Mostrando postagens com marcador Oscar Wilde. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Oscar Wilde. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, maio 19, 2011

O Retrato de Dorian Gray

Traçar um paralelo entre um novo filme e uma história consagrada na literatura é sempre um exercício empolgante e, ao mesmo tempo, complicado. Por um lado, nunca tive paciência com gente que pensa que achar tudo ruim é ter "gosto refinado", e a última coisa que quero é me parecer com esse tipo. Por outro, quanto mais importante, por uma ou outra razão, for um livro, maior obrigação tem o seu leitor de ser crítico com qualquer recriação que apareça... Obrigação essa que fica ainda mais pesada se o leitor em questão for um estudioso de literatura por formação e gosto. Não obstante, tentarei assim mesmo.

Esta nova versão cinematográfica do clássico da literatura gótica de Oscar Wilde já não chega tão "nova" aos cinemas nacionais, já que a produção (inglesa) é de 2009. Ben Barnes, já celebrizado como o príncipe Caspian na série As Crônicas de Nárnia (baseada nos não menos clássicos livros de C. S. Lewis) foi escolhido para encarnar o jovem burguês londrino que vende a alma em troca da juventude perpétua – note-se, de passagem, que Barnes não se parece com a visão que Wilde tinha do personagem, que é descrito no livro como sendo loiro. Ben Chaplin faz o papel do pintor Basil Hallward, responsável pelo famigerado retrato, enquanto Colin Firth, atualmente sob os holofotes por causa do oscarizado (epa!) O Discurso do Rei, é o insuportável lorde Wotton. Na ala feminina do elenco, Rachel Hurd-Wood empresta sua beleza a Sibyl Vane, a atriz adolescente que Dorian seduz e depois abandona, enquanto Rebecca Hall interpreta a "avançada" Emily, personagem inexistente no livro. Oliver Parker assina a direção.

O Retrato de Dorian Gray, publicado em 1890, foi o único romance escrito por Oscar Wilde (1854-1900), que, durante sua carreira literária, devotou a maior parte de sua energia ao conto, à poesia e ao teatro. Se não fosse pelo poderoso molho de terror sobrenatural que tempera suas páginas, é possível que o livro fosse hoje tão pouco lembrado quanto toneladas de outros romances da mesma época e cuja massa tinha a mesma composição – a crítica de costumes. Não que a crítica de costumes, em si mesma, não possa gerar boa literatura (alguém disse Machado de Assis?): o problema é que, quando o modelo é muito sem-graça, o retrato (ops!) dificilmente sairá espetacular, de modo que era preciso ser muito escritor para conseguir produzir algo interessante tendo como assunto a fútil e afetada alta sociedade inglesa da época – uma sociedade que Wilde, embora irlandês de nascimento, sem dúvida conheceu a fundo.

Ainda que não haja no livro nada tão explícito quanto o beijo trocado entre Barnes e Chaplin numa cena do filme, a sabida homossexualidade do autor é perceptível, de forma sutil mas ao mesmo tempo inequívoca, na interação entre o trio central da trama: Dorian, Hallward e lorde Henry Wotton – Harry para os íntimos (entendam esse "íntimos" como quiserem). Por sinal, se já houve um personagem de ficção que eu desejei que tivesse uma cara de carne e osso para que eu pudesse parti-la, foi esse lorde Wotton. O que essa figura faz é cultivar o cinismo no grau mais extremo e em sua forma mais repulsiva, aparentemente devotando cada minuto de vigília a forjar frases "chocantes" reduzindo amor, família, religião, qualquer espécie de decência, honestidade, honra e todos os demais valores morais e humanos imagináveis a convenções ridículas e ultrapassadas, que deveriam ser postas de lado como uma gravata fora de moda.

