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quarta-feira, maio 22, 2019

O Cemitério

Exatos 30 anos depois de ser adaptado para o cinema pela primeira vez, um dos melhores e mais assustadores romances de Stephen King retorna às telas numa nova versão, que tem suscitado polêmica entre os fãs do mestre do Maine e entre os apreciadores de terror em geral. Há quem considere a versão de 1989, dirigida por Mary Lambert, superior, há quem prefira o remake que acaba de estrear, assinado pela dupla Kevin Kölsch e Dennis Widmyer, e também há quem não aprove nenhuma das duas versões e só recomende o livro. Certo, eu já escrevi sobre muitos filmes, quase sempre explorando suas conexões com a literatura, mas não sou um comentarista de cinema – para isso, precisaria fazer as coisas numa velocidade vertiginosa, de preferência através de um canal no YouTube em vez de um blog. Ocorre que, além de eu não gostar de falar para a câmera, ter que lidar com prazos exíguos tiraria a diversão da coisa, pelo menos para mim, sem contar que sou apenas um apreciador de cinema, não um profundo conhecedor do assunto. Por tudo isso, nunca pensei a sério na possibilidade. Entretanto, não poderia deixar de ir ao cinema conferir pessoalmente o novo filme, e, enquanto assistia, uma série de possíveis comentários foi vindo espontaneamente à minha cabeça, de modo que, ao sair da sessão, já estava mais ou menos óbvio que eu teria que escrever um texto (há textos que eu decido escrever ou não escrever, e há outros que simplesmente se impõem). Então, revi o filme de Lambert, reli trechos-chave do livro, que li há anos, e lá vamos nós.

Louis Creed, médico, está se mudando com sua família para uma grande e acolhedora casa de subúrbio no município de Ludlow, no Maine (é claro!), pois vai assumir a chefia dos serviços médicos no campus da universidade desse estado, que fica em Bangor, relativamente perto. A casa fica à beira de uma rodovia por onde caminhões pesados trafegam velozmente dia e noite, o que faz Louis e sua esposa, Rachel, adquirirem o hábito de manter sempre um olho nos filhos, Ellie, de cinco anos, e Gage, um bebê que há pouco começou a andar. O quinto membro da família é o gato de Ellie, de nome Winston Churchill, mas que, no dia a dia, é chamado de "Church" – uma abreviação de Churchill e que, convenientemente, também significa 'igreja', assim como não terá escapado ao leitor atento e conhecedor da língua inglesa que o sobrenome da família pode ser traduzido por 'credo', com o sentido de fé ou sistema de crenças. King não escolheu esses nomes por acaso. Na época em que O Cemitério teve origem, o escritor atravessava uma crise em sua vida pessoal por conta de sua dependência do álcool (e, segundo certas fontes, de outras drogas também), correndo o risco de a esposa deixá-lo e levar os filhos consigo. O medo da perda o levou a refletir sobre outras maneiras pelas quais uma pessoa pode perder seus entes queridos, sendo a morte, é claro, a maneira mais comum e também a mais dolorosa, por representar uma perda definitiva e irreversível. Qual seria (ele deve ter-se perguntado) a verdadeira relação da fé e da religião com tudo isso? Elas oferecem conforto diante da perda, mas aquilo tudo que ensinam sobre Deus e sobre a morte não ser o fim, seria real, ou apenas algo que a humanidade criou para suavizar a própria dor? E, em crise ou não, King continuava a ser um escritor, que é um tipo de criatura que nunca realmente para: esses questionamentos se misturaram com algumas outras ideias e, a partir disso, uma nova história começou a tomar forma. O resultado está nestas páginas, que estão, sem dúvida, entre as mais poderosas, sombrias e angustiantes já escritas pelo cara.

Em sua nova residência, os Creed têm como vizinhos mais próximos um homem de nome Judson Crandall ("Jud" para os amigos) e sua esposa, Norma, um casal idoso que morou toda a vida naquela região. É Jud, profundo conhecedor dos caminhos e das histórias locais, quem mostra a Louis e sua família o "simitério de bichos" (no original, pet sematary), como diz a placa toscamente pintada por alguma das crianças que têm usado o local já há décadas para sepultar seus animais de estimação, muitos deles vítimas do tráfego na estrada. O próprio Jud, em criança, enterrou um cachorro ali… Ou essa é a versão que ele conta, um pouco diferente da realidade, como o leitor descobrirá depois.

A visita ao local acaba por causar na cabecinha da pequena Ellie sua primeira reflexão para valer a respeito da morte. Ela fica angustiada ante a ideia de um dia ter que dar adeus a seu querido Church, o que obriga Louis a ter com ela aquela conversa, sempre complicada, que todos os pais, mais dia, menos dia, precisam ter com as crianças sobre esse assunto. O médico lida com o problema de maneira bastante sensata, na minha opinião, mas sua esposa não parece pensar o mesmo… Na verdade, para ela, não há uma maneira sensata de encarar essa questão. Rachel tem uma fobia anormal à simples ideia da morte, e, se dependesse só dela, seus filhos cresceriam ignorando tudo a respeito. Mais adiante, descobriremos que esse medo irracional teve origem num episódio de sua infância – um episódio terrível.


Outro episódio terrível é o que tem lugar na universidade, bem no primeiro dia de Louis no novo emprego: um jovem estudante sofre um acidente de moto e tem a cabeça praticamente destruída ao colidir com o tronco de uma árvore. Quando o levam ao ambulatório chefiado por Louis, o médico percebe na hora que não há nada que possa ser feito para salvar a vida do rapaz, mas, ainda assim, ele e sua equipe se esforçam o quanto podem. Antes de exalar sua última respiração, o jovem, de nome Victor Pascow, sussurra para Louis algumas frases perturbadoras a respeito do simitério de bichos, em especial sobre ele "não ser o verdadeiro cemitério". Mais ainda: de alguma forma, Victor chama Louis pelo nome, embora os dois nunca se tivessem visto antes. O médico racionaliza tentando convencer-se de que Pascow apenas emitiu gemidos desconexos, e de que sua própria mente, perturbada pelo estresse extremo daquela situação, fez o resto, levando-o a acreditar ter ouvido palavras que na verdade não existiam. Naquela noite, ele tem um sonho (pelo menos, tenta acreditar que foi um sonho) no qual o fantasma de Victor aparece e o guia até o simitério, onde lhe mostra uma barreira de troncos que delimita o lugar e o adverte de que ela nunca, jamais deve ser transposta, por maior vontade que ele tenha de fazê-lo. Na hora, mesmo em meio à lógica toda peculiar dos sonhos, Louis pergunta-se qual o sentido de tal aviso: por que cargas d'água haveria ele de querer transpor a barreira? A resposta virá mais tarde, e não o deixará feliz.

Todo aquele território pertenceu, em tempos, aos índios Micmac, tribo que ocupava partes do que são hoje a Nova Inglaterra (região nordeste dos Estados Unidos) e o sudeste do Canadá. Não se enganem com o nome "engraçadinho": os Micmac eram guerreiros violentos, temidos pelos colonizadores e por outras tribos. Contudo, por mais ferozes que fossem, não eram adeptos do canibalismo – pelo menos, não sob condições normais. Quando, durante invernos especialmente longos e penosos (e os invernos daquela região não são brincadeira), eram forçados a isso, também eles recorriam a racionalizações: diziam que o wendigo, uma entidade maligna de seu folclore, os havia tocado, despertando um apetite incontrolável por carne humana. Os restos das vítimas dessas refeições macabras eram enterrados no alto de uma colina rochosa que – adivinhem – fica poucos quilômetros além do que é agora o simitério de bichos, em terra selvagem e onde só se pode chegar transpondo a tal barreira de troncos. Ao longo do tempo, os Micmac deixaram de usar o cemitério e passaram a evitá-lo, dizendo que o wendigo tinha azedado a terra e tornado aquele um lugar ruim. Porém, o velho cemitério indígena parece ter ganho um poder que não tinha nos tempos antigos. Louis descobre isso quando Church, no que pode ser considerado uma espécie de tragédia anunciada, morre atropelado na estrada. Por sorte (bem, pelo menos é o que parece), Rachel e as crianças estão viajando, o que lhe deixa algum tempo para pensar sobre como dar a notícia a Ellie. Mas Jud tem outra ideia. Ele guia Louis numa exaustiva jornada noturna até o cemitério Micmac, e é ali que, por razões que se recusa a explicar, ele insiste para que o médico enterre o gato da filha.

Louis, homem sem qualquer inclinação para o misticismo, sente com toda a clareza alguma coisa diferente e sinistra naquele lugar e na mata que o rodeia, e, uma ou duas vezes, a coisa não fica só no nível das sensações: desafio qualquer um a não ter calafrios ao ler o trecho em que ele e Jud ouvem "alguma coisa grande" se movimentando bem perto deles, sem que cheguem a ver seja o que for… Mas ouvem uma gargalhada louca, carregada de um triunfo maligno, soar ensurdecedora pela floresta escura. Palavra de honra, essa parte é assustadora até para quem está acostumado a ler Stephen King!… Naturalmente, na manhã seguinte, Louis terá se convencido de que o que ouviu se mover no mato era apenas um alce ou talvez um urso, animais que por vezes ainda aparecem nos bosques da região. E quanto à gargalhada? O grito de algum pássaro noturno, na certa. São mesmo incríveis os contorcionismos lógicos que as pessoas "racionais" são capazes de fazer para não enxergar os fatos, quando estes não se encaixam na maneira como elas acreditam que a realidade deva se comportar.


