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quinta-feira, janeiro 17, 2019

O Mundo Perdido

O mundo da literatura tem seus paradoxos. Um deles é o que acontece quando um autor consegue o raríssimo feito de criar um personagem que se torna tão famoso que, de certa forma, acaba por ganhar vida própria: nesses casos, a fama da criação costuma ofuscar a do criador. Foi assim com Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e seu personagem mais conhecido, o detetive Sherlock Holmes. Todo mundo sabe quem é Holmes, mesmo que a vasta maioria das pessoas nunca tenha lido uma linha da obra de Conan Doyle, mas apenas os poucos que têm alguma intimidade com literatura conseguirão, se perguntados, dizer o nome do escritor que o criou, e receio que ainda menos serão capazes de citar algum trabalho seu que não sejam as aventuras do grande detetive. O que é bem injusto, já que, mesmo que ele nunca houvesse criado Sherlock Holmes, ainda restariam no currículo de Doyle obras em quantidade e qualidade mais que suficientes para fazer dele um escritor de respeito. Para completar, alguns elementos que estão ou já estiveram largamente presentes na ficção moderna devem a Doyle o pontapé inicial: foi dele a ideia de usar uma múmia reanimada como personagem num conto de terror (Lote 249, de 1892), fonte na qual o cinema viria a beber dezenas de vezes; e também foi ele o responsável por trazer os dinossauros para a ficção, com O Mundo Perdido (1912), que acaba de ganhar esta nova e caprichada edição nacional pela editora Todavia (eita… A portuguesa Saída de Emergência tem uma competidora no ranking das editoras com nomes estranhos).

Garimpando, tempos atrás, num dos diversos sebos da rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre, adquiri um exemplar da velha edição de O Mundo Perdido da Francisco Alves, editora que durante décadas fez por merecer a gratidão de todos os fãs brasileiros da literatura de imaginação; porém, o livro ainda aguardava na minha estante a sua vez de ser lido quando encontrei numa livraria esta nova edição, e, ao ver que incluía uma ampla seção de notas explicativas do tradutor Samir Machado, concluí que valia a pena: Conan Doyle tinha uma tendência a salpicar seu texto com referências a personalidades, instituições e costumes da Inglaterra vitoriana que podem soar bastante misteriosas para quem vive em outra época e outro país (e digo da Inglaterra porque, embora fosse escocês de nascimento e descendente de irlandeses, ele parecia ter em Londres seu habitat literário por excelência). E, de fato, as notas não apenas esclarecem sobre esses detalhes da realidade britânica da época, como corrigem e atualizam vários pontos nos quais as observações do autor sobre características e comportamento dos animais pré-históricos estão hoje ultrapassadas graças aos vastos progressos da paleontologia ao longo do último século. Contando com esse reforço, mergulhei na minha primeira leitura desse clássico.

Não foi pouca a minha surpresa ao perceber na estrutura de O Mundo Perdido uma série de semelhanças com Viagem ao Centro da Terra (1864), de Júlio Verne! É claro que o formato de ambas as histórias é comum a um sem-número de obras que tratam da descoberta de "mundos perdidos", o que alguns teóricos chegam a classificar como um subgênero específico dentro da literatura de aventura – a saber, uma expedição de intrépidos exploradores penetrando em alguma região isolada, desconhecida pelo resto da humanidade, e lá descobrindo todo tipo de maravilhas e surpresas – mas, mesmo assim, chamou-me a atenção que ambos os livros sejam narrados na primeira pessoa por jovens corajosos que deixam para trás suas respectivas amadas, cada um deles na esperança de retornar de sua aventura coberto de glória e assim merecer casar-se com sua musa. Ambos, também, seguem a liderança de um brilhante e excêntrico cientista. No livro de Verne, o jovem Áxel é sobrinho e discípulo do Prof. Otto Lidenbrock, e espera ganhar a mão de Grauben, afilhada do cientista; no de Conan Doyle, o protagonista Edward Malone é um jornalista jovem, mas que já granjeou certa reputação, e está irremediavelmente apaixonado por Gladys, uma moça que parece satisfeita de manter com ele uma relação de cordial amizade, situação sobre a qual o jovem repórter tem opiniões categóricas:

Éramos amigos, bons amigos, mas nunca consegui ir além do mesmo tipo de camaradagem que eu poderia ter com algum colega jornalista da Gazette – perfeitamente sincera, perfeitamente gentil e perfeitamente assexuada. Meus instintos iam contra a ideia de que uma mulher pudesse ser sincera e ficar à vontade comigo; para um homem, isso não é elogioso. Onde a verdadeira atração sexual começa, a timidez e a desconfiança são suas companheiras. (…) A cabeça baixa, o olhar arisco, a voz vacilante, os estremecimentos – esses são os verdadeiros sinais da paixão, não o olhar direto e a resposta franca. Mesmo em minha curta vida, esse tanto eu havia aprendido – ou herdado daquela memória que nossa raça chama de instinto. (…) Houvesse o que houvesse, essa noite eu precisava acabar com o suspense e levar o assunto adiante. Ela poderia até me rejeitar, mas era melhor ser repelido como amante que aceito como irmão.

Tudo pura verdade! Malone demonstra ser sábio para seus parcos 23 anos.

Ocorre que Gladys é uma jovem sonhadora, que tem absoluta certeza de que somente poderá amar um homem que tenha se destacado por algum feito grandioso. Diante disso, Malone pede a seu editor que lhe dê a pauta mais difícil e arriscada que tiver – e é assim que vem a conhecer seu próprio "Lidenbrock" na pessoa do Prof. George Challenger (sobrenome que significa literalmente 'desafiante'), cientista de renome, mas dotado de um gênio terrível. Dois anos antes, Challenger retornou de uma expedição à América do Sul com ideias estranhas, aparentemente convencido de que, em algum lugar isolado na selva amazônica, dinossauros e outras criaturas que deveriam estar extintas há eras continuam vivas e ativas. Suas afirmações são recebidas com compreensível ceticismo, e Challenger fica possesso sempre que é posto em dúvida, já tendo chegado a agredir fisicamente mais de uma pessoa por tal motivo – o que não é um risco a se desprezar, já que trata-se de um homem de força considerável. Malone encara o "desafio" e, depois de passar maus pedaços, acaba ganhando a confiança e até um pouco da simpatia do cientista, apesar da completa ojeriza que este dedica à imprensa e a todos os seus representantes diretos e indiretos. E assim o rapaz obtém o passe para a aventura heroica que procurava: torna-se membro da expedição que acompanhará Challenger à bacia do Amazonas em busca de provas concretas de tudo o que ele afirma. Também fazem parte do grupo Lorde John Roxton, experiente caçador e aventureiro, e o Prof. Summerlee, rival de Challenger no meio acadêmico britânico, que não esconde de ninguém que seu único objetivo naquela empreitada é desmascarar o que considera uma grande farsa.

O lugar onde o tempo parece ter parado (depois se descobrirá que não é bem assim) é um platô isolado, cercado em todas as direções por milhares de quilômetros quadrados de selva fechada e pouquíssimo explorada. A teoria de Challenger é a de que, durante alguma era antiga do planeta, atividade vulcânica violenta tenha erguido esse platô, rodeando-o de rochedos intransponíveis que cortaram completamente seu acesso ao resto do mundo. A não ser pelas criaturas aladas, nada entra e nada sai. Esse isolamento teria feito com que a fauna desse pedaço da selva não acompanhasse o processo de extinções e evolução pelo qual a vida na Terra passou desde então. Uma "terra que o tempo esqueceu" – por sinal, título de um livro de Edgar Rice Burroughs, publicado em 1924 e sobre o qual suspeito fortemente de que as semelhanças não sejam mera coincidência.

