César enfrenta a já citada rebelião de Vercingetórix, que chega a colher uma importante vitória na cidade de Gergóvia, que resiste ao ataque dos romanos, mas acaba derrotado na decisiva batalha de Alésia, apesar de ter conseguido pôr em campo tantos guerreiros de diferentes tribos, que se calculou que os romanos sob o comando de César estavam inferiorizados à razão de cinco para um, o que não impediu que vencessem mesmo assim (tudo isso é histórico). Esse golpe definitivo, que põe a Gália de joelhos de uma vez por todas e a converte de fato numa província romana, torna César tão grande que, a partir daí, a guerra civil passa a ser inevitável, pois Pompeu, agora ditador, vê nele uma força capaz de se equiparar à sua.

Campo de Espadas é uma continuação mais do que digna para a série O Imperador, uma teia fascinante de intriga, poder, superação, coragem, lealdade e traição. Mesmo com as adaptações feitas em prol do objetivo literário, ainda dá ao leitor uma compreensão muito precisa de como foi a edificação do Império Romano, uma das civilizações mais impressionantes e sem dúvida a mais influente de toda a História no mundo ocidental. E cria uma grande expectativa sobre Os Deuses da Guerra, parte final da série.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

O Imperador - A Morte dos Reis

Terminei de ler o segundo volume da série O Imperador e continuo sem saber o que o título A Morte dos Reis tem a ver com seu enredo. O primeiro, vá lá, chamava-se Os Portões de Roma porque foi nele que Júlio César entrou na cidade pela primeira vez. Agora, A Morte dos Reis?... Roma só teve quatro reis "legítimos": seu fundador Rômulo, Numa Pompílio, Tulo Hostílio e Anco Márcio, e isso foi nos séculos VIII e VII a.C.; depois, caiu sob domínio etrusco e passou a ser governada por reis provenientes desse povo, o último dos quais, Tarquínio, o Soberbo, foi derrubado em 509 a.C. Por causa do tempo vivido sob domínio estrangeiro, os romanos haviam criado uma antipatia instintiva por reis e realezas em geral, que, aos seus olhos, tinham-se tornado sinônimo de tirania; de modo que, por ocasião da queda de Tarquínio, juraram que nunca mais seriam governados por rei algum: estava fundada a República. Mais de quatro séculos antes de Júlio César nascer, como se vê.

Durante esse tempo, a República havia tentado conciliar os interesses dos diferentes setores da sociedade romana - o que, embora nunca tivesse sido fácil, era com certeza menos difícil enquanto Roma foi uma pequena nação de agricultores-guerreiros, tornando-se cada vez mais complicado à medida em que ela crescia em população, poder e riqueza. Na época em que se ambienta esta história, o sistema encontrava-se enfraquecido por disputas de poder, pelo tráfico de influências e pela corrupção - mas, mesmo assim, ainda conseguia assegurar aos romanos viver numa sociedade mais justa que 90% dos outros povos da época. Ou, pelo menos, mais próxima de ser justa.

"Sabe o que significa a palavra 'república'? (…) Poucos dos meus colegas senadores parecem entender. Vivemos uma ideia, um sistema de governo que permite a todos terem voz, até mesmo o homem comum. Percebe como isso é raro? Cada outro pequeno país que eu conheço tem um rei ou um chefe governando. Ele dá terras aos amigos e tira dinheiro dos que se desentendem com ele. É como ter uma criança à solta com uma espada. Em Roma temos o governo da lei. Ainda não é perfeito, e nem mesmo justo como eu gostaria, mas tenta ser, e é a isso que dedico minha vida. Vale minha vida; e a sua também, quando chegar a hora." Essas palavras, na verdade, estão no primeiro volume da série, e são ditas pelo senador Caio Júlio César ao filho ainda pequeno; coloco-as aqui porque é em A Morte dos Reis que tem início, propriamente, a complicada relação entre o Júlio César mais jovem e a República romana, instituição que ele começou servindo, mas à qual acabaria pondo um fim.

