Bem… Como a maioria dos fãs de heavy metal e de rock em geral, tive, na juventude, a minha fase de querer saber o máximo que fosse possível sobre as bandas de que gostava; na época, antes da popularização da internet, fazíamos isso basicamente por meio de revistas. Fase essa que, no meu caso, passou – não a de gostar de metal, pois ainda gosto e não me parece que isso vá mudar, seja lá com que idade eu estiver; apenas não consigo mais me importar tanto com histórias, curiosidades e detalhes de todo tipo sobre as bandas. Hoje me contento em curtir a música e não ligo muito para o resto. Para dar uma ideia, há bandas que já conheço há anos e adoro, mas só sei o nome de um ou dois membros; nos velhos tempos isso seria impensável, eu teria o nome de cada integrante e seu respectivo instrumento na ponta da língua, feito escalação de time de futebol.
Como sabe quem entende um pouco do assunto, houve três bandas, todas elas surgidas no Reino Unido no final dos anos 60, que são consideradas o tripé sobre o qual toda a história do heavy metal foi construída: Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Tecnicamente falando, o Sabbath ficava bem atrás dos outros dois grupos (que contavam com músicos experientes, alguns deles com formação clássica); não obstante, há muita gente que o considera o mais influente dos três, além de ter sido a primeira banda de heavy metal propriamente dita da História – o Led e o Purple estavam mais próximos do que chamamos hoje de hard rock, com fortes traços do blues no caso do primeiro, e da música clássica no segundo.
(Quero esclarecer que, ao dizer que o Black Sabbath era, do ponto de vista técnico, a menos notável daquelas três grandes bandas, não estou de forma alguma tirando seus méritos: gosto pra caramba do Sabbath e inclusive considero Tony Iommi um dos guitarristas mais criativos da história do som pesado. Porém, basta ouvir e comparar os dois ou três primeiros discos de cada uma para perceber que, das três bandas, o Sabbath era a que fazia o som mais simples, já que seus músicos não tinham, pelo menos no início, tanto conhecimento técnico – leia-se anos de conservatório – quanto os do Led e do Purple. Foram-se aprimorando com o tempo, o que pode ser sentido nos álbuns seguintes.)
E, de acordo com uma matéria que li certa vez numa revista sobre rock, houve outro grande responsável, além da produtora cinematográfica Hammer, por formar o imaginário de Ozzy no tocante aos temas soturnos e sobrenaturais: o escritor inglês Dennis Yeats Wheatley (1897-1977), autor tão prolífico quanto popular, que, dos anos 30 aos 60, publicou dezenas de romances, embora relativamente poucos fossem de terror – a maior parte eram narrativas de aventura e suspense, muitas delas com ambientação histórica, destacando-se a série sobre Roger Brook, uma espécie de James Bond dos séculos XVIII e XIX (ou talvez fosse melhor dizer que Bond é um Roger Brook do século XX, já que seu criador, Ian Fleming, era fã de Wheatley e confessava-se influenciado por ele). Até onde pude apurar, de toda a extensa bibliografia de Wheatley, só dois livros ganharam edições brasileiras: A Máscara do Mal, que é uma das aventuras de Brook, e este O Satanista, publicado originalmente em 1960.
A narrativa orbita em torno do coronel William Verney, que tem o apelido de C. B., iniciais de "Conky Bill" ('Bill Narigudo') devido a seu traço fisionômico mais marcante. Eu não iria ao ponto de chamá-lo de protagonista, mas ele funciona como uma espécie de eixo, conectando as diferentes subtramas. Verney trabalha na Inteligência britânica, e, no início da história, acaba de receber a informação de que um de seus agentes, o jovem Ted Morden, foi encontrado morto. Morden estava investigando os sindicatos trabalhistas da região de Londres, a fim de tentar descobrir até que ponto eles estavam infiltrados, talvez até controlados, por agentes do comunismo internacional (lembrem-se, era a virada dos anos 50 para os 60, com a Guerra Fria entrando em seu período mais tenso), e seria lógico supor que foi assassinado por esses agentes após ter sido descoberto, mas as condições em que o corpo foi encontrado levam C. B., que já viu coisas parecidas antes, a crer que haja mais: as marcas no corpo do rapaz sugerem que ele tenha sido sacrificado em algum ritual diabólico. A linha de investigação de Morden é assumida por outro agente, Barney Sullivan, um irlandês de origens aristocráticas, a quem seu chefe praticamente implora que tome precauções redobradas. Ao mesmo tempo, Mary Morden, a viúva de Ted, decide tentar por conta própria descobrir o assassino ou assassinos de seu marido e levá-los à justiça. O coronel Verney, embora não possa aceitar a participação de Mary nas investigações, nem prestar-lhe qualquer ajuda oficial em nome de seu departamento, oferece-lhe alguns conselhos e dicas, em especial confidenciando-lhe suas suspeitas de que a morte de Ted pode ter sido ritualística. Mary, uma jovem estonteante de apenas 23 anos, mas já com um passado complicado, está disposta a valer-se de tudo ao seu alcance, inclusive de seus encantos físicos, para vingar o marido. Verney decide não contar a Sullivan sobre os esforços de Mary e vice-versa: deixa-os agir independentemente um do outro, para melhorar as chances de que, no caso de um dos dois ser apanhado, o outro escape. O coronel não sabe, nem pode saber, que os dois jovens se conhecem há anos, embora não se vejam há muito tempo.
