E, como um viajante explorando território incógnito (imagem que tem tudo a ver com pelo menos uma história), tive várias surpresas, uma delas o fato de que, lá pelas tantas, percebi, consultando o sumário, que já tinha lido mais de metade das histórias – mas, ao ver por onde andava o meu marcador de página, constatei que ainda não tinha percorrido sequer uma terça parte do livro. Isso significa que as histórias mais curtas estão no início, e, à medida que vamos progredindo, encontramos outras que seriam praticamente romances, se o número de palavras fosse um critério absoluto para distinguir conto de romance ou novela (não é, mas não vou entrar na seara da teoria literária agora). A seleção dos textos foi extraordinariamente feliz em deixar evidente para o leitor que as histórias de Lovecraft são soltas, pero no mucho: há lugares, personagens e criaturas que são recorrentes, e tudo está interligado, ora de maneira mais nítida, ora mais tênue. O primeiro conto, Dagon, já é inequivocamente uma história de terror, tendo como elemento central uma monstruosidade que emerge das profundezas do oceano, e por isso o nome, que faz referência ao deus-peixe dos filisteus e cananeus. Essa história demonstra uma capacidade misteriosa que Lovecraft tinha e que lhe foi muito útil, considerando do que trata boa parte de sua obra: a descrição da aparência da criatura é mínima, permitindo-nos imaginá-la da maneira que quisermos, desde que seja com as características de um ser aquático – e, mesmo assim, o impacto é poderoso.
Um detalhe importante: a ordem em que as histórias aparecem nesta coletânea não é aleatória, e sim cronológica. Dagon é de 1917 e, como vimos, já inaugura o livro metendo os dois pés na porta no quesito terror, o que torna ainda mais surpreendente a experiência do leitor ao passar para a história seguinte, O Navio Branco, de 1919, uma narrativa de puro sonho encantado na qual o protagonista faz uma viagem maravilhosa por um mundo onírico (palavra essa muito importante dentro da obra de Lovecraft) cheio de paisagens deslumbrantes – mas também é nesse conto que lemos pela primeira vez vários nomes que voltarão a aparecer em histórias posteriores, estas dotadas de uma vibe bem diferente. O mundo de sonhos por onde perambulam os personagens de Lovecraft guarda infinitas maravilhas e infinitos horrores, e o detalhe mais inusitado e interessante é que ele não é caótico nem (aparentemente) sem sentido como os sonhos comuns de sonhadores comuns: é um mundo com sua própria História, geografia, nações e lendas. Somos conduzidos a maiores explorações desse mundo em contos como Os Gatos de Ulthar, Celephaïs (ambas de 1920), Os Outros Deuses (1921), e a coisa chega ao auge com a longa e épica A Busca Onírica por Kadath (1927), cujo herói é Randolph Carter, o mesmo de O Depoimento de Randolph Carter, história de 1919 que não está neste livro e que ainda não conheço (a curiosidade está grande!), empenhado numa odisseia pelo mundo dos sonhos em busca da legendária Kadath, a cidade dos deuses, onde espera obter um conhecimento que é inacessível aos mortais comuns. Carter é um sonhador experiente, capaz de deliberadamente reter a memória de seus sonhos e (pelo menos eu entendi assim) de retornar a lugares já visitados desse universo paralelo, o que permite que dê continuidade a suas explorações sem precisar recomeçar do zero a cada vez, embora, em pelo menos um momento, ele relute em acordar por medo de esquecer o que já havia aprendido e alcançado. É difícil acreditar que essa longa narrativa corresponda a um único sonho ininterrupto, mas é verdade que o tempo do universo onírico pode ser diferente do tempo do mundo desperto. O conceito e o enredo são fascinantes, mas, não vou mentir, por vezes a narrativa se torna maçante devido à repetitividade e ao excesso de detalhes. Fiquei com a sensação de que sua extensão (mais de cem páginas nesta edição) é excessiva, e de que seria possível narrar bem a história em pouco mais da metade disso.
