E eis, finalmente, a conclusão da grandiosa série O Imperador! Mais uma vez, Conn Iggulden tomou certas liberdades em prol de seus objetivos literários, o que não tira o valor de sua obra como uma maneira envolvente e agradável de adquirir conhecimento histórico: bastará uma consulta a qualquer biografia resumida de Júlio César para que um leitor de habilidade mediana consiga acertar as coisas e ficar com uma noção muito boa de como foi a vida de um dos homens mais extraordinários que já pisaram neste planeta.
César, à frente de cinco legiões que o idolatram, acaba de transformar a rica e rebelde Gália na mais nova província romana, quando recebe a notícia de que o velho Crasso, que costumava ser o fiel da balança no delicado equilíbrio de poder entre ele e Pompeu, acaba de morrer. Pompeu, algum tempo antes, foi investido pelo Senado com o poder de ditador, a fim de que pudesse combater o crime organizado e salvar Roma do caos que ameaçava tragá-la - o que, é preciso reconhecer, fez com muita competência. Só que, passado o perigo, recusou-se a largar o osso, e é ainda na qualidade de ditador que ele envia a César a ordem de deixar suas legiões na Gália e retornar a Roma sozinho. E César, é claro, sabe que fazer isso significaria morte certa, de modo que decide desafiar a autoridade de Pompeu e marchar para o sul com a maior parte de seu exército, deixando na Gália apenas um número suficiente de homens para que a paz seja mantida. Há um episódio que Iggulden não narra, mas é um dos mais famosos da trajetória de César: ao chegar às margens do riacho conhecido como Rubicão, e ciente de que atravessá-lo levando o exército será considerado por Pompeu como um ato de guerra civil, César atravessou, declarando: "Alea jacta est" ('A sorte está lançada').
Guerra civil. Eis uma coisa que vai contra tudo o que fez Roma grande. Os gregos poderiam ter-se antecipado aos romanos e se tornado os senhores de um império que dominaria o mundo conhecido durante séculos (Alexandre, ao morrer, deixou tudo pronto para isso), se não fosse pelo fato de gostarem tanto de lutar uns contra os outros e por sua incapacidade de se unirem em torno de objetivos comuns. Os romanos levaram a melhor justamente porque se mostraram capazes disso - e, com o tempo, também estenderiam o mesmo sentimento aos não-romanos, fazendo de vários outros povos parte tão vital do Império quanto eles próprios. César sabia muito bem da primeira parte, e provavelmente era um dos poucos homens de sua época que também anteviam a segunda, e mesmo assim encarou a guerra civil; pode tê-lo feito por ambição pessoal ou por acreditar sinceramente que podia dar a Roma um futuro que Pompeu não podia, mas o mais provável é que tenha sido por um misto das duas coisas. De todo modo, voltando ao livro, ele marcha sobre Roma com suas legiões; Pompeu, inferiorizado em número de homens, foge para a Grécia, acompanhado pela maioria dos senadores, e assume o comando das legiões lá estacionadas, o que o coloca em vantagem numérica. Feito isso, espera pelo ataque de César, que, sem a menor dúvida, virá.
César toma posse de Roma sem derramar uma gota de sangue - o povo o recebe alegremente e o elege cônsul pela segunda vez, além de eleger um novo Senado, o que automaticamente coloca fora da lei a ditadura de Pompeu: para a maioria do povo da capital, César é seu governante legítimo. Mas ocorre algo desagradável: quando César indica Marco Antônio para o segundo posto de cônsul (eram sempre dois), Brutus fica indignado, considerando que Júlio deveria partilhar o poder com ele. Na verdade, como César explica a Marco Antônio (um tanto tarde demais: deveria ter explicado a Brutus, antes de fazer a indicação), não se trata de chutar ninguém para escanteio, mas simplesmente de distribuir as funções de acordo com os talentos de cada um. Marco Antônio é o homem certo para governar Roma enquanto César vai à Grécia haver-se com Pompeu - e Brutus, como o general formidável que é, será uma peça essencial para alcançar a vitória. Ou melhor, seria.
Brutus, cansado de dedicar a vida a serviço de um líder que ele acha que nunca vai reconhecer seu verdadeiro valor, decide ir para a Grécia e colocar-se sob as ordens de Pompeu - mas, naturalmente, é recebido com desconfiança, pois todos conhecem sua fama e sabem que sempre foi um dos partidários mais leais de César; por tudo o que Pompeu e seu lugar-tenente, Labieno, sabem, poderia ser um espião. E aqui está mais uma liberdade do autor: Brutus torna-se amante de Júlia, filha de César e esposa de Pompeu, que está na Grécia com ele, já tem um filho crescido e acaba engravidando do segundo - que pode muito bem ser de Brutus. Na verdade, nessa época Pompeu já estava casado com outra mulher, pois Júlia morreu no parto do primeiro filho, quando César ainda estava na Gália. É mera licença artística e, de certa forma, justiça poética, como se Brutus tivesse pensado: "Júlio 'pegou' minha mãe, então por que não posso 'pegar' a filha dele?"