Os Portões de Roma termina com a tomada da capital por Cornélio Sila, arquirrival do tio e mentor de César, Mário. Este último é assassinado e todos os que o apoiavam são obrigados a fugir para evitar a vingança de Sila. O meio que o jovem Júlio encontra para escapar é alistando-se para dois anos de serviço militar no mar. É nessa situação que vamos encontrá-lo no início deste segundo volume, servindo a bordo de uma galera, com o posto de tesserário - um oficial de baixa patente, auxiliar de um centurião. Começa a destacar-se por sua coragem e capacidade de liderança por ocasião da tomada da fortaleza de Mitilene, numa ilha grega que se havia rebelado contra o domínio romano, mas mostra seu verdadeiro calibre mais tarde, quando a galera é afundada por piratas e os poucos sobreviventes são aprisionados à espera de resgate. Durante os duros e intermináveis meses de cativeiro, sua força de vontade e seu dom para inspirar coragem aos companheiros são reconhecidos por quase todos - inclusive o capitão Gadítico, antigo comandante da galera, que acaba cedendo o comando ao jovem. Quando o resgate finalmente chega, o escasso punhado de agora esquálidos e maltrapilhos oficiais navais é por fim libertado numa praia do norte da África, próximo de um povoado romano de onde, com alguma sorte, poderão tomar um navio para casa. Só que, ao invés de fazer isso, César decide tomar nas próprias mãos a tarefa de punir os piratas, tanto para restaurar seu orgulho abalado quanto para tentar reaver os vultosos resgates pagos pelas cabeças de todos eles e que, na maioria dos casos, deixaram suas famílias à beira da miséria. Para tanto, ele e seus companheiros começam a percorrer os povoados romanos da região, recrutando jovens que são na maioria filhos de legionários reformados, treinando-os por conta própria e equipando-os da melhor maneira possível.

Por mais disparatado que pareça o plano de César, de caçar um navio pirata entre as centenas que infestam o Mediterrâneo naqueles dias (sem esquecer que achar os piratas é a parte fácil, pois, uma vez isso feito, ainda será preciso derrotá-los), o fato é que consegue levá-lo a bom termo, e nem mesmo ele imagina que essa ainda está longe de ser a maior proeza que realizará durante esse tempo de exílio. Ao aportar na Grécia, César fica sabendo de duas coisas. Uma é boa: Sila morreu, de modo que, em teoria, ele poderia voltar a Roma; a outra, nem tanto: o rei grego Mitrídates do Ponto, que certa vez já se levantara contra Roma, sendo subjugado por Sila, está encabeçando uma nova e sangrenta rebelião que já custou as vidas de centenas de cidadãos romanos. Enquanto, em Roma, os senadores discutem interminavelmente e não conseguem determinar um curso de ação por causa de suas rivalidades e picuinhas, César e seus companheiros mais uma vez encaram o desafio. Juntando os jovens recrutados na África com algumas centenas de idosos soldados veteranos, que eles mesmos reconvocam pelas cidades gregas, formam uma curiosíssima unidade onde novatos e anciãos combatem lado a lado (essa reconvocação, por falar nisso, é verossímil: os veteranos das legiões, ao retornarem à vida civil, recebiam terras ou uma quantia em dinheiro suficiente para iniciar um negócio, e juravam apresentar-se novamente a qualquer momento, caso Roma necessitasse deles). Com cerca de mil homens - um quinto do efetivo normal de uma legião -, valendo-se de táticas de guerrilha, César enfrenta o exército de Mitrídates, dez vezes maior (para saber mais detalhes e qual o desfecho da campanha, leiam o livro - hehehe).

Um dos pontos mais fascinantes (pelo menos para mim) deste segundo volume da série, é a descrição fluente e convincente da vida nas legiões, que chega a permitir até mesmo a quem jamais vestiu uma farda (como eu, por exemplo) ter um vislumbre das coisas que um soldado deve sentir e viver - e de modo especial, não qualquer soldado, e sim os das incríveis legiões romanas, de longe o melhor exército que já existiu. A carreira de um legionário típico eram 20 longos anos de disciplina férrea, treinamento intenso, trabalho exaustivo, desconforto, risco de vida e, não raro, privações - e no entanto, os que se reformavam sentiam saudades da vida na caserna e diziam a todos que aqueles tinham sido os melhores anos de suas vidas. Talvez fosse porque a legião acabava tornando-se uma espécie de família para seus integrantes - e, para os romanos, família tinha real importância -, devido ao tipo sui generis de camaradagem que só enfrentar a morte lado a lado cria entre as pessoas. Ou por causa do sentimento de orgulho e poder que vinha de fazer parte de um exército cuja disciplina e habilidade, conquistadas mediante anos de treinamento duro, não podia ser igualada por nenhum outro exército do presente ou do passado - e, embora eles não pudessem sabê-lo, nem o seria no futuro. Devia ser uma coisa extraordinária sentir-se parte de uma unidade de combate acostumada a enfrentar inimigos duas, três vezes mais numerosos, no próprio território deles - e vencer.