Mais difícil é achar uma explicação "racional" quando Church reaparece em casa – vivo, ou assim parece – no dia seguinte. Porém, o gato está mudado: seu comportamento, seu jeito de mover-se, seu olhar, tudo está diferente e um tanto desagradável. Inquirido por Louis, Jud revela o segredo do velho cemitério Micmac: ele realmente tem o poder de trazer de volta à vida as criaturas que são enterradas ali, mas elas voltam mudadas, e não para melhor. Jud nem tem certeza se fez a coisa certa ao levar Louis lá, pois, como ele diz, às vezes é melhor estar morto. Conhecer uma maneira de (tentar) enganar a morte faz, inevitavelmente, com que as pessoas pensem em coisas que não devem ser pensadas… E, em momentos de grande sofrimento, um homem pode cometer grandes erros. Parece haver algum tipo de consciência maligna, sem forma, envolvendo o antigo cemitério, uma consciência que, segundo Jud, já teve grande poder, e ele receia que esteja refazendo suas forças, explorando as fraquezas dos seres humanos, que, tendo visitado o lugar uma vez, acabam achando razões para voltar… E para levar outros até lá.

O Cemitério, na minha opinião, pertence ao tipo de terror mais aflitivo. Envolve elementos sobrenaturais, sim, mas também nos coloca cara a cara com o que há de tenebroso e aterrador dentro de nós mesmos. Seja lá o que for a mente sem corpo que habita o cemitério Micmac, ela não teria poder se não encontrasse nas mentes das pessoas o material de que precisa para trabalhar: o medo da morte e o impulso irracional de fazer tudo, qualquer coisa, para escapar da dor – e, para seres como nós, capazes de amar, poucas dores podem ser maiores que a da perda de um ente querido. A "coisa" sabe disso muito bem.

Os Filmes

Até aqui, eu estava falando sobre o livro. Agora, quando me preparo para entrar no assunto dos filmes, percebo que será inevitável dar alguns spoilers. Portanto, se vocês estiverem lendo isto antes de terem lido e/ou assistido, sugiro que parem aqui mesmo, leiam, assistam, e depois voltem (voltem mesmo!) para ler o restante do post (deixar um comentário também não dói nada!). Ou continuem por sua conta e risco, como preferirem. Vocês foram avisados! Vamos em frente.

A primeira versão de Pet Sematary para o cinema não é nenhum portento, mas tem o grande ponto positivo de ser bem mais fiel ao livro que essa nova – e tem excelentes razões para ser, já que o próprio Stephen King adaptou o romance para a tela e acompanhou de perto toda a produção, além de, como era seu costume em filmes baseados em obras suas, fazer uma ponta: aqui, ele interpreta o ministro religioso (metodista, provavelmente) que aparece oficiando um funeral. Por outro lado, não é um filme de atuações brilhantes. A melhor é provavelmente a do veterano Fred Gwynne como Jud Crandall; o restante do elenco exibe variados graus de canastrice, embora seja um tanto penoso para um fã de longa data de Jornada nas Estrelas dizer isso: no papel de Rachel está ninguém menos que Denise Crosby, crush de nove entre dez trekkers quando interpretava a tenente Tasha Yar, oficial de segurança da Enterprise em Jornada nas Estrelas: a Nova Geração (e só não o era de todos os dez porque a tripulação também incluía a conselheira Deanna Troi, interpretada por Marina Sirtis). Caramba… Isso já faz cerca de 30 anos e Denise é hoje uma senhora de 61!… Mais uma coisa para acrescentar às reflexões sombrias de Louis Creed sobre a passagem implacável do tempo e a brevidade da vida humana.


Isso, por sinal, já é um exemplo do quanto literatura e cinema são mesmo linguagens diferentes: nenhum dos dois filmes inclui as reflexões de Louis, nem poderia, já que a única maneira de fazê-lo no cinema seria por meio de longos trechos discursivos, o que afetaria o ritmo e seria tedioso. No livro, as numerosas passagens que reproduzem os pensamentos do protagonista são essenciais para entrarmos no clima e adquirirmos a compreensão dos problemas que vão ser tratados – e, pelo menos para mim, essas passagens não se tornam entediantes em momento algum. Entediantes, não… Já quanto a deixarem o leitor um tanto down, é outra conversa. Quando Louis percebe que seu filho de um ano e pouco está finalmente começando a ter cabelo de verdade, deixando para trás aquela fase de penugem que a maioria dos bebês tem no início da vida, isso, claro, é motivo de comemoração… mas, nas profundezas de seu íntimo, uma parte sua chora, porque o cabelo de Gage é mais um dentre tantos lembretes de que a areia na ampulheta está correndo para Louis tal como para o garoto… Com a diferença de que Gage está crescendo, indo rumo ao auge de sua vida, enquanto Louis, nos seus 30 e poucos anos, já entrou na espiral de decadência que, mais dia, menos dia, terminará num túmulo.

Outra coisa que os espectadores de qualquer um dos filmes jamais saberão até que leiam o livro é que, ao contrário de sua esposa, Louis tem um background que deveria (ou, ao menos, isso seria de se esperar) torná-lo mais apto a encarar a ideia da morte de uma maneira serena e natural: seu tio, Carl Creed, era agente funerário, e Louis passou alguns períodos trabalhando com ele, durante suas férias do colegial e início da faculdade (o famoso "emprego de verão" dos estudantes americanos). Carl era, antes de tudo, um homem prático, o que deve ser imprescindível nesse ramo de trabalho, e Louis, como seu aprendiz, assimilou um pouco do feeling da coisa: é preciso ter sensibilidade para lidar com uma família enlutada, mas, ao mesmo tempo, suficiente frieza para não se deixar abalar – duas capacidades tão úteis a um médico quanto a um agente funerário. Não que isso tudo deixe alguém preparado para sentir a perda na própria carne, como Carl e Louis perceberam quando Ruthie, filha do primeiro e prima favorita do segundo, morreu num acidente em plena adolescência. Tudo isso nos é revelado por meio dos pensamentos e lembranças de Louis. Mas já chega de falar do que os filmes não têm: vamos ver o que cada um deles tem.

Spoiler número um: no primeiro filme, tal como acontecia no livro, Gage, pouco tempo depois de seu segundo aniversário, morre atropelado na estrada, e Louis, transtornado pelo sofrimento, decide violar seu túmulo e enterrar o menino no cemitério Micmac, na esperança de "tê-lo de volta". Mais uma vez, o livre acesso à cabeça do protagonista, que temos no livro e não nos filmes, faz uma falta incrível. Um dos pontos-chave da história, talvez até o mais importante de todos, é a maneira como a influência daquela presença sombria no cemitério afeta a mente das pessoas, e, por consequência, a lenta, gradual e inexorável transição da sanidade para a loucura. Louis já fora severamente advertido por Jud de que não deveria nem pensar nessa possibilidade, e ouvira dele a história da única vez (pelo menos, até onde ele sabe) em que um ser humano foi enterrado no local: um jovem da cidade que morreu na França durante a Segunda Guerra Mundial, e cujo pai, incapaz de aceitar a perda, foi em frente e realizou o ato blasfemo. O morto, que em vida fora um bom rapaz, normal sob todos os aspectos, voltou transformado numa coisa maligna e odiosa, que o próprio pai, arrependido, acabou por matar de novo. O filme de Mary Lambert, aliás, estraga completamente o efeito dessa história ao pintar o soldado ressuscitado como um zumbi sem inteligência, perigoso, sem dúvida, mas da mesma forma como um animal irracional é perigoso: sem dolo, sem intenção maligna, apenas agindo de acordo com sua "natureza", se é que algo nisso pode ser considerado natural. No livro, ele era muito racional, e demoníaco, cruel. Há também o caso de Church, agora um bicho estranho cujo simples olhar causa calafrios, e que seus donos sentem repugnância de tocar. Em resumo, ninguém pode dizer que Louis não foi avisado, mas ele encontra mil e uma desculpas e racionaliza o impulso insano que está sentindo, convence-se de que, mesmo que Gage volte "um pouco diferente", ainda será seu filho, e assim por diante. Fica no ar a mórbida sugestão de que Louis, que, por tudo o que sabemos sobre ele, é e sempre foi um homem sensato, nunca faria o que acaba fazendo se não fosse pela influência daquilo que habita o antigo cemitério indígena – mas, ao mesmo tempo, a entidade sombria não poderia manipulá-lo se já não houvesse uma brecha por onde conseguisse entrar. Tudo isso é perdido nos filmes, assim como as visões fugidias e apavorantes de uma coisa inominável que habita os pântanos entre o simitério de bichos e o cemitério Micmac. Inominável?… Não para os índios, que tinham, sim, um nome para ela: wendigo.


Se eu for considerar apenas o apuro técnico e a qualidade geral da produção, terei que dizer que o filme de Kölsch e Widmyer é superior, pois demonstra mais senso de cena e de ritmo, a narrativa na tela flui melhor, e os atores manjam bem mais da arte de representar que os do filme anterior, além, é claro, de tudo o que se pode fazer com toda a tecnologia de que o cinema não dispunha em 1989 e da qual dispõe hoje… Também gostei muito da ideia de fazer com que o ronco do motor dos caminhões na estrada pareça o rugido de alguma enorme fera, pois cai muito bem no papel que eles terão a desempenhar. Por outro lado, confesso que me irritam esses cineastas que fazem mudanças absurdas nas histórias, não aquelas mudanças necessárias e inevitáveis quando se está adaptando um livro para a tela, mas mudanças sem qualquer justificativa possível, parecendo motivadas tão somente pela vontade de ser diferente, de "imprimir uma marca autoral" e outras estultices desse gênero. O que nos leva ao spoiler número dois: no filme novo, é Ellie (que, por sinal, virou uma garota bem mais velha, de nove anos) quem é atropelada, e não Gage. Agora me digam: o que essa mudança acrescenta? Trabalhar com criança em filme de terror deve ser extremamente difícil, mas, quando é bem feito, o resultado é horripilante, e, quanto menor a criança, maior o impacto. Uma menina de nove anos agindo de forma demoníaca não tem o mesmo efeito que um bebê de dois anos fazendo o mesmo, isso para não mencionar o fato irritante de terem mexido na história sem a menor necessidade. É verdade que o novo filme tem vários acertos, um deles a cena em que Louis, interpretado pelo ator Jason Clarke, deita-se ao lado da filha (ou da coisa que parece ela) para "fazer companhia até que adormeça". Nesse momento, ele já começou a perceber o tamanho do erro que cometeu, e ver um homem adulto morrendo de medo da garotinha cujas fraldas trocou é, sem dúvida, bastante perturbador. O final também não me agradou, pois o filme termina com a família novamente reunida – de uma forma grotesca e macabra, é verdade, mas, ainda assim, reunida, o que põe a perder a mensagem mais pungente que havia na obra original, a de que a separação imposta pela morte é dolorosa, mas é algo com que precisamos aprender a conviver, pois nada de bom pode vir da sua não aceitação.