Dorian, Hallward e Wotton, estava eu dizendo, formam o núcleo da história, e as atenções que ambos os mais velhos dirigem ao jovem protagonista não disfarçam uma admir
ação que nada tem de inocente – na verdade, há nos diálogos um tipo de jogo erótico que só mesmo um escritor do calibre de Wilde poderia ter forjado: é quase impossível dizer exatament
e onde está o erotismo, mas não há dúvida de que ele existe, embora em nenhum ponto do livro haja a sugestão de alguma aproximação física maior entre os personagens. Uma piada velha, mas que não perde o poder de causar alguns risinhos amarelos entre o pessoal da literatura, é referir-se ao livro como O Retrato de Dorian Gay. Já que falei no assunto, não se deve pensar que tenha sido devido a qualquer tipo de escrúpulo moral que Wilde optou por não ser mais explícito em seu romance (fato que a nova versão cinematográfica tenta "corrigir", aproveitando os tempos mais relax que vivemos hoje). Se ele não o fez, foi porque sabia que tal coisa poderia render-lhe sérios problemas. Na época, atos homossexuais eram previstos em lei como delito de "conduta imoral", e podiam ser punidos com prisão. Foi exatamente o que aconteceu ao próprio Wilde, que, tempos depois da publicação de O Retrato..., amargou uma temporada de dois anos atrás das grades, por conta de seu relacionamento com o jovem filho de um lorde influente. De volta ao livro, o Dorian Gray do título é um típico jovem da alta sociedade britânica da segunda metade do século XIX. Ou melhor, seria típico se não fosse por sua extraordinária beleza, que o faz sobressair onde quer que esteja e atrai a atenção de Basil Hallward, um pintor de inegável talento e um dos favoritos dos aristocratas e da burguesia de Londres – não que, para fazer renome entre essa gente, o talento fosse uma condição indispensável: muitos cavalheiros e damas gostavam de fingir que entendiam de arte. Sendo Hallward um pintor renomado, e Dorian o modelo dos sonhos, o início da amizade entre os dois leva ao desfecho óbvio: o rapaz posa para um retrato. Durante a última sessão de trabalho no atelier de Hallward, Dorian fica conhecendo lorde Wotton, amigo do pintor. De certa forma, Wotton tem de Dorian uma visão inversa à que tem Hallward. Enquanto o pintor vê no jovem uma forma sublime que ele se esforça por reproduzir em tela e tinta, o lorde o vê como uma argila virgem que, com a necessária habilidade, poderia ser moldada na forma de... algo. Primeiramente, é Wotton quem incute em Dorian o pavor de envelhecer:

Para o senhor, Gray, tudo deveria ser importante (...), porque possui uma maravilhosa juventude, e a juventude é a única coisa que vale a pena. (...) Quando for velho, enrugado, feio, quando a meditação lhe tiver murchado a fronte com suas rugas e a paixão marcado seus lábios com horríveis estigmas, sentirá isso terrivelmente. Agora, aonde quer que vá, cativa todo mundo. Mas será sempre assim? (...) Sim, Sr. Gray, os deuses foram generosos com o senhor. Mas o que os deuses dão, tomam logo em seguida. O senhor só tem alguns poucos anos para viver verdadeiramente, perfeitamente, plenamente. (...) O tempo tem ciúme do senhor e luta contra os seus lírios e as suas rosas. O senhor empalidecerá, suas faces ficarão vincadas e seus olhos se apagarão. Sofrerá terrivelmente... Ah! Aproveite a sua juventude enquanto a possui. (...) Juventude! Juventude! Não há absolutamente nada no mundo, senão a juventude!

E Dorian, juvenilmente impressionado por tal discurso, desabafa:

Como é triste! Eu me tornarei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de junho... Se acontecesse o contrário! Se eu ficasse sempre jovem, e se este retrato envelhecesse! Por isso... por isso eu daria tudo! Sim, não há nada no mundo que eu não desse! Daria até a minha própria alma!