A Morte dos Reis abrange um período de vários anos, e durante grande parte desse tempo César e seu melhor amigo, Brutus, permanecem separados: enquanto o primeiro está às voltas com os piratas e com a revolta de Mitrídates, o outro acaba de concluir um período de serviço militar na Macedônia e Grécia, e, tendo alcançado o posto de centurião, retorna a Roma, onde finalmente conhece sua mãe, Servília - que, na versão de Conn Iggulden, é uma prostituta de luxo; na verdade, quando o filho a encontra, ela praticamente já deixou de exercer a profissão, limitando-se agora a administrar um dos bordéis mais suntuosos de Roma, frequentado por muitos dos homens mais notáveis e poderosos da cidade, incluindo vários senadores. Graças à natureza de suas atividades, Servília tem mais e melhores contatos nas altas rodas de poder do que muitos de seus clientes, e é graças a ela que Brutus obtém do Senado permissão para reconstituir a Primogênita, a antiga legião de Mário, que foi praticamente exterminada quando Sila tomou o poder: como sua simples existência poderia suscitar a rebeldia dos cidadãos que eram leais a Mário, os poucos sobreviventes haviam sido obrigados a abandonar a vida militar, e o nome da legião fora removido das listas oficiais. Brutus, com a ajuda de seu antigo mestre Rênio, e contando com o apoio dos senadores Pompeu e Crasso, conquistados para sua causa por Servília, trata de reunir esses sobreviventes e de começar a recrutar novos soldados, prevendo que, quando Júlio voltar a Roma, precisará de uma força que lhe seja leal.

Outros personagens históricos vão pipocando na narrativa, adaptados aos objetivos ficcionais de Iggulden. Por exemplo, quem assistiu à série Roma terá dificuldade em reconhecer Atia (pronuncie Ácia), lá uma dama ambiciosa da alta sociedade, aqui uma mulher pobre mas orgulhosa, que não esqueceu suas origens nobres e trabalha duro para sustentar-se e ao filho, Otaviano. Os graus de parentesco foram mudados para que Otaviano ficasse mais próximo de César: historicamente, Atia era sobrinha de César, filha de uma irmã mais velha dele, e, portanto, Otaviano era seu sobrinho-neto; neste livro, Otaviano transforma-se em primo de Júlio, com a diferença de idade entre os dois enormemente reduzida. Mesmo assim, é engraçado ler sobre as peripécias do moleque magricela e de cara suja que vagabundeia pelos mercados de Roma praticando pequenos furtos - para desespero da mãe - e pensar que esse mesmo moleque será um dia o primeiro imperador (o próprio Júlio César nunca foi imperador, embora, na prática, tenha tido o poder de um).

O último feito de César e Brutus (novamente reunidos) neste volume, é sua participação na repressão à rebelião de Espártaco, que sobressai entre as muitas revoltas de escravos registradas na história romana, principalmente por suas dimensões, que foram tais que alguns historiadores referem-se ao episódio como a "Guerra Servil". O exército sob o comando de Espártaco chegou a ter 80 mil homens - o dobro do efetivo somado das oito legiões enviadas para enfrentá-lo -, sem contar mulheres, crianças e outros não-combatentes, e não era formado apenas por escravos fugidos ou libertados das propriedades invadidas, mas também por camponeses livres, descontentes com sua vida de trabalho duro e poucos ganhos, e por bandidos comuns, atraídos pela oportunidade de saquear o que encontrassem pelo caminho. Pior que o tamanho do exército era o fato de Espártaco já ter sido um legionário, de modo que conhecia o estilo de luta e as estratégias dos que agora enfrentava. É fato histórico (e está no romance) que faltou muito pouco para que alcançasse Roma e a arrasasse. Já a participação de César no combate ao exército rebelde não tem evidências documentais que a comprovem, embora seja muito possível, já que é sabido que ele era, na época, um jovem oficial nas legiões. A descrição que Iggulden faz das marchas exaustivas e das batalhas desesperadas dessa campanha é um dos (muitos) pontos fortes deste segundo livro.

A Morte dos Reis, independentemente de não casar muito bem com seu título, não frustra em momento algum as altas expectativas criadas por quem leu Os Portões de Roma. Prosa marcante, personagens vivos, sequências de ação de tirar o fôlego, descrições poderosas que evidenciam por parte do autor um sólido e vasto conhecimento sobre a civilização romana - está tudo aqui. Até o momento, não estou nem um pouco cansado da série, de modo que pretendo passar imediatamente ao terceiro volume. Me aguardem...

domingo, novembro 14, 2010

O Imperador - Os Portões de Roma

"- Os vitoriosos sempre serão odiados. É o preço que pagamos. Se eles o amarem, vão fazer o que você quer, mas quando quiserem. Se o temerem, farão sua vontade quando você quiser. Então, é melhor ser amado ou temido?
- Os dois - disse Caio, sério."

* * *

Existem figuras históricas para todos os gostos, e qualquer uma que tenha sido efetivamente importante é sempre alvo de polêmica. O mesmo homem pode ser considerado por alguns como um estadista brilhante e patriótico, e por outros um tirano desprezível; uns podem vê-lo como um herói destemido, outros como um carniceiro vulgar. Isso é particularmente verdadeiro quando se trata de alguém que já em vida era amado e odiado com intensidades quase iguais, e ainda mais quando, amando-o ou odiando-o, é impossível negar sua importância. Concluo que, resumindo tudo o que disse até aqui, talvez a nenhum outro personagem histórico esses fatos se apliquem tão bem quanto a Caio Júlio César.

