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terça-feira, agosto 18, 2020

A Legião do Tempo

Estudantes que estão se familiarizando com a cultura dos países anglófonos costumam achar curioso e engraçado quando descobrem como é que se diz "telenovela" em inglês: é soap opera – literalmente, 'ópera de sabão'. Vi meus colegas terem exatamente essa reação numa aula de inglês no primeiro ano do ensino médio, muitos anos atrás, e, quando uma menina perguntou o porquê desse nome, a mestra (professora Sandra, lembro bem) confessou que não sabia. Se fosse nos dias de hoje, uma rápida busca na internet teria satisfeito a curiosidade, mas na época as coisas não eram tão fáceis. De qualquer forma, embora a timidez dos 15 anos tenha mantido meus lábios grudados naquela ocasião, a verdade é que eu sabia a resposta: acontece que nos Estados Unidos, da mesma forma que aqui no Brasil, as novelas nasceram no rádio, só mais tarde migrando para a TV, e, durante a "era de ouro do rádio", que, lá, foi nas décadas de 1920-30, elas, além de extremamente populares, eram notórias por serem patrocinadas por fabricantes de sabão em pó, cujos jingles sempre antecediam o início do capítulo do dia. Isso explica o porquê do soap; quanto ao opera, ainda é um mistério para mim (mesmo hoje, com internet e tudo), e ficarei grato se alguém que me lê souber esclarecer.

A essa altura vocês talvez estejam se perguntando (e parabéns pela perspicácia se estiverem): peraí, moleque, como é que você, sendo brasileiro, com 15 anos de idade e numa época sem internet, sabia de tudo isso? Simples: aos 15 anos (e bem antes) eu já era nerd e apaixonado por ficção científica. Acontece que, embora a maior parte das novelas de rádio se ocupassem de tramas dramáticas e sentimentais (o mesmo tipo de coisa que move as novelas da TV até hoje), tendo como público-alvo basicamente moças e senhoras, havia uma ou outra soap opera alternativa, por assim dizer: essas visavam ouvintes adolescentes e jovens-adultos do sexo masculino e ofereciam mais ação e aventura. Como já existia o termo soap opera, essas produções ganharam nomes adaptados a partir dele e levemente brincalhões: se fossem histórias de faroeste, eram chamadas de horse operas ('óperas de cavalos'); se fossem de ficção científica, eram space operas ('óperas do espaço'). Esses dois eram os gêneros mais comuns. Li isso tudo na introdução de alguma velha antologia de ficção científica.

Por extensão, o termo space opera passou a designar um subgênero dentro da ficção científica, aplicando-se a toda história – mesmo em livro, quadrinhos ou cinema – que apresentasse as mesmas características que aquelas aventuras espaciais do rádio: narrativa vertiginosa, cheia de reviravoltas e com muita ação, personagens simples mas mesmo assim carismáticos, batalhas espaciais em profusão, vilões sinistros e superpoderosos para enfrentar, e, muitas vezes, uma bela mocinha em perigo precisando de um herói, já que a garotada que ouvia, lia e assistia a essas histórias, embora torcendo o nariz para as tramas lacrimosas que suas mães e irmãs acompanhavam pelo rádio, no fundo também tinha a sua parcela de romantismo – sem contar que, se trocarmos as pistolas laser por espadas e os planetas exóticos por reinos medievais na Europa, muitas space operas se transformam facilmente em romances de cavalaria, e o que é um romance de cavalaria sem uma donzela para ser salva?

Como é fácil supor, esse subgênero produziu muita coisa descartável, mas também deu espaço (hehehe!) à ascensão de autores que, faz agora quase um século, turbinam os sonhos de milhares de adolescentes de todas as idades, caras como Edgar Rice Burroughs, Poul Anderson, Edmond Hamilton, E. E. "Doc" Smith e C. L. Moore, entre outros. Não estou atribuindo a todos esses autores o mesmo nível de qualidade, apenas dizendo que são alguns dos nomes que emergiram na space opera para ganhar um lugar na história da ficção científica. Mesmo autores de maior peso, conhecidos por obras mais sérias e profundas, chegaram, em algum momento, a flertar com o subgênero, vide as aventuras de Lucky Starr escritas por Isaac Asimov.

(Não resisto a fazer mais um desses meus parágrafos entre parênteses, mas prometo que este será breve. Ocorre que, embora eu tenha me referido àquele punhado de autores ali em cima como "caras", o "C" de C. L. Moore é de Catherine, e a autora adotou a abreviatura porque ela, ou seu editor, e provavelmente ambos, sabiam muito bem que o adolescente-americano-leitor-de-ficção-científica típico da época ficaria seriamente cabreiro se soubesse que a história que estampava a capa da edição do mês de sua revista favorita havia sido escrita por uma mulher. Embora já houvesse uma mulher entre os pioneiros do gênero em pleno século XIX – claro que me refiro a Mary W. Shelley, autora de Frankenstein –, temos que admitir que a ficção científica foi durante muito tempo uma espécie de clube do Bolinha literário, sendo escrita e lida quase exclusivamente por "cuecas". Felizmente, isso mudaria com o tempo.)

Antes de prosseguir, preciso adverti-los de que a definição de space opera com a qual estou trabalhando é a que encontrei, como disse, em artigos ou introduções de livros de ficção científica que li ao longo dos anos, mas parece que a definição não está muito bem pacificada, pois, pesquisando na internet, encontrei até mesmo 2001: Odisseia Espacial, de Arthur C. Clarke, classificado como space opera em determinados sites – sendo que eu dificilmente conseguiria pensar num livro de ficção científica que estivesse mais distante de tudo o que esse rótulo me traz à cabeça. Se me pedissem para classificar 2001, eu diria que é hard science-fiction, assim como Duna, de Frank Herbert, ou a saga Fundação, de Isaac Asimov: são todos livros muito densos e complexos, que não são para qualquer um, e certamente não recomendáveis para leitores muito jovens e inexperientes. Portanto, tenham em mente que a expressão space opera pode ser usada com sentidos diferentes em outros lugares.

E não é possível contar a história da space opera sem citar o nome de John Stewart Williamson (1908-2006), imortalizado como Jack Williamson, autor que brilhou durante a era de ouro da ficção científica (sim, não é só o rádio que tem direito a isso), que durou, aproximadamente, do final dos anos 30 ao final dos 40. Williamson, entretanto, já era um veterano nessa época, pois estava em atividade desde fins dos anos 20. Suas primeiras histórias foram publicadas na legendária revista Amazing Stories, fundada e, na época, ainda editada por ninguém menos que o pioneiro Hugo Gernsback, o homem que deu nome a um dos mais importantes prêmios da ficção científica. Um nome frequentemente presente nessa revista era o de Miles J. Breuer, americano de origem tcheca, médico de profissão e escritor por paixão, amigo de Gernsback e que se tornou uma influência importante na fase inicial da carreira de Williamson; os dois chegaram a escrever em parceria.

Paralelamente a uma carreira acadêmica na área de língua e literatura inglesa, Williamson publicou, ao longo das décadas seguintes, mais de 30 romances, além de dezenas de contos em várias das mais prestigiosas revistas de ficção científica e fantasia: Wonder Stories, Astounding Stories, Weird Tales… Pode-se destacar The Reefs of Space ('Os Recifes do Espaço'), em parceria com Frederik Pohl, que foi publicado como uma série na revista Worlds of If durante os anos 60 antes de sair em forma de livro. Para dar uma ideia do lugar especial que Williamson ocupa na galeria de honra da ficção científica, ele teve entre seus ávidos leitores e fãs o adolescente Isaac Asimov, que registrou em sua autobiografia que, quando conseguiu vender sua primeira história para publicação, quase tão empolgante quanto o fato em si foi ter recebido uma carta de Williamson congratulando-o e dando-lhe boas-vindas ao time dos escritores. Eu sei, é estranho pensar em Asimov como um jovem escritor iniciante em vez de um monstro sagrado da ficção científica, mas é sempre bom não esquecer que todo mestre também teve seus próprios mestres.

The Reefs of Space não foi a primeira experiência de Jack Williamson em se tratando de publicar romances serializados em revistas. The Legion of Space, publicado em seis partes pela Astounding em 1934, só ganharia a primeira edição em livro 13 anos depois. Trata-se de uma das mais cultuadas space operas de todos os tempos e se tornaria o piloto de uma série de romances. Esse livro ganhou edição brasileira, dentro da tão querida e importante coleção Mundos da Ficção Científica, da editora Francisco Alves; graças a isso, pude lê-lo na minha adolescência, e há algum tempo consegui adquirir um exemplar, de modo que uma releitura está nos meus planos, e, quando isso acontecer, não há dúvida de que merecerá um post aqui no blog. Porém, embora fosse um épico de qualidades inegáveis, The Legion of Space não apresentava nada de muito inusitado em relação ao que já vinha sendo feito na ficção científica da época. Coisa bem diferente acontece com The Legion of Time (publicado como série na Astounding em 1938, e em forma de livro em 1952), que, mesmo trabalhando com dois conceitos bem conhecidos – viagem no tempo e realidades alternativas –, faz isso de uma forma inovadora e empolgante.

