Passei os últimos quatro meses lendo a série O Imperador e escrevendo sobre ela, o que é suficiente para me deixar farto da temática romana durante umas... 24 horas, talvez. Entretanto, como alguma variedade é saudável, e o mundo está cheio de assuntos interessantes, decidi comentar este livro, que comecei a reler numa decisão repentina ao acidentalmente bater o olho nele na minha estante.
Li pela primeira vez A Ilha do Dr. Moreau na pré-adolescência, talvez com uns 12 anos de idade, quando estava começando a prestar atenção aos nomes dos autores dos livros que lia (vocês se surpreenderiam com o número de livros que li na infância e adoraria reencontrar hoje, mas não tenho como procurá-los porque o Marcos garoto simplesmente não se preocupava com quem era o autor). Meus irmãos andavam comentando entusiasmados o livro O Homem Invisível - que, por algum capricho do destino, não li até hoje! - e, quando topei na biblioteca com outro livro do mesmo autor, decidi conferir. Não era a mesma edição do exemplar que tenho hoje, esse comprei num sebo anos depois: se não me engano, a edição que li primeiro tinha tradução de ninguém menos que Monteiro Lobato. Foi meu primeiro contato com a obra de Herbert George Wells (1866-1946).
Esse autor britânico, como vim a saber, divide com o francês Júlio Verne o mérito do pioneirismo no gênero que mais tarde ganharia o nome de ficção científica. Verne e Wells não foram realmente os primeiros a escrever coisas do tipo (o famosíssimo Frankenstein, de Mary W. Shelley, em tudo e por tudo uma história de ficção científica, é de 1817), mas foram os primeiros escritores que se dedicaram de forma consistente ao gênero e conquistaram para ele um público fiel. Suas semelhanças, porém, terminam aí, pois os dois tinham estilos muito diferentes. As obras de Verne costumam ser mais leves, com um sentido de aventura e descoberta que as torna atraentes tanto para o leitor adolescente quanto para o adulto, além de, não raro, terem um toque de humor (Da Terra à Lua tem trechos realmente hilários!). Ao mesmo tempo, Verne revelava uma preocupação maior com o aspecto "técnico" do que escrevia, procurava fornecer explicações plausíveis para a forma como as coisas de que falava eram ou viriam a ser possíveis. Wells, por sua vez, visava claramente um público mais maduro, e pensava mais no lado humano das situações. Para ele, não importava tanto como um homem pode ficar invisível ou qual a tecnologia usada pelos marcianos nas naves com que invadiram a Terra: interessava-lhe muito mais saber quais seriam as consequências disso tudo para a cultura e a sociedade.
A Ilha do Dr. Moreau, de 1896, ocupa um lugar à parte na obra de H.G. Wells. Mencionei há pouco o Frankenstein como sendo obra de ficção científica, e não há dúvida de que o é, embora seja lembrado com muito mais frequência como um clássico da literatura de terror. O fato é que o danado do livro pertence a ambos os gêneros, e A Ilha... também não está muito longe disso. Ao mesmo tempo em que levanta questões importantes sobre ciência e a ética dos cientistas, o livro está recheado de passagens sombrias e tensas, onde o horror ora é sutil, alimentado pela sensação indefinida de realidades desconhecidas e possivelmente hostis, ora explícito, por meio de presenças bizarras e assustadoras.
O livro trata das aventuras de um inglês do século XIX, Edward Prendick, que, após sobreviver a um naufrágio e penar miseravelmente durante dias num escaler à deriva no sul do Pacífico, acaba sendo resgatado por uma escuna que leva a bordo um sujeito misterioso de nome Montgomery, que diz viver numa pequena ilha sem nome, onde a embarcação o deixará antes de seguir para seu destino. Nos arredores da ilha, como o capitão bêbado e rabugento recusa-se a levar Prendick mais adiante, ele acaba sendo obrigado a desembarcar, e se vê jogado num pequeno mundo habitado apenas por Montgomery, por um velho cientista a quem ele parece servir de assistente, e por um grupo de homens de aparência estranha, parecendo fisicamente mal acabados, com inteligência subumana e certos inconfundíveis traços animais na fisionomia e no comportamento.