Nascido por volta de 100 a.C., numa família da pequena nobreza romana, não havia diferença entre ele e centenas de jovens oriundos de outras famílias com a mesma projeção. Alguns de seus biógrafos registram que não teve irmãos, apenas irmãs muito mais velhas - o que, por significar que deve ter sido o último filho de seus pais, e o único do sexo masculino, pode, em parte, explicar a obsessão por grandes feitos que o acompanharia por toda a vida: é provável que se sentisse responsável por glorificar o nome da família. Isso, pelo menos, pode ter sido o impulso inicial, que o levou a enamorar-se da fama e do poder em si mesmos - e de fato, Júlio César, o jovem de origem modesta, viria a alcançar um poder que nenhum romano antes dele tivera, e que bem poucos depois teriam.

Por ser uma figura tão ímpar, César não é fácil de biografar. Muitas tentativas já foram feitas, sendo que aquela que continua a ser a mais célebre foi ainda na Antiguidade - trata-se de Alexandre e César, do grego Plutarco (século II d.C.), que, como o título já deixa óbvio, compara as vidas dos dois maiores generais surgidos até então. Ressalve-se que César era um admirador devotado de Alexandre, que o precedeu em dois séculos e meio, e não se considerava tão genial quanto ele em matéria militar, embora se achasse (e, sem dúvida, fosse) mais habilidoso quando o assunto era a política. O que direi agora é basicamente uma impressão pessoal de alguém que desde a infância leu compulsivamente sobre ambos os personagens e sonhou com suas glórias, mas parece-me que, enquanto Alexandre era um idealista, César era predominantemente um homem prático - o que não significa que não tivesse seu lado sonhador, sem o qual ninguém jamais consegue realizar grandes coisas. De qualquer forma, a idade de cada um deve ter tido seu peso nesse ponto: Alexandre realizou seus maiores feitos com vinte e poucos anos e morreu antes de completar 33; César, por sua vez, não foi nenhum menino-prodígio: só começou a se notabilizar quando já tinha 37, 38 anos, e viveu até seus maduros 56.

Ufa... Depois dessa longa introdução (não tenho culpa se o assunto me empolga...), acho que já é tempo de começar a falar do livro - na verdade, livros - em si. A série O Imperador, escrita pelo inglês Conn Iggulden, é uma leitura absolutamente deliciosa. Para quem possui um conhecimento ao menos básico da história e cultura romanas, ela flui com facilidade e se torna rapidamente um ato febril. Iggulden soube modelar seu herói incluindo todos os traços de personalidade que o homem de carne e osso indubitavelmente teve, e mais alguns que é bem possível que tenha tido, o que resulta num personagem literário (frise-se a distinção entre isso e o personagem histórico) fascinante. É preciso ter em mente que trata-se de uma obra de ficção, para a qual a História serviu apenas de inspiração: ao final de cada volume, o autor incluiu uma nota onde detalha quais foram as liberdades que tomou em prol de seu objetivo de entretenimento. A principal dessas liberdades - e que resulta num dos aspectos mais cativantes da história (sem H maiúsculo) - refere-se à relação entre César e Brutus. Acho que convém dedicar um parágrafo a isso, pegando o assunto pelo início.

Todo mundo sabe que Brutus foi um dos assassinos de César - o problema é que isso é a única coisa que a maioria das pessoas sabe sobre ele. Algumas fontes dão, erroneamente, que ele era filho adotivo do ditador; oficialmente, os dois não tinham qualquer parentesco, fosse sanguíneo ou legal. Oficialmente, eu disse. O que havia era que César manteve um caso de muitos anos com Servília, que vinha a ser a mãe de Brutus, de modo que algumas pessoas acreditavam que este último, embora assumido como filho pelo marido de Servília, tivesse, na verdade, César como pai natural. E, como naquele tempo não havia teste de DNA, a dúvida nunca pôde ser tirada a limpo... De todo modo, César teve algumas atitudes paternais para com Brutus, interessando-se por sua educação e depois pelo encaminhamento de sua carreira. Brutus serviu no exército sob as ordens de César, e, mais tarde, iniciou-se na política sob os seus auspícios. César, portanto, o considerava seu amigo e aliado, o que justifica a surpresa desiludida com que o reconheceu entre seus assassinos, soltando então a frase célebre: "Et tu, Brute?" ('Até tu, Brutus?') O caráter de Brutus é assunto polêmico: os amigos de César, sedentos por vingança, o rotularam como um traidor desprezível e ingrato, movido pela ambição; outros o viam como um patriota corajoso, defensor irredutível da República, que, embora com dor no coração, teria concluído que César precisava morrer justamente porque havia se tornado um ditador, uma ameaça aos ideais republicanos. Esse último ponto de vista é adotado por Shakespeare em sua peça Júlio César, onde, depois de consumado o crime, Brutus declara: "Não é que eu não amasse César, mas meu amor por Roma é bem maior".

