segunda-feira, novembro 22, 2021

O Ano em que a Terra Parou

Seguidor

Acalme-se e preste atenção
Faça o que disserem,
o que todos os outros fazem.
Vende seus olhos e pule de cabeça
Não questione, não pense
Não exista.

A verdade é real demais para você.
Ela estraga a imagem, não é?
Não queira acreditar, não queira ver,
pois a realidade é o inimigo.

Um cenário nascido de
imagens censuradas na TV
Um mundo construído a partir
de uma realidade censurada.

É tão simples apenas entrar na linha
Faça o que disserem,
o que todos os outros fazem.
Não conserte o que está errado,
apenas faça brilhar o que é legal.
Não questione, não pense
Nem mesmo abra a boca.

Cada história cortada para caber
na tela e nos olhos do público
Transformada para caber
na sua mente pequena e frágil.

É longe demais...

Certeza inquestionável,
uma fé cega na autoridade
e uma confiança que vai
mantê-lo subjugado.

É longe demais... 


                                        Machinae Supremacy
                                        Follower
                                        Álbum: Arcade (2003)

  *       *       *

Este blog sempre foi muito mais voltado para a literatura de ficção, e, embora algumas obras de não-ficção tenham eventualmente ganho espaço (como O Culto do Amador, de Andrew Keen, e, mais recentemente, os Manuais Politicamente Incorretos), procuro comentar temas ligados a política e sociedade apenas quando eles se imiscuem na literatura – o que inevitavelmente acontece: a coisa mais magnífica a respeito da literatura é sua capacidade de retratar (e transformar em objeto de reflexão) todo e qualquer aspecto da experiência humana, de modo que esses não seriam exceções. De qualquer forma, há momentos em que um tema se impõe, e assim foi com O Ano em que a Terra Parou, livro que praticamente me atropelou e me manteve num estado reflexivo durante vários dias. Preciso esclarecer, a priori, que meu conhecimento sobre os temas tratados pelo autor Luciano Trigo não é profundo, e estou ciente disso; na verdade, vai pouco além daquilo que qualquer pessoa minimamente bem informada e sem antolhos presos na cara pode ver todos os dias nesses tempos estranhos e ruins que atravessamos, mas concluí que escrever a respeito desse livro será bom para mim, porque me ajudará a organizar as ideias. É inevitável que em algum momento eu escreva alguma bobagem e/ou acredite ter entendido algo que, na verdade, é muito diferente de como eu imagino; tudo o que posso dizer em minha defesa é que mesmo esses tropeços terão sido motivados por um esforço sincero para entender uma realidade muito, muito confusa. Caso meus estudos posteriores me façam identificar algum erro, volto e corrijo. E, se por acaso alguém ler este post e se beneficiar de algum ponto dele, ou eventualmente chegar a ler o livro por causa do que vou dizer, melhor ainda.

Quem lê o título O Ano em que a Terra Parou pensa, é claro, em 2020, quando a explosão da pandemia de COVID-19 e suas consequências viraram de pernas para o ar a vida da maioria das pessoas em todos os países, e, de fato, o assunto é tratado nestas páginas, mas não é o assunto principal do livro, e também não será o meu aqui, pois não quero deixar o texto exageradamente longo e há outros pontos abordados por Trigo sobre os quais tenho bem mais a dizer. O subtítulo, Polarização da política e a escalada da insanidade, dá uma ideia de quais são. O livro, publicado no início de 2021, é baseado em vários artigos sobre política e sociedade que o autor escreveu ao longo do ano anterior.

Vivemos tempos muito estranhos, mas não dá para dizer que não fomos avisados. George Orwell, em seu 1984 (cuja primeira edição é de 1949) previu uma sociedade na qual a simples constatação da realidade não seria mais permitida: nela, as coisas só teriam permissão de existir, ou de ser desta ou daquela forma, com a condição de se coadunarem com a ideologia dominante – e é exatamente o que acontece hoje. A diferença é que o mundo previsto por Orwell era mais sincero: a ideologia era imposta, na maior parte das vezes, de maneira franca, por meio de uma repressão violenta de qualquer visão discordante. Hoje, por outro lado, o que vemos é uma miríade de grupos e movimentos que invariavelmente apregoam defender a liberdade, o respeito, a democracia e o amor – e, em nome da liberdade, do respeito, da democracia e do amor estão sempre prontos a lançar ataques virulentos e covardes contra qualquer um que discorde deles, ou que simplesmente não seja como eles acham que deveria ser. Movimentos que afirmam defender a dignidade dos negros, na verdade só estimulam o ódio contra os brancos. O feminismo há muito tempo que deixou de lutar por igualdade de direitos para as mulheres (se é que esse já foi alguma vez seu objetivo); hoje só faz reclamar por privilégios e, talvez mais importante, tentar desmoralizar os homens e ensinar o maior número possível de garotas a odiá-los (dando lugar, entre outras coisas, ao curioso fenômeno das adolescentes ou jovens universitárias que dedicam seus dias a entupir as redes sociais com frases feitas de apelo misândrico como "morte ao pênis" e "abaixo o patriarcado", usando o smartphone que ganharam do papai). Grupos "LGBT" propagam (em geral de forma velada, mas às vezes nem se dão ao trabalho) que heterossexuais são escória. De tudo isso se conclui que, se você é homem, branco e heterossexual, já está errado pelo mero fato de existir, e sua única possibilidade de se redimir um pouco (porque totalmente é impossível) é pedir desculpas diariamente por ser o que é, reconhecer que nenhum homem branco hétero merece qualquer tipo de respeito ou consideração, e ainda ouvir quieto as pessoas papagaiarem que você é "privilegiado" e "opressor". E a grande mídia abraça com entusiasmo toda essa ideologia, o que explica por que já não se pode confiar nem mesmo em veículos de imprensa que tinham outrora uma reputação sólida. Hoje, noticiar a realidade já não tem importância; o que importa é corroborar as narrativas que estiverem na ordem do dia.

Em meio a esse cenário, a internet tem um papel ambivalente. Como não se pode mais confiar na mídia mainstream, o que nos resta é recorrer a sites, blogs e vídeos produzidos de maneira independente para buscar informações e interpretações menos tendenciosas (não que isso seja fácil, pois também não faltam produtores independentes de conteúdo alinhados com essa agenda "progressista"). Ao mesmo tempo, as redes sociais se transformaram no paraíso dos haters, pessoas cuja razão de viver consiste em destilar ódio contra qualquer um que seu movimento identitário favorito rotule como O Mal. E, é preciso reconhecer, esses movimentos sabem como explorar a necessidade básica que os seres humanos sentem de fazer parte de algo, de pertencer a uma "tribo". Como, ao longo das últimas décadas, instituições como religião e família, que, historicamente, sempre cumpriram o papel de ajudar o indivíduo a achar seu lugar no mundo, vêm sendo sistematicamente demolidas, a militância digital tornou-se, para muitas pessoas – quase sempre jovens – a única âncora que encontram, a única coisa que lhes proporciona um simulacro de sentido e evita que sintam que suas vidas são um completo desperdício. Escondidas por trás da tela de um computador (hoje em dia, aliás, quase sempre do celular), multidões de pessoas medíocres e covardes se deliciam a praticar o linchamento virtual de quem ousar levantar alguma objeção ao discurso hegemônico – discurso hegemônico esse que sempre se apoia no pretexto de defender as "minorias". O mais assustador é ver que um número enorme dessas pessoas realmente não percebem o absurdo da contradição em que caem: escrevem "textões" ou gravam longos vídeos pedindo por uma sociedade mais "plural" e "inclusiva", condenando os preconceitos e o "discurso de ódio", para, um instante depois, liberar todo o seu ódio contra qualquer um que pense diferente sobre qualquer assunto, ou que meramente não faça parte de nenhuma das "minorias" pelas quais essas pessoas acreditam estar lutando. Não basta, por exemplo, defender os negros: se você insinuar que os brancos também merecem respeito, você é um "racista" desgraçado e se transforma automaticamente num alvo; daí em diante, enxames de heroicos militantes, defensores incansáveis da liberdade e da democracia, começarão a bombardear suas redes sociais com milhares de mensagens xingando-o de tudo em que conseguirem pensar e desejando abertamente a sua morte – é o que chamam de "cancelamento". Para alguém que é apenas um cidadão anônimo, com um trabalho comum, pode parecer que esse tipo de perseguição cibernética não tem um potencial de dano tão grande assim (desde que você seja adulto e tenha uma cabeça forte): basta esperar que a "galera do bem" se canse de ofendê-lo e ameaçá-lo e parta em busca do próximo alvo. Já para pessoas públicas, que dependem de sua imagem para sobreviver, o buraco é bem mais embaixo, já que o "cancelamento" não move apenas indivíduos isolados: não faltam exemplos de atores, músicos, jornalistas etc. que perderam contratos e patrocínios, ficando, na prática, impossibilitados de trabalhar, simplesmente por terem expressado alguma opinião conservadora ou de outra forma impopular, o que os grandes conglomerados de mídia não podem tolerar, para não ficarem mal na foto com o pessoal lacrador, que será sempre uma fatia expressiva de seu público, e, dependendo do segmento, forma com frequência a maioria dele. Pensando bem, dependendo de onde aquele cidadão anônimo de que eu falava há pouco trabalhe (leia-se: dependendo de quem seja o seu empregador), virar alvo da militância pode acabar em desastre também para ele.