Jack Williamson se manteve em atividade até seus últimos dias de vida. Em 2001, aos 93 anos, ganhou o Prêmio Hugo pela história The Ultimate Earth, publicada no ano anterior, tornando-se o mais idoso escritor a receber essa distinção. Publicou seu último livro, The Stonehenge Gate, em 2005, aos 97 anos. Faleceu no Novo México, onde vivera a maior parte de sua vida, em 10 de novembro de 2006.

Pois bem… Apesar do paralelismo dos títulos, A Legião do Tempo não tem conexão alguma com A Legião do Espaço, e, enquanto este último, como dito acima, tem edição nacional, o outro, pelo menos até onde eu sei, nunca foi publicado em português, fosse no Brasil ou em Portugal. Encontrei na internet uma versão em inglês em PDF, li assim e, como um exercício pessoal, eu mesmo o traduzi; imprimi, mandei encadernar, e agora essa edição de um único exemplar está na minha estante, ao lado de A Legião do Espaço da Francisco Alves. Trabalhoso demais? Certamente que não, em se tratando de um livro que eu queria ler há tanto tempo. Além disso, gostei da experiência de traduzir.

Assim como os escritores de terror do século XIX e início do XX adoravam lançar mão do recurso da "narrativa dentro da narrativa", fazendo seus personagens encontrarem alguém que contava uma história, ou acharem um manuscrito que a continha, os autores de ficção científica que vieram depois também tinham seus expedientes favoritos, e um deles era o de fazer um personagem do presente receber, de alguma maneira, mensagens do futuro. É assim em A Legião do Tempo. Dennis "Denny" Lanning, um adolescente de 18 anos que vive no ano de 1927, está prestes a colar grau na Universidade de Harvard (parece que, na época, as pessoas se formavam bem mais cedo do que hoje) quando, numa noite aparentemente comum, sozinho no apartamento que divide com alguns colegas, ele recebe a visita de uma linda e misteriosa jovem que aparece do nada (depois Lanning percebe que ela não está realmente ali – o que ele vê é algum tipo de projeção) e se identifica como Lethonee. Ela vem apelar ao rapaz em nome de sua cidade, Jonbar, sobre a qual tudo o que se sabe nesse momento é que existe num futuro distante, talvez na Terra, talvez em algum mundo que a humanidade haja colonizado. Lethonee afirma que o destino de Jonbar está nas mãos de Lanning, mas o que isso significa na prática permanece um mistério. Ela o alerta de que deve faltar a sua aula de voo do dia seguinte, na qual ele e seu melhor amigo, Barry Halloran, voariam solo pela primeira vez. Denny faz o que Lethonee pede – e Halloran morre num trágico acidente.

Lethonee dá também outro aviso: Lanning será certamente procurado por alguém de nome Sorainya ("a mulher da guerra, a flor do mal"), de um lugar chamado Gyronchi, e, quando isso acontecer, não deve dar-lhe ouvidos em hipótese alguma, pois, caso o faça, isso será o fim de Jonbar e também dela, Lethonee. Dito e feito: Sorainya aparece, tempos depois, também por meio de uma projeção, e, assim como Lethonee, faz um apelo a Lanning em nome de sua cidade, Gyronchi, e do império do qual ela é a capital. É nesse momento que o livro revela a grande sacada de seu enredo: Jonbar e Gyronchi são dois futuros possíveis, e, se uma delas se concretizar, a outra terá sido varrida para sempre da existência. A encruzilhada é algum ato que Lanning ainda vai praticar, ou alguma decisão que ele irá tomar, e é por isso que ambas as governantes procuram ganhar a boa vontade do jovem para suas respectivas causas.

Assim como diversas mocinhas da ficção atual (alguém disse Jogos Vorazes?) ficam divididas entre o amor de dois rapazes – um mais gentil e sensível, o outro mais visceral e selvagem –, o nosso Denny Lanning, cuja experiência anterior com o sexo oposto parece ser nula, se vê atordoado pelas figuras de Lethonee e Sorainya: a primeira é meiga e serena, de uma beleza etérea; a outra é impetuosa, sensual e sedutora. As visitas de ambas poderiam parecer um sonho, se não fossem, para o rapaz, mais reais que a própria realidade cotidiana, mas ele não mais as vê durante muito tempo, e sua vida segue. Dennis Lanning torna-se um repórter arrojado, um correspondente destemido que está sempre nos lugares mais perigosos do mundo, cobrindo guerras, revoluções e convulsões sociais de todo tipo. Não raras vezes se vê envolvido na ação direta, precisa manejar armas, sofre ferimentos, prisões; passa por todos os apertos imagináveis. Os dez anos seguintes transformam o rapazinho sonhador num homem rijo, de nervos de aço, mas que não perdeu nem seu idealismo nem seu romantismo. Ele não se esquece de Lethonee nem de Sorainya, e esta última lhe aparece de novo, alguns anos depois da primeira visita, encontrando um Lanning, naturalmente, mais velho, ao passo que ela não mudou nada. Ela usa de todo o seu poder de sedução e de outras tentações, garantindo ao jovem que, se ele quiser, poderá viver com ela e governar ao seu lado o império de Gyronchi.

Intrigado, Lanning chega a tentar contato com um de seus antigos colegas de quarto na faculdade, Wil McLan, um físico e matemático que se dedicava a estudos sobre a natureza do tempo, desejando ouvir sua opinião – mas descobre que McLan deixou o cargo que tinha numa prestigiosa universidade para dedicar-se a pesquisas particulares, e que seu paradeiro é desconhecido. Mais anos se passam, Lanning se envolve em mais aventuras, até que chega 1937 e ele recebe uma mensagem de outro antigo colega, Lao Meng Shan, perguntando-lhe se está disposto a ajudar a defender a China contra a invasão japonesa. Por sinal, Williamson parece ter pesquisado bastante: o livro apresenta um rigor histórico surpreendente ao mencionar batalhas e guerras. Essa invasão fez parte da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), conflito cujos desdobramentos se entrelaçaram com os da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Lanning atende ao chamado, e ele e Shan voam juntos na Batalha de Xangai, na qual o avião dos dois está para ser abatido pelos japoneses quando eles são salvos por uma estranha nave que se desloca tanto no tempo quanto no espaço. Seu comandante é ninguém menos que Wil McLan, mas uma versão idosa dele – uma versão que veio do futuro, já que seus estudos o conduziram à descoberta dos segredos da viagem no tempo. McLan e sua tripulação estão percorrendo as datas e locais de várias batalhas e desastres aéreos históricos, "recolhendo" pilotos hábeis e corajosos de diferentes nacionalidades, no exato momento de suas mortes, ou melhor, no momento em que teriam morrido, para alistá-los numa força que vai lutar por Jonbar – a Legião do Tempo. Jonbar e Gyronchi, apesar de não existirem na mesma realidade, estão em guerra uma com a outra, uma guerra que será lutada em diferentes lugares e épocas, e cujo resultado trará somente uma das duas cidades à existência. Espiando ainda mais longe no futuro de cada uma das duas linhas temporais (o que as engenhocas de McLan conseguem fazer), verifica-se que, na linha que inclui Jonbar, a humanidade terá um destino glorioso, enquanto a outra linha, a de Gyronchi, termina em guerras catastróficas e na extinção de nossa espécie.

Histórias sobre guerras futuristas já não eram nenhuma novidade na era de ouro da ficção científica, e menos ainda em 1952, mas sem dúvida que estamos diante de algo diferente quando nos deparamos com um plot no qual a maneira de um lado derrotar o outro não é destruindo-o, e sim impedindo que ele surja. Claro que isso deve ter feito vocês lembrarem do filme O Exterminador do Futuro, mas não esqueçam que ele é de 1984, e certamente que o diretor e roteirista James Cameron tem uma dívida para com os mestres da ficção científica de décadas anteriores, entre eles Jack Williamson (um chega a ser nomeado: no final do filme, logo antes dos créditos, aparece a informação de que o roteiro foi livremente inspirado em contos de Harlan Ellison, mas as contribuições deste referem-se mais à parte da rebelião das máquinas, e não às possibilidades da viagem no tempo). O mais interessante é que, pelo fato de Jonbar e Gyronchi serem realidades alternativas (de modo que a existência de uma delas é a negação da outra), é impossível qualquer contato físico, e por consequência, também é impossível um confronto entre as forças militares de ambas. Wil McLan explica a Denny Lanning a respeito do que ele chama de geodesias (palavra usada aqui com um sentido diferente do que encontramos nos dicionários), que seriam algo como nós ou encruzilhadas, pontos da História onde as diferentes realidades possíveis se ramificam; não há geodesias diretas ligando Jonbar e Gyronchi, e por isso as duas não podem interagir diretamente. Já McLan, Lanning e seus companheiros são do século XX, um período que faz parte do passado de ambas as linhas temporais, e assim, ao viajarem no tempo, podem chegar a qualquer uma delas, dependendo das geodesias que seguirem.

