quinta-feira, março 23, 2023

O Gênio do Crime

Devo meu primeiro contato com a obra de João Carlos Marinho (1935-2019) ao meu colega e amigo Fábio, que estudou comigo da quinta à oitava série, lá na segunda metade da década de 80, e isso aconteceu de um jeito muito legal. Sempre fui o "leitor da turma", talvez o único entre 30 e poucas crianças que realmente lia por prazer. Como o Fábio e eu já tínhamos essa camaradagem e conversávamos sobre tudo, eu naturalmente comentava com ele sobre as histórias que estava lendo ou havia lido, falava sobre como ler é legal, e, com o tempo, isso despertou sua curiosidade e fez com que ele também começasse a ler. Depois que terminamos o ensino fundamental eu o vi poucas vezes, e agora faz muitos anos que não tenho notícias dele; espero que tenha mantido o hábito, e, se assim for, posso somar isso ao pequeno rol das coisas boas que fiz na vida. Porém, na época tive uma recompensa mais imediata e mais concreta: uma vez mordido pelo bicho da leitura, o Fábio também começou a fuçar a biblioteca da escola, e eventualmente me dava dicas de coisas interessantes com as quais eu ainda não havia topado. Foi dessa forma que vim a conhecer pelo menos dois nomes-chave da recente literatura infanto-juvenil brasileira: Pedro Bandeira, com seu excelente A Droga da Obediência, que se tornaria o piloto da aclamada série Os Karas, e o próprio João Carlos (ou J. C.) Marinho, com O Gênio do Crime.

E O Gênio do Crime começa falando sobre uma coisa que marcou e ainda marca muitas infâncias: álbuns de figurinhas. É claro que eles existem até hoje, mas, embora possa ser só impressão minha, me parece que antigamente esse filão era bem mais explorado, talvez porque a molecada de décadas passadas não tivesse à disposição tantas opções de diversão quanto as crianças de hoje. Havia até editoras cuja principal área de atuação era a criação de álbuns. Eu mesmo nunca fui um dos maiores adeptos desse hobby, que me lembre tive dois álbuns durante toda a infância, um de bichos e outro dos personagens da Disney, mas lembro que todo ano saíam vários, a maioria com repercussão modesta, mas havia sempre um ou dois que viravam febre entre a garotada. Alguns álbuns eram destinados às crianças em geral, enquanto outros visavam claramente os meninos ou as meninas (hoje em dia não faltaria um imbecil lacrador para "problematizar" isso). Os álbuns de futebol, por exemplo, eram território dos meninos, e um deles (fictício, é claro) é o mote para esta aventura.

É preciso ter em mente que o livro foi publicado originalmente em 1969, antes da promulgação da lei 5.768, de 1971, que proibiu a realização de concursos com distribuição de prêmios vinculados a coleções de figurinhas. De fato, nos álbuns que eu tive, vinha impressa na contracapa a informação de que todas as figurinhas (que o texto chamava de "cromos") eram fabricadas e distribuídas em quantidades iguais, não havendo, portanto, "figurinhas difíceis", e também a de que o preenchimento do álbum não dava direito a quaisquer prêmios. No livro, um álbum de figurinhas de futebol se tornou mania entre os garotos, e, além da curtição de colecionar, há também um concurso que oferece a quem completar a coleção um conjunto de camisas do time favorito e uma bola oficial – coisas que os meninos da época, e desconfio que também muitos dos de hoje, matariam para ter. O garoto Edmundo, como todo mundo (hehehe) está fazendo de tudo para completar seu álbum, e já faz muito tempo que só lhe falta uma figurinha, a do jogador Rivelino, um dos craques mais admirados daquela época que também foi a de Pelé, Garrincha e outras lendas. É quando seu amigo Pituca vem com a informação de que há um cambista no centro de São Paulo que vende as figurinhas difíceis, naturalmente que por um valor muito superior ao de "mercado". Dessa forma Edmundo completa o álbum e, em companhia de Pituca, vai até a fábrica de figurinhas para reclamar seu prêmio – e encontra lá um ajuntamento de garotos que vieram com o mesmo objetivo, só que os prêmios não estão sendo entregues, o que gera tanta revolta que acaba num quebra-quebra. A fábrica está para ser incendiada pelos moleques enfurecidos, e a coisa só não chega a vias de fato graças à intervenção de Edmundo, que convence os outros a exigir os prêmios pelas vias legais.

Dias depois, Edmundo recebe em casa a visita do dono da fábrica, seu Tomé, que lhe conta seu drama: há uma quadrilha de falsários fabricando réplicas perfeitas das figurinhas difíceis e vendendo-as por altos preços para a garotada. Com isso, a quantidade de álbuns cheios está atingindo patamares absurdos, e ele, na obrigação de dar os prêmios prometidos, está rapidamente se aproximando da falência. Seu Tomé viu, da janela de seu escritório, o início de tumulto na frente de sua fábrica, e viu também como Edmundo convenceu os outros a desistir do vandalismo e fazer as coisas dentro da lei. Impressionado com a coragem e a presença de espírito do garoto, o industrial vem pedir a ele que tente descobrir a fábrica clandestina, já que, como diz, figurinhas são coisa que pertence ao mundo das crianças, e um adulto investigando despertaria suspeitas. É claro que os pais de Edmundo vetam a ideia na hora, mas o garoto não resiste à tentação de uma aventura detetivesca batendo em sua porta, e decide ajudar mesmo sem o consentimento deles. Ao seu lado estão Pituca e o Bolacha, também conhecido como "o gordo". E o gordo… bem, é o gordo.