Novamente é inevitável pensar em George Orwell. Winston Smith, o protagonista de 1984, tem um diário no qual registra pensamentos esparsos – muitos deles, coisas que o Partido consideraria subversivas, e por isso ele mantém o segredo. Espero que não se importem se não cito com exatidão literal, pois li o livro há mais de 30 anos e nunca o reli (por sinal, talvez esteja na hora), mas lembro que uma das anotações de Winston é, na ideia geral, assim: "Liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isso, tudo o mais decorre." Para a minha versão adolescente, o sentido dessas palavras não era muito claro; hoje é, graças, em parte, a um outro autor, Michael Ende, que escreveu que "os homens vivem de ideias, e as ideias podem ser dirigidas". Se isso é verdade para o indivíduo, também o é para a sociedade, que é feita de indivíduos. E hoje vivemos um tempo em que a liberdade de dizer que dois e dois são quatro nos foi tirada. Não se pode mais olhar para as coisas, analisá-las por meio dos sentidos e da razão, e concluir "isto é assim". Agora, é a ditadura do politicamente correto que decide como as coisas são e como não são, e, se os fatos refutarem a ideologia, então "cancelam-se" os fatos; simples assim. Dentre inúmeros exemplos possíveis, virou "fascismo" e "discurso de ódio" afirmar que um ser humano com pênis e testículos é um homem, e um ser humano com vagina e ovários é uma mulher. Agora cada um decide o que quer ser, e todo o restante da sociedade precisa acatar sua doideira em vez de acatar a realidade – e, se você não aceita, merece ser "cancelado", porque é um "fascista", o que virou um xingamento-padrão, sempre na ponta da língua de milhões de pessoas que não têm a menor ideia do que essa palavra significa. Chamam de fascista qualquer um de quem não gostem por qualquer motivo; é o equivalente pós-moderno de "feio e bobo".


Isso me leva a outro ponto abordado por Trigo: a total dominação do ambiente universitário pela esquerda, que abandonou o discurso clássico da "luta de classes" (que não cola mais, nem mesmo no meio acadêmico) para adotar as pautas identitárias mencionadas acima. Dizendo de outro modo, as faculdades se tornaram essencialmente antros de lacração – todas elas, mas em especial as de ciências humanas, cuja esfera de estudos oferece mais espaço a essas pautas – e, hoje em dia, são pouca coisa além disso, o que vem agravar um problema que já existia antes: o baixíssimo nível de conhecimento com que a maior parte dos alunos do ensino superior sai das faculdades. Pode não ser politicamente correto dizer isso, mas o fato é que nem todo mundo nasceu para o trabalho intelectual; porém, ao longo dos últimos dois séculos mais ou menos, um diploma universitário passou a ser um acessório indispensável para que uma pessoa alcançasse sucesso profissional e financeiro (é verdade que hoje em dia um diploma não garante mais nada, mas funcionava assim até recentemente). Isso fazia com que milhares de pessoas sem qualquer talento para trabalhos acadêmicos, ou sequer interesse por eles, seguissem qualquer caminho torto que fosse necessário para obter o famigerado diploma; adquirir conhecimento não era uma preocupação. E hoje está ainda pior: com uma ou outra exceção, o universitário brasileiro (e os de outros países) sai da faculdade sem saber interpretar um texto simples, que dirá escrevê-lo, mas plenamente capacitado para repetir um discurso pronto cheio de palavras compridas e levantar mil e uma bandeiras "em prol das minorias", sem enxergar que está agindo como um idiota útil para movimentos que na verdade nunca ligaram a mínima para mulheres, negros, homossexuais ou o que for, e sim para seus próprios objetivos puramente políticos. E o problema nem é o fato de o estudante ser exposto a pautas esquerdistas – é o fato de ele ser exposto exclusivamente a pautas esquerdistas, sem nenhum contraponto, nenhuma possibilidade de comparar ideias e informações para formar a própria opinião. Há todo um aparato cultural, dentro e fora das universidades, dedicado a inculcar nas cabeças ainda em formação dos jovens a noção de que essa é a única forma aceitável de pensar e que, se alguém vier com qualquer discurso diferente, a coisa certa a fazer é tapar os ouvidos e xingar (aos berros, de preferência) essa pessoa de fascista, sem nem querer saber o que ela tem a dizer e se faz algum sentido ou não. É claro que jovens assim sempre existiram, pois a juventude é, por definição, uma fase da vida em que sabemos pouco e temos um monte de certezas (quanto mais uma pessoa sabe, menos certezas ela tem, mas isso é algo que ela só compreende quando fica mais velha; algumas, nem mesmo então), mas talvez seja a primeira vez na História que vemos isso numa escala tão absurdamente grande e com tal potencial destrutivo.

É fácil notar, olhando-se para o passado e o presente, que, enquanto muitas coisas mudam constantemente de uma época para outra, algumas permanecem sempre iguais, e uma destas é o fato de que, quando algum projeto social mal-intencionado precisa de uma numerosa massa de manobra, são sempre os jovens o alvo preferencial. Eles têm uma tendência natural ao entusiasmo (que pode facilmente se converter em fanatismo), e, como ainda estão construindo suas identidades, também têm inseguranças; o anódino mais comum para essa sensação angustiante e crônica consiste em se verem aceitos num grupo – e, se o grupo que encontrarem for alguma militância progressista, está feita a porcaria. Em geral eles são presas fáceis, já que esses movimentos, além de tudo, dão ao jovem a sensação de ter o poder de fazer alguma diferença no mundo. Além disso, por ainda não terem tido tempo de adquirir um grande conhecimento do mundo, os jovens tendem a não enxergar a complexidade das coisas e a ver tudo de maneira binária: tudo é preto ou branco, bom ou mau, "nós" ou "os outros"; ou seja, é mais fácil convencê-los a aderir a uma determinada visão de mundo (por mais incoerente e estúpida que seja) do que seria convencer um adulto. É claro que mesmo um adolescente pode já ter princípios firmados e conceitos morais bem definidos, dependendo da educação que tenha recebido. No passado, movimentos como o nazismo e o comunismo precisaram de muito trabalho para remodelar todas aquelas mentes jovens; já para os movimentos esquerdistas identitários de hoje, está muito mais fácil, porque a maioria da juventude atual recebeu pouca ou nenhuma formação moral e só tem noções vagas e "elásticas" a respeito de certo e errado. Também há o fato de que, graças à educação "inclusiva" e à tecnologia que nos dá tudo fácil e na hora, no século XXI estamos testemunhando um fenômeno inédito na história: crianças e jovens com QI mais baixo que o de seus pais e avós. Esse conjunto de fatores talvez explique a aparente incapacidade de muitos militantes de rede social para compreender, por exemplo, que não apoiar o Black Lives Matter, que promove terrorismo e incita a violência, não faz de ninguém um racista; que ser contra o feminismo, que tem como único resultado prático transformar mulheres em criaturas azedas e histéricas, cheias de ódio, não significa ser machista; que não é preciso ser socialista ou comunista para se preocupar com os pobres. Não: se tecer a menor crítica a qualquer um desses movimentos, você é um "fascista" e merece a morte. Enquanto isso, naturalmente, eles podem dizer o que quiserem de quem quiserem, pois, afinal, a liberdade de expressão é sagrada – a deles, é claro. E essas são as pessoas que estarão conduzindo o mundo daqui a alguns anos… Sem querer ser apocalíptico demais (mas já sendo), acho que estamos vendo o palco armado para a instauração de uma nova forma de totalitarismo que o próprio Orwell provavelmente nunca imaginou, nem em seus piores pesadelos.

(Como seria inevitável acontecer num quadro como o já descrito, os vários discursos "em prol das minorias" volta e meia entram em colisão, o que coloca as militâncias numa sinuca de bico. O movimento negro [esse sim, racista até não poder mais] e o feminismo, por exemplo, deveriam ser aliados naturais, já que ambos têm os mesmos objetivos – fomentar a discórdia e criar conflitos –, mas como se supõe que eles devam se posicionar num caso como o da mulher que deu piti dentro de uma daquelas megapadarias de São Paulo e, durante seu surto, ofendeu e agrediu, fisicamente inclusive, vários funcionários, alguns deles negros e/ou gays? Havia seguranças e policiais no local, mas nenhum se atreveu a fazer nada, pois sabiam que poderiam ser presos por encostar a mão numa mulher, não importa o que ela estivesse fazendo [ela também sabia disso, como se nota no registro em vídeo que um funcionário fez do incidente – confiram este vídeo do Canal Tragicômico, que, além do registro em si, traz comentários pertinentes sobre o caso e sobre os absurdos da cultura da lacração em geral; por sinal, esse canal é excelente, considerem a possibilidade de inscrever-se]. Nessa situação, o que um militante que honra sua conta no Twitter deve fazer? Por um lado, ela é mulher e, portanto, é intocável e está sempre certa. Por outro, está tendo condutas racistas e homofóbicas! Apesar de tudo, não deixa de ser engraçado ver as múltiplas cabeças da hidra identitária lutando entre si.)

(Por mais que eu fosse adorar receber o crédito por bolar essa magnífica imagem comparando a esquerda identitária a uma hidra com várias cabeças, preciso assinalar, por uma questão de honestidade, que não fui eu o autor da façanha, e também não lembro quem foi: ouvi isso em algum outro vídeo no YouTube.)