Enfim, não tenho como dizer que nenhum dos dois filmes é excelente, mas as broncas que tenho do de Mary Lambert são de relevância muito menor: basicamente deficiências técnicas e coisas do tipo, como o fato de pelo menos duas cenas importantes, que, no livro, aconteciam à noite, se passarem em plena luz do dia – obviamente porque filmá-las à noite seria muito mais trabalhoso e caro. Já meu descontentamento com o filme de Kölsch e Widmyer é mais profundo, ligado a questões da própria estrutura da história. Por isso, se vocês só quiserem ver um filme baseado em Pet Sematary, minha sugestão é que escolham o primeiro, que, com todos os problemas que possa ter, ao menos tem o mérito de tentar ser fiel à história que lhe deu origem. E, independentemente do que decidam em relação aos filmes, não deixem de ler o livro, que é nada mais nada menos que Stephen King em sua melhor forma.

terça-feira, julho 28, 2015

A Trilogia da Escuridão + The Strain

Quando um voo da Regis Airlines, procedente de Berlim, se prepara para pousar no aeroporto internacional John F. Kennedy, em Nova York, não parece haver razão alguma para imaginar que algo possa estar errado. A enorme aeronave toca o solo em segurança e no horário previsto. Porém, quando seus motores desligam, o mesmo acontece com todas as luzes a bordo, e, o que é pior, a tripulação deixa de responder às insistentes tentativas de comunicação por parte da torre de controle do aeroporto. E há os passageiros, que normalmente ficam num frenesi para desembarcar assim que o avião aterrissa, mas que, no presente caso, parecem estar muito quietos… Quietos demais para ser um bom sinal. A primeira coisa em que todos pensam, claro, é numa ação terrorista, possivelmente com uso de armas químicas ou biológicas. Para lidar com a possível presença de patógenos desconhecidos, é chamada a equipe do Centro de Controle de Doenças, liderada pelo Dr. Ephraim Goodweather, também coordenador do Projeto Canário, cuja função é manter vigilância constante contra ameaças de epidemias. Quando Ephraim ("Eph" para os amigos) e sua colega, a Dra. Nora Martinez, ambos pesadamente protegidos contra qualquer contágio, entram no avião para investigar, a cena que encontram é atordoante. Duzentas e seis pessoas, entre passageiros e tripulação, estão aparentemente mortas, sem sinal de violência, e, se houve infecção, o agente foi algo diferente de tudo o que os dois experientes epidemiologistas já viram. Com o tempo, quatro pessoas – três passageiros e o comandante – despertam, mas nenhuma delas consegue dizer o que aconteceu no voo, e nem mesmo acrescentar qualquer informação que lance alguma luz sobre a estranheza do caso.

A investigação conduzida pelas autoridades encarregadas do tráfego aéreo só encontra um objeto suspeito, ou, no mínimo, estranho a bordo do avião: uma enorme caixa retangular de madeira de lei, toda coberta de intrincadas figuras entalhadas representando morte e sofrimento. A caixa dá a ideia de um esquife, mas tem mais de dois metros e meio de comprimento, e, em vez de uma simples tampa, possui portas duplas, à maneira de um guarda-roupa, por assim dizer. Quando é aberta, descobre-se que possui um trinco pelo lado de dentro. No mais, a caixa contém apenas terra. O inacreditável é que ela não consta no manifesto de bagagem, o que não faz nenhum sentido: em tempos pós-Onze de Setembro, deveria ser impossível embarcar com carga não declarada em qualquer voo com destino aos Estados Unidos, e ainda mais um objeto desse tamanho. Eph deseja submeter a caixa a mais análises, assim como os corpos das vítimas e os quatro sobreviventes, que, nem é preciso dizer, deverão ficar sob rigorosa quarentena até segunda ordem – mas não consegue que nenhuma dessas providências seja tomada. A caixa desaparece misteriosamente, apesar de estar sendo mantida em área de acesso restrito, e um dos sobreviventes é uma advogada arrogante e (infelizmente) com "contatos importantes", que consegue que ela e os outros sejam liberados, solenemente passando por cima das normas de segurança médica. Quanto ao exame dos corpos, ele bem que começa a ser feito, mas os procedimentos são interrompidos de forma bizarra, quando os supostos mortos começam a levantar das mesas de autópsia e a atacar quem encontram pela frente, usando novos e horrendos órgãos que parecem ter desenvolvido durante o período de latência que foi confundido com morte.

O agente é, sem dúvida, um vírus, e, como todo vírus, tem um único objetivo na existência: infectar seres vivos, para obrigar suas células a funcionar como fábricas, produzindo o maior número possível de novos vírus. Isso mesmo: um vírus só existe para se replicar. Ele não faz mais nada. Não é capaz de mais nada. Sob esse aspecto, como dissemos, o vírus em questão é igual a qualquer outro… Em tudo o mais, porém, é horrivelmente único. Ele "reescreve" o código genético do organismo infectado, causando transformações físicas para tornar o hospedeiro mais útil aos "interesses" do vírus. Os órgãos internos secam e atrofiam, já que a maior parte das funções que realizavam não são mais necessárias à nova criatura. Na garganta, desenvolve-se uma espécie de tentáculo muscular, que fica recolhido, talvez enrolado quando em repouso, mas que, esticado, chega a medir até um metro e oitenta de comprimento, terminando num ferrão. A criatura usa o tentáculo como se fosse um chicote para subjugar a presa; feito isso, crava o ferrão para sugar o sangue – e quem é sugado fica infectado, de modo que o processo recomeça.

A última parte lembra algo? Não é mera coincidência. Há um homem em Nova York que conhece tanto as antigas lendas quanto a realidade por trás delas. Abraham Setrakian, um judeu de origem armênia, mas criado na Romênia, é proprietário de uma loja de penhores no Harlem, mas já foi professor de literatura e folclore eslavos na universidade de Viena, e teve seu primeiro contato com a praga vampírica mais de 60 anos antes, quando era prisioneiro dos alemães em Treblinka, na Polônia. Embora Treblinka fosse um campo de extermínio, Setrakian, como outros prisioneiros jovens e fortes, foi mantido vivo, em caráter temporário, para que o Terceiro Reich pudesse se beneficiar de sua força de trabalho. Foi graças a essa prorrogação de vida que ele teve a chance de aproveitar o caos que se abateu sobre o campo por ocasião de um ataque do exército russo, e escapar. Antes de sua fuga, contudo, o jovem Abraham testemunhou um horror ainda maior que as atrocidades dos nazistas, que faziam parte do cotidiano do lugar. Escondida nas sombras da noite, uma criatura misteriosa, dotada de força e velocidade impossíveis, esgueirava-se pelos barracões que serviam de alojamento aos prisioneiros, alimentando-se dos homens adormecidos, e, o que é pior, com a conivência do comandante do campo – Abraham tem certeza desse detalhe, pois foi ele quem construiu e entalhou a caixa, por ordem do comandante e para uma finalidade que não é difícil imaginar. O oficial nazista permitia a esse ser fartar-se do sangue dos prisioneiros – que seriam mortos de qualquer forma – e lhe oferecia abrigo, em troca… do quê? A busca da resposta para essa pergunta, do conhecimento da verdadeira natureza da criatura, e de uma maneira de destruí-la, viriam a tornar-se a razão da vida de Setrakian durante as décadas seguintes. Agora ele está velho e sofrendo do coração, mas, se seu vigor físico já não é igual ao de outros tempos, sua coragem continua a mesma, e sua mente está mais aguçada que nunca.

Embora seja um folclorista por formação, Setrakian não negligenciou o que a ciência tinha a contribuir durante seus longos anos de pesquisas e investigações. Ele já sabe, por exemplo, que o que transforma seres humanos em vampiros é um vírus, não uma maldição ou qualquer outra coisa sobrenatural. Descobriu também que o vetor da praga é um pequeno verme, com menos de cinco centímetros de comprimento e espessura pouco maior que a de um fio de cabelo, e com uma habilidade extraordinária para perfurar a pele humana: se você tiver contato físico com um desses, em segundos ele estará na sua corrente sanguínea, e então, nada mais poderá ser feito para salvá-lo. O velho professor apurou, ainda, que a criatura que ele viu em Treblinka era um vampiro-mestre, algum tipo de consciência antiga e maligna, capaz de trocar de corpo ao longo do tempo – o que o faz praticamente imortal – e que controla o contágio do vírus para servir a seus próprios planos. Os vampiros comuns são seres apenas semi-inteligentes, capazes de pouca coisa além de ir atrás de sangue e espalhar a praga, mas o Mestre pode, quando assim deseja, transformar certos humanos escolhidos em uma classe superior de vampiros, mais espertos e poderosos, com capacidade de controlar seus instintos e lembrança total de suas vidas anteriores. Esses, ele reserva para serem seus servidores diretos.