O quanto Brutus era estimado por César fica evidente no fato de que sua deserção para o lado de Pompeu é histórica, como também o é o perdão oferecido por seu antigo comandante. Certo, César deu anistia a todos os que lutaram contra ele na guerra civil, mas uma coisa é perdoar soldados que estavam do outro lado desde o início, cumprindo seu dever para com seu comandante legítimo, e outra bem diferente perdoar um traidor. Nas legiões, a pena para a traição sempre foi a morte, e César não era o tipo de homem que tivesse por costume abrir exceções para favorecer amigos. O autor desenha a personalidade de Brutus de uma maneira bastante complexa e, pode-se dizer, humana, e, como tal, cheia de contradições. Ele é essencialmente um homem decente, mas não consegue esconder de si mesmo que as motivações que o levam a participar do assassinato de seu velho amigo não são somente patrióticas: ao zelo pela manutenção da República soma-se, sim, uma boa dose de inveja.
Iggulden vai empilhando gradualmente os motivos que levariam à vitória final de César na guerra civil, apesar de estar enfrentando um general quase tão astuto quanto ele próprio, mais velho e experiente, e com a vantagem dos números (Pompeu comandava onze legiões, cerca de 55 mil soldados, contra as sete de César, 35 mil; praticamente dois terços de todo o exército romano estavam envolvidos). O que acaba ditando o resultado parece ser o fato de que, enquanto Pompeu hesita, César toma decisões rápidas. Também pesa o uso ardiloso da propaganda: muitos dos legionários sob o comando de Pompeu são de opinião que César é mesmo o legítimo governante de Roma e de que Pompeu deveria submeter-se a ele. Deserções ocorrem e são punidas com brutalidade exemplar, o que vai minando mais e mais a confiança e a lealdade dos soldados de Pompeu, já insatisfeitos por estarem lutando contra compatriotas.
A guerra civil tem seu lance final quando, derrotado em Farsália (outras fontes dão Farsalos), Pompeu foge para o litoral, de onde embarca para o Egito - e é ao partir em sua perseguição que César, sem saber, está rumando para a última grande aventura de sua vida, aquela sobre a qual mais livros foram escritos e mais filmes rodados. Talvez tenha sido justamente por isso que Conn Iggulden optou por narrar essa parte da história de uma maneira tão resumida: fiquei surpreso ao perceber que já lera dois terços do livro sem que César houvesse posto os pés no Egito ainda. E dou-lhe razão: a vida de César foi de tal modo intensa e atarefada, que, a menos que o autor quisesse chegar a um quinto e, quiçá, a um sexto volume, era necessário ser enxuto em alguma parte. Melhor que fosse essa parte, já que não faltam opções a quem quiser conhecê-la em mais detalhes: basta ler uma biografia de Cleópatra - existem várias, algumas delas muito boas. Pela mesma razão, embora eu mesmo pudesse tecer diversos comentários sobre a relação do grande general e cônsul romano com a jovem rainha do Egito - relação que foi um retrato fiel do papel que suas respectivas civilizações representavam no mundo da época -, prefiro deixar isso para outra ocasião, pois trata-se de tema que merece mais do que umas poucas palavras. Em vez disso, meus dedos estavam coçando para escrever sobre as consequências dramáticas da traição de Brutus (o que já fiz) e sobre o perfil de Otaviano. Vamos a isso...
Como citei de passagem no comentário de A Morte dos Reis, Iggulden optou por criar uma proximidade maior entre Júlio César e Otaviano - que, aliás, só passaria a ser chamado assim depois de sua adoção por César: seu nome original era Caio Otávio Turino; com a adoção, passou a chamar-se Caio Júlio César Otaviano, ou seja, o nome igual ao do pai adotivo, acrescido do "Otaviano" para distinguir os dois e lembrar que, por nascimento, ele pertencera à família dos Otávios. Porém, por comodidade, continuarei a chamá-lo de Otaviano.
Historicamente, Otaviano era neto de uma das irmãs mais velhas de César, nasceu em 63 a.C., quando o próprio César estava com cerca de 37 anos de idade e começava a ficar famoso, e estava na adolescência - um jovem extremamente inteligente e promissor - quando o tio-avô, não tendo (até então) tido nenhum filho homem, decidiu adotá-lo. Estava com 18 anos quando César foi assassinado, empenhou-se ferozmente em caçar e punir seus assassinos, e foi um dos principais personagens no cenário político dos anos seguintes, acabando, em 27 a.C., por sagrar-se imperador, com o nome de César Augusto. Aliás, foi o primeiro imperador de Roma.