Não será novidade para ninguém que siga este blog (ou que tenha, no mínimo, dado uma olhadela nele) a minha admiração pela civilização romana, mas nem por isso fecho os olhos ao fato de que muitas de suas conquistas só foram possíveis graças ao expediente maquiavélico (palavra que não existia naquele tempo, mas que serve bem) do divide et impera – dividir para dominar. Em geral não era preciso fazer muita coisa para promover a divisão entre os povos da época, que, em sua maioria, se organizavam em tribos, frequentemente inimigas entre si, mas, quando necessário, os romanos eram hábeis em achar maneiras de jogar essas tribos umas contra as outras, sabendo que assim seria muito mais fácil conquistá-las do que se todas elas se pusessem lado a lado contra o invasor. A esquerda do século XXI (ironicamente, financiada pelo grande capital internacional, aquele mesmo que os marxistas abominavam e queriam combater) também conhece esse método, conta com todo o poder da mídia a seu favor, e é isso o que ela tem feito e continua fazendo: criar o máximo possível de divisões dentro da sociedade, jogando negros contra brancos, mulheres contra homens, gays contra héteros e assim por diante, pois, dessa forma, a sociedade como um todo tem muito menos condições de oferecer resistência a um plano de dominação cultural em grande escala. Os movimentos que compõem essa esquerda identitária não têm o menor interesse no fim do racismo, do sexismo ou da homofobia, porque, se essas formas de segregação e discriminação desaparecessem, os tais movimentos perderiam sua justificativa para existir. O que eles realmente fazem é açular cada vez mais os conflitos, a fim de sempre terem munição para seus discursos e transformar isso em ganho político – da mesma forma como não é do interesse da maioria dos políticos do Brasil erradicar a miséria em meio à população, e sim administrá-la, de modo a sempre contar com uma massa de eleitores pobres e desesperados que vendam facilmente seus votos em troca de qualquer pequeno benefício financeiro que lhes permita sobreviver por mais um mês. Trigo dedica algumas páginas a isso também.

O Ano em que a Terra Parou é leitura altamente recomendável para todos os que já perceberam o quanto o mundo mudou nos últimos poucos anos, notaram que essa mudança não foi para melhor, mas ainda estão tentando entender o que aconteceu, o que ainda está acontecendo, e como as coisas ficaram e podem ficar nos próximos anos. Ou seja, é recomendável para muita gente. Para mim, ajudou muito a interpretar certos fenômenos que eu já tinha observado, mas ainda não tinha compreendido completamente o que podiam significar, e também a fazer as ligações entre certas coisas e certas outras – e sempre entendemos melhor a situação geral quando conseguimos estabelecer ligações entre fatos que, à primeira vista, podem parecer não ter nada em comum. Naturalmente que não concordo com todos os pontos do autor (com a grande maioria, mas não com tudo), mas, concordando ou não, posso atestar que ele nunca falha em estimular o leitor a refletir. Há muito mais que eu poderia comentar sobre os assuntos em que já toquei acima e sobre outros que estão presentes no livro, mas o texto já está mais longo do que eu pretendia. Além disso, creio que não faltarão oportunidades de abordar esses assuntos – mais oportunidades do que eu gostaria, já que, para infelicidade nossa, esses fenômenos estão aí, e ignorá-los é inútil.

quinta-feira, outubro 28, 2021

Duna, o Filme (2021)

Como um fã da obra de Frank Herbert desde a adolescência, eu tive o cuidado de dizer a mim mesmo, antes de ir ao cinema conferir a nova versão de Duna dirigida por Denis Villeneuve, para não ser exigente demais – além de orar fervorosamente para que o diretor (que também é corroteirista) não tivesse desfigurado muito a história original só para fazer concessões à tirania politicamente correta que afeta praticamente tudo nesses anos loucos que estamos vivendo. Por outro lado, estava empolgado para ver o que as novas tecnologias do cinema poderiam ter feito para recriar o universo de Herbert com um visual ainda mais espetacular.

A primeira surpresa não tardou a surgir, e nem era relacionada a roteiro ou imagens: ocorre que nada na (intensa) publicidade que tenho visto na internet a respeito do filme dava a entender que esta era só a primeira parte. Entrei no cinema acreditando que fosse ver um filme único, e sua mui considerável duração de duas horas e 36 minutos parecia confirmar isso, já que é maior que a do filme de 1984, dirigido por David Lynch, que contava, ou tentava contar, a história de cabo a rabo. Mas não: era mesmo só a primeira parte, e acabo de ver, depois de uma rápida pesquisa, que as filmagens da segunda ainda nem começaram, e que sua estreia está prevista para o distante outubro de 2023, se o mundo não acabar antes, naturalmente. Teria sido legal deixar isso claro com antecedência, mas não me importei: se os dois filmes de Villeneuve, juntos, tiverem um resultado satisfatório, a espera terá valido a pena, e talvez, dispondo de mais tempo (tempo de filme, quero dizer), o diretor consiga contar a história de uma maneira mais redondinha, mais inteligível para quem não leu o livro, como já acontecia na minissérie de 2000 do Sci-Fi Channel, que é bem mais amigável ao espectador não iniciado que o filme de Lynch, embora eu, pessoalmente, não goste muito de sua parte visual.

E contar uma história como Duna na tela, de uma maneira que possa ser acompanhada até por quem não conhece bulhufas sobre seu universo (o que sempre será o caso da maior parte do público no cinema), é muito, mas muito difícil. A todo momento aparecem coisas que parecem impor ao diretor uma escolha entre incluir um diálogo expositivo totalmente artificial ou deixar o público boiando. Um exemplo banal, mas bem prático, é o dos campos de força individuais que os personagens usam e chamam simplesmente de "escudos": o livro explica que eles repelem objetos que se aproximem em alta velocidade, mas podem ser penetrados se a lâmina, projétil ou o que for, se aproximar lentamente, o que exigiu o desenvolvimento de técnicas de combate muito específicas. O problema é como explicar isso a quem não leu o livro sem recair no famigerado diálogo expositivo, aquele tipo de cena forçada em que dois personagens começam a falar sobre algo que, pela lógica do enredo, ambos já deveriam estar carecas de saber, mas falam mesmo assim, só para que o espectador receba essas informações. Em algumas situações, Villeneuve encontrou maneiras de evitar isso, como, por exemplo, ao incluir uma cena em que Paul está estudando e, de carona com ele, captamos o que o livro-filme que ele está vendo ensina a respeito da especiaria e de sua importância dentro do universo conhecido. É verdade que em sua idade, e sendo filho de um governante planetário, ele certamente já saberia tudo isso, mas todos sabemos que é impossível estudar, seja qual for a matéria, sem acabar revendo coisas que já se sabe.

Porém, ao ver o filme, não foi esse o primeiro comentário que me veio à cabeça, e sim (inevitavelmente) um a respeito do protagonista: dos três atores que já encarnaram Paul Atreides nas telas, Timothée Chalamet, americano de origem francesa, é sem dúvida o que tem mais a cara do personagem. Tanto ele quanto Kyle MacLachlan, que fez o papel no filme de 1984, já tinham cerca de 25 anos ao interpretarem o personagem de 15, mas Chalamet aparenta muito menos, convence mais como adolescente, e não só pela aparência: o cara é bom de atuação, conseguindo passar aquela sensação de insegurança, de incerteza a respeito da própria capacidade de fazer o que é esperado dele – enfim, a própria essência da adolescência. Não estou de forma alguma tirando o mérito de MacLachlan: o Paul que ele fazia era mais do tipo arrogante e mimado (no início), o que não seria nada inesperado no herdeiro único de uma poderosa casa nobre; o personagem seria, muito em breve, forçado a amadurecer muito depressa, amadurecimento esse que MacLachlan também conseguiu expressar com eficiência. Quanto a Alec Newman, da minissérie, não sei, não é que o cara não tenha feito um bom trabalho, mas eu simplesmente não consigo olhar para ele e pensar "eis aí Paul Atreides". É subjetivo sim, admito.

(Nota de rodapé: entre outros papéis, Timothée Chalamet interpretou Henrique V num filme da Netflix de 2019 intitulado simplesmente O Rei. Considerando suas origens francesas, é curioso ele ter sido selecionado para esse papel.)

Ainda dando rápidas pinceladas sobre o elenco, Oscar Isaac (o Poe Dameron de Star Wars)  me surpreendeu como o duque Leto Atreides, sendo tudo o que o personagem deveria ser: imponente, com uma presença marcante, um ar de nobreza transparecendo até nos gestos mais simples, e uma combinação equilibrada de severidade e gentileza. Rebecca Ferguson está OK como Lady Jessica, companheira de Leto e mãe de Paul, mas confesso que sempre imaginei Jessica como uma mulher linda, e quem chegou mais perto de preencher esse requisito foi Francesca Annis, do filme de David Lynch. Stellan Skarsgård aparece quase irreconhecível como o vilão barão Vladimir Harkonnen, mas mostra a mesma versatilidade de sempre. Dave Bautista está adequadamente bestial interpretando Rabban, o sobrinho do barão, por ele nomeado governador de Arrakis, mas, curiosamente, o outro sobrinho, Feyd-Rautha, não aparece. Será que ele aparecerá na segunda parte, ou Rabban acumulará seus atributos e ações? Só o tempo vai dizer.

O papel de Chani, a futura companheira de Paul, ficou com uma para mim desconhecida Zendaya, que tem uma aparência interessante, uma beleza não óbvia (quero dizer, você precisa se acostumar com ela antes de começar a achá-la bonita) e plausível considerando que, no filme, ela é filha da ecologista imperial Liet-Kynes, interpretada por Sharon Duncan-Brewster, que é negra, de modo que o estilo mestiço de Zendaya vem a calhar. Kynes, por sinal, foi a única grande concessão feita por Villeneuve ao "sistema de quotas" politicamente correto, já que, tanto no livro quanto nas duas produções anteriores, esse personagem era homem. Este também é o primeiro Duna a apresentar uma grande variedade étnica, com muitos personagens negros e pelo menos um oriental (o Dr. Yueh, cujo nome até combina bem com isso), e não creio que esse fato seja coincidência, mas a coisa não foi feita de maneira forçada, então não há do que reclamar.