Aparentemente, Satã estava ouvindo com interesse esse diálogo, e, quando o jovem declara sua disposição para tal barganha, deve ter dito simplesmente "Topo!", ou o equivalente a isso. O trato está feito, assim, de boca, sem necessidade de missa negra, pentagramas, livros profanos, mulher nua servindo de altar e essa presepada toda. Desse momento em diante, Dorian nunca mais envelhece um só dia: as marcas que, pelas leis da natureza, o tempo deveria deixar em seu rosto vão, ao invés, sendo transferidas para o retrato. E não só as marcas do tempo: cada maldade que ele pratica, cada desvio moral ao qual se entrega em busca de prazeres novos (tudo seguindo os conselhos de lorde Wotton e os seus desdobramentos inevitáveis) também provoca mudanças horripilantes na efígie, que passa a ser o segredo mais bem guardado de Dorian, trancado a sete chaves, longe dos olhos de todos. Com o tempo, como não poderia deixar de acontecer, sua aparência inalterada começa a chamar atenção, e, combinada com a fama proporcionada por suas inúmeras depravações e vícios, faz com que passe a ser encarado, pelos que o conhecem, com algo que beira o horror supersticioso. A relação entre Dorian e o retrato vai-se tornando progressivamente mais macabra e obsessiva, e seu final não poderia ser agradável – é claro que não vou contar o final, mas adianto a quem viu o filme e pretende ler o livro que o final de um tem pouco a ver com o do outro. Depois me contem qual dos dois acharam melhor – ou, dependendo do ponto de vista, pior.

Uma coisa que achei curiosa foi a contextualização histórica, que extrapola o que havia no romance – e o faz de forma plausível e inteligente. Por exemplo, há referências a uma guerra, obviamente a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ora, Oscar Wilde, que morreu em 1900, talvez até pudesse ter previsto a iminência de um confronto na Europa num futuro próximo, levando em conta a situação política em seus dias, mas é claro que não teria como incluir datas ou detalhes, a menos que os inventasse – e futurologia não era bem a sua seara literária. Não há enunciação de ano no romance, mas é fácil perceber que a ambientação é contemporânea à da vida do autor. Ora, se a história se passasse na mesma época em que foi escrita, Dorian Gray, que tem 20 anos no início do romance, teria nascido por volta de 1870, e, como estaria com 40 e poucos no desfecho da narrativa, isso coincidiria exatamente com os dias da guerra. Automóveis e telefones, coisas quase desconhecidas durante a vida de Wilde, mas que já começavam a se tornar corriqueiras na segunda década do século XX, também aparecem.

Num apanhado geral, considerei o filme bastante satisfatório e, até certa altura da história, muito fiel à narrativa original, com detalhes variando, mas a essência do enredo sendo mantida. No último terço, aproximadamente, é que o roteiro degringola, com lorde Wotton decidindo assumir o papel de investigador implacável para descobrir o segredo de Dorian – o Wotton da história original jamais teria energia para realizar tal empreitada, nem caráter para considerá-la necessária – e a relação artificial de Dorian com Emily, filha de Wotton (personagem que, como disse acima, foi inventada para o filme) sendo usada como pivô para o desejo de regeneração e redenção experimentado pelo protagonista, desejo esse, por sinal, que o filme exagera muito. As atuações, em sua maioria, são acima da média, e a recriação da Londres do século XIX é perfeita: uma cidade cinzenta, suja, poluída, com sua magnífica arquitetura manchada pela onipresente fuligem de milhares de chaminés – enfim, uma cidade que pagava o preço da Revolução Industrial que fizera da Inglaterra o país mais rico do mundo –, e onde cenários de riqueza e ostentação e outros da mais sórdida miséria coexistiam separados por poucos passos de distância. Os espectadores que vierem a ler o livro levarão, no mínimo, uma boa amostra do clima que devem imaginar ao imergirem em suas páginas para algumas horas de leitura fascinante.

quarta-feira, março 31, 2010

Drácula

Recentemente, no Covil do Orc - um dos blogs que leio com mais frequência, e cujo autor também costuma honrar-me com suas visitas e comentários - li um post a respeito de Drácula, que, como Dom Quixote e um pequeno número de outros, é um daqueles livros sobre os quais todo mundo sabe alguma coisa, até mesmo quem nunca os abriu - e, não raro, até mesmo quem não tem o costume de abrir qualquer livro que seja pode saber algo sobre eles. Se não me falha a memória, isso era parte de uma das definições de "clássico" propostas por Ítalo Calvino. But that's not my point here.