O Satanista apresenta-se como "uma história de magia negra" (isso está escrito na capa, pelo menos nesta edição da Record), mas também é outras coisas, e, na verdade, o ocultismo e temas relacionados a ele não ocupam tanto espaço assim. Há um forte componente de espionagem, e essa parte gira em torno de dois personagens, os gêmeos Otto e Lothar Khune, nascidos nos Estados Unidos, mas filhos de pais alemães. Quando o Partido Nacional-Socialista chegou ao poder na Alemanha na década de 1930, Lothar emigrou para o país de seus pais e pôs-se a serviço do Terceiro Reich; mais tarde, com a derrota dos nazistas na guerra, bandeou-se para o lado dos comunistas soviéticos. Otto, enquanto isso, foi viver na Inglaterra, tornando-se um leal súdito britânico naturalizado. Ambos são cientistas, ligados a pesquisas no campo dos foguetes e mísseis, e, como gêmeos, possuem uma espécie de vínculo mental e emocional – só que, neles, isso é muito mais forte que o usual entre outros gêmeos, chegando ao ponto de um conseguir, às vezes, influenciar os pensamentos do outro ou ver por meio de seus olhos; se um sofre um ferimento, o outro também sente a dor. Enfim, é o mesmo tipo de ligação que existia entre os gêmeos Lucien e Louis de Franchi no livro Os Irmãos Corsos, de Alexandre Dumas, o que faz todo o sentido, já que Wheatley começa o livro com uma efusiva homenagem ao escritor francês, dando a entender ser ele um de seus autores favoritos e uma de suas principais influências. Não é preciso dizer que, como ambos lidam com informações altamente secretas e trabalham para lados opostos, isso gera situações complicadas. Otto, Lothar e todos os eventos que os envolvem parecem, de início, não ter relação alguma com o núcleo satânico londrino ou com o que se passa com Mary e Barney, mas o vínculo aparece quando o coronel Verney descobre que Lothar está na Inglaterra e que sua base de operações é a mesmíssima casa onde se realizam os encontros semanais dos satanistas.
O enredo geral de O Satanista é inegavelmente interessante, mas é difícil não fazer um leve "tsc, tsc" ao constatarmos que o autor não se furtou a um certo contorcionismo para enfiar em seu livro os temas que estavam mais em evidência na época – todo mundo andava preocupado com mísseis, com espionagem internacional e com a possibilidade de um confronto nuclear de proporções globais, de modo que Wheatley aparentemente achou uma boa ideia misturar esses assuntos com a magia negra que deveria ser o carro-chefe da história. A meu ver, essa alquimia ficou bastante forçada. Os personagens são bem estereotipados, provavelmente um reflexo do fato de que o autor estava acostumado a escrever segundo um método, de forma quase industrial, para conseguir produzir um ou dois bestsellers por ano, e, na minha opinião, o excesso de detalhamento sobre como funcionam por dentro a polícia, o serviço secreto e a diplomacia na Grã-Bretanha só contribui para deixar a narrativa mais árida e cansativa. Perto do final, Verney, Sullivan e seus companheiros descobrem que um figurão satanista megalômano roubou um artefato nuclear e o levou para um esconderijo nos Alpes suíços, de onde pretende lançá-lo a fim de precipitar a Terceira Guerra Mundial; essa parte do livro foi claramente planejada para ser uma tensa corrida contra o tempo a fim de impedir a catástrofe, mas só consegue ser burocrática e tediosa ao narrar os encontros de C. B. e Barney com diversos homens importantes de cuja ajuda eles necessitam para deter o doido, seus deslocamentos de um lugar para outro… De quebra, as descrições de diversas belas paisagens suíças deixam em evidência que Wheatley conhecia e adorava o país (e quem não adoraria?), mas as dissertações turísticas, ainda que interessantes, soam deslocadas ao virem misturadas com essa situação que era para ser desesperadora. O autor também não negligenciou uma outra arma para atrair público que já funcionava no começo dos anos 60 tal como hoje, o sexo, mas valeu-se desse recurso da maneira que os usos da época permitiam (a "revolução sexual" só viria alguns anos depois): o ato é bastante mencionado, mas nunca descrito em qualquer detalhe.
Quanto à qualidade editorial, essa me surpreendeu negativamente por oferecer um português sofrível, o que eu não esperava em se tratando de uma edição da Record, editora que sempre tive em bom conceito. Os problemas no uso do idioma são diversos, mas o mais recorrente é a crase, que é muito mais usada do que deveria, e poucas vezes da maneira correta. Estou acostumado a reclamar do fato de haver gente por aí trabalhando com tradução e/ou revisão de livros que, pelo nível de conhecimento que demonstra, não deveria nem passar perto de uma editora, e, pelo visto, esse problema não é de hoje (não há informação da data da edição, mas, em todo caso, é antiga).
Vocês já devem ter percebido, considerando o jeito como este post começou, mas lá vai: cheguei a este livro e a este autor devido a suas conexões com o Black Sabbath, que me deixaram curioso, e confesso que minhas expectativas eram bem exageradas. O Satanista nem chega perto de entregar tudo o que eu esperava em termos de suspense ou terror. Até achei que podia ser culpa da minha cabeça de leitor cujos gostos se formaram entre o final do século XX e o início do XXI, acostumado, por exemplo, com um Stephen King, que costuma pegar muito mais pesado nos componentes tenebrosos e/ou sobrenaturais, mas aí lembrei de sujeitos como H. P. Lovecraft, contemporâneo de Wheatley, e Arthur Machen, que é um pouco anterior, e concluí que não é questão de época; eu apenas não me identifiquei com o estilo de Wheatley, nem com seu jeito de desenvolver os temas – pelo menos neste livro. A leitura aconteceu por curiosidade, e é como uma curiosidade que ficará registrada; nada aqui me empolgou pra valer.
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