O platô onde se localiza a Terra de Maple White – assim nomeada em homenagem ao desafortunado explorador norte-americano que foi seu descobridor original – não tem uma extensão muito grande: é descrito como uma área em forma de elipse, com aproximadamente 50 quilômetros de comprimento por 30 de largura máxima. A população animal que uma região desse tamanho poderia sustentar seria pouco numerosa, ainda mais em se tratando de animais de grande porte como era o caso de muitas espécies de dinossauros, mas o leitor com algum conhecimento de paleontologia (mesmo que seja apenas um conhecimento nascido da curiosidade, como no meu caso) perceberá logo que não se deve esperar muito apuro científico nas descrições que Doyle faz da fauna do lugar. A ideia em si do motivo para que os dinossauros tenham sobrevivido ali é até plausível, ainda que improvável, mas é difícil explicar que, além deles, também sejam encontrados exemplos do que hoje chamamos de megafauna, mamíferos de grande porte que dominaram a Terra durante o período Pleistoceno, entre 1,8 milhão e cerca de 12 mil anos atrás – dezenas de milhões de anos depois da extinção dos dinossauros e preenchendo os nichos ecológicos outrora ocupados por eles (é importante lembrar que foi durante o Pleistoceno que se deu o surgimento do homem, cuja atividade como caçador pode ter contribuído para a extinção de certas espécies da megafauna). O autor chega a mencionar o toxodonte, o gliptodonte (este sem citar o nome, falando apenas em “seres semelhantes a tatus”), e, com destaque, o alce-gigante, também conhecido como alce-irlandês, cervo-gigante ou megalocero, talvez o maior cervídeo de que se tem notícia. Não se tratava realmente de um alce, estando geneticamente muito mais próximo do wapiti, ou cervo-canadense (que às vezes é equivocadamente chamado de alce, o que causa confusão) e do veado-vermelho do hemisfério norte, embora seus formidáveis chifres espalmados lembrassem, de fato, os do alce que conhecemos. Era um bicho enorme, que chegava a pesar 700 quilos. O registro fóssil indica que viveu na Europa e na Ásia; sua presença na Amazônia é mera licença poética. A espécie extinguiu-se há uns sete mil anos.

(Na verdade, o uso do nome alce é problemático. Em português, essa palavra refere-se à espécie cujo nome científico é Alces alces, o maior cervídeo vivo nos dias de hoje, encontrado na América, Europa e Ásia, mas somente em latitudes bem ao norte. Quando os romanos, que nunca tinham visto semelhante animal, travaram conhecimento com ele na Germânia, adotaram [numa forma latinizada] o nome que as tribos locais lhe davam, o que veio dar na palavra latina alces, origem tanto do nome científico quanto do nome em português. Na Europa, essa espécie é chamada em inglês de elk, em alemão de Elch, em norueguês e dinamarquês de elg – todas com origem na antiga palavra elgr, que era igual em protogermânico e em nórdico antigo. Na América do Norte, os colonizadores ingleses encontraram alces iguais aos que já conheciam, mas também outra espécie de cervo de grande porte, que os índios chamavam de wapiti e era ligeiramente menor; começaram por chamar ambas, indistintamente, de elk, mas acabaram adotando moose [também de origem indígena] para a espécie maior, deixando elk para a outra, uso que se manteve nos Estados Unidos e Canadá. Na Europa, onde o wapiti não é encontrado, elk continua designando o Alces alces.)

A pergunta inevitável é: se a Terra de Maple White foi isolada do resto do mundo devido à atividade sísmica ou vulcânica na época em que os dinossauros reinavam, como foi que esses grandes mamíferos, que só surgiram em estágios muito posteriores da história da vida na Terra, foram parar lá? O Prof. Challenger tem uma teoria:

Minha própria leitura da situação (…) é que a evolução tem avançado sob as condições peculiares desta terra até o estágio vertebrado, e os tipos antigos sobrevivem e vivem em companhia dos mais novos. Por isso encontramos criaturas modernas como a anta, um animal com uma linhagem e tanto, o grande veado e o tamanduá, em companhia de formas reptilianas do tipo jurássico.