O Orc atribui uma nota vermelha (ops!) a Drácula na avaliação geral, considerando a história como um todo entediante, com os momentos interessantes ou importantes separados uns dos outros por mares de páginas em que meramente são debatidas as questões pessoais dos personagens - e preciso concordar que, de fato, o livro melhoraria com uma boa enxugada. Também é verdade que não é oferecida explicação alguma para a razão pela qual o Conde resolve mudar-se de seu sossegado castelo nos Cárpatos para a agitação e a poluição da Londres vitoriana. Um dos visitantes que deixaram comentários ao texto do amigo Orc diz que teria sido por ter visto uma fotografia de Mina Murray, a noiva do herói (mais ou menos) Jonathan Harker, e nela reconhecido a reencarnação de sua própria noiva, morta há séculos... Na verdade, como bem observado pelo Orc ao responder, isso só aparece no filme (referindo-se, creio, à produção de 1992 dirigida por Francis Ford Coppola), e eu acrescentaria que, mesmo no filme, o fato não constitui explicação para a mudança do Conde: Jonathan, com a foto no bolso, só vai até o castelo de Drácula porque este o chama, interessado que está em comprar uma propriedade em Londres, negócio a ser mediado pela firma onde Harker trabalha. Ou seja, o vampiro já planejava mudar-se antes de saber da existência de Mina.

Sobre o filme, aliás, devo dizer que ele tem muitas qualidades: é visualmente magnífico, tem um roteiro que prende e um punhado de atuações notáveis, destacando-se Gary Oldman como Drácula e Anthony Hopkins, excelente como sempre, no papel de Van Helsing. Já Keanu Reeves, como Jonathan Harker, mostra-se tão expressivo quanto um peixe defumado, mas nada no mundo é perfeito mesmo... Winona Ryder, que interpreta Mina, não atua mal na minha opinião, mas eu, no lugar do diretor, escolheria uma atriz com mais "presença" (leia-se sex appeal) para o papel. Certo, ela passa a maior parte do filme como uma recatada professorinha, mas lá pelas tantas, sob a influência de Drácula, deveria parecer uma vampira sedutora e terrível - e não convence muito como tal. O fato é um pouco compensado pelas aparições breves mas memoráveis de Monica Belucci, ainda não tão famosa na época, mas deslumbrante como sempre, como uma das três servas-vampiras do Conde. E já que estamos falando das figuras femininas, faço um parêntese para assinalar que aquela doida ninfomaníaca que atende pelo nome de Lucy Westenra no filme não tem nada a ver com a delicada e virtuosa personagem homônima do livro!...

Vampiras à parte, talvez a coisa mais legal do filme seja a breve introdução ambientada no século XV, que explica a transformação do príncipe Vlad, de um devotado defensor de seu país e da Igreja Ortodoxa contra os invasores muçulmanos, para um conde vampiro mancomunado com o demo... No livro, Stoker não cita o nome de Vlad, embora ele tenha sido, sem dúvida, sua principal fonte de inspiração: em vez disso, permite ao próprio vampiro dar algumas pistas sobre sua identidade. No castelo, quando Jonathan ainda não sabe que ele é um vampiro, o Conde enaltece os feitos de um suposto "ancestral" que na verdade era ele próprio; mais tarde, já sem nada a esconder, ele gaba-se de ter governado nações e combatido por elas, séculos antes do nascimento dos que agora o veem.