Falar nos ghouls me leva de volta a um conto anterior, O Modelo de Pickman (1926), que é praticamente perfeito como história de terror! O personagem-narrador, um certo Thurber, está contando a um amigo de nome Eliot o pouco que sabe a respeito do misterioso desaparecimento do pintor Richard Upton Pickman, e a conversa vai enveredando para as excentricidades do sujeito. Thurber mostra-se um admirador extremado do gênio de Pickman, um artista de enorme talento cujo interesse voltava-se quase exclusivamente para o campo do oculto e do macabro. O pintor mantinha um estúdio secreto num imóvel que alugava sob nome falso num dos bairros mais sórdidos de Boston, e o narrador, certa vez, teve acesso a esse lugar, onde viu obras tão pavorosas que teriam feito os trabalhos que Pickman chegou a expor (e que já chocavam a muitos) parecerem desenhos de uma criança talentosa. O quadro mais famoso do artista chama-se justamente Ghoul se Alimentando, e mais de um pintor do mundo real, fã de Lovecraft, já tentou materializá-lo com base nas vagas informações fornecidas no conto – escolhi uma das versões para ilustrar este post, mas existem várias (façam uma busca por imagens no Google usando as palavras-chave Lovecraft ghoul feeding, ou Pickman ghoul feeding, e respirem fundo antes de olhar os resultados). Duas questões servem de motor à história, a primeira delas óbvia: que fim levou Pickman? E a segunda é ainda mais inquietante: por mais genial, ou perturbado, ou as duas coisas, que aquele homem fosse, seria possível que a inspiração para pintar tantos e tamanhos horrores viesse unicamente de sua própria imaginação? O final é magistral, mas respostas completas para essas perguntas, o leitor só encontrará em A Busca Onírica por Kadath.
Um Sussurro nas Trevas (1931) lida com a ideia sempre inquietante de uma raça oculta de seres desconhecidos vivendo muito próximos dos humanos, mas passando geralmente despercebidos, exceto por rumores, histórias contadas aqui e ali, um ou outro avistamento considerado como mero engano ou alucinação… Lovecraft recorreu a esse conceito outras vezes, e, muito provavelmente por influência dele, Robert E. Howard também o fez, embora a exata natureza e a aparência das raças ocultas de cada um fosse completamente diferente. Howard, 16 anos mais jovem, era leitor de Lovecraft desde a adolescência, muito antes de os dois se tornarem amigos, e nunca escondeu sua admiração por ele. Neste conto, a raça desconhecida em questão é de origem extraterrestre, mas parece ter estabelecido uma base de operações nas cavernas do estado de Vermont. Tem uma aparência vagamente crustácea, mas com uma cabeça cheia de tentáculos que mudam de cor, e asas membranosas que lembram um morcego. Não é spoiler: essa descrição está logo no início do conto, que prossegue tratando do mistério em torno de sua existência, e, de qualquer forma, eu precisava dela para abordar um ponto que me ocorreu agora. Lovecraft, um autor de terror por excelência, parece ter compreendido uma coisa a respeito de "alienígenas" que muitos escritores de ficção científica não compreenderam: que uma forma de vida que evoluiu em outro mundo, de modo totalmente independente de tudo o que a nossa biologia conhece, deveria, por qualquer expectativa razoável, ser absoluta e radicalmente diferente de tudo o que já vimos ou imaginamos. OK, as criaturas de Um Sussurro nas Trevas até tiveram alguma inspiração em crustáceos no que se refere a sua aparência, mas nem sequer são animais no verdadeiro sentido do termo (em outras obras são referidos como "Fungos de Yuggoth" – é isso aí: fungos). Outras raças criadas por Lovecraft, como os Antigos (não Grandes Antigos, só Antigos, de Nas Montanhas da Loucura) representam uma ruptura tão ou mais radical que essa com qualquer noção que pudéssemos ter a respeito do que seria uma raça inteligente e civilizada, ao ponto de atordoarem quem se considera um expert em ficção científica só porque já assistiu muito Star Wars e Star Trek. Não