Todo esse conhecimento acumulado por Setrakian, bem como sua impressionante coleção de armas e livros, irá mostrar-se de importância vital para o pequeno grupo dos que irão opor-se aos planos do Mestre a fim de tentar evitar um "apocalipse vampiro" de proporções mundiais. Desse grupo fazem parte Eph e Nora, que por meios tortuosos vêm a conhecer o professor e a somar forças com ele, já que, no fim das contas, todos têm o mesmo objetivo, embora discordem sobre quem recrutou quem para sua causa. Aos três, junta-se eventualmente um sujeito de nome Vasiliy Fet, um filho de imigrantes russos que trabalha para a secretaria municipal de saúde como exterminador de pragas, sendo os ratos sua especialidade. Graças a sua experiência profissional, Vasiliy é o primeiro a perceber que, sob certos aspectos, os vampiros agem de forma parecida à dos roedores. Além disso, ele pensa de forma fria, desprovida de sentimentalismo. Eph e Nora, ao menos no início, sentem uma compreensível hesitação em situações que exigem a eliminação física de vampiros, porque não conseguem deixar de pensar neles como os seres humanos que já foram, e pelos quais eles, como médicos, juraram zelar. Já para Vasiliy, a partir do momento em que alguém é infectado, passa a ser nada mais que um veículo disseminador de doença, assim como os ratos – e deve ser tratado tal como eles. Essa atitude, aprovada por Setrakian, causa horror e repulsa aos outros dois, o que abala a união do grupo ― e isso só pode ser bom para o Mestre… Porém, muitas reviravoltas ainda terão lugar antes do fim.

E, como se a situação já não fosse desesperadora o suficiente, existem outras forças e outros interesses em ação. Um tal Eldritch Palmer (haveria algum paralelo com Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K. Dick? Hum…), um dos homens mais ricos do mundo, está agindo em parceria com o Mestre. Para começar, foi graças a ele que o grande vampiro conseguiu transpor o oceano para chegar da Europa aos Estados Unidos ― pois, embora os vampiros desta história tenham muitas diferenças em relação aos vampiros clássicos, também possuem semelhanças, e uma delas é a incapacidade de atravessar água em movimento, a não ser com a ajuda de humanos; qual seria a explicação científica para isso, não se sabe (no terceiro volume é oferecida uma explicação mítica). Palmer é um homem poderoso em todos os sentidos, exceto o físico: sempre teve uma constituição débil e uma saúde frágil. Já tem certa idade, uma idade à qual um homem comum com os mesmos problemas dificilmente teria chegado; só conseguiu manter-se vivo graças ao fato de ter dinheiro para recorrer sempre aos mais modernos tratamentos médicos, e ainda não acha que tenha vivido o suficiente. Na verdade, ele almeja a imortalidade, que o Mestre já ofereceu a alguns humanos antes: Palmer quer ser transformado num daqueles vampiros superiores, com memória e inteligência, e assim seguir vivendo indefinidamente. Em troca, providenciou a viagem do Mestre (com pressões ou subornos às pessoas certas, conseguiu que a enorme caixa fosse embarcada naquele voo, sem registros e sem perguntas), e agora usa sua influência junto à imprensa numa maciça campanha de desinformação, para evitar que o público em geral fique sabendo o que realmente está acontecendo. Nisso, a incredulidade teimosa que é sempre a reação da maioria diante do insólito é uma grande aliada: a TV e os jornais falam em “tumultos”, "saques", uma onda de desaparecimentos, e todo tipo de perturbação da ordem, mas sem nunca revelar o que há por trás de todo esse caos. Boatos circulam, é claro, mas as pessoas preferem acreditar no que conhecem. Vampiros? Quem acreditaria nessa "bobagem"? A maior parte das pessoas vai sempre se obstinar em fechar os olhos à realidade, se ela for muito diferente daquilo que estão acostumadas a ver como "realidade".

Escrevi acima que os vampiros da Trilogia da Escuridão têm diferenças e também semelhanças com os vampiros clássicos. Pois outra semelhança, além da questão da água corrente, é a velha crença segundo a qual um vampiro recém-transformado irá atrás, em primeiro lugar, de seus familiares e amigos – daqueles que ele amou em vida. Essa crença, infelizmente, é verdadeira. Ao longo do primeiro volume, Noturno, enquanto o mundo ainda mantém uma certa aparência de normalidade, acompanhamos a disputa entre Eph Goodweather e sua ex-esposa, Kelly, pela guarda do filho de onze anos, Zack. Isso pode parecer apenas um recurso para fazer de Eph um personagem mais complexo, dando-lhe background e mais humanidade, mas vira algo bem diferente a partir do momento em que Kelly é infectada pelo vírus. Em sua nova existência como vampira, ela não vai descansar enquanto não infectar também o garoto para poder tê-lo novamente junto dela, de modo que a disputa que antes acontecia nos tribunais irá continuar, só que de uma maneira bem mais selvagem e assustadora.

Puxa, comentar livros muito ricos é difícil! Conforme vou escrevendo, vão surgindo mais e mais pontos interessantes que não parece certo deixar de mencionar. Um deles acaba de me ocorrer por causa dessa comparação entre os vampiros de que estamos falando aqui e os vampiros clássicos. Mas, afinal, que raios é um "vampiro clássico"? Suponho que podemos defini-los como sendo os vampiros criados por autores vitorianos como Bram Stoker, John William Polidori, Joseph Sheridan Le Fanu, esse pessoal, e os que vieram depois, diretamente influenciados por eles, tanto na literatura quanto no cinema. Porém, o vampiro em si é mais antigo que isso, e, em sua origem, muito menos glamouroso. Para falar a verdade, nas lendas da Europa oriental, que datam, no mínimo, do fim da Idade Média (e muito provavelmente de bem antes), os vampiros são descritos como seres repelentes, tão dignos de pena quanto de temor, com uma aparência hedionda – às vezes cadavérica, outras com traços animais –, que andavam nus ou cobertos de trapos imundos, escondiam-se em túmulos enlameados e tinham pouca ou nenhuma inteligência. Que diferença entre isso e as representações de vampiros na cultura popular do século XXI, não?… O que a Trilogia da Escuridão faz, de certa forma, é apontar para as origens, ao mostrar a face mais bestial e menos sedutora do vampirismo. Ao mesmo tempo, a existência de exemplares "superiores", como os escolhidos do Mestre, pode ser vista como a possível origem das noções a respeito de vampiros mais inteligentes e sofisticados, como os Lordes Ruthven, as Carmillas e os Dráculas dos vitorianos.


Os fãs do cineasta mexicano Guillermo del Toro ficaram surpresos com a notícia de sua estreia como escritor, e, quando se soube que seria em parceria com o veterano Chuck Hogan, foi inevitável a dúvida: será que esse não vai ser mais um daqueles casos em que um dos autores faz o trabalho, enquanto o outro entra com o nome famoso? Porém, quem leu convenceu-se do contrário: Hogan provavelmente foi o responsável por dar forma ao texto, mas o estilo de Del Toro está por toda parte; a própria ideia geral deve ter sido dele. E, se a estreia do cara na literatura surpreendeu, o fato de a obra resultante ser adaptada para a tela já era de se esperar – só que a tela em questão acabou sendo a da TV em vez da do cinema, seu campo costumeiro de atuação. O que nos leva ao próximo tópico…

Na TV

The Strain (algo como "linhagem, descendência") era o título original da Trilogia da Escuridão, e foi mantido na série de TV baseada nela. A produção é do canal FX, e a primeira temporada, exibida nos Estados Unidos em 2014, já está disponível entre nós em DVD. A segunda está indo ao ar este ano em terras gringas, e a terceira está confirmada para 2016; uma temporada para cada volume da trilogia. Quando a série chegou ao Brasil, foi exibida e lançada em DVD com o título em inglês mesmo, que provavelmente foi considerado mais chamativo – algo bem típico do nosso país, embora eu não possa dizer que aprovo.

Quem lê um livro e gosta muito costuma ficar contrariado quando assiste à versão audiovisual e constata que muita coisa foi alterada – mas será que faz sentido ter essa reação quando o próprio autor esteve envolvido na produção? Quando as mudanças feitas foram decididas ou, pelo menos, aprovadas por ele? É o que se verifica aqui: Del Toro e Hogan criaram a série, baseada, naturalmente, em seus próprios livros, e assinam a produção executiva; além disso, Del Toro dirigiu o episódio-piloto, verdadeiro longa-metragem com mais de 70 minutos de duração, muito mais que os outros episódios, que têm em torno de 40 minutos cada. Num dos extras encontrados nos DVDs da primeira temporada, ele diz que uma das coisas legais nas alterações feitas é que, dessa forma, a série reserva surpresas até mesmo para quem leu os livros. Eu acrescentaria que, para os autores, essa produção deve ter representado uma oportunidade rara: a de "passar a limpo" uma obra depois de já publicada! Quem escreve fatalmente conhece a experiência e a sensação: você está trabalhando num texto (seja um post para um blog ou uma trilogia de romances, tanto faz) e, depois de muito quebrar a cabeça, por fim consegue lhe dar uma forma final que o deixa satisfeito – naquele momento. Porém, é inevitável que, ao reler o resultado mais tarde, você ache que poderia ter ficado melhor, caso tivesse feito isto ou aquilo de forma diferente. Até onde sei, a história da literatura registra raros casos de livros que tenham sido "mexidos" de forma significativa (ao menos por seus próprios autores) depois de publicados. Hoje em dia, entretanto, novas mídias abrem possibilidades novas, e, graças a isso, Del Toro e Hogan puderam reinventar o que consideraram "reinventável" em sua saga, sem atormentar seus leitores com diferentes versões dos livros.