Como se vê, portanto, Brutus era muito mais jovem que César, já que podia mesmo ser seu filho. Essa é a primeira e maior liberdade tomada por Iggulden na série de que estamos falando: seus César e Brutus (aliás, Caio e Marco, como chamam informalmente um ao outro quando garotos) têm a mesma idade e são criados juntos na pequena fazenda do pai de Caio, nos arredores de Roma, desenvolvendo entre si uma amizade sólida e fraterna. Não fica claro como foi que Marco veio a ficar sob a tutela do pai de Caio - este apenas diz, vagamente, que prometeu ao pai do menino, quando este estava morrendo, tomar conta dele. Durante poucos anos inocentes, nos intervalos entre uma e outra aula com seus tutores, Marco e Caio fazem todas as travessuras a que têm direito - mas, a partir dos dez anos, começam a ser treinados pelo implacável Rênio, por sinal outra figura fascinante, um velho legionário reformado e ex-gladiador, considerado um dos maiores lutadores de Roma, que faz muito mais do que ensiná-los a manejar o gládio - a mortífera espada curta com a qual as legiões romanas puseram de joelhos inúmeros exércitos bárbaros que empunhavam armas bem mais impressionantes: endurece-os por meio de um treinamento ainda mais rígido que o imposto aos legionários, além de calculadamente fazer com que o odeiem, o que quase termina em desastre numa das passagens mais dramáticas do primeiro volume, Os Portões de Roma. Como resultado, Caio e Marco convertem-se em dois jovens rijos, espertos e perigosos, capazes de enfrentar o destino grandioso e cheio de riscos que os espera.

Os dois amigos se veem subitamente jogados no mundo adulto quando estão com 14 para 15 anos: uma grande rebelião de escravos estoura em Roma, e não poupa as propriedades rurais das redondezas. A fazenda é atacada por uma multidão de escravos em fúria e, na mesma noite em que os dois jovens têm seu batismo de sangue, sua primeira batalha, o pai de Caio tomba lutando. O jovem César é obrigado a tomar a frente dos negócios da família e assumir a responsabilidade por sua mãe, que, se já era desequilibrada, enlouquece de uma vez após perder o marido. Caio vai então a Roma procurar por seu tio Mário - general e cônsul, personagem histórico real e extremamente importante: entre outras coisas, Mário reformulou a organização interna das legiões e aboliu a exigência que existia até então, de se possuir terras para se alistar nelas. Com isso, cada legionário passou a poder viver de seu soldo, o que, na prática, fez da carreira militar uma profissão propriamente dita. Isso viria a fazer uma diferença enorme na história futura de Roma, não só no aspecto militar, mas também no social.

Com Mário, Caio começa a aprender sobre a intrincada e por vezes traiçoeira estrutura política da capital, conhecimento que lhe será essencial para que possa ocupar o lugar do pai no Senado e honrar a tradição da família. Porém, ele chega num momento crítico, exatamente quando seu poderoso tio e o rival deste, o outro cônsul, Cornélio Sila, estão no meio de uma dificílima queda-de-braço pelo poder supremo em Roma. Enquanto Marco, que, embora sem berço, impressionou Mário por sua coragem e capacidade, recebe deste uma carta de recomendação e parte para começar sua carreira militar na Macedônia, Caio permanece junto do tio, aprendendo a ser um membro da nobilitas, conhecendo as forças e as fraquezas de Roma e dos romanos, a lei e os costumes, as artes da guerra e da política, e, principalmente, aprendendo sobre a natureza humana - tudo o que mais tarde faria dele um dos homens mais famosos e admirados que já viveram.

Costumo dizer que o problema em ler séries de livros é que, se você tenta ler todos de uma enfiada só, acaba cansando, e, por outro lado, se lê um, deixa passar algum tempo, lê outras coisas, para só então pegar o próximo volume, acaba esquecendo detalhes importantes e fica meio perdido. Desta vez vou correr o risco e experimentar ler a coisa toda de uma vez - e, pela primeira vez, tentarei comentar todos os volumes de uma série, pois acho que esta merece o esforço - e a diversão. Espero que as resenhas fiquem à altura dos livros em si! Desejem-me sorte.

sábado, dezembro 25, 2004

Rei Art(h)ur

Para inaugurar este diário literário, vou falar do livro que estou acabando de ler agora: Rei Artur, de Allan Massie. Embora a Ediouro venha já há algum tempo investindo massivamente em Massie (perdoem esse trocadilho horroroso; não deu para resistir), publicando em rápida sucessão vários de seus romances, este foi o primeiro livro do autor que cheguei a ler, apesar de sua série sobre imperadores romanos já me haver atraído a atenção durante visitas a livrarias. Pelo que eu soube, Rei Artur está vendendo muito bem, obrigado - e posso apostar que a maior parte desses exemplares estão sendo comprados por pessoas equivocadas, que pensam estar adquirindo o livro que deu origem ao recente filme de mesmo nome. Aliás, seria um caminho interessante a adotar nesta resenha tentar traçar um paralelo entre ambos, deixando claro, desde já, que um não tem qualquer relação com o outro: são apenas duas visões diferentes, e totalmente independentes, de uma mesma lenda, ou melhor, conjunto de lendas.