Josh Brolin (o Thanos dos filmes dos Vingadores) captou bem o estilo de seu personagem, o guerreiro-trovador Gurney Halleck, que, em geral, faz o tipo fleumático, embora uma das primeiras cenas em que ele aparece (cena essa, aliás, indispensável em qualquer adaptação de Duna que se preze) seja justamente uma em que perde a paciência: aquela em que Paul declara que "não está com disposição" para treinar, e Halleck, indignado, lhe dá uma bronca dizendo que "disposição é coisa para gado, para tocar baliset e fazer amor", e que "você luta quando é necessário, independentemente de disposição". Além disso, me agradou muito que essa nova versão tenha resgatado uma característica de Gurney que tanto o filme de David Lynch quanto a série do Sci-Fi haviam deixado de fora: como um bom trovador, ele sempre tem uma citação de poesia na ponta da língua para qualquer situação.

E, claro, não dá para não mencionar o mestre espadachim Duncan Idaho, que, além de ser professor de Paul (junto com Gurney, Thufir Hawat e o Dr. Yueh), também é provavelmente o melhor amigo do rapaz. No novo filme, o papel foi dado a Jason Momoa, já nosso conhecido por ter interpretado Conan no sofrível filme de 2011 dirigido por Marcus Nispel, além de ter sido Aquaman nos filmes da DC e também o bárbaro Khal Drogo em Game of Thrones. Momoa está ótimo na pele desse guerreiro valente e leal.

(Chegou o momento de falar, mesmo que só brevemente, sobre a história, ou melhor, sobre o jeito como o novo filme a conta, e, ao me preparar para isso, acho necessário observar que não vou repetir aqui tudo a respeito de Arrakis, da especiaria e outras coisas que já comentei do plot de Duna e do universo no qual ele se ambienta, uma vez que já existe no blog um post referente ao livro, que contém muito disso; sugiro que sigam o link que está no início deste post e leiam também aquele.)

A história, no filme, começa de uma maneira interessante, com uma breve narração em off feita por Chani, falando sobre seu planeta natal, Arrakis (ou Duna) e sobre a opressão sofrida por seu povo, os Fremen, durante 80 anos por parte dos Harkonnen, até um decreto do imperador forçá-los a ir embora, para serem substituídos pelos Atreides, que, até onde a garota sabe, podem não ser melhores. Funciona bem como introdução, e a transição para outro ponto de vista ocorre suavemente, quando o filme passa a se ocupar da casa Atreides, que, até então, ainda governa Caladan, planeta onde existem oceanos e chuva, o que produz um contraste chocante quando eles se mudam para Arrakis. O duque Leto, líder da casa, vive há muitos anos de forma conjugal com Lady Jessica; os dois se amam e são marido e mulher em tudo, exceto no nome: Leto não se casou porque, mantendo-se solteiro, podia usar a possibilidade de um eventual casamento como trunfo político. Paul é o filho único (até então) em quem o casal deposita grandes esperanças, e, de fato, o rapaz possui muitas capacidades, inclusive algumas inesperadas: tem visões, sonhos premonitórios, percebe muitas coisas de maneira instintiva, e, se tudo isso já era verdade quando ele vivia em Caladan, aumenta ainda mais em Arrakis, onde, querendo ou não, é impossível não se entupir da especiaria, que está literalmente em toda parte, suspensa no ar, impregnada nos alimentos… E, como se sabe, ela amplia a percepção em todos, e muito mais em quem já possui poderes latentes. E aqui o filme tropeça em outro problema: embora as visões e os sonhos de Paul sejam uma peça importante na história (já era assim no livro), tive a sensação de que o roteiro abusa um pouco disso, colocando diante de nós várias e várias cenas representando essas visões, o que prejudica o ritmo da narrativa – por vezes de forma desnecessária.

Passando a falar sobre a parte visual, eu babei ao ver os veículos conhecidos como ornitópteros, embora a concepção deles no filme tenha pouco a ver com seu nome, que significa, literalmente, 'asas de pássaro': os ornitópteros que aqui vemos parecem um cruzamento de helicópteros com gigantescas libélulas dotadas de vários pares de asas que vibram tão depressa que se tornam invisíveis, como as das libélulas mesmo. As cenas deles voando sobre o deserto de Arrakis são magníficas – e o visual do deserto também é diferenciado, alguma coisa ali sugere uma ambientação alienígena, talvez o padrão das dunas ou a coloração da areia; ainda é identificável como o que chamaríamos de deserto, mas sem se parecer completamente com os desertos da Terra.

E do deserto, é claro, chegamos aos vermes. Minha versão favorita deles é a do filme de David Lynch, diretamente baseada nas ilustrações feitas para as capas dos livros de Frank Herbert nos anos 60 e 70; nessa versão, a bocarra da criatura possui mandíbulas triplas, que se abrem como uma gigantesca flor de três pétalas, tendo o interior guarnecido por centenas de dentes que lembram facas – e não por acaso, já que esses dentes são a matéria-prima para a fabricação da faca cristalina, a arma sagrada dos Fremen (na dublagem nacional do filme de Villeneuve, a palavra usada é dagacris, ou coisa parecida; suponho que seja como se lê na tradução brasileira mais recente, publicada pela editora Aleph; a edição que tenho é a antiga, da Nova Fronteira. Qualquer uma das duas formas seria uma adaptação possível a partir do original crysknife). No novo filme, eles têm a boca circular, desprovida de mandíbulas, o que lhes dá uma aparência mais semelhante à dos vermes terráqueos… E confesso que essa concepção não me agrada muito, justamente porque o verme da areia de Arrakis deveria ser algo de admirável, grandioso, e, portanto, bem distinto dos vermes que conhecemos aqui na Terra, e que normalmente achamos repulsivos. Usa-se, inclusive, como insulto: você chama alguém de "verme" para dar a entender que a pessoa é insignificante ou desprezível; os Fremen, com toda a certeza, jamais usariam essa palavra dessa forma. Ainda sobre o novo design dos vermes, os dentes também mudaram, ficaram parecidos com barbatanas de baleia, e preciso admitir que essa aparência, embora menos estética, faz mais sentido, já que a criatura filtra a maior parte de seu alimento a partir da areia tal como as baleias fazem na água. Talvez, então, a faca seja feita com uma parte do dente, possivelmente a raiz ou a parte logo acima dela.

Os Sardaukar, ou as Legiões do Terror do imperador, também merecem ser mencionados, pois, no filme de Villeneuve, foram pela primeira vez retratados da maneira tenebrosa e cruel que lhes é adequada. No livro consta a informação de que, tal como os guerreiros espartanos, eles são recrutados ainda crianças e submetidos a um treinamento brutal – mais brutal que o dos espartanos, já que a maioria nem mesmo sobrevive até a idade adulta, mas os que sobrevivem tornam-se soldados terríveis. O fato de Shaddam IV ter cedido um grande número de Sardaukar para reforçar o exército Harkonnen no ataque a Arrakeen (a capital e maior cidade de Arrakis) foi o principal motivo para que o barão Vladimir tenha apostado tudo no sucesso desse golpe traiçoeiro, confiando numa vitória contra as bem treinadas tropas Atreides.

Na verdade, o universo de Duna é tão vasto e cheio de detalhes que nenhum filme ou série jamais conseguirá explorar todas as riquezas dos livros, mas foi agradável ver que, nesse novo filme, o diretor (também corroteirista, lembrem-se) decidiu incluir algumas pequenas coisas que os realizadores anteriores deixaram de lado, e que, mesmo pequenas, são fascinantes e significativas. Exemplo: nas paredes do  Castelo Caladan (a fortaleza ancestral de onde os Atreides governaram durante séculos o planeta de mesmo nome) há um quadro retratando o velho duque, pai de Leto, paramentado como toureiro, e lá está também a cabeça empalhada do enorme touro que o matou. O livro menciona de passagem que ele morreu na arena, dando um espetáculo para seu povo, o que não é essencial para a história, mas rende um detalhe cheio de significado: como Paul conhece a história de como seu avô morreu, a cabeça do touro, que ele vê todos os dias, torna-se para ele um memento mori, como aquelas caveiras que pintores cristãos punham em seus quadros para lembrar a quem os visse que a vida humana é finita, e que é assim para ricos e pobres, para poderosos e gente comum.

Como inevitavelmente aconteceria em qualquer adaptação de Duna, seu universo futurista possui algumas características muito próprias, que impactam o roteiro e o visual. Por exemplo, graças ao Jihad Butleriano (também referido como a Grande Revolta, ou ainda como a Cruzada das Máquinas), na época retratada não existem robôs nem grandes computadores – é por isso que a especiaria é essencial para as viagens espaciais, pois, sem a ajuda de computadores, só mesmo capacidades extrassensoriais poderiam guiar um piloto com segurança em deslocamentos em velocidade superior à da luz. Armas laser existem, mas não parecem ser comuns, talvez porque seu custo seja muito alto para que seja possível equipar grandes exércitos com elas, de modo que as batalhas envolvem um amplo uso de armas brancas como punhais e espadas – quem diria: as batalhas do futuro se assemelham às medievais, pelo menos nesse aspecto. E uma das poucas ressalvas que preciso fazer ao filme é justamente a respeito das batalhas: achei a maior parte das cenas de combate confusas, aquela balbúrdia visual em que você não consegue distinguir direito o que está acontecendo, uma coisa que, pessoalmente, me incomoda. É uma pena ainda maior se considerarmos que Duna poderia ter cenas de batalha do nível das de Coração Valente ou O Último Samurai – claro que com um clima e um visual compatíveis com o universo criado para o filme. Tais cenas não ficariam deslocadas, não pareceriam gratuitas, e com certeza empolgariam o público. Quem sabe na segunda parte?