Curiosidade 1: Só notei isso ao rever o filme para escrever este texto, mas o bispo que diz a Vlad que a alma de Elizabeta não poderá ser salva porque ela se suicidou é o próprio Anthony Hopkins, quase irreconhecível com cabelo longo e vastas barbas!


Curiosidade 2: Todos que já ouviram falar no príncipe Vlad Basarab sabem que ele era mais conhecido por seu apelido, Vlad Tepes, que significa Vlad, o Empalador. Era assim chamado por ter uma preferência especial por executar prisioneiros de guerra e desafetos em geral espetando-os em longas estacas. Na introdução do filme, um soldado turco aparece morrendo numa comprida lança que o atravessa do peito às costas - uma versão mais "apresentável", digamos, do que seria o verdadeiro empalamento, de cujos detalhes prefiro poupar meus leitores; basta dizer que era uma forma bem mais demorada, dolorosa, humilhante e chocante de morrer do que essa, tanto que jamais poderia ser mostrada nem mesmo num filme de terror... Pelo menos, não num com um mínimo de bom gosto.


Ao lado de todas essas qualidades, o filme de Coppola tem um grande defeito: é romântico demais. Mina e Drácula vivem uma relação intensa e apaixonada, com o coitado do Jonathan tendo que resignar-se à sina de corno de um morto-vivo... Há uma sequência na qual Mina pede a Drácula que a torne igual a ele, e a dramática resposta é que ele a ama demais para condená-la a uma existência tão miserável: só depois de muita insistência por parte dela é que o vampiro cede. Na parte equivalente do livro, ele simplesmente faz um corte no próprio peito com suas garras e obriga a moça a provar de seu sangue, a fim de consolidar seu domínio sobre ela. Para o Drácula do livro, Mina nada mais é do que uma ferramenta útil. Essa romantização exagerada, a meu ver, não se justifica num filme cuja intenção declarada era a de ser o mais fiel possível à obra original, objetivo esse denunciado já no próprio título, que não é simplesmente Dracula, e sim Bram Stoker's Dracula - Drácula de Bram Stoker! Mas temos que entender o lado de Coppola: Hollywood tem suas regras. Nenhum filme com ambições de alcançar grandes bilheterias pode deixar de ter um romance no meio.


Comentei acima sobre o visual impecável do filme, e o cuidado nesse sentido começou pelo próprio personagem principal: estamos acostumados à imagem de um Drácula de casaca, capa com colarinho alto e cabelo gomalinado - uma figura digna de teatro vaudeville. Isso é culpa de Tod Browning e Bela Lugosi, respectivamente diretor e ator principal de uma versão de Drácula filmada em 1931 e ainda considerada por muitos como a mais clássica, apesar de adulterar a história muito mais que o filme de Coppola (e de eu, pessoalmente, achar Lugosi mais cômico que assustador). Nada poderia estar mais distante da "verdadeira" aparência do Conde, que é descrito por Stoker como tendo cabelos longos e farto bigode - um visual muito mais selvagem e sinistro que o do vampiro-almofadinha encarnado por Lugosi e copiado em dezenas de filmes posteriores. Já Coppola e Gary Oldman optaram por compor a imagem de Drácula seguindo à risca a descrição de seu criador. Ponto para eles. Por outro lado, o diretor e/ou o roteirista parecem ter alguma admiração, apesar de tudo, pelo filme de Browning, pois pelo menos dois detalhes que não estão no livro foram copiados diretamente de um filme para o outro: a foto de Mina e a frase morbidamente zombeteira que o Conde diz ao servir o jantar a Jonathan. Desculpando-se por não acompanhá-lo, ele explica que já jantou e que além disso nunca bebe... vinho, insinuando que o líquido vermelho que lhe agrada ao paladar é outro.