Quem começa a ler O Gênio do Crime tem a impressão de que Edmundo vai ser o herói, e é fato que, nas partes da aventura que envolvem ação, que exigem coragem e agilidade, ele é o membro da turma que se sobressai; o Bolacha, por outro lado, tem outra coisa: miolos. Pituca ajuda, mas é basicamente um papagaio-de-pirata na história, já que não é tão arrojado quanto Edmundo e muito menos tão esperto quanto o gordo.

Pois não é por acaso que a série de livros que cresceu a partir de O Gênio do Crime, e da qual Marinho deixou 13 volumes, não se chama As Aventuras da Turma do Edmundo, e sim As Aventuras da Turma do Gordo. Esse personagem sem nome, conhecido apenas pelos apelidos Bolacha, Bolachão ou "o gordo" (sem maiúscula) é o que realmente movimenta as tramas. Vendo com os olhos de hoje, é mais ou menos claro que, se ele fosse uma pessoa real, diríamos que sofre de um grau leve de autismo: distraído, volta e meia está com a cabeça longe, como num trecho impagável em que todos estão discutindo o caso em investigação, exceto o gordo, que está com o olhar parado e não abre a boca. Quando interpelado, nem ele parece saber direito no que estava pensando: "acho que era numa vaca que tem na fazenda do meu pai". Quando resolve raciocinar, porém, ele é brilhante, tanto que demonstra ser o único capaz de quebrar o sofisticado esquema de despistamento que o líder dos falsários (o tal gênio do crime do título) arquitetou para impedir a localização de sua fábrica clandestina a partir dos cambistas que vendem as figurinhas. Bolacha consegue deixar para trás até mesmo Mr. John Smith Peter Tony, renomado detetive escocês que também está envolvido na investigação.

O Gênio do Crime é o tipo de livro que, depois de ter lido na infância ou adolescência, você tem vontade de apresentar aos seus filhos (eu certamente teria essa vontade, caso tivesse filhos). Até a pontuação desleixada contribui para o estilo coloquial, e o resultado é tão bom que eu, sempre bastante chato quando se trata de correção de texto em livros, consegui fechar um olho para essa característica, de tão agradável que flui a leitura. Uma aventura para garotos, protagonizada por garotos, cheia de boas ideias e narrada com uma baita eficiência… Exigir ainda mais que isso deste pequeno livro seria muito injusto, mas o fato é que sim, ele oferece mais: um vislumbre de como era a infância em São Paulo na década de 60 – muito diferente da de hoje, e isso é fato em São Paulo como no resto do mundo. Destaque para o jogo conhecido como "abafa" ou "bafo", que consistia em colocar figurinhas no chão, com a face para baixo, e tentar virá-las com tapas; como as próprias figurinhas eram a aposta envolvida, esse era outro meio do qual os garotos dispunham para tentar conseguir as que faltavam em seus álbuns. Cheguei a ver isso quando eu ainda era bem pequeno, mas pouco depois, lá por meados da da década de 80, as figurinhas passaram a ser autocolantes, o que foi prático para os colecionadores, mas também condenou o jogo de abafa ao gradual esquecimento, já que as novas figurinhas eram mais rígidas e pesadas, difíceis de virar. E a garotada de hoje, provavelmente, nem sabe que houve um tempo em que as figurinhas não eram autocolantes, tal como pensam que a TV já foi inventada com o controle remoto. O tempo passa mesmo, não tem jeito.


Para concluir, como de costume, um pouco de informação prática. O exemplar que tenho (comprado em sebo, como boa parte da minha biblioteca) é da edição do Círculo do Livro, que inclui também O Caneco de Prata, uma "aventura surrealista" na definição do autor, que trata de um campeonato de futebol entre escolas, narrado de forma… bem… surrealista, enquanto paralelamente também explora a paixão do gordo por Berenice, uma menina que ele conheceu em O Gênio do Crime. Curiosamente, como vocês talvez consigam distinguir na imagem do início deste post, e por razões que desconheço, essa edição do Círculo do Livro grafou o nome do autor como João Carlos Marinho Silva, embora ele sempre tenha assinado suas obras como apenas João Carlos Marinho – e fica ainda mais difícil de entender se levarmos em consideração que seu nome completo era João Carlos Marinho Homem de Mello, sem "Silva" nenhum. Todas as Aventuras da Turma do Gordo estão disponíveis em volumes individuais pela editora Global, que também oferece um box contendo a "saga" completa. Se vocês estiverem procurando por bons livros para dar de presente às crianças ou pré-adolescentes das suas famílias, ou simplesmente quiserem revisitar suas próprias infâncias por algumas horas, essa é uma ótima pedida.