Por falar em continuações, é inevitável nos perguntarmos: será que, uma vez feita a segunda parte e concluída a história de Duna, e admitindo-se que o resultado nas bilheterias seja bom, Denis Villeneuve e os outros realizadores se darão por satisfeitos, ou prosseguirão com a saga adaptando os livros seguintes de Frank Herbert? (Sempre me perguntei se David Lynch teria continuado, caso seu filme tivesse feito sucesso, o que, infelizmente, não foi o caso.) O autor concluiu seis volumes antes de sua morte em 1986, e seu filho, Brian Herbert, tentou continuar o trabalho do pai, tendo lançado vários livros em parceria com Kevin J. Anderson, expandindo ainda mais o universo de Duna e aprofundando pontos que só eram tratados por alto nos escritos do criador original. Não li nenhum desses ainda, mas sei que existem volumes dedicados a várias das casas nobres (Atreides, Harkonnen, Corrino etc.) e também um a respeito do Jihad Butleriano, entre outros. Sei o que estão pensando e concordo: mesmo que esses livros sejam bons, é difícil dizer se eles são realmente uma parceria criativa, ou se Anderson escreveu quase tudo enquanto Brian Herbert contribuía, basicamente, com o peso de seu nome. Viajando bastante na maionese, eu diria que os seis volumes escritos por Frank Herbert poderiam ser adaptados para o cinema, enquanto as obras de Brian Herbert e Kevin J. Anderson talvez rendessem uma ou mais séries de TV… Mas estou pondo o carro na frente do verme: como disse, não li os livros dessa dupla, não sei se a adaptação valeria a pena, e, mesmo que a resposta seja positiva, quem garante que algum produtor se interessaria? Já os livros de Frank Herbert, esses não há dúvida de que valem a pena. Se pelo menos o segundo volume, O Messias de Duna, chegar às telas, prevejo que a escolha da atriz que interpretará Alia, a irmã de Paul, será uma questão sensível para mim. A história desse livro passa-se alguns anos depois da de Duna, e Alia, que no final do primeiro livro era pouco mais que uma criança de colo, está com 15 anos; eu tinha a mesma idade quando li o livro pela primeira vez, e me apaixonei pela personagem. Ou seja, não sou ninguém pra julgar as meninas que se apaixonam pelo Edward de Crepúsculo.

Tirando uma média geral, Duna 2021 é um baita filme, não perfeito, é claro, mas que corresponde com honra às expectativas. Preciso ver a segunda parte antes de formar uma opinião definitiva, mas parece ter potencial para vir a ser a melhor das adaptações audiovisuais do romance de Frank Herbert, e também para ser o piloto de uma saga cinematográfica que poderá se tornar legendária. Resta-nos torcer para que esse potencial não seja posto a perder.

segunda-feira, setembro 20, 2021

Capa, Espada e Lacração

Já fui leitor assíduo e inclusive assinante da revista Aventuras na História, que várias vezes me forneceu informações úteis aqui para o blog – pelo menos uma vez, aliás, ela foi a fonte mais importante. Parei de acompanhar ao sentir em suas matérias uma tendência cada vez maior para o politicamente correto, o que, coincidência ou não, começou a acontecer por volta de 2014, quando a revista foi vendida pela editora Abril, que a publicava até então, para a editora Caras (sim, a da revista de fofocas), que, por sua vez, é vinculada ao UOL, que só não ostenta o título de "portal oficial da lacração" porque a concorrência é feroz. Mesmo assim, e pelo menos até a época em que parei de ler a revista, eu, apesar de ter notado que as interpretações eram, por vezes, enviesadas, ainda confiava, em linhas gerais, nas informações concretas ali fornecidas, até março do ano passado, quando… Bem, é melhor começar pelo começo.

Acho que isso acontece com todos vocês: ao abrir o aplicativo do Google no meu celular para fazer uma busca qualquer, o referido aplicativo me apresenta uma série de notícias, matérias, anúncios etc., que seu algoritmo presume, baseado no meu histórico de buscas, que poderão ser do meu interesse. Como minhas buscas muitas vezes envolvem personalidades ou eventos históricos, é frequente que o app me recomende matérias do site da Aventuras na História, ou apenas AH, como ela se intitula agora. Em março de 2020, dizia eu, ao abrir mais uma vez o tal do Google, me deparei com uma dessas matérias, artigos, ou como quer que eles chamem, assim intitulada: Livro de receitas de 3500 anos indica que os antigos romanos inventaram o hambúrguer. Era evidente, ao menos para mim, que "algo errado não estava certo": como poderia um livro de 3500 anos indicar fosse o que fosse relacionado a Roma, cidade que não existiria ainda por mais de sete séculos, já que a data tradicional de sua fundação é em 753 a.C.?… Mandei um e-mail para a revista apontando o erro e recebi em resposta uma mensagem curta agradecendo pelo aviso (não consigo deixar de achar inacreditável que alguém que escreve para uma revista especializada em História precise que um leitor lhe "avise" sobre a data da fundação de Roma) e dizendo que a notícia já tinha sido "atualizada". Uma busca no site depois dessa resposta mostrou que a tal "atualização" consistiu na discreta remoção da notícia em causa. E foi isso.

Aí, na semana passada, ao abrir o Google, achei a chamada para outra notícia na AH, assinada por Isabela Barreiros e intitulada da seguinte forma: Embranquecido e reconhecido apenas no século 21: a saga de Alexandre Dumas. E o subtítulo: O autor de Os Três Mosqueteiros se inspirou na vida do pai para escrever clássicos da literatura. Os problemas já começam aí: como alguém que só foi reconhecido no século XXI – ou seja, em algum momento durante os últimos 21 anos – pode ter obras que já são consideradas clássicos? Um livro só começa a ser chamado de clássico depois de ter suas qualidades amplamente reconhecidas tanto pelo público quanto, pelo menos, por uma expressiva parcela da comunidade acadêmica, e depois que sua influência já pode ser sentida nas obras de autores mais jovens. Isso tudo demora, no mínimo, uma geração, e normalmente mais. Portanto, não há como Dumas ter primeiro se tornado clássico para só depois ser "reconhecido"; trata-se de uma impossibilidade lógica. Se você afirma que Dumas só foi reconhecido no século XXI, está dizendo, por implicação, que suas obras ficaram no ostracismo durante os séculos XIX (época do autor, que viveu de 1802 a 1870) e XX, o que definitivamente não é o caso: Os Três Mosqueteiros, cuja primeira edição é de 1844, foi um sucesso estrondoso e imediato, fazendo do autor um homem rico, e continuou a ser um sucesso durante todo o tempo transcorrido de lá para cá, tornando-se, entre outras coisas, um dos livros com maior número de adaptações para o cinema e a TV. Quem foi criança durante os anos 1980 talvez se lembre até do desenho animado que, no Brasil, era chamado D'Artagnan e os Três Mosqueteiros, uma coprodução Espanha/Japão, na qual os personagens de Dumas eram representados por simpáticos cachorros e outros animais (o título original era D'Artacán y los Tres Mosqueperros, um trocadilho com as palavras cán e perro, ambas significando cão em castelhano). Todo mundo já ouviu a frase "um por todos e todos por um", e tem sido assim há quase 200 anos, então como é possível dizer que Alexandre Dumas só foi "reconhecido" recentemente?

Continuando a ler o texto, os absurdos prosseguem, ao mesmo tempo em que a intenção por trás vai-se fazendo clara (se é que dizer que alguma coisa é "clara" também já não é considerado racismo). Cito:

Em 2002, o então presidente da França, Jacques Chirac, foi responsável por um projeto que exumou os restos mortais de Alexandre Dumas da cidade de Villers-Cotterets, onde ele nasceu em 24 de julho de 1802, e os enterrou novamente no Panteão, mausoléu do Estado francês. O autor das obras clássicas da literatura Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte-Cristo, entre inúmeras outras, foi colocado em uma cripta ao lado de outros romancistas tão importantes quanto ele, como Victor Hugo, e outras figuras históricas francesas notáveis, como Voltaire. Foi apenas naquele ano que o escritor recebeu o reconhecimento máximo de seu país natal. Durante a cerimônia que colocou Dumas onde ele sempre deveria ter estado, Chirac reconheceu o motivo que levou a importante figura a não ter sido originalmente enterrada ali: o racismo.