A Legião do Tempo representa perfeitamente a atmosfera da era de ouro da ficção científica, ou, ao menos, de um estilo que deixou sua marca nela: é uma história cheia de ação, que até procura se ancorar na ciência, mas não hesita em sacrificar a precisão científica, se com isso puder injetar doses extras de aventura e drama. Não sei se um crítico especializado seria da opinião de que a história "envelheceu bem", como eles dizem, mas, falando como um leitor que passou a adolescência lendo tanto Jack Williamson quanto outros gigantes da ficção científica, digo que, mais de 80 anos depois de sua primeira publicação, ela continua a oferecer um entretenimento formidável. Um de meus sonhos enquanto leitor é que apareça uma editora disposta a fazer pela ficção científica o que a Clock Tower tem feito pelo terror e pela fantasia, lançando novas edições de autores antigos que há muito não eram publicados no Brasil, ou que nunca o foram, mas que são importantes para a história do gênero em nível mundial, além de terem muito a oferecer às novas gerações de leitores.

Fiel à minha velha mania de montar trilhas sonoras para as histórias que leio, recomendo aos que forem fãs tanto de metal quanto de ficção científica que experimentem ler A Legião do Tempo ao som da banda sueca Sabaton, cujas músicas inspiradas em grandes batalhas históricas (históricas mesmo: eles deixam a fantasia para outras bandas) encaixam bem em vários trechos do livro.

quarta-feira, junho 20, 2018

O Satanista

Mandar logo de cara uma longa digressão não é a maneira mais aconselhável de se começar um texto, e sei que já fiz isso diversas vezes aqui no blog; ultimamente tenho procurado evitar, mas desta vez vai ser impossível. Sendo assim, prometo tentar não alongá-la demais!

Bem… Como a maioria dos fãs de heavy metal e de rock em geral, tive, na juventude, a minha fase de querer saber o máximo que fosse possível sobre as bandas de que gostava; na época, antes da popularização da internet, fazíamos isso basicamente por meio de revistas. Fase essa que, no meu caso, passou – não a de gostar de metal, pois ainda gosto e não me parece que isso vá mudar, seja lá com que idade eu estiver; apenas não consigo mais me importar tanto com histórias, curiosidades e detalhes de todo tipo sobre as bandas. Hoje me contento em curtir a música e não ligo muito para o resto. Para dar uma ideia, há bandas que já conheço há anos e adoro, mas só sei o nome de um ou dois membros; nos velhos tempos isso seria impensável, eu teria o nome de cada integrante e seu respectivo instrumento na ponta da língua, feito escalação de time de futebol.

Como sabe quem entende um pouco do assunto, houve três bandas, todas elas surgidas no Reino Unido no final dos anos 60, que são consideradas o tripé sobre o qual toda a história do heavy metal foi construída: Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Tecnicamente falando, o Sabbath ficava bem atrás dos outros dois grupos (que contavam com músicos experientes, alguns deles com formação clássica); não obstante, há muita gente que o considera o mais influente dos três, além de ter sido a primeira banda de heavy metal propriamente dita da História – o Led e o Purple estavam mais próximos do que chamamos hoje de hard rock, com fortes traços do blues no caso do primeiro, e da música clássica no segundo.

(Quero esclarecer que, ao dizer que o Black Sabbath era, do ponto de vista técnico, a menos notável daquelas três grandes bandas, não estou de forma alguma tirando seus méritos: gosto pra caramba do Sabbath e inclusive considero Tony Iommi um dos guitarristas mais criativos da história do som pesado. Porém, basta ouvir e comparar os dois ou três primeiros discos de cada uma para perceber que, das três bandas, o Sabbath era a que fazia o som mais simples, já que seus músicos não tinham, pelo menos no início, tanto conhecimento técnico – leia-se anos de conservatório – quanto os do Led e do Purple. Foram-se aprimorando com o tempo, o que pode ser sentido nos álbuns seguintes.)


Já havia gente fazendo som pesado na época, mas o Sabbath, e especialmente seu vocalista, John "Ozzy" Osbourne, foi o grande responsável por definir a estética, os códigos, a vibe daquilo que seria mais tarde chamado de heavy metal. O fascínio do cantor por ocultismo logo se refletiu nas letras das músicas – o maior exemplo disso é sem dúvida a primeira faixa do primeiro álbum, de 1970; tanto a faixa quanto o álbum tinham o mesmo nome da banda. Como Ozzy contaria em entrevistas muitos anos depois, sua identificação com essa temática chegou a colocá-lo em situações estranhas, como quando era procurado por pessoas querendo convidá-lo a tomar parte em todo tipo de ritual macabro, sendo que, na verdade, ele próprio nunca teve qualquer envolvimento com o ocultismo: era só um curioso, um fã declarado de filmes de terror.

E, de acordo com uma matéria que li certa vez numa revista sobre rock, houve outro grande responsável, além da produtora cinematográfica Hammer, por formar o imaginário de Ozzy no tocante aos temas soturnos e sobrenaturais: o escritor inglês Dennis Yeats Wheatley (1897-1977), autor tão prolífico quanto popular, que, dos anos 30 aos 60, publicou dezenas de romances, embora relativamente poucos fossem de terror – a maior parte eram narrativas de aventura e suspense, muitas delas com ambientação histórica, destacando-se a série sobre Roger Brook, uma espécie de James Bond dos séculos XVIII e XIX (ou talvez fosse melhor dizer que Bond é um Roger Brook do século XX, já que seu criador, Ian Fleming, era fã de Wheatley e confessava-se influenciado por ele). Até onde pude apurar, de toda a extensa bibliografia de Wheatley, só dois livros ganharam edições brasileiras: A Máscara do Mal, que é uma das aventuras de Brook, e este O Satanista, publicado originalmente em 1960.

A narrativa orbita em torno do coronel William Verney, que tem o apelido de C. B., iniciais de "Conky Bill" ('Bill Narigudo') devido a seu traço fisionômico mais marcante. Eu não iria ao ponto de chamá-lo de protagonista, mas ele funciona como uma espécie de eixo, conectando as diferentes subtramas. Verney trabalha na Inteligência britânica, e, no início da história, acaba de receber a informação de que um de seus agentes, o jovem Ted Morden, foi encontrado morto. Morden estava investigando os sindicatos trabalhistas da região de Londres, a fim de tentar descobrir até que ponto eles estavam infiltrados, talvez até controlados, por agentes do comunismo internacional (lembrem-se, era a virada dos anos 50 para os 60, com a Guerra Fria entrando em seu período mais tenso), e seria lógico supor que foi assassinado por esses agentes após ter sido descoberto, mas as condições em que o corpo foi encontrado levam C. B., que já viu coisas parecidas antes, a crer que haja mais: as marcas no corpo do rapaz sugerem que ele tenha sido sacrificado em algum ritual diabólico. A linha de investigação de Morden é assumida por outro agente, Barney Sullivan, um irlandês de origens aristocráticas, a quem seu chefe praticamente implora que tome precauções redobradas. Ao mesmo tempo, Mary Morden, a viúva de Ted, decide tentar por conta própria descobrir o assassino ou assassinos de seu marido e levá-los à justiça. O coronel Verney, embora não possa aceitar a participação de Mary nas investigações, nem prestar-lhe qualquer ajuda oficial em nome de seu departamento, oferece-lhe alguns conselhos e dicas, em especial confidenciando-lhe suas suspeitas de que a morte de Ted pode ter sido ritualística. Mary, uma jovem estonteante de apenas 23 anos, mas já com um passado complicado, está disposta a valer-se de tudo ao seu alcance, inclusive de seus encantos físicos, para vingar o marido. Verney decide não contar a Sullivan sobre os esforços de Mary e vice-versa: deixa-os agir independentemente um do outro, para melhorar as chances de que, no caso de um dos dois ser apanhado, o outro escape. O coronel não sabe, nem pode saber, que os dois jovens se conhecem há anos, embora não se vejam há muito tempo.

Não sei qual a profundidade dos conhecimentos de Dennis Wheatley sobre o satanismo – tanto seus credos e fórmulas quanto seu modus operandi –, nem de que forma ele teria obtido tais conhecimentos, mas a descrição que ele nos oferece de como funciona o recrutamento é bastante plausível: membros de irmandades satânicas frequentam encontros genéricos onde se reúne gente de todos os tipos, tendo em comum apenas algum grau de interesse por temas místicos e esotéricos. A grande maioria, claro, é de meros curiosos, que sentem falta de alguma coisa que vá além da vulgar realidade material, mas não possuem a necessária firmeza de propósitos para adotar uma religião; querem um sabor de "transcendência" em suas vidas, contanto que isso não exija mudança de hábitos ou atitudes. Enfim, basicamente indivíduos comuns e inócuos, do tipo que se acha altamente místico porque leu dois livros comprados na lojinha esotérica do shopping e acendeu uns incensos – mas, em meio ao grupo, pode sempre haver um ou outro com ambições mais sérias e, possivelmente, sinistras. Nesses encontros, o satanista infiltrado vai conhecendo e sondando os outros frequentadores para ter uma ideia de quais deles estariam abertos a um convite para ingressar em seus círculos – e, mais importante que isso, quais deles seriam aquisições interessantes para esses círculos. É num desses encontros esotéricos light, promovido por uma senhora de Londres, que Barney e Mary se reencontram. Ela o reconhece imediatamente, mas ele não a reconhece porque, a conselho do coronel Verney, ela usa um disfarce: sendo naturalmente loira, adotou um visual moreno, além de alterar mais alguns detalhes de sua aparência e usar um nome falso. Ambos estão ali por causa de suas investigações, e não de algum interesse no oculto, mas, é claro, nenhum deles revela ao outro suas motivações. Mary, por causa de sua bela aparência, torna-se logo alvo das atenções do Sr. Ratnadatta, um indiano filiado a um culto satânico (é uma noção amplamente aceita que grupos satanistas sempre procuram recrutar mulheres atraentes, já que o sexo desempenha papel importante em seus ritos), que a leva a reuniões secretas nas quais a jovem descobre que aquilo tudo não é puro delírio nem fantasia: o sobrenatural é real, e os poderes do mal também.