estou criticando essas franquias, pois gosto muito da primeira e amo a segunda, mas é fato que, nelas, as espécies alienígenas que aparecem (pelo menos as inteligentes), por mais estranhas fisionomias que possuam, quase sempre apresentam uma configuração física basicamente antropomórfica, com cabeça, tronco e membros dispostos da mesma forma que os nossos. Já os alienígenas de Lovecraft são coisas coriáceas ou gelatinosas, bulbosas, disformes, por vezes nem mesmo se encaixando ao certo em qualquer definição que tenhamos (os Antigos não são exatamente nem animais, nem vegetais), ou subvertendo noções que nunca pensamos em questionar (fungos inteligentes??). E olhem que só abordei os aspectos biológicos da coisa: que criatura humana seria capaz de imaginar a mentalidade de um ser cujos próprios sentidos não têm nada a ver com os nossos? Em tempo: o sussurro que dá título à história de que eu estava falando são sons que as criaturas produzem, aparentemente, só para poderem se comunicar com os humanos quando precisam, pois sua própria forma de "falar" não é sonora – elas conversam entre si por meio de sinais, consistindo em movimentos e mudanças de cores em seus tentáculos!…
(Como estava falando de Robert E. Howard em conexão com Lovecraft, ocorreu-me comentar uma curiosidade. Lovecraft imaginou diferentes tipos de seres como sendo dotados de tamanho poder, que seriam capazes de viajar entre as estrelas voando com as próprias asas, sem precisar de nada tão desajeitado e pouco prático quanto uma espaçonave – os Grandes Antigos fizeram isso, e os Fungos de Yuggoth também. A mesma ideia aparece no conto de Howard, A Torre do Elefante [1933], no qual Conan conversa com uma criatura extraterrestre inconcebivelmente antiga, embora mais benévola que os alienígenas de Lovecraft.)
A Sombra de Innsmouth (1931), também encontrado com o título A Sombra Sobre Innsmouth em outras traduções, descreve um vilarejo pesqueiro no litoral de Massachusetts, que já viveu dias prósperos, mas encontra-se agora decadente e parcialmente abandonado. O jovem protagonista, à semelhança de Charles Dexter Ward, é um curioso sobre História, arquitetura e genealogia, e são esses interesses que o levam a decidir visitar Innsmouth durante uma viagem que está fazendo pela Nova Inglaterra – e apesar da reputação tenebrosa que o lugar tem entre as populações das cidades próximas. Lovecraft demonstra toda a sua capacidade de criar ambientação ao descrever o vilarejo, com seus casarões dilapidados lembrando tristemente a opulência passada, sua atmosfera úmida, um odor nauseabundo de peixe que parece impregnar tudo, e seus habitantes de aparência estranha e desagradável, que o viajante não consegue determinar se teria origem em alguma degeneração hereditária ou na miscigenação (para Lovecraft, indivíduo profundamente racista, as duas coisas eram mais ou menos equivalentes: como muitos intelectuais de sua época, influenciados pela teoria racial do século XIX, ele acreditava que a mistura de diferentes raças tendesse a produzir "aberrações"). Em adição a isso, em Innsmouth as tradicionais igrejas protestantes tão prezadas pela população da Nova Inglaterra foram substituídas por uma tal Ordem Esotérica de Dagon (does it ring a bell?), sobre cujos cultos correm boatos macabros. Tendo explorado tantas fontes possíveis de medo em suas outras obras, aqui o autor volta-se para o oceano, que ao mesmo tempo nos fascina e intimida por sua imensidão e mistério, pois ainda não estamos nem perto de conhecer tudo o que existe nele – nem mesmo hoje, que dirá na época de Lovecraft. A título de curiosidade, A Sombra de Innsmouth foi a única história do autor publicada em forma de livro enquanto ele era vivo – numa edição desastrosa, repleta de erros tipográficos, o que o deixou fulo da vida. Tirando isso, ele só conseguiu publicar seus trabalhos (quando o conseguia) em revistas, tais como a famosa Weird Tales, que também projetou o já citado Robert E. Howard, entre muitos outros.