Nos papéis principais da série estão David Bradley (que interpreta Abraham Setrakian na atualidade, sendo substituído por Jim Watson nas cenas da juventude do personagem), Corey Stoll (Eph Goodweather), Mia Maestro (Nora Martinez), Kevin Durand (Vasiliy Fet), Jonathan Hyde (Eldritch Palmer) e Robin Atkin Downes (o Mestre). E, a meu ver, duas das mais importantes mudanças ocorridas na transição das páginas para a tela são representadas por dois personagens que não fazem parte dessa lista de "principais". Um deles já existia nos livros, embora só aparecesse no segundo volume e tivesse relativamente pouca importância: é Thomas Eichhorst, que comandava o campo de Treblinka quando Setrakian era prisioneiro lá. Convertido em vampiro, Eichhorst continua vivo (se é que ser vampiro é estar vivo) e em plena atividade no século XXI. Na série, o personagem aumentou muito em importância, aparecendo, e bastante, desde o início da primeira temporada. No presente, serve ao Mestre, sendo o contato entre ele e Palmer; no passado, é uma figura-chave durante os flashbacks ambientados nos dias da Segunda Guerra, que, por sinal, foram muito ampliados em relação ao que havia nos livros. Para completar, Eichhorst é magnificamente interpretado por Richard Sammel, que, além de atuar bem, tem até a aparência perfeita para "ser" um oficial nazista.


A outra personagem a que me referi é a hacker Dutch Velders; essa foi criada para a série. Ela começa do lado errado: Palmer a contrata para derrubar os principais servidores de internet da América do Norte, a fim de dificultar as comunicações e reduzir as chances de que se forme alguma resistência organizada contra a propagação da praga vampírica. Dutch, que nada sabe sobre o vírus e seus efeitos, executa a sabotagem acreditando estar "apenas" servindo a alguma trapaça corporativa; quando conhece o grupo de heróis e compreende o que ajudou a fazer, ela muda de lado e torna-se uma aliada valiosa para Setrakian e companhia – além de atrair o interesse de Vasiliy, um sujeito, até então, bem pouco romântico. Dutch é interpretada por Ruta Gedmintas, que, por causa desse nome incomum e de sua beleza exótica, cheguei a pensar que viesse de algum país improvável, mas não: a gata é inglesa (sua personagem também é, apesar do apelido de Dutch, 'Holandesa'), nascida na histórica Canterbury, e já participou de outras produções de destaque, como The Tudors, que, infelizmente, ainda não conheço. A inclusão de Dutch na trama parece atender às rápidas mudanças no mundo da mídia e das comunicações: o primeiro volume da Trilogia foi publicado em 2009, mas começou a ser bolado alguns anos antes, por volta de 2005. Nessa época, a internet já era parte integrante da vida de pessoas e nações, mas as comunicações ainda não eram totalmente dependentes dela, como hoje, de modo que Hogan e Del Toro provavelmente não pensaram que Palmer e o Mestre teriam que fazer algo com a rede para que seu plano funcionasse. Já em 2014, esse seria necessariamente um ponto essencial da coisa toda, e é aí que entra Dutch. São os autores reinventando sua criação, como escrevi acima.

Acho curioso, ainda, assinalar um detalhe sobre Nora. Nos livros, nada é dito sobre sua nacionalidade, mas, como seu nome e biotipo indicam origem hispânica, o leitor é levado a deduzir que ela pode ser mexicana, ou hispano-americana mesmo. Na série, é revelado que ela nasceu na Argentina e lá viveu sua infância, presumivelmente durante os anos 70 e início dos 80, ainda sofrendo os efeitos de uma das mais cruéis ditaduras que a América Latina, infelizmente tão experiente com esse tipo de coisa, já conheceu. Em um ou dois diálogos com Eph, Nora traça breves comparações entre tirania e vampirismo, baseadas no que viu e sentiu em seu país de origem quando era criança. Aí tem o dedo de Del Toro, que, sendo mexicano e admirado mundo afora, está em boa posição para lembrar ao público dos Estados Unidos que o resto do mundo existe e tem seus próprios problemas ― algo que os ianques têm extrema facilidade em esquecer. Além disso, o cara parece considerar questão de honra mostrar a dura realidade da vida de pessoas comuns sob regimes ditatoriais, como deve ter notado quem viu O Labirinto do Fauno.

A Trilogia da Escuridão e The Strain, a série de TV, são algo um pouco diferente das coisas que os fãs de Guillermo del Toro estão acostumados a receber dele, mas não menos fascinante ou empolgante. Ambas as obras misturam com eficiência drama, suspense, terror e ficção científica, e acorrentam o leitor/espectador de forma implacável, levando-o a querer mais e mais, até chegar ao desfecho da coisa toda. Prevejo que quem assistir à primeira temporada da série vai querer ler os livros, nem que seja só por não aguentar esperar mais dois anos pelo final da história. E essa é uma leitura que recomendo com entusiasmo!

quinta-feira, junho 19, 2014

O Vale dos Mortos

Zumbis são provavelmente os menos glamourosos dentre os monstros que têm povoado histórias de terror em livros, quadrinhos e filmes já há décadas ou, em alguns casos, séculos. Não têm o charme sinistro dos vampiros, nem a aura de selvageria e mistério dos lobisomens, e tampouco consta que sofram com dilemas existenciais como os que afligiam o angustiado e carismático monstro de Frankenstein. Como são lentos e descoordenados, os zumbis nem mesmo costumam ser tão perigosos assim; quando eu jogava Neverwinter Nights, adorava quando apareciam zumbis, porque eles representavam uma boa chance de ganhar pontos de experiência correndo pouco risco: bastava ficar a uma distância segura e usar o arco ou a besta, enquanto os seres patéticos, com seu passo lerdo, tentavam inutilmente aproximar-se o suficiente para atacar. É verdade que, nesse jogo, isso era possível porque os zumbis eram vulneráveis a ataques comuns, o que em outros lugares não acontece: em geral, eles nem tomam conhecimento de tiros ou ataques com armas cortantes ou perfurantes: só podem ser destruídos com fogo e, às vezes, com um golpe certeiro na cabeça, que destrua o cérebro. Sem contar que, mesmo no Neverwinter Nights, se os zumbis aparecessem em grande número, ou em terreno que dificultasse a esquiva, meu personagem estaria em apuros…

Em sua origem, no folclore do Haiti (e, segundo algumas fontes, em certos fatos lá registrados), um zumbi é alguém que, enfeitiçado por um houngan (feiticeiro vodu), adoece e "morre, só que não": o sujeito parece morrer, porém, depois do sepultamento, quando os parentes do suposto defunto já foram embora, o feiticeiro abre o túmulo e retira a pessoa, que, reanimada, mas reduzida a um comportamento de autômato, pode ser, daí em diante, usada como escrava. Contam-se histórias sobre plantações inteiras de cana-de-açúcar que eram, e talvez ainda sejam, conduzidas exclusivamente com mão-de-obra zumbi!… A ciência já investigou e comprovou que a poção dos houngans, preparada com extratos de diversas plantas e o veneno de uma espécie de sapo encontrada no Haiti, pode induzir um tipo de transe, que, mediante a administração de novas doses periódicas, permitiria, em teoria, manter uma pessoa indefinidamente em estado "zumbificado". Como toda lenda, a dos zumbis tem seu fundo de realidade.

Quando os autores de terror, e particularmente o cinema, se apropriaram do conceito, naturalmente tiveram que fazer algumas adaptações. Os zumbis que viraram astros de produções como A Noite dos Mortos-vivos (1968) de George Romero, e de incontáveis outras que se seguiram, eram uma coisa diferente: mortos realmente mortos que se levantam e andam por aí em plena decomposição, fedendo e perdendo pedaços – porque isso tinha um potencial de horror muito maior que mostrar uma multidão de haitianos de aparência perfeitamente comum, só que abobados e de olhos vidrados. Não sei de quem foi a ideia de atribuir aos zumbis um apetite insaciável por carne humana ou em qual obra isso apareceu pela primeira vez, mas ficou quase tão obrigatório quanto o fato de os vampiros beberem sangue. E, tal como acontece com vampiros, lobisomens et alii, cada autor que decide incluir zumbis em sua obra tem liberdade para adotar a versão "clássica" ou para fazer as modificações que julgue necessárias. Não foi diferente com Rodrigo de Oliveira, autor paulista responsável pela série (mais uma série…) da qual O Vale dos Mortos é o piloto. Parece que a saga foi inspirada por um pesadelo que ele, fã confesso de filmes de terror, teve e nunca mais esqueceu.

Oliveira utiliza-se de um mix de profecias ligadas ao final dos tempos: o trecho do Apocalipse que fala de uma estrela chamada Absinto, e os escritos do guru gnóstico V. M. Rabolú sobre "Hercólubus", um suposto planeta gigante que, segundo ele, estaria em rota de colisão com a Terra. Absinto e Hercólubus seriam, então, o mesmo astro; naturalmente que o autor editou o texto bíblico para moldá-lo a suas necessidades, catando os versículos adequados e deixando o restante de fora, além de mudar alguns detalhes. A estrela citada no Apocalipse poderia, de fato, ser um planeta ou um cometa; é muito provável que no século II, quando esse último livro da Bíblia foi escrito, a maioria das pessoas se referisse a qualquer corpo celeste como sendo uma "estrela". No livro sagrado, o papel de Absinto consiste em contaminar as águas, tornando-as amargas (seria uma profecia sobre a poluição?). O simbolismo contido no nome revela-se quando se sabe seu significado: hoje em dia, quem ouve falar em "absinto" geralmente pensa numa bebida verde com um teor alcoólico absurdo, mas o nome pertenceu primeiro a uma erva, também conhecida como losna, cuja principal característica é o sabor amargo, e que está entre os ingredientes da tal bebida.