O Satanista apresenta-se como "uma história de magia negra" (isso está escrito na capa, pelo menos nesta edição da Record), mas também é outras coisas, e, na verdade, o ocultismo e temas relacionados a ele não ocupam tanto espaço assim. Há um forte componente de espionagem, e essa parte gira em torno de dois personagens, os gêmeos Otto e Lothar Khune, nascidos nos Estados Unidos, mas filhos de pais alemães. Quando o Partido Nacional-Socialista chegou ao poder na Alemanha na década de 1930, Lothar emigrou para o país de seus pais e pôs-se a serviço do Terceiro Reich; mais tarde, com a derrota dos nazistas na guerra, bandeou-se para o lado dos comunistas soviéticos. Otto, enquanto isso, foi viver na Inglaterra, tornando-se um leal súdito britânico naturalizado. Ambos são cientistas, ligados a pesquisas no campo dos foguetes e mísseis, e, como gêmeos, possuem uma espécie de vínculo mental e emocional – só que, neles, isso é muito mais forte que o usual entre outros gêmeos, chegando ao ponto de um conseguir, às vezes, influenciar os pensamentos do outro ou ver por meio de seus olhos; se um sofre um ferimento, o outro também sente a dor. Enfim, é o mesmo tipo de ligação que existia entre os gêmeos Lucien e Louis de Franchi no livro Os Irmãos Corsos, de Alexandre Dumas, o que faz todo o sentido, já que Wheatley começa o livro com uma efusiva homenagem ao escritor francês, dando a entender ser ele um de seus autores favoritos e uma de suas principais influências. Não é preciso dizer que, como ambos lidam com informações altamente secretas e trabalham para lados opostos, isso gera situações complicadas. Otto, Lothar e todos os eventos que os envolvem parecem, de início, não ter relação alguma com o núcleo satânico londrino ou com o que se passa com Mary e Barney, mas o vínculo aparece quando o coronel Verney descobre que Lothar está na Inglaterra e que sua base de operações é a mesmíssima casa onde se realizam os encontros semanais dos satanistas.

O enredo geral de O Satanista é inegavelmente interessante, mas é difícil não fazer um leve "tsc, tsc" ao constatarmos que o autor não se furtou a um certo contorcionismo para enfiar em seu livro os temas que estavam mais em evidência na época – todo mundo andava preocupado com mísseis, com espionagem internacional e com a possibilidade de um confronto nuclear de proporções globais, de modo que Wheatley aparentemente achou uma boa ideia misturar esses assuntos com a magia negra que deveria ser o carro-chefe da história. A meu ver, essa alquimia ficou bastante forçada. Os personagens são bem estereotipados, provavelmente um reflexo do fato de que o autor estava acostumado a escrever segundo um método, de forma quase industrial, para conseguir produzir um ou dois bestsellers por ano, e, na minha opinião, o excesso de detalhamento sobre como funcionam por dentro a polícia, o serviço secreto e a diplomacia na Grã-Bretanha só contribui para deixar a narrativa mais árida e cansativa. Perto do final, Verney, Sullivan e seus companheiros descobrem que um figurão satanista megalômano roubou um artefato nuclear e o levou para um esconderijo nos Alpes suíços, de onde pretende lançá-lo a fim de precipitar a Terceira Guerra Mundial; essa parte do livro foi claramente planejada para ser uma tensa corrida contra o tempo a fim de impedir a catástrofe, mas só consegue ser burocrática e tediosa ao narrar os encontros de C. B. e Barney com diversos homens importantes de cuja ajuda eles necessitam para deter o doido, seus deslocamentos de um lugar para outro… De quebra, as descrições de diversas belas paisagens suíças deixam em evidência que Wheatley conhecia e adorava o país (e quem não adoraria?), mas as dissertações turísticas, ainda que interessantes, soam deslocadas ao virem misturadas com essa situação que era para ser desesperadora. O autor também não negligenciou uma outra arma para atrair público que já funcionava no começo dos anos 60 tal como hoje, o sexo, mas valeu-se desse recurso da maneira que os usos da época permitiam (a "revolução sexual" só viria alguns anos depois): o ato é bastante mencionado, mas nunca descrito em qualquer detalhe.

Quanto à qualidade editorial, essa me surpreendeu negativamente por oferecer um português sofrível, o que eu não esperava em se tratando de uma edição da Record, editora que sempre tive em bom conceito. Os problemas no uso do idioma são diversos, mas o mais recorrente é a crase, que é muito mais usada do que deveria, e poucas vezes da maneira correta. Estou acostumado a reclamar do fato de haver gente por aí trabalhando com tradução e/ou revisão de livros que, pelo nível de conhecimento que demonstra, não deveria nem passar perto de uma editora, e, pelo visto, esse problema não é de hoje (não há informação da data da edição, mas, em todo caso, é antiga).

Vocês já devem ter percebido, considerando o jeito como este post começou, mas lá vai: cheguei a este livro e a este autor devido a suas conexões com o Black Sabbath, que me deixaram curioso, e confesso que minhas expectativas eram bem exageradas. O Satanista nem chega perto de entregar tudo o que eu esperava em termos de suspense ou terror. Até achei que podia ser culpa da minha cabeça de leitor cujos gostos se formaram entre o final do século XX e o início do XXI, acostumado, por exemplo, com um Stephen King, que costuma pegar muito mais pesado nos componentes tenebrosos e/ou sobrenaturais, mas aí lembrei de sujeitos como H. P. Lovecraft, contemporâneo de Wheatley, e Arthur Machen, que é um pouco anterior, e concluí que não é questão de época; eu apenas não me identifiquei com o estilo de Wheatley, nem com seu jeito de desenvolver os temas – pelo menos neste livro. A leitura aconteceu por curiosidade, e é como uma curiosidade que ficará registrada; nada aqui me empolgou pra valer.

sábado, outubro 21, 2017

A Espada Diabólica

Dentro do subgênero de fantasia conhecido como sword and sorcery ('espada e feitiçaria'), o britânico Michael Moorcock (1939-) é um dos autores que mereceriam ter bem mais fama do que têm. Seu personagem mais conhecido, Elric de Melniboné, é, de várias maneiras, o oposto do típico herói desse subgênero – e, como o "típico" herói de sword and sorcery tem em Conan seu mais clássico exemplo, é interessante lembrar que o cimério e o melniboneano já se encontraram nos quadrinhos da Marvel: o épico crossover começa com uma luta, é claro (os fãs não dispensariam isso!), mas o breve duelo não chega a ter um desfecho, e os dois acabam por se tornar aliados – temporários e relutantes aliados, e de forma alguma amigos.

E por que seria Elric o oposto de Conan? Bem… Enquanto o herói cimério de Robert E. Howard desconfia da magia (embora, ao longo da carreira, por vezes tenha aceito a ajuda de magos e feiticeiros) e faz muita questão de só confiar em sua própria força, coragem e em sua espada, Elric é tanto um feiticeiro quanto um guerreiro – talvez mais feiticeiro que guerreiro. Albino e de constituição física frágil, ele ganha força e resistência por meio da magia e de uma misteriosa ligação com sua espada, Stormbringer (algo como 'a que traz a tempestade'), uma enorme lâmina feita de algum metal negro desconhecido, que, sem o auxílio da magia, ele não seria capaz sequer de levantar, quanto mais de manejar. Entre outros poderes, ela tem a capacidade de absorver a força vital daqueles que mata e transferi-la para seu detentor. Elric não gosta disso, dando por vezes a impressão de sentir que seu vínculo com a espada perverte sua própria humanidade, mas o considera, no fim das contas, um mal necessário.

Mais diferenças: Conan, um bárbaro do norte sem quaisquer traços de nobreza em suas origens, alimentou desde a juventude o sonho de tornar-se rei, o que eventualmente conseguiria; Elric, por outro lado, é um imperador, embora seu império, Melniboné, esteja em decadência, depois de ter dominado o mundo por dez mil anos. O mundo em questão, por falar nisso, parece ser a Terra, talvez num passado há muito esquecido, talvez num futuro distante: o prólogo da primeira parte, intitulada O Advento do Caos, diz que a saga de Elric tem lugar "dez mil anos antes de a História ser registrada ou dez mil anos depois que deixaram de ser compostas as crônicas, como se preferir", mas, ao longo do livro, novas informações que vão aparecendo revelam que a primeira possibilidade deve ser a verdadeira. A rigor, o uso da palavra "humanidade" no parágrafo anterior é impróprio: os melniboneanos não se consideram humanos e veem com preocupação a ascensão dos "Jovens Reinos", estes sim povoados por homens no sentido estrito do termo, que parecem estar ganhando poder e influência à medida que Melniboné enfraquece.