Aí a autora já começa a revelar a intenção lacratória por trás da matéria. A seguir diz que, embora Dumas "fosse negro", ele "foi representado inúmeras vezes como um homem branco; algo que já aconteceu e continua acontecendo com figuras históricas negras". Não me deterei no fato de a autora evidentemente não saber o que significa "inúmeras". A informação de que o pai do escritor, Thomas-Alexandre Dumas (cujo nome de batismo era Thomas-Alexandre Davy de La Pailleterie), nasceu no Haiti, então colônia francesa, e era filho de um marquês francês com uma escrava negra é interessante e, para mim, nova, assim como o fato de ele ter-se tornado um proeminente general no exército da França e tido uma vida cheia de aventuras, o que forneceu parte da inspiração para as histórias que seu filho viria a escrever. Agora, dizer que Dumas era negro soa como uma óbvia tentativa de vitimizá-lo, e, pelo pouco que sei sobre sua personalidade, ele não teria ficado nada contente de ser retratado dessa forma (e antes que alguém levante alguma bandeira, com "dessa forma" quero dizer como vítima, não como negro). Primeiramente, se uma das avós do escritor era negra, isso significa que ele seria, no máximo, um mulato claro. Não estou afirmando que até mesmo isso não fosse motivo frequente de discriminação contra alguém que viveu na França do século XIX, mas é interessante observar como esse pessoal "progressista" escolhe cuidadosamente o viés através do qual irá mostrar os fatos. Dumas era o que hoje chamaríamos de "pardo" – e, como alguns comentaristas da internet já observaram com sagacidade ao abordarem situações parecidas, esse tipo étnico é muito "versátil", podendo ser apresentado como negro ou como branco, conforme a conveniência de quem fala ou escreve. Como era para pintar Dumas como um grande escritor injustamente menosprezado, o texto fala dele como sendo negro; se, ao invés disso, o objetivo da matéria fosse contar sobre suas safadezas, na certa seria considerado branco. Enfim, é o "pardo de Schrödinger".

(E sim, Dumas foi um escritor maravilhoso e também um safado de primeira ordem: casado com a atriz Ida Ferrier-Dumas, os casos extraconjugais faziam parte de sua rotina. Teve vários filhos, dos quais o único a ficar famoso foi o também escritor Alexandre Dumas Filho, autor do célebre romance e peça teatral A Dama das Camélias. E esse era filho de uma de suas amantes, não da esposa.)

Poucos anos depois da morte de Dumas Pai, seu amigo, o escultor Albert-Ernest Carrier-Belleuse, convenceu a municipalidade de Villers-Cotterêts a homenageá-lo com um monumento, que ele próprio esculpiu e foi inaugurado em 1884, na praça central da cidade, bem em frente à prefeitura, onde está até hoje. Há outra estátua de Dumas em Paris, também de fins do século XIX. Se isso não puder ser considerado reconhecimento, então que diabos "reconhecimento" significa, afinal de contas?

Como curiosidade, o general Thomas-Alexandre Dumas, cuja pele era certamente mais escura que a do filho, também tinha uma estátua em sua homenagem; os nazistas a derrubaram durante a ocupação de Paris (1940-44), junto com estátuas de vários outros heróis de guerra, porque achavam que a contemplação das imagens desses homens poderia incitar orgulho patriótico nos franceses.

Não pela primeira e certamente nem pela última vez, vejo-me diante de um exemplo da veracidade daquele provérbio gramatical que sei que já citei por aqui: "Mais importante que o verbo é o advérbio", o que significa que o modo como se faz alguma coisa é mais importante (ou, ao menos, mais revelador) que a coisa em si que está sendo feita. A transferência dos restos mortais de Dumas é um fato curioso, que os fãs do escritor, sem dúvida, teriam gostado de conhecer, mas a atitude da AH de, em vez de simplesmente informar, meter no meio um libelo "antirracista", parece coisa de quem quer ficar bem na foto com o público politicamente correto – sem contar que tal libelo é totalmente desnecessário, já que a cor da pele de Dumas não o impediu de ser um dos escritores mais amados e mais lidos de todos os tempos, dentro e fora da França, tendo inclusive colhido em vida os frutos materiais de seu trabalho, um privilégio que muitos escritores não tiveram. Estou ciente de que, na visão binária e pouco inteligente da militância "progressista", o simples fato de eu estar questionando isso já faria de mim um racista – o que seria, no mínimo, uma idiotice de minha parte, já que, como Dumas, tenho ancestrais negros, além de portugueses, espanhóis e índios, e isso é só a parte que eu sei (espero não estar chocando ninguém com a revelação de que nem todo gaúcho é loiro de olhos azuis). Com uma árvore genealógica dessas, quem me sobra pra discriminar? Os orientais? Opa, também não: estou namorando uma há anos. Porém, não consigo ter expectativas muito boas quanto aos rumos que a sociedade atual vai tomando à medida que a imprensa em geral vai deixando para trás o ideal de apresentar os fatos de forma objetiva, com o mínimo possível de filtros ideológicos – coisa que, no passado, já foi considerada questão de honra para jornais e revistas. Hoje, a ideologia parece estar em tudo, e, cada vez mais, parece que difundi-la é mais importante que informar.

sábado, abril 17, 2021

DVD: Devoção Verdadeira a D.

Os que leram VHS viram com curiosidade e expectativa a chegada deste novo livro de Cesar Bravo, que nos leva de volta àquele mesmo universo para nos mostrar o que mudou e o que continua igual, alguns anos depois, na cidade fictícia de Três Rios e sua região. A paixão pelo cinema em geral e o de terror em particular (naturalmente) continua escorrendo de cada página, unindo o autor, os leitores e os personagens, e fornecendo a lente através da qual iremos ver uma nova coleção de horrores e bizarrices. Se vocês se identificam com tudo isso, preparem a pipoca, pois o livro vai mantê-los absortos por horas, tanto quanto ficariam ao assistir a um bom filme.

VHS, se não me falha a memória, não mencionava datas específicas, mas dava para inferir que os acontecimentos envolvendo a locadora FireStar e os personagens Pedro, Dênis e Renan deviam passar-se entre o final dos anos 80 e o início dos 90, podendo os outros contos ambientar-se um pouco antes ou depois; já DVD informa que o ano em curso é 2002. Pedro e Dênis, que eram meros sócios-proprietários de uma videolocadora, expandiram o escopo de seus negócios, embora continuem lidando com o universo dos filmes: agora são produtores cinematográficos, e, além disso, a FireStar virou uma rede, da qual eles são os franqueadores – e, na qualidade de franqueado, o outrora ajudante Renan é agora o proprietário e gerente da Loja Um, a primeira FireStar, aquela mesma onde ele começou, e que segue funcionando no centro de Três Rios. Acompanhando a mudança dos tempos, a locadora está trocando seu acervo de fitas VHS pelo novo formato… Mas, seja em fitas analógicas ou em discos digitais, o famigerado Lote Nove continua respondendo por boa parte do movimento, constituindo, inclusive, o principal interesse de alguns clientes. Como o mundo não para de dar voltas, há um novo jovem ajudante, conhecido simplesmente por "Guri", em quem Renan frequentemente se vê tal como era em seus primeiros tempos de FireStar, e em quem agora já confia o suficiente para chamá-lo para uma conversa mais franca, a portas fechadas, sobre o Lote Nove, tal como Pedro e Dênis um dia fizeram com ele. Isso tudo é revelado em FireStar DVD & Vídeo, o primeiro conto propriamente dito do livro, que vem depois de dois enigmáticos introitos intitulados Águas Turvas e Prelúdio em Dó Menor. Nessa história, além de Renan, revemos também Millôr Aleixo, o sujeito que amputou a própria perna utilizando um trem como instrumento cirúrgico no conto Torniquete, do primeiro livro – ele agora vive numa cadeira de rodas, fuma compulsivamente e parece ter envelhecido umas três vezes o que seria normal nos poucos anos transcorridos desde o incidente. Além disso, nunca superou o término com sua antiga namorada, Kelly Milena, cujo nome está, de alguma forma misteriosa, ligado aos fatos tenebrosos que aconteceram e talvez ainda aconteçam no Matadouro 7, em cuja administração ela trabalha.

Pandemonium lida com certos dramas e desafios que todo mundo que já foi adolescente conheceu, com a possível exceção dos mais populares – que, na certa, enfrentaram problemas de outros tipos para compensar. Gabriel, um garoto aparentemente comum de 13 anos, decide aproveitar uma saída dos pais para promover uma sessão de cinema em sua casa, com a aparente intenção de galgar alguns degraus na pirâmide social do colégio; para tanto, convida um pequeno grupo escolhido a dedo, composto de garotas bonitas e caras "descolados". Normalmente, tais pessoas ignorariam um convite desses vindo de um pária como Gabriel, mas ele conta com um trunfo: depois de seu nome ficar por semanas numa lista de espera, ele acaba de conseguir alugar na FireStar o "filme maldito" do momento, o tal Pandemonium do título, cujas cenas chocantes, ao que se diz, já "maluqueceram" algumas pessoas; para adolescentes, e mesmo para muitos adultos, não poderia haver propaganda melhor que essa para um filme – é ainda melhor (ou pior, vai saber) que "proibido em trocentos países" escrito em letras berrantes na caixa da fita. Anda todo mundo doido para ver esse filme, mas, por alguma razão inimaginável, uma cláusula no contrato de licenciamento estabelece que a distribuidora só pode vender uma cópia para cada locadora. Com tudo isso, a sessão de cinema de Gabriel tem tudo para ser um sucesso… mas o final não será feliz. A ação transcorre em 1989, o que só ficamos sabendo bem depois de ler o conto, embora já tivesse ficado evidente que devia ser por volta dessa época, já que, nele, Dênis e Pedro ainda administram a FireStar, e Renan ainda é apenas um ajudante, ou seja, cronologicamente, Pandemonium poderia fazer parte de VHS.