Rabolú publicou um livro a respeito de Hercólubus em 1998, mas já discorria sobre o assunto em suas conferências anos antes. Ele o descreveu como sendo 20 vezes maior que a Terra (para efeitos de comparação, Júpiter, o maior planeta do nosso sistema solar, tem 11 vezes o diâmetro e 318 vezes a massa da Terra) e decidiu (essa é bem a palavra) que ele iria colidir com o nosso pobre planeta em fins do século XX. Claro que, nessa teoria, faltava uma explicação plausível para o fato de que o tal Hercólubus, sendo tão grande e estando relativamente próximo, a ponto de poder nos abalroar apenas alguns anos depois de feito o anúncio, nunca tivesse sido descoberto pelos astrônomos, que já observaram e estudaram astros muito menores, situados a distâncias enormemente maiores. Porém, é bem sabido que falta de coerência científica nunca foi impedimento para que previsões catastróficas ganhassem popularidade (na verdade, boa parte do apelo do movimento gnóstico junto ao seu público está justamente em pintar todos os cientistas como crianções que não sabem de nada). Na ficção de Rodrigo de Oliveira, Hercólubus, ou Absinto, como queiram, é por fim descoberto pela ciência em 2017, vindo, de fato, em nossa direção, o que gera pânico em escala mundial. Depois de meses de cálculos, entretanto, os astrônomos tranquilizam a população, declarando que o gigantesco viajante espacial irá passar próximo, mas sem colidir com a Terra ou causar-lhe qualquer perturbação significativa. Além disso, dará um espetáculo nunca visto, mostrando-se visível no céu a olho nu. O momento de maior proximidade é previsto para 14 de julho de 2018, quando o planeta poderá ser visto com um diâmetro aparente duas vezes maior que o da lua cheia. E, agora que se sabe (ou, ao menos, se acredita) que não há perigo, o estranho visitante celeste passa a causar curiosidade e fascínio.

A parte sobre Absinto serve como uma espécie de introdução. Para começar a história propriamente dita, Oliveira vale-se de um recurso que, por mais que seja utilizado, parece não perder a eficácia: apresentar alguns fatos comuns da vida de pessoas comuns. O contraste funciona como uma lente de aumento para potencializar o horror quando ele finalmente começa, além de deixar subentendida aquela indagação inquietante: se esse horror pegou de surpresa essas pessoas que lembram tanto nós mesmos, o que garante que algo igualmente terrível não possa acontecer perto de nós?

E as pessoas comuns em O Vale dos Mortos são o casal Ivan e Estela. Os dois trabalham na área de tecnologia da informação e moram com seus dois filhos pequenos em São José dos Campos, uma das maiores cidades do estado de São Paulo, a apenas 80 quilômetros da capital. Tudo começa num sábado, 14 de julho de 2018, que, exceto pela previsão astronômica da máxima aproximação de Absinto, parece ter tudo para ser apenas mais um sábado na vida dessa família. Por algumas páginas, a sensação é a de que poderíamos estar lendo sobre nossas próprias vidas, ou sobre as de inúmeras pessoas que conhecemos: o casal e as crianças acordam em seu confortável apartamento, tomam seu café da manhã e saem – sábado é o dia de fazer compras para a casa e passear. Quem conhece ou já passou por São José dos Campos reconhecerá as ruas e os lugares mencionados: tudo existe mesmo.

Quando os quatro estão se preparando para almoçar na praça de alimentação do shopping Centervale, o mundo que conhecem repentinamente se desintegra. Sem mais nem menos, a maior parte das pessoas no local perde os sentidos, para logo em seguida despertar – ou assim parece. A reação inicial de alívio dos demais ao verem seus parentes e amigos voltarem a se mover é rapidamente substituída pelo horror, quando fica evidente que aquilo que se levantou não são mais as pessoas que eles conheciam, e sim zumbis desprovidos de mente, cujo único impulso é o de atacar e devorar não apenas seres humanos, mas qualquer criatura viva que encontrem pela frente; por alguma razão, eles não atacam uns aos outros, mas quem for mordido por um deles se transforma em zumbi também. Ivan e Estela fazem o óbvio: pegam os filhos (por sorte, ou por outro motivo mais misterioso, nenhum membro da família foi afetado pelo fenômeno) e caem fora daquele lugar, mas logo descobrem que a catástrofe não é só lá. A cidade toda, e, como fica-se sabendo depois, o país e o mundo, estão do mesmo jeito.


Depois de vagarem desesperados pela cidade durante algum tempo (pois, como descobrem, voltar para casa não só é impossível como seria provavelmente inútil), eles decidem buscar abrigo no shopping Colinas, que estava fechado naquele fim de semana para reparos, de modo que é possível que esteja relativamente livre de zumbis, além de garantir um suprimento de alimentos e outros itens básicos para a sobrevivência naquele mundo que enlouqueceu de repente. Lá, Ivan e sua família têm seu primeiro contato com outros sobreviventes, formando o que se tornará a semente de uma comunidade de refugiados. Com o tempo, o grupo compreende que, embora ali no shopping eles disponham de comida, conforto e de uma relativa segurança, não podem permanecer entocados para sempre: têm o dever de procurar por outros sobreviventes, para prestar a ajuda que puderem e começar, aos poucos, a tentar reconstruir algo que se assemelhe a uma sociedade. Ivan descobre que é um líder natural, mas descobre também que sua tarefa, que ele nunca esperou que fosse ser fácil, será muito mais complicada do que poderia ter imaginado, pois, além de todos os desafios oferecidos por aquele cenário apocalíptico, precisa também lidar com conflitos internos e com a personalidade difícil de alguns membros do grupo.

Seria preciso muita boa vontade para dizer que O Vale dos Mortos é um livro bem escrito: há um inconfundível ar geral de amadorismo, o que é natural, considerando que se trata do romance de estreia do autor. Oliveira bem que tenta dar alguma complexidade a seus personagens, procurando fazer com que demonstrem diferentes facetas de suas personalidades de acordo com a situação, e sofram transformações ao longo da narrativa, mas não obtém muito sucesso nisso. Há várias partes – umas curtas, outras longas – que poderiam ser reescritas, e, em alguns casos, suprimidas, sem prejudicar a história. Só para dar um exemplo, quando os protagonistas ainda estão no shopping Centervale, bem na hora em que fenômeno mundial acontece, há um trecho que imagino que pretenda ser trágico, sobre uma jovem sendo atacada pelo zumbi que até há pouco era seu noivo:

Uma moça de cabelos lisos e loiros, de uns vinte anos de idade, estava caída no chão, se debatendo, com um homem sobre ela. Ele tinha sangue nos lábios e mastigava um pedaço de carne humana, que arrancara do antebraço da jovem.
– Vítor, não! Sou eu, sua noiva! Pare com isso, por favor! – ela gritava, desesperada, tentando empurrar o homem com quem pretendia se casar, ter filhos, construir uma vida, e a quem procurara ajudar apenas alguns segundos antes.
(…) Vítor pareceu indeciso por um instante sobre o que fazer, mas decidiu rápido. Levou as duas mãos à camisa da noiva e puxou para os dois lados de uma vez, arrancando todos os botões, deixando os seios fartos e brancos à mostra. Ato contínuo, mordeu o mamilo esquerdo, arrancando um naco de carne, destruindo um seio que ela sonhava que um dia serviria para alimentar uma vida. Dia esse que nunca chegaria. Aquele corpo jamais geraria um bebê. Ela nunca entraria numa igreja vestida de branco, nunca mais faria amor com seu noivo. Todos os sonhos daquela mulher foram ceifados naquela tarde.

Terei sido o único leitor a ter a forte sensação de que essa cena poderia funcionar muito melhor sem o melodrama barato?

Ainda focando nos aspectos estruturais, eu passei o livro todo esperando pela explicação de que cargas d'água a chegada de Absinto teve a ver com a transformação de dois terços da população mundial em zumbis, e, não menos inquietante que isso, do motivo pelo qual o terço restante foi poupado. A espera foi em vão: explicação alguma é oferecida, apenas uma cena misteriosa na qual sugere-se que o planeta gigante, de alguma forma, "sugou" as almas das pessoas transformadas. Quanto ao porquê e ao como, só nos resta especular, ou então acreditar que as respostas virão no próximo volume, que nem tenho tanta certeza assim de que eu vá querer ler. De qualquer forma, para não ser injusto, é preciso reconhecer que o livro tem pelo menos uma grande sacada: o autor teve uma excelente ideia quando pensou em incluir as cenas que mostram chefes de governo de vários países (detalhe: todos pessoas reais) sendo vitimados pelo apocalipse zumbi, o que deixa claro para os leitores que o colapso da sociedade foi total, que todas as instituições ruíram, e que, portanto, é inútil esperar por qualquer tipo de socorro por parte dos governos, das forças armadas ou de qualquer órgão público. Tirando isso, não há nada de muito diferente de várias outras obras que retratam catástrofes semelhantes.

(E convenhamos: ler sobre o ex-presidente Lula, transformado em zumbi, devorando – literalmente – Dilma Rousseff, ainda presidenta em 2018, é, no mínimo, bizarro.)

O livro apresenta muitos problemas de português, o que não é responsabilidade apenas do autor, mas também da editora, uma desconhecida Faro Editorial. Talvez ela nos surpreenda positivamente, fazendo uma boa revisão no texto antes de lançar a próxima edição, o que as editoras em geral não fazem: novas edições, via de regra, são na verdade meras reimpressões, pois é raro alguma falha ser corrigida de uma edição para a seguinte.