Fazer esse paralelo entre os dois heróis deixa óbvio que Moorcock cresceu lendo as histórias de Howard, assim como as de Edgar Rice Burroughs e, possivelmente, também as de Lord Dunsany, mas quis que suas aventuras fantásticas tivessem uma cara própria, e conseguiu isso com Elric. A exemplo dos contos de Howard sobre Conan, e também dos de Fafhrd, escritos por Fritz Leiber, as histórias sobre o imperador albino foram publicadas soltas, sem seguirem uma ordem, e organizá-las numa cronologia é tarefa complexa. Sei que isso já foi feito nos Estados Unidos, onde a saga de Elric foi publicada em vários volumes; provavelmente no Reino Unido também. No Brasil, por outro lado, até onde sei, só temos este volume, publicado pela editora Francisco Alves em 1975, dentro de sua coleção Mundo Fantástico, paralela à Mundos da Ficção Científica – ambas trazem gratas recordações para os fãs brasileiros de literatura de imaginação das décadas de 70 e 80 (pessoalmente, estou nessa desde os anos 80). O título original era Stormbringer.


A aventura começa quando, tarde da noite, uma tempestade sobrenatural desaba sobre Karlaak, a capital de Melniboné, e um grupo de assassinos inumanos – criaturas brutais enviadas pelos misteriosos Senhores do Caos – penetra na cidade, aproveitando-se de os portões estarem abertos, e as sentinelas, adormecidas, tudo efeitos da mesma magia que conjurou a tempestade para facilitar-lhes a missão. E sua missão parece ser a de matar Elric, que dorme em sua alcova no palácio, ao lado de sua esposa, a bela Zarozínia, sem de nada suspeitar. Parece, mas não é. Elric enfrenta os invasores, mas está sem sua espada, da qual prefere manter-se longe sempre que ela não é indispensável, e acaba subjugado, desacordado com um golpe na cabeça. Ao recuperar a consciência, fica surpreso por ainda estar vivo, mas a coisa seguinte que percebe é que a imperatriz foi raptada. Durante a luta, Elric conseguiu matar um dos sequestradores, e agora, por meio de magia, faz com que o cadáver se levante e fale. O efeito só dura alguns minutos, tempo suficiente para a criatura "desmorta" enunciar um enigma, que fala sobre uma guerra prestes a ser travada, e sobre um parente de Elric que deverá lutar ao seu lado empunhando a "cópia fiel" de Stormbringer. O imperador espera que, se for capaz de desvendar a charada e de sobreviver aos perigos aos quais ela conduzirá, talvez consiga recuperar sua esposa.

E é, a princípio, sozinho que Elric se aventura; não se faz acompanhar sequer por uma guarda pessoal, como um soberano normalmente faria, talvez na esperança de conseguir viajar incógnito – por mais que, no caso dele, isso seja quase impossível. É verdade que, numa sociedade de características medievais como o Império de Melniboné e terras vizinhas – sem imprensa, TV, internet e coisas que tais –, a maior parte da população que vive longe da capital nunca viu seu monarca e não o reconhecerá se por acaso o encontrar… A menos que o monarca em questão tenha uma aparência tão incomum a ponto de chamar atenção e causar comentários: vocês também não se lembrariam se, numa ruela enlameada de alguma aldeia, cruzassem com um sujeito magrelo, com pele e cabelo brancos feito marfim e olhos vermelhos ardentes, portando uma gigantesca espada negra de aparência tão exótica quanto a dele?

Seguindo as pistas enigmáticas obtidas do assassino morto-vivo, o herói albino viaja para o oeste, onde os reinos de Dharijor e Pan Tang formaram uma aliança e estão se preparando para invadir outros reinos vizinhos. Os exércitos dos defensores são comandados pela rainha Yishana de Jharkor, aliada e outrora amante de Elric, e sob sua bandeira, entre outros, lutam os mercenários de Imrryr, liderados por um homem de nome Dyvim Slorm, primo de Elric e seu único parente vivo. Quanto à cópia fiel da espada, é fato que Stormbringer possuía uma "gêmea", Mournblade (a "lâmina lamentosa", mais ou menos; o verbo to mourn quer dizer lamentar ou prantear, geralmente por alguém que morreu, podendo significar também, por extensão, 'estar de luto'); ocorre que essa segunda espada era empunhada por Yyrkon, outro primo, que Elric matou durante uma disputa dinástica anos antes, e a arma, ao que se acredita, foi perdida, de modo que parece impossível o pleno cumprimento da profecia. Em todo caso, Elric e Dyvim Slorm juntam-se ao exército de Yishana para a batalha que decidirá o destino do oeste.

E que batalha é essa! Saber narrar bem um combate em massa é tão importante para o escritor de fantasias épicas quanto para o de ficção histórica, e Moorcock demonstra ter o dom, mas não se trata de uma batalha "comum", entre tropas de homens protegidos por armaduras e usando lanças, espadas e arcos; há tropas assim, é claro, mas há também tigres treinados para o combate, cavaleiros montando répteis de seis patas em vez de cavalos, esquadrões de homens alados… Sim, eu também fiquei imaginando como seria isso tudo num filme, e é pena ser tão improvável que algo assim se concretize. De qualquer forma, a batalha, na qual Elric arrisca a vida, é apenas um passo em sua busca por Zarozínia. O narrador diz explicitamente que o albino se considera um realista, mas, em seus atos, pelo menos nesta história, ele demonstra um pendor para o fatalismo: seu inimigo morto fez uma profecia, e os mortos, se, por um lado, não podem dar respostas diretas, tampouco podem mentir. Sendo assim, Elric está disposto a cumprir seu papel nessa profecia, mesmo sem compreendê-la totalmente, na esperança de que, em seu desenlace, sua esposa lhe seja devolvida, como também foi profetizado. Porém, há mais em jogo que apenas sua vida. As forças do Caos que tramaram o rapto da imperatriz querem algo em troca de sua libertação: exigem a entrega tanto de Stormbringer quanto de Mournblade, as únicas armas que podem, nas mãos certas, representar um entrave a seus planos de dominar o mundo.

Elric odeia Stormbringer (a espada possui vontade própria e até um certo tipo de inteligência maligna, mais ou menos como o Um Anel de Tolkien) e ficaria feliz de nunca mais empunhá-la; portanto, em nível pessoal, aceitaria a troca com a maior das alegrias. Acontece que, se o fizer, estará, com esse ato, condenando o mundo a uma era de trevas e terror, e, embora preocupar-se com a sorte de povos ou reinos não seja nele uma reação natural, o imperador albino possui, sim, uma consciência. Talvez seu heroísmo tenha ainda mais valor por não ser instintivo como o de um Hércules ou um Super-Homem: ao contrário, escolher seu curso de ação numa situação como essa custa-lhe angústia e indecisão. Elric carrega o fardo de ser o último imperador de Melniboné, e de lhe haver cabido ocupar o trono exatamente durante esses dias, que equivalem ao apocalipse para esse mundo antediluviano. Os servos do Caos desprezam a Ordem porque, segundo eles, ela limita a matéria, enquanto o Caos representa possibilidades infinitas; para o mundo, porém, essas possibilidades acarretam catástrofes: ao mesmo tempo em que eclodem guerras terríveis, o próprio planeta parece estar em convulsão, assolado por terremotos, erupções vulcânicas e tempestades sobrenaturais. Além disso, a influência do Caos puro causa espantosas transformações nos seres vivos que estiverem nas proximidades, deformando seus corpos em paródias obscenas de suas aparências originais, ora mudando-os em figuras tortas e desproporcionais, ora fazendo com que desenvolvam aleatoriamente vários membros e cabeças em qualquer lugar do corpo. Enfim, os piores pesadelos ganham existência material.

Embora seja um feiticeiro erudito, iniciado em muitos mistérios, o monarca albino ainda é um mortal, e, por isso, há muitas coisas que não pode vislumbrar ou compreender. Uma delas lhe é revelada por um ser misterioso, imortal, de nome Sepiriz, que lhe oferece ajuda e aconselhamento para sua missão, e o teor da revelação é que, não importa o que Elric faça, ele não pode verdadeiramente salvar o mundo que conhece: esse mundo deve e vai desaparecer, abrindo espaço para o que Sepiriz chama de "os verdadeiros primórdios da história da humanidade", o que parece significar o início da História que conhecemos. Tudo o que Elric pode influenciar é que espécie de mundo vai se erguer dos escombros do seu milênios depois: se as forças do Caos vencerem, elas terão absoluto domínio nos tempos futuros; se Elric as derrotar, isso não significa que o Caos será erradicado, mas fará com que, no novo mundo, a Ordem, ou a Lei, como os personagens a chamam, tenha ao menos uma chance de luta. Nenhuma das duas forças deve alcançar uma vitória definitiva sobre a outra, pois é no embate interminável entre elas, e no precário e incerto equilíbrio que daí nasce, que o universo encontra condições de existir e de se desenvolver: o Caos puro o levaria ao colapso, a Ordem pura resultaria em estagnação.