Deixando o filme um pouco de lado e voltando a falar do livro, acho necessário dizer algumas palavras sobre seu autor. Abraham Stoker ("Bram" era um apelido de infância) nasceu em Clontarf, Irlanda, em 1847. Foi um menino débil e adoentado, que passou a maior parte da infância recolhido a um quarto, onde sua mãe, uma apaixonada por narrativas fantásticas, entretinha-o contando as histórias tradicionais do folclore irlandês, desde as mais engraçadas até as mais tenebrosas, o que deixou uma marca indelével na imaginação de Bram. Apesar de seu histórico de doença na infância, ele veio a tornar-se um homem de grande energia, resistência e determinação, trabalhador incansável. Formou-se em Matemática, mas trabalhou durante a maior parte da vida como jornalista e produtor teatral. Casou-se em 1878 com Florence Balcombe, tida e havida como uma das maiores beldades da Grã-Bretanha na época - consta que Stoker teve que disputar a mão dela com o também irlandês e escritor Oscar Wilde, que, como sabemos, não era exatamente "do ramo" (leia-se: preferia a companhia de rapazes), de modo que provavelmente não foi um rival que haja se empenhado muito. Ocorre que Florence não tinha só beleza: era também muito dominadora e uma espécie de pré-feminista, de modo que Stoker não desfrutou de uma vida doméstica das mais tranquilas. Suas heroínas dóceis, quase submissas, e totalmente devotadas aos maridos, poderiam ser uma forma de crítica que o escritor fazia ao gênio difícil de sua própria esposa - o que explicaria a presença, em Drácula, de frases que soam um tanto inverossímeis saídas da boca ou da pena de personagens femininas, como este trecho de uma carta de Lucy para Mina: "Minha cara Mina, por que os homens são tão nobres e nós mulheres nos mostramos tão indignas dessa nobreza?" (!) Acreditar em vampiros é fichinha comparado a acreditar que uma mulher, mesmo no século XIX, pudesse escrever isso!

Stoker escreveu ao todo 17 romances, alguns dos quais tiveram um sucesso discreto, mas Drácula, o oitavo pela ordem, não foi um deles: passou quase despercebido na época. O autor morreu em Londres, em 1912. Ah: caso estejam achando sem graça a capa do livro no início deste post, saibam que ela é histórica: trata-se da capa da primeira edição de Drácula, de 1897, da qual resta hoje apenas um punhado de exemplares. O que foi fotografado para esta imagem está no Museu dos Escritores, em Dublin.

Um comentário do Orc que achei brilhante foi que o método de narração escolhido por Stoker - o de não ter um narrador fixo, mas contar a história por meio de trechos de cartas e diários escritos por diferentes personagens - poderia ter rendido magnificamente, se explorado com mais habilidade. De fato, concordo: Stoker não consegue "vestir a pele" dos personagens, nota-se que o tom e o ponto de vista são sempre os mesmos, quer o texto seja atribuído a um funcionário de escritório de advocacia, a um médico ou a uma adolescente. Por outro lado, não dá para negar que ele fez um trabalho admirável ao compilar e organizar num todo coerente a vasta e caótica quantidade de informações que colheu sobre o mito do vampiro, partindo do folclore rural de seu próprio país, para ir descobrindo lendas sobre seres semelhantes entre quase todos os povos do globo - sendo que os habitantes da Romênia, sem a menor dúvida, falavam de vampiros com maior riqueza de detalhes, convicção e pavor que qualquer outro povo. Embora hoje desgastada pelo uso excessivo, a fórmula criada por Stoker foi durante muito tempo um dos mais interessantes materiais de que escritores de horror e fantasia dispunham para trabalhar. E Stoker fez ainda mais: mesmo sem nunca ter visitado pessoalmente a Romênia, encheu seu livro com ricas e pormenorizadas descrições de suas paisagens, geografia e de suas diferentes etnias, descrições essas que todos os estudiosos são unânimes em considerar cem por cento corretas - tudo fruto de milhares de horas de minuciosa pesquisa na biblioteca do Museu Britânico.