Sim, eu sei: isso não é apenas superficial – é vago demais para podermos dizer que explica alguma coisa. É claro que, num simples livro de aventuras que fala de um lugar totalmente fictício, explicar cientificamente as características de tal lugar não seria uma prioridade nos planos do autor, nem há motivo para que o fosse, mas, como estou escrevendo por prazer, eu também vou me "aventurar" e alongar um pouco mais o assunto.

Quando O Mundo Perdido foi publicado, fazia pouco mais de 50 anos que Charles Darwin havia apresentado a teoria da evolução, e, embora ela já fosse aceita pela maior parte do meio científico e acadêmico, não sei o suficiente sobre história da ciência para poder dizer até onde haviam progredido os estudos sobre o assunto, ou qual a compreensão que se tinha do funcionamento da evolução na prática, então não sei se o esboço de teoria do Prof. Challenger está de acordo com o que se pensava ou o que se sabia na época, mas, à luz da biologia atual, pode-se apontar pelo menos um grande problema: sabe-se hoje que é muito improvável (para dizer o mínimo) que populações de uma mesma espécie, isoladas umas das outras, evoluam exatamente da mesma maneira – ainda que expostas a idênticas condições ambientais. Em outras palavras, vamos admitir que, quando a Terra de Maple White se formou, tenham ficado presos lá, junto com os dinossauros, alguns dos pequenos mamíferos primitivos que já existiam nos períodos Jurássico e/ou Cretáceo: a probabilidade de que esses animais dessem origem, milhões de anos depois, a antas ou alces-gigantes iguais aos do mundo exterior seria, a bem dizer, inexistente. Teriam, certamente, evoluído para novas espécies, mas estas seriam únicas, endêmicas do platô e diferentes das encontradas em qualquer outro lugar – e é provável que fossem todas pequenas, já que os nichos ecológicos disponíveis para espécies de grande porte estariam ocupados pelos dinossauros. E tem mais: por que os mamíferos teriam evoluído, enquanto os dinossauros permaneciam tal como eram? Mas não vamos julgar Doyle: premissas mais esdrúxulas que a de O Mundo Perdido já renderam boas histórias. O livro foi escrito para divertir, e não há dúvida de que o faz muito bem.

Esta edição termina com Grandes, Assustadores e Extintos, artigo de autoria de Samir Machado, tradutor e responsável pelas notas, como dito no início. Mesmo com um perceptível ranço politicamente correto, é um texto interessante, cheio de curiosidades sobre a longa e profícua carreira dos dinossauros no imaginário e na cultura popular, com ênfase em suas aparições no cinema, desde a primeira filmagem do próprio O Mundo Perdido, em 1925 (ainda nos tempos do cinema mudo), até a franquia Jurassic Park, criada por Steven Spielberg com base em um livro de Michael Crichton e cujo mais recente episódio foi lançado em 2018. Entretanto, a influência dos dinossauros sobre a imaginação humana não começou no cinema e nem mesmo na literatura escrita (lembrem-se de que narrativas orais também são uma forma de literatura): é fascinante pensar que fósseis de dinossauros, encontrados por acaso séculos antes que esses animais fossem conhecidos pela ciência, foram a provável origem dos mitos não só sobre dragões, mas também sobre outros seres fantásticos. Esqueletos de protocerátops – um ancestral da linhagem dos famosos tricerátops e estiracossauro –, que eram achados em quantidade na Ásia central, podem ter dado origem à lenda do grifo, um animal com quatro patas e bico de ave!… Voltando por um instante à primeira adaptação cinematográfica de O Mundo Perdido, descobri no artigo de Machado que os dinossauros desse filme foram criados por um cidadão chamado Willis O'Brien, um dos pioneiros da animação stop motion e, mais tarde, mentor do jovem Ray Harryhausen, por sua vez responsável por dar vida a tantas criaturas extintas ou fantásticas, em filmes inesquecíveis inspirados na mitologia grega e em As 1001 Noites, tais como Fúria de Titãs, Jasão e os Argonautas, Sinbad e o Olho do Tigre e tantos outros… Para mim e outros da minha geração, a menção desses títulos é suficiente para fazer bater aquela nostalgia. Harryhausen teve o privilégio de ser amigo de infância de outro Ray – Ray Bradbury, e os fãs de ficção científica conhecem bem o peso desse nome. Os dois Rays uniram forças num filme lançado em 1953, com o título The Beast from 20000 Fathoms; uma tentativa de tradução direta resultaria em algo tão horroroso quanto A Fera que Veio de 20000 Braças de Profundidade (arre!), motivo pelo qual, ao chegar ao Brasil, o filme foi rebatizado como O Monstro do Mar. Há mais curiosidades desse tipo esperando pelos leitores nesse artigo.