Conn Iggulden quis que Otaviano fosse um dos companheiros de César durante seus longos anos de campanhas militares, e, para tanto, começou por alterar o grau de parentesco e a diferença de idade: o sobrinho-neto transformou-se em um primo apenas alguns anos mais jovem. Além disso, o perfil do personagem também mudou: na série, Otaviano é um perfeito guerreiro romano, um espadachim excepcional, treinado por Rênio e Brutus. Comanda uma legião e, a partir da deserção de Brutus, também se torna o líder dos extraordinarii, a cavalaria de César. O verdadeiro Otaviano não era guerreiro de forma alguma: apenas tangenciou o serviço militar e talvez nunca tenha participado diretamente de uma batalha - eis um ponto em que não puxou a seu destemido tio-avô, que nunca deixou de lutar ao lado de seus soldados. O que não quer dizer que fosse um covarde: como diz Cômodo no filme Gladiador, existem diferentes formas de coragem. E de passagem, é sempre bom lembrar que Otaviano não se notabilizou entre os imperadores apenas por ter sido o primeiro: esteve entre os quatro ou cinco melhores durante os 500 anos nos quais Roma teve imperadores.
Tive a impressão de que os últimos dias de César foram narrados de uma maneira simplificada, como se o autor não quisesse se estender muito mais - o que é compreensível, ao fim de uma história de mais de 1600 páginas. Depois de ajudar Cleópatra a tomar o poder, César vive um caso de amor com ela; tudo indica que ela o tenha seduzido por interesse, mas depois acabado apaixonada de verdade. É Cleópatra quem dá a César o único filho homem que ele terá. É histórico que César levou-a a Roma ao voltar, talvez pretendendo divorciar-se de sua esposa, Calpúrnia, e oficializar o enlace, o que uniria os dois impérios, mas não viveu o suficiente para isso. O episódio em que Marco Antônio tenta colocar uma coroa na cabeça de César aparece aqui de modo muito diferente do que eu conhecia, e as motivações por trás dele, muito diferentes das que eu imaginava. Na narrativa de Iggulden, o próprio César pede a Antônio que venha com a coroa no momento de seu triunfo, e tira-a da cabeça desapontado quando percebe que o povo não gostou nem um pouco da ideia (sempre a velha prevenção contra reis e realezas, passada de pai para filho entre os romanos desde os tempos do domínio etrusco). Sempre acreditei, e ainda acho mais provável, que a ideia tivesse sido de Marco Antônio e outros, e que César houvesse se recusado a ser coroado justamente porque sabia que isso criaria antipatia entre a população e daria munição a seus opositores, que já adoravam compará-lo aos antigos e tirânicos reis etruscos, derrubados pela rebelião que instaurou a República.
Quanto ao assassinato, esse narra-se em poucas páginas, chegando a parecer estranho que seja uma passagem tão breve a pôr fim a uma história tão longa, o que imagino que esteja certo: quem ouviu a notícia deve ter experimentado uma sensação de absurdo. Como podia um homem que fizera tantas coisas grandiosas, durante tanto tempo, desaparecer assim, de uma hora para outra? Quando generais romanos eram homenageados com triunfos, um sacerdote os acompanhava na carruagem que os levava, com a tarefa de dizer-lhe a intervalos regulares: "Lembra-te de que és mortal". César foi lembrado desse fato da maneira mais implacável possível: apesar de tudo o que fora e fizera, não podia haver dúvida de que continuava a ser mortal, pois não escapou à ação do caos inerente que rege a existência humana - depois de sobreviver a tantas batalhas, foi morto por pessoas em quem confiava, num lugar que deveria ser seguro.
Sei que já disse ou dei a entender isso várias vezes durante os últimos meses, mas não é possível concluir sem dizê-lo de novo: O Imperador é uma grande e maravilhosa série, que recomendo sem restrições a quem, como eu, ama o mundo antigo greco-romano, ou simplesmente gosta de biografias bem escritas... além de não se intimidar com leituras extensas! Conn Iggulden finaliza a nota histórica deste último volume dizendo que "nos próximos anos posso ter de escrever uma história do que ocorreu depois do assassinato". E sem dúvida deveria fazê-lo: a vida de César deu início a um grande ciclo, que sua morte não encerrou. Personagens como Otaviano, Brutus, Marco Antônio, Cleópatra e muitos outros ainda realizariam muitos feitos dignos de serem narrados e teriam papéis fundamentais no nascimento do mais duradouro e influente império que o mundo ocidental já viu.
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