Eu não iria ao ponto de dizer que Elric defende a Ordem, e sim que procura favorecer esse equilíbrio, mas mesmo isso já representa uma opção radical para ele, filho de uma raça gerada pelo Caos, se é que pode-se falar em opção quando existe um destino que somente ele pode cumprir. É nesse destino, e no modo como se posiciona diante dele, que reside aquilo que faz de Elric um personagem tão interessante, pelo menos no meu modo de ver. Ele não é bondoso nem altruísta por natureza, embora ainda seja mais afável que a média de seu povo – os melniboneanos são essencialmente caóticos e cruéis –, mas, mesmo assim, aceita os riscos e os sofrimentos que sabe que estão à sua espera, somente pelo bem de um mundo onde nem ele, nem nenhum descendente seu viverá, e no qual ninguém saberá que ele existiu.

Até agora, eu só tinha conhecimento indireto sobre a obra de Michael Moorcock, e Elric era para mim apenas um personagem que tinha aparecido numa aventura de Conan; sabia que ele tinha uma vida própria na literatura, e que suas histórias haviam inspirado pelo menos três músicas do Blind Guardian: Fast to Madness, do álbum Follow the Blind (1989), The Quest for Tanelorn, do Somewhere far Beyond (1992) e Tanelorn (Into the Void), do At the Edge of Time (2010), mas é a primeira vez que tenho a oportunidade de realmente lê-lo, e agora posso atestar que Moorcock é, sem sombra de dúvida, um dos maiores nomes da história do subgênero sword and sorcery e, ouso dizer, até mesmo da literatura de fantasia em geral, e deveria ser considerado leitura obrigatória para a geração que hoje "viaja" nas páginas das Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin e de outros expoentes atuais desse segmento. É complicado ficar contando com traduções – este volume já é muito antigo (e, cronologicamente falando, deve ser o último da saga, por motivos que vocês terão que ler para saber), e nunca ouvi falar em outras edições nacionais desta ou de outras aventuras de Elric –, mas, se você lê em inglês e gosta desse tipo de literatura, eis aqui um mundo cujo fim será um privilégio testemunhar.

Em tempo: se eventualmente for feito um filme baseado em A Espada Diabólica, as partes a respeito dos dragões, e, mais especificamente, a respeito de seu uso como armas de guerra, na certa farão muitos quadrúpedes da internet soltarem comentários como "pô, véi, copiaram Game of Thrones na cara dura!" (As maiúsculas, a pontuação e os acentos são generosidade minha, é claro.) Espero que haja alguém com paciência para explicar que Michael Moorcock escreveu as histórias de Elric entre as décadas de 60 e 90, sendo que A Espada Diabólica foi originalmente publicada em 1965, quando George R. R. Martin, aos 17 anos, ensaiava os primeiros passos em sua carreira de escritor – e, muito provavelmente, era um ávido leitor de Moorcock.

segunda-feira, outubro 31, 2016

Águias em Guerra

No início do primeiro século da Era Cristã, o então recém-instituído Império Romano parecia estar levando adiante com sucesso a conquista da Germânia, que, ao que tudo indicava, seguiria o mesmo caminho de muitas outras nações da Europa, Oriente Médio e norte da África: o de tornar-se mais uma província romana. Nas batalhas de Arbalo e do rio Lúpia, ambas em 11 a. C., o general romano Nero Cláudio Druso, enteado do imperador Augusto, havia obtido vitórias importantes sobre diversas tribos germânicas, as quais, desde então, polarizavam-se entre as que aceitavam o domínio de Roma e as que não o aceitavam – o que também era uma parte normal do processo de conquista. De todo modo, e muito graças a essas vitórias, a região do vale do Reno passou os vinte anos seguintes em relativa tranquilidade, experimentando um intenso desenvolvimento. Novas fortificações militares iam sendo construídas, e, em volta delas, surgiam vilas planejadas, mais limpas e seguras que os aldeamentos nativos. Boas estradas e pontes sólidas facilitavam a circulação de pessoas e mercadorias. Pela primeira vez, aquelas plagas até então selvagens ganhavam ares de civilização, e muitos dos nativos se adaptavam à nova realidade, passando a ganhar seu sustento graças às oportunidades que a presença dos romanos havia trazido, nos ramos do comércio e da indústria. Artesanias de diversos tipos, tabernas e pequenos comércios prosperavam como nunca, já que agora tinham como fregueses os soldados e os funcionários do Império Romano, que tinham salários regulares (!), o que, salvo algum imprevisto, significava dinheiro para gastar todos os meses – algo que, para os germânicos pobres, parecia coisa de outro mundo. Com isso, o padrão de vida médio da população da região sofreu uma melhora significativa, de modo que, apesar dos impostos que agora precisavam pagar a Roma, muitos não estavam descontentes. Em suma, no ano 9 d. C., a fase inicial e violenta da conquista parecia ter sido superada; daí em diante, ela se consolidaria na base da integração e da aculturação. Era o que parecia.

(A propósito: Druso, depois de sua morte, ganhou do senado de Roma o título de "Germânico", em homenagem a suas vitórias na Germânia. O título foi incorporado a seu nome, que passou a ser Nero Cláudio Druso Germânico, e foi herdado por seus filhos. O mais velho deles levou o mesmo nome que o pai e foi praticamente uma segunda edição dele, pois também se tornou um general de renome e praticou façanhas notáveis na Germânia; o mais jovem, Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, foi imperador de 41 a 54, com o nome de Cláudio.)

Da integração de que falávamos há pouco fazia parte, entre outras coisas, o costume de aceitar o alistamento de nativos no exército; eles serviriam nas auxiliae (tropas auxiliares) como cavalarianos, arqueiros, ou como infantaria leve, dotando a máquina de guerra romana com alcance e mobilidade, coisas que não eram o forte das legiões. Depois de arremessar os dois ou três dardos (pila, plural de pilum) que levavam, os legionários tinham que passar ao combate corpo a corpo; tampouco podiam mover-se muito depressa com suas pesadas armaduras e escudos. Por isso as auxiliae eram necessárias, embora, verdade seja dita, geralmente não gozassem de muito prestígio: os legionários regulares tendiam a olhar os soldados auxiliares com certo desprezo, já que, afinal, eram "bárbaros", que só ganhariam a cidadania romana – e, por consequência, o direito de ficar em pé de igualdade com eles – ao final de seu tempo de serviço, se vivessem até lá, é claro. Porém, também era tendência que esse preconceito fosse abrandando ao longo do tempo, pois, como a cidadania era extensiva aos descendentes, os filhos de soldados auxiliares podiam ser legionários, e essas novas gerações (ao menos, era o que se esperava) veriam os auxiliares com outros olhos.


Esse status mais baixo de que padeciam os soldados das auxiliae tinha exceções. Uma delas foi Ermin, ou Irmin (nome que os romanos latinizavam para Armínio, e que evoluiu para Hermann no alemão moderno), filho de Segímero, um dos líderes da tribo germânica dos Cherusci ('queruscos'). Ainda durante a fase inicial da tentativa de conquista da Germânia, o general e mais tarde imperador Tibério (irmão de Nero Cláudio Druso) tentara convencer Segímero a se aliar ao Império, e, para demonstrar benevolência, tomou Armínio, ainda menino, sob sua proteção, e o enviou para ser educado em Roma. Armínio retornou à Germânia por volta do ano 2, com cerca de 18 anos de idade, tendo ganho a cidadania romana (um caso excepcional, devido a suas origens aristocráticas e ao papel-chave que esperava-se que tivesse na política Roma/Germânia durante os próximos anos) e a patente de tribuno militar. Sua missão consistiria em liderar a cavalaria formada por seus compatriotas, apoiando as legiões em qualquer luta que fosse necessário travar contra as tribos que ainda não reconheciam a soberania de Roma. Públio Quintílio Varo, que ocupou o cargo de governador da Germânia no ano 6, repetidamente demonstrou estima pessoal pelo jovem oficial, e gostava de citá-lo como exemplo de bárbaro que se adaptara com sucesso ao modo de vida romano. Mal sabia Varo que Armínio, no íntimo, nunca havia sido sincero em sua aliança com Roma: em segredo, ele imaginava maneiras de unificar as tribos germânicas divididas por rivalidades para, aproveitando-se da confiança que os romanos agora depositavam nele, orquestrar uma insurreição que os expulsasse para sempre das terras ancestrais de seu povo.

(Tudo até aqui é histórico; de agora em diante, passo a comentar o romance Águias em Guerra, no qual o escritor queniano Ben Kane recria a história da batalha da Floresta de Teutoburgo, cujo desfecho frustrou em definitivo os planos romanos de conquista para a maior parte do território germânico.)