O nome do velho cientista, Moreau, não é estranho a Prendick, que acaba por se lembrar de onde o ouviu: Moreau foi em tempos um médico eminente na Inglaterra, famoso tanto por seu conhecimento quanto pelas ideias pouco ortodoxas e pela crença de que, em prol da ciência, os fins justificam quaisquer meios. Juntando as terríveis histórias que ouviu quando garoto com as coisas que vê na ilha, Prendick chega à horrenda conclusão de que os seres disformes que perambulam por ela já foram homens, ficando reduzidos àquela condição degradante como resultado de algum tipo de atroz experimento levado a cabo pelo médico ensandecido. Dou uma pista: as coisas não são como Prendick pensa - e mais que isso não digo, pois seria estragar o arrepiante mistério que serve de fio condutor à história.
Entre outras influências oriundas de sua sólida formação científica, H.G. Wells pautava suas ideias na teoria da evolução de Darwin, e, dessa forma, sua mente especulativa inevitavelmente levantaria a questão de em que momento o homem separou-se dos animais, e se a linha que os distingue é mesmo tão nítida quanto geralmente se acredita. Que diferença haveria entre um animal humanizado e um homem animalizado? Até onde é preciso ir para que o ser humano reverta à selvageria, que, afinal de contas, é seu estado natural? A Ilha... é também mais um exemplo do gosto de Wells por pequenos universos fechados utilizados como alegoria para a sociedade humana como um todo: em seu conto Em Terra de Cego, o vale isolado nos Andes, habitado apenas por cegos, é uma metáfora dos absurdos a que pode levar a construção do conhecimento por meio de uma filosofia materialista que não aceita a possibilidade de realidades fora do alcance dos sentidos físicos e da experiência direta; em A Ilha do Dr. Moreau, o comportamento por vezes insano dos habitantes da ilha é uma crítica aos dogmas religiosos e às convenções sociais - mas, paradoxalmente, a conclusão à qual a história leva é a de que, com os defeitos que possam ter, esses dogmas e convenções são indispensáveis para que a civilização seja viável.
Em tempo: sei da existência de três versões filmadas de A Ilha do Dr. Moreau. Nunca vi a mais antiga, de 1932, mas, pelo que pude descobrir sobre ela na internet, não deve ser grande coisa: o maior destaque parece ser uma sexy (para os padrões da época) "mulher-pantera", enxertada no roteiro para tentar aumentar a bilheteria. Os dois filmes mais recentes eu vi, e tudo o que posso dizer é que é difícil escolher qual o pior, se o de 1977, com Burt Lancaster, ou o de 1996, com Marlon Brando e Val Kilmer. Ambos jogaram fora a tensão e as ideias perturbadoras do livro em prol de cenas ordinárias de ação e de um horror canhestro que lembra aqueles filmes pastelão sobre lobisomens, mas sem a veia de humor autogozador que torna esses filmes divertidos. Num deles, os temores de Prendick (ou como quer que tenham rebatizado o personagem) se concretizam e o Dr. Moreau realmente tenta usá-lo como cobaia em suas experiências - coisa que o Moreau do livro jamais faria. Resumindo: 115 anos depois de sua publicação, uma das melhores obras do mestre H.G. Wells ainda está à espera de uma adaptação cinematográfica decente. Deixem o DVD desligado e leiam o livro.
4 comentários:
A versão de A ilha do Dr Moreau que li também foi da editora Francisco Alves, com essa mesma capa. ´[E uma pena não encontrar mais livros com essa arte de capa caprichada, á altura da trama.
Será que a versão que você leu não foi a da Edições de Ouro, Coleção Elefante? Tenho essa em casa e é a tradução do Monteiro Lobato, mas não achei referências dela na internet.
Olá, Marília! Exatamente, a primeira vez que li A Ilha do Dr. Moreau foi nessa edição que você mencionou. Por sinal, adoro as traduções do Monteiro Lobato. Seja sempre bem-vinda! Abraços.
Adorei seu blog, está na minha aba de favoritos desde que li este post. Abraços.
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