Para concluir, quero prestar o devido reconhecimento à editora Todavia, já que O Mundo Perdido há muito andava ausente das livrarias nacionais, e o retorno deu-se de maneira digna, com esta edição agradável e bem cuidada. O único senão é o mesmo do qual já me queixei uma vez aqui no blog, a coisa de terem decidido colocar as notas no final em vez de no rodapé das páginas, o que compromete o dinamismo da leitura. Sugiro rever isso nas próximas edições.

sexta-feira, novembro 30, 2012

Góticos

Quando encontrei esta antologia na Livraria Curitiba do shopping Estação, na capital paranaense, há alguns dias, vi-me diante de um pequeno dilema: praticamente metade dos contos que a integram, eu já possuía em outras coletâneas - alguns deles, em mais de uma. Mesmo assim, acabei decidindo pela compra: os textos que eu ainda não conhecia eram irresistíveis, já valendo, só eles, o valor a ser pago, aliás muito razoável. Minha namorada Cintia, que estava comigo na ocasião, observou que, a julgar pela capa, deve tratar-se de uma edição visando o público adolescente do sexo feminino - leia-se: as fãs de Crepúsculo. Se assim for, e se o alvo for atingido, ótimo: é bom que essa faixa de público tenha a chance de conhecer um pouco do melhor que a literatura gótica já produziu, e de ter um contato direto com a ficção de horror no sentido estrito do termo. Pelas páginas deste volume desfilam nomes veneráveis da literatura do sobrenatural como Bram Stoker, Mary W. Shelley, Edgar Allan Poe e Joseph Sheridan Le Fanu; outros que, embora famosos, não costumam ser imediatamente associados ao horror, como Robert Louis Stevenson (autor do clássico romance de aventura de piratas A Ilha do Tesouro, mas também da não menos clássica novela de horror O Médico e o Monstro), Sir Arthur Conan Doyle (criador do mais famoso detetive da ficção, Sherlock Holmes) e o francês Théophile Gautier, melhor conhecido por sua poesia; e, por fim, nomes que bem mereceriam ser mais conhecidos do que são, como W. W. Jacobs e a figura fascinante, mesmo que apagada pelas circunstâncias, de John William Polidori. Por fim, é preciso notar, para crédito do organizador Luiz Antônio Aguiar, que foi uma bela ideia não fazer do livro uma coletânea apenas de contos, mas de textos góticos ou sobre o movimento literário gótico de maneira geral: além dos contos, ele também inclui poemas de Byron e Goethe (seria difícil pensar em dois poetas que melhor representassem essa corrente estética) e interessantes ensaios curtos assinados por Pedro Bandeira (nome coroado da literatura teen no Brasil, criador da série Os Karas, cujo piloto é o merecidamente aclamado A Droga da Obediência), Luiz Raul Machado, Daniel Piza, e pelo próprio Aguiar. O problema com esses ensaios é que parecem ter sido escritos mediante um convite genérico feito separadamente a cada autor, sem obedecer a um plano geral para o livro, o que acaba fazendo com que alguns temas sejam abordados de forma repetitiva, enquanto outros pontos interessantes ficam sem receber atenção.