A saga do Rei Artur sempre foi um de meus ambientes lendários preferidos, talvez perdendo apenas para o ciclo da Guerra de Tróia. Um dos primeiros livros que lembro de ter lido na vida foi um volume de bolso intitulado Os Cavaleiros da Távola Redonda: acredito que era uma adaptação para o público juvenil de La Morte d’Arthur, de Sir Thomas Mallory. E uma coisa curiosa de se observar a respeito das lendas arturianas é o campo praticamente infinito que elas oferecem para variações, recriações, releituras.

Posso ilustrar isso com exemplos. Depois de ver o filme Tróia, saí do cinema com uma vontade incontrolável de torcer o pescoço do diretor. O motivo? Simplesmente que a Ilíada, na qual o filme pretende estar baseado, talvez tenha sido o livro que mais me marcou e emocionou até hoje, e que o que se viu na tela não foi uma "adaptação" dela, e sim uma grosseira deturpação. Só quem não conhece Homero pode ter gostado desse filme. Felizmente para os interesses comerciais de Hollywood, e infelizmente para a cultura da humanidade, quase todo mundo hoje em dia preenche esse requisito. Chega a me enfurecer pensar que, por causa desse filme, agora milhões de pessoas acreditam piamente que Heitor matou Menelau, que Aquiles morreu durante a tomada de Tróia, e que Agamenon era um rei covarde que morreu apunhalado por uma escrava!...

Mas vejam o que aconteceu quando fui ver Rei Arthur... Se Tróia tem pouco a ver com a Ilíada, esse outro filme não tem praticamente nada a ver com qualquer uma das (várias) versões da história de Artur que li desde que, ainda garoto, abri pela primeira vez aquele livrinho de bolso. E no entanto, e apesar de alguns furos que o filme tem, eu gostei!... Como é possível?

A explicação, na realidade, é bem simples. A história da Guerra de Tróia, apesar de, como quase todas as lendas, ter muitas variações, tem na Ilíada uma espécie de versão oficial. O poema não narra toda a guerra, na verdade focaliza apenas um curto período do décimo ano do cerco de Tróia, e não inclui o início nem o final do conflito; porém, os eventos desse período, somados a outros narrados em flashback na própria Ilíada e em seu poema-irmão, a Odisséia, compõem um painel, mesmo que fragmentário, da história da guerra, que poetas posteriores se encarregaram de completar e enriquecer; mas esse assunto posso desenvolver em outra ocasião.

O que pretendia dizer era que, embora nos detalhes haja variações para todos os gostos, naquilo que é principal a história da Guerra de Tróia tem em Homero e em seus sucessores um roteiro bem traçado, e que as pessoas que conhecem esses autores tendem a considerar suas obras como a "versão oficial" da lenda, e, por conseguinte, também tendem a se irritar com deturpações como as que citei acima. Já com a história de Artur, isso não acontece. Como existem tantas versões, e nenhuma delas é oficial, o autor que quiser recontar a lenda pode tomar liberdades sem ferir os brios de ninguém - desde que, é claro, saiba fazer isso atendo-se aos princípios mais óbvios do bom senso e do bom gosto, questões essas a respeito das quais tenho uma ou duas coisas a dizer ao Massie... Mas vou chegar lá no devido tempo.


Rei Arthur, o filme, tem como subtítulo "A verdadeira história por trás da lenda". Disse e repito que gostei do filme, mas esse slogan não passa de marketing. O máximo que se pode dizer é que esse filme possui mais embasamento histórico que produções anteriores, e, mesmo assim, mistura elementos de épocas diferentes. Geralmente se aceita que o personagem que deu origem à lenda de Artur (quem quer que tenha sido) deve ter vivido nos séculos V e/ou VI, logo depois da queda do Império Romano, e liderado os bretões romanizados na resistência contra os saxões e outros povos bárbaros que estavam se aproveitando do desaparecimento do poder romano para invadir as terras civilizadas. Mas uma teoria recente baseada em elementos arqueológicos leva as origens da lenda para o distante século II - a era de ouro do Império -, na pessoa de um certo Lucius Artorius Castus, herói romano que comandava cavaleiros sármatas - bárbaros das planícies da Rússia - recrutados para servir a Roma. O filme, como sabe quem o viu, mistura as duas idéias: resgata Artorius como o verdadeiro Artur, mas ambienta a história no século V mesmo. Nas legendas do filme, os cavaleiros são chamados de "sarmatians", como no original inglês, o que não é tão ruim: quando a gente não sabe traduzir uma palavra, o melhor é mesmo deixá-la como está. Seria bem pior se o tradutor tivesse decidido chamá-los de "samaritanos", como fez o autor de certo comentário que li sobre o filme. A mistura vai mais além: é óbvio que bárbaros russos não teriam nomes como Tristan, Gawaine, Galahad, e muito menos Lancelot; os nomes clássicos dos supostos cavaleiros de Artur foram mantidos apenas para permitir ao público estabelecer alguma relação entre a história contada no filme e as que eventualmente já conhecesse.