Por último, e para crédito do autor estreante, é preciso reconhecer que O Vale dos Mortos, apesar de todos os defeitos, não se sai mal no quesito entretenimento, que, no fim das contas, é o mais importante. A leitura flui bem e o leitor, ao virar cada página, quer realmente saber o que vai acontecer a seguir, então eu diria que o essencial foi alcançado, e não há razão para duvidar de que Rodrigo de Oliveira ainda possa se aprimorar bastante como escritor e produzir outras histórias bem superiores a esta primeira.

quarta-feira, abril 25, 2012

Os Filhos de Anansi

Minha segunda visita ao universo de Neil Gaiman acabou não sendo por meio de O Mistério da Estrela nem de Coisas Frágeis, como eu havia planejado - e, pombas, eu estava planejando isso há bastante tempo!... Minha lista de livros por ler cresce muito mais depressa do que eu consigo dar conta dela, e confesso que nem sempre sigo uma rigorosa ordem de chegada: muitas vezes, a sequência em que os livros são lidos não segue lógica alguma. Então, certo domingo, há poucas semanas, estava eu em Porto Alegre e, ao passar pela Livraria Cultura no shopping Bourbon Country, fui irremediavelmente arrastado para dentro por algo que deve ter algum parentesco com o canto das sereias de que nos fala a Odisseia, com a diferença de que Ulisses só precisou entupir os ouvidos de seus homens com cera e amarrar-se ao mastro de seu navio para escapar dessa influência, enquanto eu ainda não encontrei um método preventivo que funcionasse. E, naquele delicioso exercício de percorrer estantes e mostruários de modo mais ou menos aleatório (está bem, vamos ser francos: completamente aleatório), topei com essa nova edição de Os Filhos de Anansi, livro que já tivera em mãos há alguns anos, quando tinha uma capa diferente e era publicado, creio, por outra editora, mas não cheguei a lê-lo na ocasião. Comprei-o, e, acontecendo que no dia seguinte embarcava para uma viagem de trabalho que duraria a semana toda, resolvi, num impulso, colocá-lo na mala. Como resultado, minhas noites de segunda a quinta-feira num quarto de hotel foram singularmente instigantes, empolgantes e engraçadas. Tentarei dar um vislumbre do quanto.

Charles Nancy (em quem o apelido de Fat Charlie, o 'Charlie Banha', ou, numa tradução mais livre, 'Charlie Gorducho', grudou como uma incômoda segunda pele) é um típico americano do sul, que agora mora na Inglaterra - percurso inverso ao do próprio Neil Gaiman, um inglês que hoje vive nos Estados Unidos. Filho único, ou assim ele pensava, Charlie, nascido na ensolarada Flórida, mudou-se ainda garoto para a nevoenta Londres com a mãe, quando ela se separou de seu pai, a respeito de quem tudo o que Charlie consegue lembrar é que tratava-se de um sujeito alegre, chegado às "boas coisas da vida" (segundo alguns pontos de vista), de conversa fluente, que cativava com facilidade os estranhos e tinha um senso de humor um tanto duvidoso, que o levava a divertir-se enormemente colocando as outras pessoas - sem excluir o próprio filho - em situações vexatórias. Por causa disso, o adjetivo que mais facilmente vem à memória de nosso herói ao pensar no pai é "constrangedor", e ele acha muito confortável ter toda a largura do Atlântico a separá-lo do velho. Isso estabelecido, Charlie é um homem comum que vive uma vida comum: um emprego chato numa firma de contabilidade, um apartamento, e uma noiva, Rosie, com quem está planejando o casamento próximo. Aliás, é só por insistência de Rosie, que não conhece a "peça", que Charlie decide convidar o pai para o casamento, e, com essa intenção, telefona para uma antiga vizinha na Flórida para tentar fazer contato com ele - e fica sabendo que seu pai acaba de morrer.

Sem saber direito por que faz isso, Charlie acaba viajando para os Estados Unidos para comparecer ao funeral do pai. Depois da cerimônia, a vizinha, Sra. Higgler, cumpre outro ritual, o de levar o rapaz para rever a antiga casa, ver se quer guardar algum dos objetos pessoais deixados pelo pai, etc. E também partilha com ele uma série de reminiscências e de coisas que ele não sabia sobre o próprio pai - como o fato, que a velha senhora joga como se não tivesse mais importância do que dizer o time de beisebol para o qual o homem torcia, de que o pai de Charlie era na verdade Anansi, o deus-aranha no panteão de certos povos africanos. E revela-lhe também que ele tem um irmão, e que, quando quiser vê-lo, só precisa pedir a uma aranha que passe o recado.

Entendam: Fat Charlie Nancy não apenas é um sujeito sem o menor interesse por qualquer assunto de natureza mística ou religiosa - é também um sujeito absolutamente comum e sem um pingo de imaginação. Jamais consideraria a possibilidade de que sua visão confortável do mundo talvez estivesse equivocada e de que algumas coisas estranhas e misteriosas pudessem ser reais. Assim, é num momento em que tem a mente nublada pelo álcool que ele realmente fala com uma aranha e pede-lhe para dizer a seu desconhecido irmão que apareça para vê-lo quando puder.

E o irmão, vejam só, aparece mesmo!

Spider (pois é assim que ele se apresenta) parece ter herdado toda a substância divina que havia no pai dos dois, da mesma forma como Fat Charlie ficou com todos os traços mais prosaicamente mortais: consegue fazer as coisas acontecerem conforme sua vontade, e, quando Charlie se refere a tais feitos como sendo "magia", Spider fica ofendido e explica que não é magia: são milagres. Mas essa não é a coisa a respeito do irmão que mais incomoda Charlie. O que há é que os dois se parecem, mas ao mesmo tempo não: é como se Spider fosse a versão idealizada que Charlie guarda de si mesmo em algum canto da mente - o cara que ele gostaria de ser. Enquanto Fat Charlie é tímido e desajeitado, Spider é "descolado" e esbanja autoconfiança; enquanto Charlie arrasta seu noivado um tanto sem graça com Rosie (que, aparentemente, está com ele mais para chatear a mãe ranzinza que por outro motivo qualquer), Spider é um verdadeiro ímã para mulheres. Tanto que acaba "pegando" também Rosie, que, acreditando que ele seja o irmão, sente repentinamente o afeto aguado que até então a ligava ao noivo transformar-se em paixão avassaladora. A fim de livrar-se de Spider - pois simplesmente pedir-lhe que vá embora não dá resultado -, Charlie viaja novamente aos Estados Unidos para pedir ajuda à Sra. Higgler, que, com o auxílio de outras vizinhas idosas, realiza um ritual mágico que leva Charlie a um lugar misterioso onde ele se encontra com uma série de criaturas estranhas - deuses-arquétipos comuns a todas as mitologias primitivas, cada um representado por um animal, com o qual se parece, ao mesmo tempo em que tem figura humana. Todos eles conhecem Anansi e sua fama de esperto e gozador, mas nenhum parece interessado em ajudar o filho dele. Quando finalmente encontra um deus que aceita fazer um pacto com ele, Charlie não tem ideia do que está desencadeando quando tudo o que realmente deseja é fazer com que Spider vá embora - mas não tardará a descobrir. Só para começar, ele se torna um alvo para o vingativo Tigre (Gaiman ressalta várias vezes que "tigre", aí, é um designativo genérico para qualquer grande felino, com a possível exceção do leão: leopardos, onças e vários parentes seus já foram, em alguma época e região, chamados de "tigre", o que explica a presença desse animal no folclore dos povos africanos, os quais obviamente não conheciam o tigre propriamente dito, que não existe na parte do mundo que habitam). O Tigre costumava ser o "dono das histórias" numa era sombria e esquecida, até ser tapeado por Anansi, que, assim, assumiu o papel de protagonista dessas histórias, alterando profundamente o caráter de cada uma delas e, por consequência, o próprio mundo em volta: quando as histórias pertenciam ao Tigre, o mundo era um lugar violento e sanguinário... Bem, ele ainda é assim, mas ao menos, com Anansi como dono das histórias, existem humor, riso e alegria para contrabalançar; nada disso existia quando o Tigre mandava.

E que histórias seriam essas? Quase todas. No livro estão recontadas várias delas, que a maioria de nós já ouviu ou leu: aquela do macaco que roubava bananas até ser apanhado com a ajuda de um boneco de piche, por exemplo, está aqui, apenas adaptada para ter Anansi como protagonista (ou seria a versão de Anansi a original e a que conhecemos a adaptação? Hum...). Essa história, assim como uma miríade de outras, é encontrada nas culturas de inúmeros povos ao redor do globo, desde os celtas da Irlanda até os ainos do norte do Japão - leia-se: povos sem nenhuma possibilidade de terem tido qualquer tipo de interação entre si antes do surgimento dos meios de comunicação modernos. Então como é que todos contavam as mesmas histórias, variando apenas nos detalhes? Carl Jung tinha uma teoria fascinante e, além disso, plausível para explicar esse fato. Neil Gaiman oferece-nos outra, ou, melhor dizendo, dá nova forma à teoria de Jung, recontando-a de modo a transformá-la em mais uma fábula. Brilhante!