Eu tinha lido Nas Montanhas da Loucura anos atrás, ela era a história-título de uma daquelas coletâneas de Lovecraft publicadas pela editora Iluminuras no final dos anos 90 e início dos 2000; reli neste volume numa tradução diferente, e, não sei se porque de lá para cá adquiri mais familiaridade com a escrita do autor, mas desta vez a experiência foi mais fluida, agradável e sinistra. Na primeira leitura, pela lembrança que eu tinha, achei que a história era prejudicada por uma abordagem excessivamente científica: informações técnicas ocupavam uma parte demasiado grande dela, e mesmo a parte "boa" valia mais pela curiosidade que pelo terror mesmo, já que nela éramos apresentados aos seres que, naquela tradução, eram chamados simplesmente de "os Antigos", e recebíamos uma aula fascinante sobre a complexa sociedade que eles criaram na Terra em eras inimaginavelmente antigas. A propósito, os Antigos não devem ser confundidos com os Grandes Antigos (ou, nesta edição, Grandes Anciões), a raça de deuses-monstros governada pelo Grande Cthulhu. Nesta edição, os seres descritos em Nas Montanhas da Loucura são chamados de "Coisas Ancestrais", a tradução direta de seu nome no original, "the Elder Things". O personagem-narrador, o Prof. Dyer, do departamento de geologia da Universidade Miskatonic, em Arkham (universidade e cidade fictícias, ambas recorrentes nas histórias de Lovecraft), lidera uma expedição de pesquisa à Antártica, que descobre muito mais do que esperava: os cientistas encontram o que parecem ser pegadas de algum organismo grande e complexo em rochas com quase um bilhão de anos de idade – época em que, por tudo o que se sabe, a vida apenas começava a aparecer na Terra e ainda não ia além do estágio unicelular. Mais tarde, acabam encontrando o que acreditam serem os corpos dos seres que deixaram tais pegadas, miraculosamente preservados. São criaturas que lembram certo tipo de invertebrados, os radiários, mas com quase três metros de altura e características animais e vegetais ao mesmo tempo, e cuja existência na época em que foram deixadas as pegadas sugere que a Terra tenha conhecido outros ciclos de evolução da vida, muito anteriores ao que resultou na nossa existência (descobre-se depois que não é bem assim, já que as Coisas Ancestrais têm origem extraterrestre). Mais ainda: tais seres eram altamente inteligentes, civilizados, e tinham uma vasta cidade, boa parte da qual ainda está de pé; nas ruínas, Dyer e um companheiro descobrem muitas coisas sobre a vida, costumes e história dessa raça. A descrição de tudo isso é de longe a melhor parte do conto, um dos trechos mais curiosos de toda a obra de Lovecraft, mas, desta vez, eu achei a coisa toda bem mais tenebrosa além de curiosa, já que a sociedade das Coisas Ancestrais possui conexões com os Mitos de Cthulhu, de modo que a sombra do retorno dos Grandes Antigos está sempre presente. Nas Montanhas… também traz outro exemplo de como as histórias de Lovecraft são quase todas encadeadas entre si: Dyer, embora tenha a geologia como área de especialização, parece ser um curioso sobre mitologia e ocultismo, pois, além de já ter examinado o exemplar do Necronomicon guardado na seção reservada da biblioteca da universidade, teve longas conversas com um colega do departamento de língua inglesa que se dedica a esse tipo de estudo – ninguém menos que Wilmarth, o protagonista de Um Sussurro nas Trevas. Por fim, não dá para concluir este parágrafo sem apontar para o fato de que a história deixa evidentes os consideráveis conhecimentos de Lovecraft sobre geologia e biologia.
