sábado, novembro 05, 2016

Hannibal: a Série

Da última (e primeira!) vez que escrevi sobre um trabalho de Thomas Harris, a obra que comentei foi Hannibal: a Origem do Mal, que, dos livros a respeito do personagem Hannibal Lecter, foi o último a ser escrito e publicado, embora seja o primeiro por ordem cronológica. Na ocasião, tracei vagamente o plano de ler ou reler os outros livros, e, possivelmente, comentá-los um por um. Entretanto, antes que eu efetivamente pegasse o próximo da saga, que seria Dragão Vermelho, comecei a assistir à série de TV Hannibal, produzida pela NBC, e agora acabo de chegar ao final de seus 39 episódios, distribuídos em três temporadas, exibidas de 2013 a 2015. Ela começa com o personagem vivendo seu auge em termos profissionais, como um dos psiquiatras mais conceituados da cidade de Baltimore e, provavelmente, de todo o estado de Maryland, e quando, além de clinicar em seu consultó­rio, era frequentemente chamado a colaborar com a agência local do FBI, ajudando a montar perfis psi­quiátricos que pudessem orientar os investigadores na busca a criminosos insanos. Isso, é claro, foi an­tes de suas pró­prias atividades como serial killer serem descobertas, e de seu consequente confinamen­to na insti­tuição para, bem, criminosos insanos onde vamos encontrá-lo em Dragão Vermelho e O Si­lêncio dos Inocen­tes. Porém, se vocês ainda não assistiram à série e pretendem fazê-lo, estejam avisa­dos: seu criador, Bryan Fuller, não fez questão alguma de se ater ao que os leitores de Har­ris e os espectadores dos filmes baseados em seus livros já sabiam. Trata-se de uma rei­maginação radical do mundo que ro­deia Hannibal – e dele próprio.

Só para começar, a primeira coisa que salta aos olhos é a época em que os episódios estão ambientados. Sabemos, por meio dos li­vros e filmes, que Hannibal Lecter nasceu em 1933 e que testemunhou as provações que seu país natal, a Lituânia, atra­vessou durante a Segunda Guerra Mundial e em sua posterior anexação à União Soviéti­ca; aliás, as ex­periências traumáticas que o então menino Hannibal viveu durante a guerra foram, muito provavelmen­te, o gatilho que despertou o instinto assassino latente nele e que, de outra forma, talvez ti­vesse perma­necido adormecido durante toda a sua vida. Hannibal emigrou para os Estados Unidos no início dos anos 50 e estudou na prestigio­sa Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Seguindo essa cronologia, seus tempos de psiquiatra fa­moso deveriam coincidir com as décadas de 60 e 70; o filme Dragão Ver­melho informa que sua prisão teria acontecido em 1980. A série, entretanto, parece trans­correr na mes­ma época em que foi produzida e exibida, ou seja, em meados desta nossa própria e assus­tadora segun­da década do século XXI: os per­sonagens acessam a internet, portam smartphones e diri­gem carros mo­dernos. Se Hannibal (aqui inter­pretado pelo ator dinamarquês Mads Mikkelsen) estiver, como aparen­ta, nos seus 40 e poucos anos, en­tão deveria ter nascido no início dos anos 70, no mínimo 25 anos de­pois do fim da Segunda Guerra. Essa inconsistência não é explicada em momento algum da série.

Falar em internet me fez lembrar de outra coisa. Em Dragão Vermelho aparece o personagem Freddie Lounds, um repórter da imprensa sensacionalista, interpretado por Philip Seymour Hoffman, que es­creve para um tabloide – um jornale­co. Na série, ele, em vez disso, tem um site, mas o curioso não é isso, e sim o fato de ele ter virado ela: aqui, "Freddie" é o apelido de Fredericka (isso mesmo!) Lounds, papel de uma tal Lara Jean Chorostecki. Esse é apenas um exemplo do grau de liberdade que a série toma em relação a tudo o que já conhece­mos ligado à história de Hannibal.

Outros persona­gens não trocaram de sexo, mas nem por isso deixaram de sofrer grandes mudanças. Um deles é Will Graham, que, junto com Hannibal, é uma das figu­ras centrais. Em Dragão Vermelho ele era inter­pretado por Edward Norton, e era um agente do FBI, o responsável pela prisão de Hannibal; na série, o papel per­tence a Hugh Dancy, e Graham não é um agente, apenas um professor que leciona criminolo­gia para os trainées do FBI, e que, teoricamente, não deveria ter qualquer envolvimento direto com in­vestigações. Acontece que o cara possui um dom raro. Ao ver-se no cenário de um crime violento, consegue re­criar mentalmente o ocorrido, colocando-se no lugar do assassino, compreendendo seu modus operan­di, sentindo suas emoções e, muitas vezes, desco­brindo suas motivações, por mais loucas que se­jam. As ce­nas em que Will faz isso fazem com que pareça quase uma habilidade sobrenatural. Minto: parece mesmo sobrenatural. Não é preciso dizer que essa capaci­dade é extremamente útil na elucidação de as­sassinatos, e por isso a ajuda de Graham é frequen­temente solicitada pelo chefe da seção de Ciên­cias do Com­portamento, Jack Crawford – que, por sinal, também sofreu uma metamorfose, aliás mais uma. Em O Silêncio dos Inocentes, Crawford, vivido por Scott Glenn, tinha a cara de um agente de escri­tório, mais acostumado ao trabalho de coordenação que a sair pessoalmente atrás de assassinos; em Dragão Ver­melho ele era interpretado por Harvey Keitel, e pare­cia um delegado de polícia às vésperas da aposentadoria; em Hanni­bal, a série, Crawford aparece em sua encarnação mais durona: o ator Laurence Fishburne deu ao per­sonagem um jeitão de ex-fuzileiro. Crawford está ci­ente do quanto essas colaborações custam a Gra­ham, ho­mem afável e bondoso, que não suporta ver cães abandonados e por isso tem uma verdadeira matilha em casa. Sua natureza terna se choca terrivel­mente com os detalhes medonhos de todos aqueles assassi­natos, o que vai gradualmente abalando sua sanidade mental. Crawford sofre ao ver isso aconte­cer, mas o fato é que a participação de Graham salva vidas, e por isso ele não pode se dar ao luxo de dis­pensá-la – e Graham, embora não sendo obrigado, não tem coragem de negá-la. Will tem uma queda evidente por uma colega de trabalho, a psiquiatra Alana Bloom (papel da linda atriz canadense Caroline Dhaver­nas), ex-aluna de Hannibal, mas, embora não seja indiferente a ele, ela parece em dúvida sobre se seria uma boa ideia os dois se envolverem. O próprio Hannibal nunca está muito longe, embora haja episó­dios em que outros personagens (geralmente Will Graham) aparecem mais que ele.