A narrativa do livro acompanha dois homens: um germano, Armínio, e um romano, o veterano centurião primus pilus Lúcio Comênio Tulo. Lembrando: o primus pilus (latim para 'primeira lança', às vezes traduzido como primeiro-centurião) era o comandante da primeira centúria de uma coorte, e tinha, na prática, uma patente mais alta que a dos outros centuriões, sendo responsável pela coorte toda (seis centúrias formavam uma coorte, e dez coortes formavam uma legião). Tulo é um homem enrijecido por muitas batalhas nas diferentes províncias onde já serviu, e está numa altura da vida em que a ideia de reformar-se vai assumindo contornos mais concretos. Com 40 e poucos anos, passou os últimos 25 no exército – ou seja, já poderia estar reformado, mas optou por prorrogar seu tempo de serviço, provavelmente por não conseguir imaginar-se vivendo como civil. Agora, no entanto, até seu vigor físico já não é o mesmo de outros tempos, e ele considera que pode ser uma boa ideia ir descansar, deixando as lides militares para oficiais mais jovens e ambiciosos.

O que Tulo não esperava era ser agraciado com a missão de servir de ama-seca para um desses jovens oficiais. O tribuno Lúcio Túbero acaba de chegar de Roma, tem 17 anos e está empolgado com seu primeiro comando militar. Ansioso por mostrar seu valor em combate, ele não recebe bem a notícia de que sua primeira missão será uma patrulha de rotina pela margem leste do Reno, na qual as probabilidades de ocorrer alguma luta são quase nulas: as tribos da região são aliadas de Roma, e aquelas que permanecem hostis estão, em princípio, bem distantes. Essas patrulhas, além de servirem para exercitar os soldados em longas marchas, tinham uma função eminentemente ostensiva: a visão de tropas romanas em movimento era considerada salutar mesmo para as tribos nativas já pacificadas, pois as inspirava a pagar seus impostos sem resmungar e desestimulava qualquer ideia infeliz que pudesse andar revolvendo nas cabeças dos menos satisfeitos. Nenhum incidente é esperado durante os vários dias que esse deslocamento deverá durar, mas há um fio de esperança para Túbero: nos últimos tempos, germanos Tencteri, cuja tribo ainda não aceita o domínio romano, têm feito incursões à região do rio para roubar gado de outras tribos, e há alguma chance de que a patrulha tope com um desses bandos de ladrões. Naturalmente que, embora Túbero tenha a patente mais alta, Tulo é quem de fato comanda a operação – mas o centurião percebe logo que deve ser sutil e diplomático: Túbero é afoito e arrogante. O consolo de Tulo reside no fato de que muitos tribunos que começaram desse jeito amadureceram e acabaram por tornar-se bons oficiais… O que não muda a antipatia instantânea que ele logo sente pelo moleque.

Só para esclarecer aos que não estiverem familiarizados com a hierarquia do exército romano, os tribunos militares eram os oficiais diretamente subordinados a um legado, que era o comandante de uma legião (um general podia comandar diversas legiões). Cada tribuno tinha sob suas ordens vários centuriões e, teoricamente, cerca de mil legionários, embora, na prática, fossem quase sempre menos, pois era raro que uma centúria tivesse exatamente cem homens. A questão delicada aí é que o posto de tribuno era muitas vezes ocupado por jovens oriundos das famílias patrícias (isto é, aquelas de berço nobre e normalmente ricas), formados numa academia, mas sem qualquer experiência militar real, que estavam dando seus primeiros passos no cursus honorum (detalhes aqui). Enfim, Túbero é um exemplar típico. Colocar um rapazola inexperiente numa posição de comando era uma concessão política, mas ninguém era louco de não tomar precauções para evitar que isso acabasse em desastre: os tribunos sempre tinham junto de si centuriões experientes para auxiliá-los e aconselhá-los, e, na maioria das vezes, eram espertos o suficiente para ouvir o que eles diziam. Havia um mecanismo que visava garantir isso: ao mesmo tempo em que estavam sob as ordens do tribuno, os centuriões tinham o poder de avaliá-lo. Se os relatórios que eles encaminhassem ao legado ou ao general em comando fossem continuamente desfavoráveis, o tribuno podia perder seu posto – o que seria um grande problema para sua carreira futura. Esse sistema, de modo geral, era eficiente, embora, é claro, não fosse à prova de influências e "amizades". E, como também é claro, era impossível evitar que alguns desastres efetivamente acontecessem.

Um deles tem lugar durante a patrulha pela margem leste: Túbero, acompanhado de alguns outros oficiais montados, decide explorar o caminho à frente das tropas e acaba topando com alguns guerreiros germanos que vêm conduzindo uma boiada. Assumindo logo que se trate dos ladrões Tencteri e sem falar a língua dos germanos, que tampouco falam latim, o tribuno arma uma confusão que resulta na morte de vários homens – que não são Tencteri coisa nenhuma, e sim da tribo local dos Usipeti, há muito aliados a Roma. A única maneira de evitar que a justa indignação do restante da tribo degenere numa revolta seria que o governador Varo fizesse um pedido formal de desculpas e aplicasse a Túbero uma punição exemplar… Mas o governador não se atreve a tanto, já que o rapaz é filho de um homem importante de Roma, amigo do próprio imperador. Armínio, que já antes disso vinha fazendo contatos com o objetivo de articular uma rebelião, habilmente tira proveito do ressentimento gerado pelo incidente para estimular um ânimo de rebeldia inclusive entre as tribos que até aí estavam do lado dos romanos. Tudo de forma discreta, até que chegue o momento certo para "virar a mesa". Desnecessário dizer que convencer as tribos germânicas de que tinham um inimigo comum – no caso, Roma – era o único meio factível de conseguir que cooperassem entre si, pois, sob condições normais, as relações de umas com as outras variavam da desconfiança à inimizade mortal.

Águias em Guerra é uma leitura empolgante! A recriação histórica parece perfeita aos olhos de alguém com um conhecimento bastante razoável sobre a época (modéstia à parte, esse sou eu – risos); Kane tomou umas poucas liberdades, as quais ele esclarece na nota ao final do livro. Além disso, há uma atmosfera de tensão ininterrupta, pois o autor consegue fazer o leitor sentir a enormidade do que está se preparando para acontecer. Armínio, ardiloso, esforça-se por parecer o oficial perfeito aos olhos do governador Varo: eficiente, solícito… Um pouco eficiente e solícito demais para o gosto de Tulo, que, apesar de manter relações cordiais com o germano, conserva, durante todo o tempo, uma certa reserva a respeito dele. Por mais de uma vez o centurião tenta expor sua desconfiança ao governador, mas este sempre o repreende duramente por "ousar" pôr em dúvida a lealdade de Armínio, a quem ele considera não só um fidelíssimo aliado de Roma, como seu amigo pessoal – uma opinião que Armínio trata de reforçar, repetidamente visitando o governador para longas conversas regadas a vinho e convidando-o para caçadas. Varo, apesar de também já haver exercido comandos militares, é essencialmente um político; Tulo, por outro lado, é um soldado até o último fio de cabelo, e a intuição que tantas vezes salvou sua vida (e as de seus homens) no campo de batalha, parece alertá-lo a manter um pé atrás em relação a Armínio. Enfim, se Tulo, e não Varo, fosse o governador da Germânia naqueles dias, é possível que os alemães de hoje falassem uma língua neolatina… Certo, Tulo é um personagem fictício, mas é provável que houvesse diversos homens parecidos com ele à volta do Varo histórico, e, se tivessem conseguido que ele os ouvisse, a História poderia ter tomado outro rumo. O pior é que vários indícios do que ia acontecer chegaram ao conhecimento de Varo, que os ignorou porque confiava cegamente em Armínio. E, se pensarmos bem, não havia como não vazarem informações: para conseguir a adesão de uma tribo a sua causa, Armínio precisava expor seu plano, que então era discutido entre os chefes e todos os guerreiros – e todos sabemos que um segredo que é confiado a muita gente nunca permanece secreto por muito tempo. O desastre poderia ter sido evitado se o governador tivesse sido mais esperto, o que tornou o caso todo ainda mais difícil de descer pela goela dos romanos.

Voltando ao livro, o momento que Armínio esperou durante tantos anos finalmente chega no outono do ano 9, quando a Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, lideradas por Varo em pessoa, estão retornando de seu acampamento próximo à vila de Porta Westfalica para suas bases permanentes na cidade de Vetera (a atual Xanten), onde deverão passar o inverno – e onde o relativo sedentarismo imposto pelas condições do tempo durante a estação fria será um descanso mais do que bem-vindo para os soldados, depois de uma primavera e verão de marchas exaustivas e algumas lutas. Acontece que, durante a marcha, Armínio procura Varo com a notícia (falsa) de uma sublevação entre os Angrivari, uma tribo cujo território fica relativamente próximo dali. Garantindo ao governador que ele e seus cavaleiros conhecem bem os caminhos da região e sabem exatamente por onde o exército deve marchar para chegar ao local o mais depressa possível, Armínio consegue que as legiões se metam numa trilha estreita e tortuosa, por dentro da floresta de Teutoburgo, na atual Baixa Saxônia, Alemanha. Na floresta, as três legiões, totalizando cerca de 14 mil homens, seriam emboscadas por uma confederação de tribos germânicas com cerca de 20 mil. Em circunstâncias normais, esse grau de inferioridade numérica nem chegaria a preocupar as legiões romanas, acostumadas a enfrentar – e derrotar – inimigos duas, três vezes mais numerosos que elas, mas desorganizados e pouco disciplinados. O problema foi o local onde o ataque ocorreu: para poderem transitar por aquela trilha estreita, as legiões tinham sido obrigadas a se afunilar até estarem marchando quase em fila indiana; isso, mais a densa mata que as rodeava, tornou impossível aos soldados entrarem em formação com a rapidez necessária ao serem atacados de surpresa por inimigos que, ao contrário deles, estavam acostumados com a floresta e com o terreno acidentado e lamacento. Os germânicos emergiam das sombras da floresta, faziam ataques-relâmpago e tornavam a desaparecer, para, pouco mais tarde, repetirem a manobra, e assim sucessivamente, causando baixas e minando o moral dos soldados. Ou seja, tudo correu conforme os planos de Armínio, que desde o início pretendia colocar as legiões no terreno mais desfavorável possível para elas, onde seus homens pudessem atacar sem precisar enfrentar os romanos em combate direto, pois ele sabia que, se o fizessem, eles perderiam. De cada legião não restou mais que um punhado de sobreviventes, e, ainda pior que isso, suas águias caíram nas mãos dos bárbaros. O episódio entraria para a história romana com o nome de Clades Variana (o 'Desastre de Varo'). Conta-se que, ao saber do acontecido, o imperador Augusto, então já um homem idoso, chorou, e que durante meses teve pesadelos, dos quais acordava gritando: "Vare, legiones redde!" ('Varo, devolva minhas legiões!')