Góticos, portanto, tem a clara intenção de servir de porta de entrada para os jovens leitores (ou leitoras) do século XXI travarem conhecimento com os grandes nomes da literatura de horror, e isso explica por que a maioria dos autores que nele marcam presença vêm representados por trabalhos que estão entre os mais famosos que produziram - eis o motivo pelo qual muitos dos contos já são conhecidos de quem já acumulou certa experiência no gênero, como este que vos escreve. Conan Doyle, por exemplo, comparece com o delicioso e arrepiante Lote 249, também presente na coletânea Encantamentos; pouca gente sabe, mas Doyle foi o primeiro a usar uma múmia como personagem de horror. De Edgar Allan Poe, temos A Queda da Casa de Usher, clássico absoluto, a "mãe" de todas as histórias de casas assombradas. Infelizmente, esse conto, tal como aparece no livro, constitui mais um desagradável exemplo do grande problema que é a falta de cultura geral para um tradutor de literatura: no rol dos livros que o narrador anônimo lê em companhia de seu amigo em vias de enlouquecer, Roderick Usher, há uma tentativa de informar nas notas de rodapé a tradução dos títulos, que, no original, estão em diversas línguas. O tradutor Domingos Demasi meramente informa ao leitor que títulos como Belphegor e Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae "não têm tradução"... Ora, é claro que Belphegor não terá tradução se a pessoa simplesmente tentar achá-lo num dicionário como se fosse um substantivo comum, mas alguém com um pouco de conhecimento de ocultismo saberia que esse é o nome de um dos demônios favoritos dos satanistas medievais, um demônio identificado com o elemento fogo e que, dos Sete Pecados Capitais, presidia o da preguiça. Já o outro título, em latim, encerra um trocadilho genial e totalmente pertinente com o tema da história: numa tradução literal, significaria a "vigília dos mortos segundo o coro da igreja de Mogúncia" (cidade alemã que em latim é Moguntia, em alemão Mainz); só que vigiliae mortuorum pode tanto ter o inocente significado de uma vigília de oração na intenção das almas dos mortos, quanto pode querer dizer algo parecido com "despertar os mortos"... É um desperdício privar o leitor dessa sacada magistral de Poe. A impressão que dá é de que o senhor tradutor conclui que uma coisa "não tem tradução" quando ela não se enquadra em sua experiência anterior e tampouco é resolvida pelo Google Translator.

Bram Stoker é representado por O Hóspede de Drácula, história curta que é quase presença obrigatória em antologias de contos vampirescos, e também uma boa pedida para coletâneas voltadas para o sobrenatural em geral, como esta. Esse conto, a propósito, até hoje gera controvérsia entre fãs e estudiosos da obra de Bram Stoker: enquanto uns o consideram um trecho excluído de Drácula, outros creem que foi concebido desde o início como um conto independente, embora ambientado no mesmo universo. Luiz Antônio Aguiar expõe a interessante hipótese de que o texto teria sido escrito para ser o capítulo inicial do romance, mas que Stoker o cortou ao perceber que havia ido muito fundo, logo de cara, no clima sobrenatural: o autor acabou preferindo que a imersão do leitor no ambiente tenebroso da história fosse gradual, efeito que conseguiu ao dar aos primeiros capítulos da versão definitiva uma aparência de normalidade que ia aos poucos sendo modificada por meio de sugestões sombrias. O leitor atento notará que a frase que Jonathan Harker (pois está na cara que é ele o viajante inglês sem nome que protagoniza o conto) encontra gravada num túmulo ("Os mortos viajam depressa"), e que não aparece no romance, foi resgatada por Francis Ford Coppola em seu filme Bram Stoker's Dracula (1992), bem como alguns outros detalhes do conto. É pena que Aguiar prejudique a boa impressão que seu posfácio à história de Stoker causa ao leitor, ao cometer um dos erros mais vergonha-alheia que me lembro de já ter encontrado impressos em livro: "...vemos Jonathan chegando ao castelo do conde-vampiro, na Pensilvânia". Transilvânia, Aguiar, Transilvânia, que fica na Romênia, pelo amor de Deus! O estado norte-americano da Pensilvânia nada tem a ver com isso; até onde sabemos, Drácula nunca pôs o pé lá.