Os Filhos de Anansi é um daqueles livros que a gente devora na primeira leitura, e que merecem uma segunda, mais lenta e refletida. Está cheio das marcas registradas de Neil Gaiman: personagens cativantes, situações divertidas, toques geniais de seu infalível humor britânico, e uma maneira absolutamente única de tratar a dualidade entre o mundo "real" e a infinita esfera dos inúmeros mundos místicos, oníricos ou legendários que compõem o imaginário humano - e que, por fazerem parte desse imaginário, são, a meu ver, perfeitamente reais a seu modo, sendo esse o motivo das aspas usadas quando me refiro ao mundo que vulgarmente chamamos de "real". Desconfio seriamente, e não pela primeira vez, que Gaiman seja um grande fã de Michael Ende, e que, se é que a recíproca não era verdadeira, deve ter sido apenas porque o autor de A História Sem Fim não viveu o suficiente para vê-lo alcançar a merecida fama e ter uma chance de conhecer sua obra. Gaiman cumpre com raro vigor e originalidade a missão de não apenas nos mostrar caminhos para chegar a Fantasia, como também de nos fazer refletir sobre o quanto nossas visitas periódicas a ela são essenciais para que nosso próprio mundo conserve alguma dose de equilíbrio e sanidade.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

O Marechal das Trevas

Gilles de Rais (1404-1440), barão de Laval, é um dos personagens mais curiosos – e mais assustadores – da história da França. Seus feitos medonhos, ecoando pelo universo da cultura popular através de histórias contadas em tabernas e ao pé do fogo, deram origem à lenda que o grande escritor Charles Perrault (1628-1703) poria por escrito em seu clássico livro Histórias ou Contos de Outrora, com o título A História de Barba-Azul – uma nota tenebrosa em meio a histórias encantadoras ou engraçadas, como A Bela Adormecida do Bosque ou O Gato de Botas. Se bem que tanto Perrault quanto os irmãos Grimm, e outros autores que recolheram e redigiram tais contos populares, suavizaram grandemente essas histórias, muitas das quais, tal como eram na origem, seriam consideradas hoje pouco apropriadas para se contar a crianças... Mas isso é assunto para outro artigo.

Em O Marechal das Trevas, o jornalista e escritor espanhol Juan Antonio Cébrian, usando de uma prosa ágil em tom de reportagem – que ele prova ser compatível com uma análise histórica apurada, ainda que não tão aprofundada – reconstrói a trajetória do "verdadeiro" Barba-Azul, tendo o cuidado de situar o leitor por meio de uma breve história da Guerra dos Cem Anos, conflito no qual De Rais se destacou como soldado antes de ganhar reputação bem mais sombria graças a seus crimes.

O autor nos informa, por exemplo, dos feitos do rei inglês Henrique V, que, aparentado com os reis franceses (depois de séculos de casamentos políticos, quase todas as famílias reais da Europa eram aparentadas entre si), decidiu fazer valer seu suposto direito ao trono da França e, em 1415, invadiu o país, derrotando o exército francês na histórica batalha de Azincourt. Henrique obrigou o então rei da França, Carlos VI, a reconhecer seus direitos de herdeiro e a dar-lhe sua filha em casamento, de modo que, se Carlos morresse, Henrique seria o próximo a ocupar o trono francês, acumulando-o com o da Inglaterra (o que praticamente faria dele um imperador) e preterindo o direito do filho do rei, o delfim, também chamado Carlos. A propósito desse episódio da Guerra dos Cem Anos, vejam o magnífico filme Henrique V (1989), baseado na peça homônima de Shakespeare, e dirigido e estrelado por Kenneth Branagh.

Inesperadamente, porém, Carlos VI sobreviveu a Henrique V, ainda que por um espaço de poucos meses: o rei inglês faleceu em agosto de 1422, e o francês, em outubro do mesmo ano. Isso criou um impasse: os ingleses, e parte da França que estava do seu lado, coroaram como novo rei (da Inglaterra e da França) o filho de Henrique, então ainda uma criança de colo, com o nome de Henrique VI; já os franceses nacionalistas queriam declarar rei o delfim, como Carlos VII. Havia um empecilho: por uma tradição de séculos, todo rei francês deveria ser coroado na catedral da cidade de Reims, sob pena de não ter sua legitimidade reconhecida pelo povo e pelos nobres – e Reims, como várias outras partes da França, estava nas mãos dos ingleses. O delfim, então, aquartelou-se em seu castelo na cidade de Chinon, juntamente com todo o exército que pôde reunir e os nobres ainda dispostos a lutar por ele – e entre estes, estava Gilles de Rais.

De Rais, durante alguns anos, foi um dos cavaleiros mais admirados da França, e parecia um homem destinado à grandeza. Bonito, culto, guerreiro formidável (com apenas 25 anos de idade, alcançou o altíssimo posto de Marechal da França) e dono de uma das maiores fortunas pessoais da Europa, celebrizou-se pela bravura demonstrada no campo de batalha e ganhou um lugar de honra na corte do delfim. E foi na corte, em Chinon, num dia qualquer de 1429, que Gilles e os outros nobres viram aparecer uma camponesa analfabeta de 17 anos chamada Joana d'Arc, declarando-se enviada pelo próprio Deus para garantir que o delfim fosse coroado rei como era seu direito. Por mais absurdo que isso parecesse, Joana já havia feito profecias que deram certo, o que impediu que suas pretensões fossem sumariamente rejeitadas.

Entre os que desde o início acreditaram nela esteve Gilles de Rais, que mais tarde, em seu julgamento, contaria que só enquanto esteve junto de Joana conheceu a paz de espírito e sentiu a presença de Deus; a pureza e a fé inquebrantável da donzela trouxeram alívio à alma do marechal, já então ensombrecida pelo mal. Gilles lutou ao lado de Joana na batalha de Orléans, pouco depois, e foram as mãos dele que, diante dos olhos dela, puseram a coroa da França na cabeça do delfim, um mês mais tarde, em Reims, recuperada dos ingleses graças ao inexplicável ardor que a liderança daquela garota inspirava aos soldados.

De Rais foi seguidor e protetor de Joana por mais algum tempo, até que o recém-coroado Carlos VII os separasse, designando a cada um diferentes missões. A verdade é que, depois de ter retomado Orléans, tornado possível a coroação do rei, e causado uma reviravolta na guerra a favor da França, Joana tornou-se um incômodo para Carlos e sua corte, de modo que, quando ela foi capturada pelos borgonheses (da região francesa de Borgonha, aliada à Inglaterra), em maio de 1430, o rei não esboçou nenhum esforço para salvá-la, nem mesmo diante da enérgica intercessão do marechal Gilles de Rais. Embora tenha-se tentado dar ao julgamento e à execução de Joana d'Arc a aparência de um processo por crimes religiosos, a verdade é que a Donzela de Domrémy morreu por razões políticas. Depois de um ano de julgamento sob acusação de heresia, a pressão da coroa inglesa fez com que Joana fosse condenada à morte na fogueira, sentença que foi executada na cidade de Rouen, em 30 de maio de 1431. Tinha 19 anos de idade.

Isso foi, de certa forma, o fim para Gilles de Rais; qualquer chance que ele tivesse de dar à sua vida um rumo positivo morreu com Joana. De acordo com o levantamento biográfico feito por Cébrian, Gilles era filho de um casamento político: seus pais nunca coabitaram de fato e deram pouquíssima atenção a ele e a seu irmão, René. Ambos foram criados pelo avô materno, o conde Jean de Craon, que lhes incutiu a noção de que a crueldade era parte integrante da força e da masculinidade. Isso, somado à falta de uma verdadeira família, pode em parte explicar, embora nunca justificar, sua conduta posterior.

Desgostoso após o destino que tivera Joana d'Arc, Gilles abandonou as armas e passou a dividir seu tempo entre os vários castelos que possuía, espalhados pelo interior da França, levando uma vida de luxo excessivo e promovendo quase diariamente festas suntuosas para centenas de convidados. Nem mesmo sua enorme fortuna poderia arcar indefinidamente com tais exageros, e o barão passou a enfrentar problemas financeiros. Sabe-se que procurou renovar sua riqueza tentando obter ouro por meio da alquimia, que ele próprio estudou e praticou, além de empregar especialistas, notadamente o italiano Francesco Prelati, que também se dedicava à feitiçaria. Infelizmente para De Rais, a transformação de metais comuns em ouro era algo que vinha sendo tentado desde a Antiguidade sem sucesso – e não foi com ele que essa história mudou. Chegou-se a aventar a hipótese de que as práticas alquímicas e mágicas teriam levado ao início da carreira de assassino do barão, já que o sangue de crianças era um ingrediente mencionado em inúmeras fórmulas da época, mas sua própria confissão descarta essa ideia: ele já matava por prazer bem antes de dedicar-se a tais práticas.

A última parte de O Marechal das Trevas é uma leitura penosa, pois conta sobre a prisão e o julgamento de De Rais, reproduzindo os depoimentos dele e dos criados que o assistiam em seus crimes, com fartura de detalhes capazes de causar horror até a Jack, o Estripador, que, comparado ao barão de Laval, não passava de um aprendiz. Desconhece-se o número exato de vítimas – na maioria crianças de 8 a 12 anos, de ambos os sexos – que foram raptadas, violentadas e mortas entre os anos de 1431 e 1440; sabe-se que não foram menos de 140, provavelmente cerca de 200, e há cronistas que elevam a conta até perto dos mil. O marechal confessou sem a necessidade de tortura (que na época era considerada um método legítimo de interrogatório em qualquer julgamento, e não apenas nos de bruxaria, como muita gente pensa), demonstrando arrependimento que foi considerado sincero por seus juízes, e pediu um padre para ouvi-lo em confissão, no que foi atendido. Foi levado à forca em 26 de outubro de 1440, e, antes de morrer, dirigiu suas últimas palavras à multidão que comparecera para ver sua execução, e que incluía os pais de muitas crianças que ele assassinara. Suplicou-lhes perdão e pediu que rezassem por sua alma, o que todos fizeram.

O livro tem ainda um apêndice que reproduz A História de Barba-Azul de Perrault e fornece breves resumos a respeito de alguns serial killers modernos que Cébrian considera "herdeiros" de De Rais. A meu ver, O Marechal das Trevas vale a leitura principalmente pela informação histórica que oferece (e ultimamente, não sei por que, ando com uma curiosidade louca a respeito da Guerra dos Cem Anos, de modo que veio a calhar), mas, claro, também é recomendável para os que se interessam pelo estudo dos distúrbios mentais e suas manifestações, inclusive as mais violentas e assustadoras. Mas mesmo esses precisarão ser fortes para encarar a última parte do livro.