Curiosidade 3: Ao ler o livro pela primeira vez, alguns anos atrás, tive uma surpresa ao ver que o Conde realmente se transforma em morcego, o que eu julgava ser mais uma invenção dos filmes. Explico: a conexão entre vampiros e morcegos é relativamente recente - para ser mais exato, é posterior à colonização das Américas, pois só nas Américas Central e do Sul é que foram descobertos os famosos morcegos hematófagos (sugadores de sangue). Os morcegos da Europa não passam de inofensivos comedores de insetos, de modo que ninguém pensou em relacioná-los ao folclore vampírico. Nas lendas mais antigas, dizia-se que os vampiros costumavam assumir a forma de lobos (o que Drácula também faz), gatos ou pássaros, mas parece que Stoker gostou da novidade e adotou o morcego.

Um ponto interessante do livro (e que o filme, por dispor do recurso da imagem, potencializa) são os sinais de modernidade espalhados por toda parte e que, se o leitor tentar pensar com a cabeça da época, constituem, misturados ao mero fato da existência dos vampiros, um contraste bizarro. Jonathan viaja para a Transilvânia a bordo de sofisticados trens a vapor, Mina escreve seu diário usando uma máquina datilográfica, enquanto o Dr. Seward registra o seu por meio de um gravador de bobina e pede a ajuda de Van Helsing via telégrafo... Que diabos, estes são tempos modernos, científicos, pleno final do século XIX! Num mundo onde existe tudo isso, como ainda pode haver lugar para "superstições" como o vampirismo? A ideia de horrores antigos e mistérios sobrenaturais se perpetuando no tempo, sem se importar com todo o progresso que a humanidade acredita ter alcançado, contribui com sua dose de implicações sinistras.

Tenho que admitir, há duas coisas em Drácula que são realmente duras de aguentar: o discurso "edificante" e repetitivo de alguns personagens sobre sua "missão sagrada de livrar o mundo de semelhante monstro" (Van Helsing é o pior nesse quesito) e, o que chega a ser ainda mais chato, a interminável "rasgação de seda" entre os protagonistas, que não perdem uma só oportunidade de dizer uns aos outros o quanto são pessoas extraordinárias e cheias de qualidades admiráveis - e nunca o fazem da forma mais sucinta possível: não raro, essa mútua puxação de saco ocupa uma página inteira, quebrando o ritmo e o clima, o que é ainda mais prejudicial numa história de terror do que numa de qualquer outro tipo. Mas há compensações: os primeiros capítulos, com Jonathan aprisionado no castelo de Drácula e aos poucos descobrindo a inacreditável verdade sobre seu anfitrião; a descrição, pelo olho clínico do Dr. Seward, dos sintomas da loucura de seu paciente Sr. Renfield e as ligações sutis entre os atos deste último e os do Conde; a narrativa arrepiante da libertação final da alma de Lucy mediante a destruição de sua forma vampírica por seu noivo Arthur e Van Helsing; a terrível cena em que Drácula transforma Mina em sua escrava ao forçá-la a beber seu sangue após ter sugado o dela; e, é claro, a tensa e implacável perseguição do Conde pelo grupo de heróis através dos ermos da Romênia, são, todas elas, cenas que dificilmente perderão o lugar de destaque que ocupam há mais de cem anos nos anais da ficção de horror.

Minha conclusão: Drácula certamente não é candidato a um lugar na lista das dez maiores obras da literatura universal, mas, com os defeitos que possa ter (e tem), segue sendo a melhor história de vampiros a que já fui apresentado. E nestes tempos de Crepúsculo, redescobrir a obra de Bram Stoker pode ter o mérito adicional de nos dar um vislumbre do que era a figura do vampiro antes de sua atual "pasteurização" - quando rostos pálidos e presas longas verdadeiramente metiam medo, e figuravam nos pesadelos de gerações inteiras.