E, como é de vampiros que estamos falando, não posso deixar de dizer algumas palavras sobre John William Polidori, perfeito exemplo de um talento promissor que foi perdido sem produzir aqueles que poderiam ter sido seus melhores frutos, e hoje lembrado principalmente pelo fato de sua biografia estar estreitamente entrelaçada com as de mais de um nome essencial da literatura gótica. Nascido em Londres em 1795, filho de mãe inglesa e pai italiano, foi amigo e médico pessoal do aristocrata e poeta, barão George Gordon Byron, que passaria à posteridade simplesmente como Lord Byron e foi, poder-se-ia dizer, uma das primeiras "celebridades" da História, no sentido que damos hoje a essa palavra. Ocorreu que, durante o verão de 1816, Polidori encontrava-se numa casa de campo às margens do lago Genebra, na Suíça, em companhia de Byron, de seu amigo e também poeta Percy Bysshe Shelley, e da jovem esposa deste, Mary, quando, depois de terem lido diversas histórias de fantasmas uns para os outros, o anfitrião propôs que cada um do quarteto escrevesse também uma; essas histórias depois seriam lidas pelo grupo, e escolheriam a melhor. Byron e Shelley nunca terminaram as histórias que começaram com vistas a esse desafio, mas Polidori escreveu The Vampyre, que muitas fontes apontam como a primeira história de vampiro publicada em língua inglesa, enquanto Mary Shelley produziu um conto ao qual chamou O Moderno Prometeu, que mais tarde desenvolveria sob a forma do romance Frankenstein, hoje uma obra essencial tanto para a literatura de horror quanto para a de ficção científica.

(Julgo necessário fazer um parêntese para esclarecer aos não iniciados em mitologia que o Prometeu do título nada tem a ver com o verbo "prometer"; refere-se ao titã Prometeu, que, no mito grego, roubou dos deuses o segredo do fogo para dá-lo aos homens, o que arrancou estes últimos da animalidade e tornou possível o surgimento da civilização. Como castigo, Zeus acorrentou Prometeu ao topo de uma montanha, onde diariamente um gigantesco abutre ia devorar-lhe o fígado, que crescia novamente durante a noite, de modo que seu tormento jamais tivesse fim - mas teve, séculos mais tarde, quando o herói Hércules subiu a montanha, matou o abutre e libertou Prometeu. O que nos interessa diretamente aqui, porém, é notar o paralelo que Mary Shelley traça entre o titã e seu herói Victor Frankenstein: ambos metem-se com segredos que não deveriam conhecer e pagam o preço de sua ousadia. Um ponto de vista tipicamente romântico - pois o gótico, é bom não esquecermos, nada mais foi do que uma ramificação do movimento artístico designado genericamente como Romantismo. Aliás, embora isso seja uma definição um tanto simplista, pode-se dizer que o gótico caracterizava-se precisamente por levar aos extremos certos elementos que outras correntes românticas cultivavam de forma mais moderada.)

Voltando a falar de Polidori, ele só publicou uma outra obra digna de nota, um poema intitulado The Fall of the Angels, com claras influências de Byron, em 1821. Morreu nesse mesmo ano, sem ter completado 26 anos. Nas páginas de Góticos, podemos ter o prazer de ler The Vampyre, conto que, mesmo com muitas marcas do amadorismo de seu autor (que, embora já então formado em medicina, tinha meros 20 anos quando o escreveu), demonstra um inegável dom para criar a atmosfera tenebrosa necessária ao bom horror gótico, e dá uma ideia do formidável escritor que Polidori poderia ter-se tornado, caso vivesse o suficiente. É interessante notar que o vampiro dessa história não mora em nenhum castelo isolado - em vez disso, transita livremente pela alta sociedade inglesa - e não se alimenta apenas de sangue, mas também de atos perversos em geral, comprazendo-se em espalhar ruína, degradação e morte por onde passa.