As duas últimas histórias são O Assombro das Trevas (1935), que eu achei apenas mediana, apesar de alguns momentos brilhantes, e optei por não aprofundar aqui, e A Sombra Vinda do Tempo (1935), que inevitavelmente nos traz à cabeça a expressão "fechar com chave de ouro", ainda que isso possa ser fruto do acaso, já que, como vimos, as histórias são apresentadas em ordem cronológica. Assim como Nas Montanhas da Loucura, trata-se de um mergulho num passado pré-humano fictício, e sob certos aspectos, inclusive, lembra bastante aquela história, só que envolvendo uma forma de deslocamento entre diferentes eras – de uma maneira radicalmente diferente da noção tradicional da viagem no tempo que, mesmo naquela época, já estava tão batida. O narrador, Nathaniel Peaslee, é um pacato pai de família, professor de economia na Universidade Miskatonic, que, inexplicavelmente, tem um blackout que dura quase cinco anos – e, ao "voltar", descobre que sua vida virou de ponta-cabeça; aparentemente, alguma outra consciência ocupou seu corpo durante esse período. Peaslee declara nunca ter tido qualquer interesse em ocultismo ou parapsicologia, mas a entidade que havia assumido seu lugar, como ele vem a saber, dedicou-se a extensas pesquisas em alguns dos volumes mais raros e mais mal-afamados mantidos na biblioteca da universidade, livros esses aos quais somente sua condição de professor (bem, a condição de professor de Peaslee) lhe franqueou o acesso – e nem é preciso dizer que entre esses livros está o velho Necronomicon. Movido pelo desejo de entender o que lhe aconteceu, Peaslee começa, por sua vez, a pesquisar, e descobre que existem registros de casos semelhantes ao seu ao longo de toda a História. Ao mesmo tempo, ele tem lampejos de lembrança (que vão gradualmente se tornando mais duradouros, claros e precisos) de ter vivido num mundo bizarro, mas que tudo indica ter sido a própria Terra numa era desconhecida. Aos poucos, a combinação dessas recordações com o que vai descobrindo em suas pesquisas revela-lhe a inacreditável verdade: existiu outrora uma civilização que chamava a si própria de "a Grande Raça de Yith", não tão antiga quanto as Coisas Ancestrais de Nas Montanhas da Loucura, mas, ainda assim, anterior em eras a qualquer coisa que a humanidade conheça, e que dominou a capacidade de projetar a mente rumo ao passado ou ao futuro, ocupando o corpo de qualquer forma de vida inteligente que exista na época que o viajante deseja explorar. Enquanto isso, a mente original do corpo "emprestado" ocupa o corpo do Yith em questão. Combinando essa habilidade com sua fome insaciável por conhecimento, não é difícil imaginar que os Yith acumularam o maior tesouro de ciência, arte e informações de todo tipo já visto em qualquer era deste mundo – e tudo isso estava ao alcance da mente inquisitiva de Peaslee durante os anos que a troca durou, embora agora ele só recorde pequenos fragmentos. O conceito que baseia a história chega a dar vertigens pela amplitude das esferas de tempo que envolve, fazendo a humanidade e todas as suas realizações parecerem ainda menores do que já pareciam enquanto líamos as histórias anteriores, isso para não falar na ideia indescritivelmente fascinante de não apenas ter acesso ao vasto conhecimento dos Yith, como ainda poder trocar ideias com homens (e outras criaturas) cujas mentes foram "sequestradas" da mesma forma, e vindas de todas as épocas, incluindo representantes de espécies já extintas há milhões ou bilhões de anos, e de outras que só irão evoluir em formas inteligentes daqui a outro tanto. É muita coisa!…
Uma observação: mencionei há pouco as Coisas Ancestrais de Nas Montanhas da Loucura, que são citadas em A Sombra Vinda do Tempo sem o uso de nenhum nome, sendo chamadas apenas de "a raça semivegetal dotada de asas e cabeça em forma de estrela-do-mar oriunda da Antártida paleogênea", e, mais adiante no conto, o nome "Coisas Ancestrais" é usado para se referir a outra raça que, pela descrição, não tem nada a ver com essa. Não sei ao certo ao que atribuir isso; confesso que meu primeiro impulso foi culpar o tradutor, mas provavelmente estaria sendo injusto: talvez Lovecraft tenha feito de caso pensado. Considerando suas histórias em conjunto, percebemos que ele estava construindo uma mitologia, sabia disso – e o que é uma mitologia sem redundâncias, versões discrepantes, nomes diferentes atribuídos à mesma coisa ou um mesmo nome designando coisas diferentes etc.? Quem já se dedicou a estudar os mitos gregos, nórdicos, egípcios ou outros, sabe bem do que estou falando.