Os "furos" a que já me referi e que consegui identificar são coisas que apenas quem está ligado no aspecto histórico notaria. São os seguintes:
  • Primeiro, na seqüência inicial, Lancelot conta como foi que os cavaleiros sármatas vieram a entrar para o serviço de Roma, o que teria acontecido por volta do ano 300, mas os soldados romanos que aparecem usam nos escudos e estandartes o monograma de Cristo, formado pelas letras gregas khi (X) e (P), sobrepostas. No ano 300 o Império Romano ainda não era cristão.
  • Segundo, a ação propriamente dita do filme transcorre no ano 452. Na verdade, os romanos se retiraram oficialmente da Bretanha em 410. Isso não significou o fim da influência da cultura romana sobre a vida dos bretões, mas uma missão militar oficial ordenada por Roma já não teria como acontecer no país em 452.
  • Terceiro, os saxões vieram da região que corresponde hoje à Alemanha, de modo que invadiram a Bretanha pelo leste e sudeste, e não pelo norte, como aparece no filme. A região ao norte da Muralha de Adriano (a atual Escócia) era realmente controlada pelos pictos (chamados no filme de "woads"), de modo que os bretões estavam encurralados entre duas invasões potenciais. Isso ajuda a entender por que aqueles tempos eram tão desesperadores para quem os viveu.
  • Quarto, por que diabos uma família romana nobre viveria ao norte da Muralha, em pleno território inimigo?
Rei Artur, o livro, foi concebido por Allan Massie como o segundo volume de uma trilogia sobre a Idade Média, que começa com O Crepúsculo do Mundo. Não li esse, mas sei que se trata da história de um nobre romano, Marcos, que vive no século V e testemunha o desmoronamento do Império. O título, inegavelmente, é bem dado: as pessoas da época, ao verem ruir a única instituição que fora capaz de garantir aos povos do Ocidente algum nível de direito, ordem e civilização, devem ter tido a nítida sensação de que o mundo estava mesmo acabando. O personagem criado por Massie faz, ou tenta fazer, um contraponto ao cenário de decadência geral, recordando os tempos mais gloriosos da história romana: ele se diz descendente de Júlio César, e, através dele, de Enéias, o herói troiano que, de acordo com a lenda, teria sido o ancestral dos fundadores de Roma. Não sei quais são as peripécias pelas quais o tal Marcos passa em O Crepúsculo do Mundo, mas no começo de Rei Artur vamos encontrá-lo governando a Bretanha, tido e havido pelos bretões romanizados como verdadeiro imperador.

Antes de continuar, é preciso fazer duas observações. A primeira é que neste livro é importante distinguir "Britânia" de "Bretanha". Massie chama de Britânia a moderna Inglaterra, e de Bretanha a região do norte da França que em outras versões é conhecida como Bretanha Menor ou Bretanha Armoricana (a pátria de Sir Lancelot). Pessoalmente, sempre preferi a designação de Bretanha para a Inglaterra, mas, doravante, enquanto estiver escrevendo sobre o livro de Massie, utilizarei a terminologia dele. A outra observação é sobre uma particularidade da estrutura narrativa: Massie finge estar reproduzindo um manuscrito medieval, supostamente redigido no século XIII por um tal Michael Scott, um erudito escocês que teria sido professor do então adolescente Frederico de Hohenstaufen, neto de Frederico Barba-roxa e futuro imperador do Sacro Império Romano-Germânico. E Scott teria escrito essa narrativa sobre Artur para a diversão e ilustração de seu nobre discípulo.

Não vou resumir o roteiro do romance, para não estragar a diversão de quem quiser lê-lo, mas há alguns comentários que considero necessários. Primeiramente, senti-me incomodado pela insistência irritante com que Scott (Massie?) repete sem parar que aquela é a "verdadeira" história de Artur, pois um leitor desavisado e sem muito conhecimento é capaz de acreditar. A impressão que fica é de que o autor se esconde por trás de um narrador imaginário para poder fazer suas afirmações terminantes e categóricas sem ter que arcar com a responsabilidade por elas. Do ponto de vista histórico, há diversas incoerências e alguns absurdos: ao longo do livro fala-se várias vezes em milho - planta nativa das Américas, e que, portanto, era totalmente desconhecida pelos europeus, fosse nos tempos de Artur ou nos de Michael Scott. Em certo ponto, diz-se que a rainha Guinevere, entediada, "fazia as aias lhe lerem romances sobre cavaleiros errantes e damas a quem eles professavam devoção"; na realidade, essa espécie de romance de cavalaria só surgiria na Idade Média tardia, por volta dos séculos XIV e XV, quando a cavalaria em si já estava caindo em desuso. O cavaleiro Lancelot, que não existia nas versões mais antigas da lenda, deve ter sido criado por volta dessa época, quando as narrativas arturianas eram passadas adiante por trovadores franceses, que devem ter se ressentido com a índole excessivamente "britânica" da história e por isso decidiram introduzir um personagem que fosse francês como eles. Também a suposta traição de Artur por Guinevere e Lancelot foi inventada por esses mesmos trovadores, que acreditavam que amor era incompatível com casamento, de modo que amor verdadeiro só existiria no adultério (essa idéia é a base da temática do "amor cortês", que serviu de tema principal aos trovadores não só franceses, mas de quase toda a Europa, durante séculos; de qualquer forma, isso nada tem a ver com a lenda de Artur).