Também no terreno do vampirismo, embora de maneira mais lírica, situa-se o conto A Amante Morta, de Théopile Gautier, que aparece em outras coletâneas como A Morte Amorosa, A Morta Apaixonada, entre outros títulos, todos com alguma sutil diferença em relação uns aos outros. Nele, um jovem padre se vê desviado, ainda que apenas na esfera dos sonhos e pensamentos (ou assim ele acredita) de sua vocação virtuosa ao apaixonar-se pela misteriosa Clarimonde, a mais bela das mulheres, cujo único defeito, aparentemente, é o de não pertencer ao mundo dos vivos.

Um autor essencial para a literatura vampiresca, mas que, no conto aqui presente, decidiu seguir outro rumo, é o irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, cujo Carmilla (1872) plasmou várias das características que hoje associamos automaticamente aos vampiros, além de ter sido, juntamente com o já citado The Vampyre de John Polidori, a mais direta influência para que o igualmente irlandês Bram Stoker - contemporâneo, conhecido e admirador de Le Fanu - viesse a dar à luz (ou às trevas?) o mais famoso livro de vampiros de todos os tempos, cujo título acho desnecessário repetir. Le Fanu deve ter causado certa comoção, em sua época, ao descrever em Carmilla a paixão sentimental e erótica entre uma bela vampira e sua igualmente bela vítima - do sexo feminino. Aqui em Góticos, entretanto, o que o organizador nos oferece é um conto curto no qual Le Fanu preferiu ousar menos: Dickon, o Diabo, é uma história de fantasmas tradicional, sem nada de muito surpreendente, mas, ainda assim, de uma tremenda força ao descrever a aparição do falecido senhor de uma antiga mansão campestre, com uma sutileza que arrepia muito mais que o horror escancarado de grande parte da ficção espectral moderna, seja literária ou cinematográfica.

Retornando por um instante a Mary Shelley, em Góticos tive uma agradável surpresa ao ler um conto seu que não conhecia, Transformação, que apresenta um protagonista totalmente típico do Romantismo - um jovem fidalgo impetuoso, de espírito rebelde (está bem, vá: um playboy renascentista desmiolado), que dilapida a fortuna da família numa vida boêmia e, com isso, arruína suas chances de desposar a jovem que ama. Para não fugir a nenhum chavão romântico, esse personagem é italiano de Gênova e chama-se Guido. O tempero macabro nesse até aí manjadíssimo plot surge quando ele encontra um anão demoníaco e decide aceitar sua proposta para uma troca temporária de corpos, acreditando que isso lhe dará os meios de consertar as bobagens que fez... Não é preciso dizer que as coisas não serão tão fáceis.

Góticos pode ser recomendado sem medo (ou com ele...), já que cumpre bem aquilo a que se propõe, tendo a vantagem de juntar num só lugar um expressivo punhado dos autores e obras mais indispensáveis a quem pretende começar a se arriscar em meio às trevas da melhor ficção de horror. Como, além da qualidade de seus textos, é uma edição de baixo custo, tem tudo para alcançar boas vendagens, e não seria má ideia se isso encorajasse seu coordenador e seus editores a organizar novos volumes: o lançamento de Góticos II, III e assim por diante não seria nenhum exagero, pois ainda há uma enormidade de excelentes textos e autores do mesmo gênero merecendo tornar-se acessíveis a um maior número de leitores. Tendo apenas o cuidado de corrigir as pequenas falhas citadas acima, Luiz Antônio Aguiar ainda poderá nos guiar através de muitas horas e páginas cheias dos mais deliciosos calafrios.