Um dos muitos méritos de Águias em Guerra é que o autor não cai no simplismo tolo de eleger um lado como o "bem" e o outro como o "mal": alguns romanos podem ser arrogantes e prepotentes, mas também há os que são justos; os germânicos anseiam por recuperar sua liberdade (mesmo que seja para voltarem a viver como selvagens, lutando idiotamente uns contra os outros sem qualquer motivo real), e ninguém pode culpá-los por isso, mas também cometem atos bárbaros e brutais. Como eu disse, a indignação dos Usipeti ante os assassinatos perpetrados por Túbero é mais do que justa – mas não se pode dizer o mesmo da retaliação que praticam, saqueando várias vilas (habitadas por germanos como eles), assassinando e estuprando, até serem detidos, e por quem? Pelos romanos… Enfim, nesta história as coisas são bem mais complicadas que um mero confronto entre o bem e o mal: são mais parecidas com a realidade. Seguindo o mesmo espírito, as descrições das batalhas pouco têm de glorioso: são assustadoras e, não raro, repugnantes, como uma batalha de verdade. Também é uma realização notável do autor o fato de conseguir que o leitor experimente uma sensação de suspense enquanto acompanha os eventos, apesar de já saber qual será o resultado; isso é alcançado principalmente porque, a partir de certo momento, o fato de que a causa romana na Germânia está perdida é aceito por todos, e, daí em diante, o núcleo da história não é mais esse. Em face dessa realidade, cada personagem tem a reação que lhe cai melhor: Armínio e seus germanos comemoram, Varo suicida-se, Tulo se esforça de forma heroica para tirar dali com vida o maior número possível de seus homens – e a atitude deste último assegura-nos uma linha de ação eletrizante para seguirmos com a respiração suspensa até o final do livro.

Kane menciona que a ala ('asa', nome dado a uma unidade de cavalaria) que Armínio comanda é vinculada à Décima Sétima Legião, enquanto a coorte sob as ordens de Tulo pertence à Décima Oitava, mas tem o cuidado de só designar essas legiões pelos números, nada dizendo sobre seus nomes ou seus emblemas, e por uma razão muito boa: essas informações são desconhecidas. As duas, junto com a Décima Nona, tiveram um fim que foi considerado ignominioso, e, por isso, os cronistas da época e os das gerações seguintes parecem ter achado que quanto menos falassem sobre elas, melhor. Houve, mais tarde, uma série de expedições punitivas sob o comando do já citado Germânico, filho de Druso e sobrinho de Tibério, e as águias foram recuperadas, restaurando, ao menos em parte, o orgulho ultrajado de Roma, mas, mesmo assim, os números 17, 18 e 19 nunca voltaram a ser atribuídos a nenhuma outra legião. Também não houve reconquista definitiva dos territórios perdidos como resultado do Desastre de Varo; com isso, o Reno permaneceu como fronteira, e a Germânia romana limitou-se, daí em diante, a um pequeno território a oeste desse rio, incluindo partes das atuais Holanda e Bélgica, além da região alemã da Renânia, e tendo como principais cidades Maguntiacum (pronuncie Maguncíacum), hoje Mainz, e Augusta Treverorum, hoje Trier, onde ainda pode ser vista a imponente Porta Nigra ('Porta Negra'), edificação defensiva romana do século III.


Apesar da vitória obtida contra o exército mais poderoso do mundo, as ambições de Armínio de unir os germanos numa nação (da qual ele se faria rei) fracassaram por completo. As tribos só permaneceram lado a lado durante o tempo necessário para derrotar os romanos, retomando depois o seu costume ancestral de disputas territoriais, pilhagem mútua e guerras fratricidas; os primeiros progressos mais duradouros na direção de uma unificação da Germânia só seriam alcançados oito séculos depois, pelo franco Carlos Magno. Ainda assim, Armínio era um dos vultos históricos mais prezados pelos integrantes dos movimentos intelectuais e artísticos alemães que ganharam força a partir do fim do século XVIII, como o Sturm und Drang ('Tempestade e Ímpeto') e outros que o sucederam, todos marcados por um forte sentimento nacionalista, e que formariam o substrato cultural e filosófico para o surgimento do movimento Völkisch, que, por sua vez, teria como principal desdobramento a ascensão do nazismo. Entretanto, mesmo na Alemanha atual, Armínio possui status de herói, não obstante o fato de a vitória que o imortalizou ter sido alcançada por meio da mentira e da traição; talvez o pensamento por trás disso seja que invasores não merecem lealdade.

Ben Kane é uma amostra de quanta coisa interessante se publica mundo afora e não chega às estantes das livrarias brasileiras; felizmente, a editora portuguesa Top Seller decidiu investir nele, e o resultado foi esta edição de alta qualidade. Para os olhos cansados de um leitor acostumado a se horrorizar com os absurdos gramáticos que pipocam das páginas dos livros ambientados na Antiguidade publicados no Brasil, o maior mérito consiste em algo que, para os portugueses, é normal: como eles comumente já usam o pronome tu no dia a dia, também sabem como conjugar os verbos nessa pessoa, uma "arte" que, aqui no Brasil, perdeu-se completamente; sendo assim, não têm necessidade de ficar tentando recriar nenhuma "linguagem de época", o que as edições brasileiras fazem, quase sempre, de forma tão tosca e artificial. Há sutilezas que só quem já leu muitos livros em português europeu (ou estudou essa variante da língua) percebe: o você também é empregado, mas, em Portugal, esse é um tratamento um pouco mais formal, usado com indivíduos com quem não se tem maior proximidade; nós, brasileiros, nunca nos damos conta disso, mas você é uma contração de vossa mercê, que era um tratamento bastante cerimonioso. Entre os dois, existiu a forma de transição vosmecê. E, é claro, há uma série de palavras e expressões que, para nós, não são usuais (por exemplo, não se diz que alguém levou uma surra, e sim que "tomou uma tareia"), mas nada que uma rápida pesquisa na internet não resolva, e ampliar o vocabulário é sempre bom. Sem contar que quem, como eu, cresceu lendo livros de aventuras importados de Portugal, já sente carinho por esse linguajar pitoresco, que embalou tantos momentos empolgantes de nossas vidas de leitores. O texto do livro está quase perfeito; curiosamente, por alguma razão que não imagino, "romanos" ora é escrito com letra maiúscula, ora minúscula, mas, fora isso, não encontrei mais que três ou quatro pequenos erros de digitação. Um detalhe na sinopse da contracapa entrega que, pelo visto, em Portugal, assim como aqui, esses textos "periféricos" costumam ser preparados por pessoas diferentes das responsáveis pelo livro propriamente dito, e que, muitas vezes, não entendem muito do assunto: a sinopse fala em "ano 9 a. C.", em vez de 9 d. C., como se lê no miolo do livro e é o correto. Mesmo com a diferença brutal de nível cultural médio que existe entre brasileiros e portugueses, parece que lá, como aqui, também há essa tendência ingênua de pensar que, se o assunto é a Antiguidade, então todas as datas precisam ser obrigatoriamente a. C. Mas não é uma falha banal como essa que vai pôr a perder a excelência do livro, em todos os sentidos.

Por fim, para quem, como eu, gosta de metal, deixo duas dicas de "trilhas sonoras" perfeitas para dar ainda mais sabor à leitura de Águias em Guerra. Ambas são da banda canadense Ex Deo, e uma, chamada Teutoburg (Ambush of Varus), como o título já entrega, é diretamente inspirada no episódio. Essa é do segundo álbum dos caras, Caligvla, lançado em 2012. A outra é Legio XIII, do primeiro álbum, Romulus, de 2009; essa não tem relação direta com a batalha da Floresta de Teutoburgo, mas, pelo menos para mim, embala perfeitamente qualquer história cheia de ação protagonizada por legionários romanos, especialmente seu solo de guitarra, um dos mais empolgantes que já ouvi.