Em A Voz que Caminhava, a pequena Rafaela, ajudando o irmão a esvaziar o quartinho dos guardados na casa da família, encontra uma relíquia: um velho walkman que pertencia a seu pai, que não o usa há mais de 20 anos. A menina se encanta com a velha engenhoca, e o pai, achando graça, permite que fique com ela. O primeiro sinal de que nem tudo está normal vem quando Rafa se mostra assustada ao ouvir, nas estações de rádio que ela sintoniza em seu novo-velho brinquedo, notícias sobre uma iminente guerra nuclear que poderá acarretar o fim do mundo – notícias essas que refletem a situação mundial lá pelos anos 80, quando a catástrofe foi evitada por um triz mais de uma vez. Ela ouve também sobre um menino que foi achado morto no banheiro do mesmo colégio onde ela e o irmão estudam, o tradicional Aureliano Gomes, na cidade de Velha Granada, vizinha de Três Rios – e, embora ela não guarde o nome, o menino não era outro senão o encrenqueiro Jonas Duna, mencionado no conto Branco Como Algodão, de VHS. Quando Rafa começa a fazer coisas estranhas (e perigosas), totalmente alheias ao seu comportamento habitual, o pai se vê forçado a admitir que tudo está  interligado… e que o walkman vagabundo de seus tempos de escola, que sua filha agora carrega para todo lado, pode estar assombrado. O conto é curto, eficiente, e sua ligação com algo que os leitores de Cesar Bravo já conhecem parece potencializar o efeito tenebroso.

O título de Ballet Royale é um trocadilho com "battle royale", expressão que se popularizou a partir do romance homônimo do escritor japonês Koushun Takami publicado em 1999 e acabou dando nome ao que se tornou praticamente um subgênero dentro da ficção distópica, tendo seu mais famoso exemplo na franquia Jogos Vorazes: é aquele tipo de enredo em que um grupo de pessoas é jogado em alguma espécie de arena e obrigado a lutar entre si até que só um reste vivo. Aqui, as regras são um pouco diferentes, mas tão brutais quanto: várias mulheres aparentemente sem qualquer ligação umas com as outras são sequestradas e levadas ao que parece ser uma mansão isolada no meio da mata, onde são forçadas por três carcereiras mascaradas a dançar balé – coisa que a maioria delas jamais fez na vida –, sendo exigido que executem com perfeição os mais difíceis movimentos, e qualquer falha é punida com violência absurda. A lógica do conto é a mesma de Bicho-Papão (que chega a ser mencionado dentro da história!): no começo ficamos chocados, penalizados e torcendo por alguma reviravolta que faça as cativas levarem a melhor sobre suas algozes, mas depois há certas revelações que mudam tudo; essas revelações mostram também que, ao contrário do que parecia, todas essas mulheres têm, sim, alguma coisa em comum.

Em Sopa de Letrinhas, somos apresentados a Bia, uma menina pequena, e a sua avó, D. Eslovena, com quem a garotinha vive desde que sua mãe (a filha de Eslovena) foi embora não se sabe para onde. Por várias páginas nos perguntamos o que aquela história está fazendo num livro de terror, pois o que lemos é uma sucessão de cenas fofas que mostram Bia descobrindo o mundo sob o olhar da avó carinhosa, que a educa com infinita bondade e paciência. Mas, como sei que já escrevi em algum lugar deste blog (e talvez mais de uma vez), começar com cenas da vida normal é um recurso que o terror usa há muito tempo e que parece nunca perder a eficácia: as coisas começam a ficar estranhas quando Bia, que ainda nem chegou à idade de alfabetização, mas já consegue ler palavras simples, passa a ver as letrinhas de macarrão na sopa que a avó lhe serve formarem mensagens, como numa espécie de tábua Ouija para crianças do pré-maternal. Talvez a sinopse, colocada assim, pareça boba, mas, se for o caso, a culpa é minha, e não de Bravo: a justaposição da inocência infantil com sugestões preternaturais tem um efeito poderoso quando a coisa é bem feita, tanto que, mesmo sendo muito mais curta, muitíssimo mais simples, e não tendo qualquer semelhança notável em termos de enredo, Sopa de Letrinhas me fez pensar em O Povo Branco, de Arthur Machen. Ah, e existe uma conexão entre Sopa de Letrinhas e Pandemonium, conexão essa que evidencia novamente que é melhor o leitor não fazer muita questão de uma cronologia precisa, primeiro porque cada conto pode transcorrer num ano diferente e eles não estão colocados em ordem, e segundo porque, no universo de Cesar Bravo, existem certas, digamos, singularidades no que diz respeito ao tempo.

Lar, Doce Lar segue os personagens Duque e Paloma – um gângster do interior paulista e sua amante –, que acabam de assaltar um banco, escapar da polícia e, em sua fuga, utilizam estradas secundárias que os levam em direção à microrregião maldita formada por Três Rios e os municípios menores que a cercam. Nessa viagem, vários fenômenos estranhos se manifestam: tanto a aparência do céu quanto a dos campos que ladeiam a estrada muda de repente, trovões ensurdecedores soam do nada, sem que haja sinal de chuva e, o mais desconcertante, olhando pelo espelho retrovisor veem-se coisas que simplesmente não estavam ali quando o carro passou pelos mesmos locais, segundos antes. A região parece ser uma encruzilhada, mas não de estradas: uma encruzilhada no tempo, e talvez também entre dimensões.

O Homem da Terra leva-nos de volta ao final do século XIX para nos apresentar a Ítalo Dulce, um imigrante italiano e personagem arquetípico, já que, como ele próprio observa, "ítalo" é a mesma coisa que italiano (falta uma boa explicação para que seu sobrenome seja "Doce" em espanhol). Ele e sua esposa, Gemma (não poderia haver nome mais adequado) vivem todas as durezas que os imigrantes enfrentavam naqueles anos; são colonos, quer dizer, receberam do governo um lote de terra para trabalhar por conta própria, diferentemente de outros imigrantes que vinham como empregados para as fazendas de café, para, na prática, substituir a mão de obra dos escravos, que haviam sido libertados pouco antes. Não tenho conhecimento suficiente para dizer em qual das duas situações um imigrante batia mais cabeça; é provável que ambas fossem igualmente ferradas de maneiras diferentes, embora ainda fosse melhor que ficar no país de origem, onde, na época, a imigração era para muita gente a única alternativa para (tentar) escapar da miséria. Tudo indica que Ítalo terá o mesmo destino de muitos outros italianos em terras brasileiras, que era o de trabalhar de sol a sol pela simples sobrevivência enquanto tivesse forças para tanto e, depois disso, só Deus sabe… Até que certo dia, tirando mel numa gruta junto à nascente do rio Escuro (um dos três que dariam nome à cidade que mais tarde existiria ali), não muito longe de sua casa, o imigrante encontra um misterioso personagem que lhe propõe um pacto. Para evitar spoilers, direi apenas que, nos tempos nos quais se ambienta a maior parte das histórias de VHS e DVD, Ítalo Dulce é considerado um vulto histórico, uma espécie de patriarca, um dos homens que tornaram possível a prosperidade econômica de que a região viria a gozar – e o Mel da Gruta ainda é um produto muito apreciado, com "tradição de mais de um século".

Gladiadores em Technicolor é protagonizado por Lívia, filha de Renan (ela já havia aparecido, pequenininha, em FireStar DVD & Vídeo, e aqui ressurge um pouco mais velha, mas não muito). Ela e seus amigos Juliano e Cléber estão fazendo um filme, uma fita caseira de ação/fantasia inspirada nos clássicos dos anos 80, como Os Aventureiros do Bairro Proibido, filme estrelado por Kurt Russell que chega a ser citado, entre outros. A história é curta e tem um sabor nostálgico de infância e de amizades separadas, pois Lívia está prestes a mudar-se de Três Rios com os pais – Renan, muito a contragosto, está tentando vender a locadora. Chega a parecer que o conto vai ser feito apenas desse misto de diversão e melancolia, mas boatos sobre acontecimentos estranhos em Três Rios e arredores aparecem na conversa das três crianças, e ela termina num elo explícito com Lar, Doce Lar. Ah, e tem um detalhe que não se pode deixar passar: o título do filme que os garotos estão fazendo é A Batalha de Devorac – e Devorac é um nome que voltará a aparecer.

Em Solo Sagrado, lemos sobre o esforço de Saulo Renan Sampaio, um jovem pastor evangélico que chega a Três Rios decidido a instalar uma nova igreja, e, para tanto, adquire o terreno da antiga locadora FireStar (e digo isso apenas para deixar vocês curiosos; não contarei o que aconteceu com a locadora). Conforme encara a luta para erguer sua igreja e depois para fazê-la começar a funcionar, Saulo vai ficando menos cético a respeito das histórias macabras que ouviu sobre Três Rios: é como se alguém, ou mais provavelmente algo, estivesse tentando impedir ou ao menos dificultar o máximo possível a pregação da palavra de Deus naquele lugar – sendo que "lugar" pode significar o local específico onde ficava a locadora, ou a cidade como um todo. Perto do final do conto, o pastor se vê dialogando com um misterioso "homem de camisa vermelha" que lhe desperta sensações não muito agradáveis, e que menciona de passagem ter conhecido há muito tempo um sujeito de nome Deodoro… Leitores atentos e de boa memória que leram VHS matarão a charada. Por falar nisso, conforme vamos nos aproximando do final de DVD, vai crescendo um impulso de, ao terminá-lo, emendar com uma releitura do livro anterior, pois há uma viva sensação de que, agora que temos novas informações, muitas coisas dele serão melhor compreendidas e se encaixarão melhor no grande e tenebroso quebra-cabeça que Bravo está criando.