(Quando Peaslee enumera alguns dos livros que o "outro" que ocupava seu corpo andou pesquisando – e que ele próprio acaba depois lendo em busca de respostas –, dois títulos sobressaem na lista: um é o Unaussprechlichen Kulten [algo como 'Cultos Inomináveis' ou 'Cultos Indescritíveis' em alemão], atribuído a um certo Von Junzt, e o outro, o De Vermis Mysteriis ['Mistérios do Verme' em latim], cujo autor seria Ludwig Prinn. Ambos são livros fictícios, assim como o Necronomicon de Lovecraft; o primeiro foi inventado por Robert E. Howard e citado pela primeira vez no conto Os Filhos da Noite, que eu já tive a oportunidade de comentar; o outro é criação de Robert Bloch, hoje uma lenda da literatura fantástica, na época pouco mais que um garoto dando seus primeiros passos como escritor [já mostrando promessa], e que deve ter chorado de emoção quando Lovecraft, seu ídolo, não apenas dedicou nominalmente O Assombro das Trevas a ele, como ainda citou o De Vermis Mysteriis tanto nessa história quanto em A Sombra Vinda do Tempo. Stephen King também o cita no conto Jerusalem's Lot. E, ainda no assunto das conexões entre a obra de Lovecraft e as de seus amigos escritores, A Sombra Vinda do Tempo traz breves mas instigantes menções não só ao antigo império da Valúsia, como até mesmo à raça dos homens-serpente que o controlava antes da ascensão dos humanos – elementos esses que os leitores das aventuras do rei Kull escritas por Howard na certa reconhecerão. Eu nunca tinha visto a Valúsia ser citada em nenhum outro lugar sem ser a obra de Howard, então, quando li essa referência a ela na história de Lovecraft, fui pesquisar na internet para ver se o nome tinha origem em algum mito do mundo real, como no caso da Atlântida… Na verdade, essa era uma pesquisa que eu já deveria ter feito há muitos anos, não sei por que isso nunca me ocorreu antes. Se algo assim existisse, poderíamos pensar que ambos os autores tivessem simplesmente bebido nas mesmas fontes – mas não encontrei nada do tipo; portanto, salvo alguma evidência em contrário que ainda apareça, tudo indica que a Valúsia saiu mesmo da imaginação de Howard, e que Lovecraft, ao utilizá-la, estava deliberadamente criando mais um link entre sua obra e a de seu amigo.)
A leitura deste livro vale por um mergulho e tanto no universo bizarro e tenebroso de Lovecraft, e pode ser indicada sem erro a leitores que se encontrem na mesma situação em que eu estava antes de lê-lo – a de já ter tido contato com o autor e gostado, mas ainda estar num nível bem básico de conhecimento sobre sua obra. Aqui há muito material, grande parte dele representando o melhor da produção de Lovecraft, e com um tratamento editorial do qual, na minha opinião, há bem pouco do que reclamar (o tradutor parece ter um fetiche com a palavra "coruchéu", e a repetição frequente de termo tão exótico acaba por ter um efeito engraçado, mas isso não passa de uma curiosidade). Até pensei em fazer a ressalva de que o livro é extremamente grande e desajeitado, pouco prático para uma pessoa levar consigo para ler em lugares como cafés, trens e salas de espera, e que talvez fosse uma boa ideia dividi-lo em dois volumes, mas não vou fazer isso, porque, na verdade, dá no mesmo: eu definitivamente não recomendo esse tipo de leitura errática em se tratando de Lovecraft. Seus temas são complexos, sua escrita é recheada de frases longas e de construção rebuscada, que exigem bastante atenção e concentração, e cuja compreensão correta é essencial para que o leitor consiga entrar no espírito da história. Aconselho reservar algumas horas para lê-lo em casa ou em algum lugar sossegado, livre de distrações e interrupções, o que garantirá que estas histórias sejam lidas como devem ser, e apreciadas de verdade.
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