Resumindo: essa história "real" de Artur está repleta dos mesmos clichês medievais que recheiam quase todas as outras versões, e que nada têm de "reais", o que é bem curioso, já que, segundo o suposto Michael Scott, Artur seria neto daquele mesmo Marcos e teria como principal objetivo a reconstrução do Império Romano. Sendo assim, não seria preferível retratar o herói e sua época de uma maneira mais romana, o que, além disso, teria sido mais coerente com a realidade histórica por trás da lenda? Também é preciso destacar o gosto do autor por tramas ao estilo Teoria da Conspiração, o que ele demonstra neste romance criando uma história absurda na qual o papado da época teria conspirado para impedir que Artur obtivesse sucesso em seu plano imperial, e teria conseguido isso apoiando Mordred.

A origem de Mordred, aliás, é um ponto que muda um pouco neste romance. Massie fundiu em uma única personagem, que ele chama de Morgan, as duas meias-irmãs mais velhas de Artur: Morgana e Morgause (e antes que os leitores de As Brumas de Avalon me escrevam dizendo que Morgause era tia de Artur, esclareço que nas obras clássicas de Thomas Mallory e Chretién de Troyes, ela era realmente filha de Igraine e de Gorlois, duque da Cornualha, portanto irmã de Morgana e meia-irmã de Artur. Quem decidiu convertê-la em irmã de Igraine e tia de Morgana e Artur foi Marion Zimmer Bradley, autora de As Brumas..., usando de licença poética). Essa Morgan seria irmã de Artur por parte de pai, e não de mãe, como nas outras versões, e teria sido confiada por Merlin à guarda da superiora de um convento, de onde mais tarde o mesmo Merlin a tirou para entregá-la ao rei Lot de Orkney, com quem ela se casaria (tudo tramado por Merlin) e teria os filhos Gawaine, Agravaine e Gaheris - além de Mordred, nascido de uma relação incestuosa entre Morgan e Artur, que se encontram por acaso (será?) e sem saber que são irmãos.

Talvez a personagem cujas modificações de uma versão para outra são mais curiosas de observar e comparar seja a rainha Guinevere. Na maioria das versões ela é filha de Leodegranz, um rei bretão menor, vassalo e aliado de Artur; no filme recente, é uma guerreira picta, ou "woad"; e no livro de Massie, é uma princesa saxã (!), cujo pai, derrotado em combate por Artur, aceita uma aliança com ele e, para selar o acordo, dá-lhe a filha em casamento.

Enfim, Rei Artur de Allan Massie é uma versão toda modificada (até aí, nada de errado...), narrada com pedantismo, e que raramente chega a prender o leitor. De bom, tem a interessante descrição da organização da Távola Redonda e da estrutura de governo implantada por Artur na Britânia, e que, enquanto dura seu reinado, dá ao país um período de prosperidade comparável ao do tempo dos romanos. Além disso, o autor, talvez sem querer, proporciona aos leitores um pouco mais instruídos uma oportunidade de refletir sobre o valor da cultura e da erudição, valor esse tão menosprezado no mundo moderno, onde o único tipo de conhecimento considerado importante é o conhecimento técnico. A grande maioria das pessoas jamais chegará a compreender por que é importante conhecer a história dos povos antigos e as obras dos grandes autores da literatura universal, nem saberá o prazer todo especial que há, por exemplo, em ler sobre Artur dizendo a Gawaine que "a arte de governar consiste em impor o costume da paz, poupar os conquistados e subjugar os orgulhosos", e saber que ele está citando Virgílio. E isso, permitam-me dizer, é lamentável. A supervalorização da técnica em detrimento do conhecimento humanístico é sem dúvida a grande responsável pelo empobrecimento cultural que hoje atinge a maior parte da humanidade, incluindo as pessoas que têm estudo, mas simplesmente não conseguem entender qual o sentido de gastar tempo lendo coisas que não têm relação com sua profissão - ou, em bom português, coisas que não servem para ganhar dinheiro.