Em Devorac, a região de Três Rios está sendo aterrorizada pelos ataques do que a polícia e a imprensa assumem ser um serial killer que, por alguma razão, mata apenas idosos – mas que, fora isso, não parece fazer nenhum tipo de distinção, atacando homens, mulheres, brancos, negros, o que for. Os corpos dos anciãos são sempre encontrados com terríveis mutilações que desafiam os peritos da polícia e enchem de pavor qualquer um que as veja. Como acontece tanto no terror, há aquela teimosa obstinação por parte das pessoas "racionais" em tentar obrigar a realidade a encaixar-se dentro da moldura do "plausível": um serial killer é uma coisa horrenda, mas que ainda pertence ao campo dos fatos explicáveis, e portanto (pensam as tais pessoas "racionais") essa deve ser a resposta. Tem que ser. Por favor, seja, porque a alternativa é muito pior! As mutilações nas vítimas são coisas que não poderiam ter sido feitas por nenhum ser humano, não importa o quão louco, e nem mesmo por qualquer animal conhecido, mas ninguém quer pensar nisso. Mais uma vez, o leitor atento terá reunido pistas, ao longo da leitura deste livro e do anterior, que lhe permitirão ir construindo uma teoria sobre o que pode ser o tal Devorac. A AlphaCore Biotecnologia, empresa do magnata Hermes Piedade, pode ter algo a ver com isso. Piedade (eita sobrenome irônico) é considerado por muitos um homem de visão e um benfeitor que trouxe o progresso para a região – e por outros tantos uma cria do demônio, que, junto com o tal “progresso”, pode ter trazido também outras coisas bem menos desejáveis. O conto Bom pra Cachorro, que vem logo depois de Devorac, fornece mais algumas pistas nessa direção, mas sem revelar demais. Ainda sobre Devorac, preciso confessar que o jeito como o narrador fala sobre o predador misterioso me fez pensar na igualmente misteriosa Besta de Gévaudan (caso essa referência não lhes seja familiar, vejam o excelente filme O Pacto dos Lobos, de Christophe Ganz, com Vincent Cassel e Monica Belucci).

Polaroid Colorpack 80 leva o nome de um tipo de câmera fotográfica que já foi bastante popular graças ao diferencial de não precisar de revelação (a garotada que já nasceu na era das fotos digitais talvez nem entenda do que estou falando, mas, se for o caso, basta ir até a Wikipédia e pesquisar um pouco sobre história da fotografia). Você tirava a foto e, em segundos, ela saía por uma fenda na câmera, já impressa e pronta. Quem chegou a ter uma Polaroid conta que as fotos não eram tão boas, deixavam a desejar em nitidez e colorido, e, além disso, desbotavam depois de alguns anos, mas, mesmo assim, a praticidade da coisa conquistou alguns fãs – sem contar que essa câmera era a favorita dos serial killers e outros freaks para registrar seus "feitos", já que as câmeras convencionais tinham o sério inconveniente de que seus filmes precisavam ser levados até um estúdio ou loja de fotografia para serem revelados – e o laboratorista que topasse com imagens de natureza potencialmente criminosa, sem dúvida notificaria a polícia… a menos que o próprio serial killer soubesse revelar, como alguns de fato sabiam, mas isso não vem ao caso aqui. A história tem como protagonista um sujeito de nome Leone Dantas, proprietário, gerente e atendente da Paraíso Perdido, loja em Três Rios especializada em comprar e vender todo tipo de item usado, desde móveis até discos e revistas, passando por antigos eletrodomésticos (ou "eletromésticos", como diz o anúncio da loja nos classificados) que agora têm basicamente o valor de curiosidades. Certo dia, Jaime Extremo (sobrenomes improváveis, e às vezes nomes também, são meio que uma peculiaridade regional em Três Rios e arredores), um idoso que é uma espécie de ajudante informal de Leone, aparece com uma notícia potencialmente interessante: um cidadão chamado Amâncio Gruta acaba de morrer e, como vivia sozinho e não tinha esposa, filhos ou outros parentes chegados, sua casa passou em herança à família extensa, e vai ser leiloada. Enquanto isso não acontece, os bens móveis que o falecido deixou na casa podem ser arrematados em lote por um valor razoável, e, com alguma sorte, alguns itens podem dar lucro ao serem postos à venda na Paraíso Perdido. Há um detalhe que pode fazer bastante diferença: apesar de não levar o sobrenome, Amâncio era descendente dos Dulce, talvez um bisneto do semilendário Ítalo Dulce, e, considerando a estreita ligação dessa família com a história da região, há uma possibilidade real de que a casa do velho guarde alguns objetos dotados de valor histórico. Assim, Leone aceita o negócio e, tempos depois, ele e Jaime vão até a casa para conferir seu conteúdo. Entre a esperada coleção de itens comuns, com variados graus de interesse para venda, eles encontram uma caixa contendo fotos – fotos que mostram, muitas delas, pontos conhecidos de Três Rios e cidades vizinhas, mas, naqueles panoramas familiares, há por vezes alguma coisa que não parece estar certa, e Leone acaba entendendo o que é: algumas das imagens mostram os lugares com alterações que ainda vão acontecer, tal como o atual local da locadora FireStar ocupado por uma igreja evangélica… Outras fotos mostram imagens perturbadoras e inexplicáveis, que o leitor reconhecerá como sendo registros de cenas descritas em vários dos contos de VHS e DVD, e examiná-las acaba afetando a sanidade do lojista. Na minha humilde opinião, Polaroid Colorpack 80 merece um lugar entre as melhores histórias do "bravoverso" publicadas até agora.

A penúltima história do livro é Tomada En Passant, cuja maior parte é dedicada a narrar uma reunião dos Filhos de Jocasta, que parecem ser uma espécie de "maçonaria" local, congregando as figuras mais destacadas da sociedade desse noroeste paulista fictício. O ponto de vista é o de um homem chamado Almirante Querido (!!!), que veio de origens humildes e agora é um rico homem de negócios, tão importante, de fato, que até ganhou uma cadeira nesse seleto clube. Inesperadamente, a sessão é invadida por ninguém menos que Hermes Piedade, que, por sinal, já foi por várias vezes convidado a tornar-se membro dos Filhos, mas nunca aceitou. O magnata veio apresentar à assembleia seu novo parceiro nos negócios, um jovem empresário que, diz ele, veio para "revolucionar" a economia local. Considerando o que já sabemos sobre as atividades de Piedade, é difícil esperar boas coisas dessa tal "revolução", e Almirante encara a novidade com bastante ceticismo… mas descobrirá que ficar no caminho de Hermes Piedade significa arriscar muita coisa. Esse conto parece ter sido bolado para preparar certos acontecimentos que podem estar por vir em volumes futuros dessa… série? Também parece ser esse o objetivo de algumas notícias enigmáticas dos jornais da região, "reproduzidas" nas últimas páginas do livro. Em tempo: eu me pergunto se eventualmente receberemos uma explicação para o nome dessa irmandade. "Filhos de Jocasta" evoca associações de incesto e/ou tragédia, e, como se fosse para assinalar que a escolha do nome não foi casual, o "mestre da ordem" recebe o título de “Édipo”.

DVD termina com Sete Vidas, que narra (com detalhes agoniantes) o destino final de Sagitário Piedade, filho caçula de Hermes Piedade e mau elemento irremediável desde sempre: era colega de Gabriel Cantão (o do Pandemonium) em fins dos anos 80, sendo já então um dos piores bullies do colégio, e sua carreira a partir daí consistiu numa sucessão de roubos, sequestros, assassinatos, estupros e coisas que tais, tendo constante necessidade da intervenção do pai, com sua influência e seu dinheiro, para repetidamente livrá-lo das garras da justiça e mantê-lo livre para praticar novas vilanias – até ser apanhado por dois personagens misteriosos, decididos a fazer justiça com as próprias mãos e, aproveitando a oportunidade, usar "Sági" como cobaia para uma curiosa experiência envolvendo memória e viagem no tempo. Mais uma vez, o esporear de emoções causado pela história segue o mesmo itinerário de Bicho-Papão e Ballet Royale, como se lançasse um desafio ao leitor: e aí, vai ficar com peninha, ou acha que ele só está recebendo o que merece? De todo jeito, a leitura é pra lá de incômoda, e os resultados da tal experiência, ainda que inconclusivos, abrem uma infinidade de possibilidades.

Tal como já havia feito em VHS, atribuindo a essa conhecida sigla o novo significado de "Verdadeiras Histórias de Sangue", Cesar Bravo também brincou com o título de DVD: ao mesmo tempo que designa o novo formato de vídeo com o qual a FireStar e demais locadoras passaram a trabalhar, essa é também a sigla de "Devoção Verdadeira a D.", mas ainda não é neste livro que ficamos sabendo o que significa essa inicial misteriosa: ela aparece aqui e ali, mas não é objeto de explicações. Com esse novo livro, Bravo promove uma considerável ampliação em seu universo sombrio, deixando seus leitores fiéis (pois ele já os tem) cada vez mais curiosos e ansiosos por mais. Em algum canto da internet, já vi alguém se referir ao escritor como o "Stephen King tupiniquim", uma comparação que, tenho certeza, o deixaria satisfeito, já que, assim como (pelo menos) grande parte de seu público, ele é provavelmente um fã do mestre do Maine, e, de fato, o que Bravo está fazendo com sua Três Rios lembra o que King fez com Jerusalem's Lot, Derry e Castle Rock – está construindo uma mitologia, tijolo por tijolo. Como só os realmente bons conseguem fazer, Bravo foi capaz de aprender com King (e com outros mestres do terror) sem se transformar num mero copycat: seu estilo é muito pessoal, marcante e fácil de reconhecer. Se a DarkSide topou publicar mais este livro, é porque o anterior deve ter sido bem-sucedido, e com muito mérito. Torço para que essa parceria continue.