(Uma observação que pouca gente deve ter feito, mas sem dúvida curiosa, é que Hannibal marca o reencontro de Mads Mikkelsen e Hugh Dancy, que já haviam contracenado em Rei Arthur, no qual ambos interpretavam cavaleiros da Távola Redonda: Mikkelsen era Tristão, e Dancy, Galahad.)

Li em algum lu­gar que, ao aceitar o papel-título na série, Mads Mikkelsen declarou que, apesar de sua admira­ção por Anthony Hopkins, não tinha a intenção de que "seu" Hannibal fosse igual ao dele. E, pelo visto, falava sério. Não podemos saber até que ponto Mikkelsen pôde influenciar os roteiros, mas o fato é que o per­sonagem, tal como interpretado por ele, não difere da versão de Hopkins apenas por uma questão de es­tilo e jeito de ser, mas também por diversos atos que pratica ao longo da série, e que o Hannibal de Hopkins ou faria de modo diferente, ou não faria em absoluto. O Hannibal de Hopkins tem um pendor para a ironia e o deboche, e por vezes demonstra um humor sutil e ácido; o de Mikkelsen é mais sério que um capincho, como dizemos aqui no Rio Grande do Sul: se esboçou um levíssimo sorriso, quase im­perceptível, duas vezes em toda a série, foi muito. Hopkins: Hannibal mata e come pessoas, mas esses atos, quase sempre, estão ligados a um senso de justiça – extremo e estranho, mas, ainda assim, um senso de justiça; quer dizer, é claro que não podemos aprovar o que ele faz, mas o entendemos. É muito raro que pratique uma crueldade gratuita. Mikkelsen: Hannibal também não mata aleatoriamente, mas é mais comum que o faça para proteger seus segredos e interesses do que por justi­ça; além disso, por ve­zes coloca pessoas em situações enlouquecedoras, de propósito, só pela curiosida­de de ver como irão rea­gir. Reitero que é difícil saber até onde as novas características do personagem devem ser atribuídas a Mads Mikkelsen e até onde são obra de Bryan Fuller, mas que ele está radical­mente di­ferente, isso, sem dúvida, está.

Novamente, preparem-se: o aviso de "recomenda-se discri­ção ao assistir", que aparece no início de todos os episódios, não é uma formalidade. A série é um desfile de mortes bizarras, perpetradas por serial killers tão insanos que, comparado com eles, Hannibal quase parece um cara normal. Há um sujeito que fabrica cordas para instrumentos musicais usando tripas hu­manas em vez das de animais. Outro é uma espécie de lobisomem hi-tech. Pelo menos três usam cadá­veres humanos como matéria-prima para instalações artísticas, e um, como terreno de plantio. Só em fi­car se pergun­tando se existirá mesmo tanta gente (?) com esse tipo de criatividade macabra, você já pode perder umas horas de sono. Volta e meia há uma cena de Hannibal cozinhando ao som de música clássica, mas com isso vocês vão se acostumar fácil. Para ele não parece haver diferença entre preparar um prato com ingredientes comuns adquiridos em sua delicatessen favorita, ou com pedaços de alguém.


Paralela­mente às buscas a esses assassinos (buscas essas nas quais Hannibal colabora com seu conhecimento psiquiátrico), Jack Crawford e seus subordinados nas Ciências do Comportamento lidam há anos com os crimes de um serial killer misterioso conhecido como o "Estripador de Chesapeake" (do nome do es­tuário que banha, entre outros, os estados de Maryland e Virgínia, sua área de atuação). Esse Estripa­dor, vocês adivinharam, é Hannibal em pessoa, que, como a maioria dos serial killers, tem um certo or­gulho de suas realizações, como se fossem algum tipo de obra artística, e ainda mais orgulho de fazer tudo o que faz enquanto passa boa parte do tempo convivendo com o pessoal do FBI, que o respeita, admira e tem suas opiniões em alta conta – ao mesmo tempo em que, sem saber, o caça febrilmente e sem sucesso. Mesmo precisando, por motivos óbvios, abster-se de reclamar o "mérito" de seus assassinatos, Hannibal quer receber reconhecimento por eles, e por esse motivo não fica nada satisfeito quando o Dr. Abel Gideon (outro médico psicopata, interpretado por Eddie Izzard, e interno do mesmo instituto onde Hannibal eventualmente iria parar) reivindica para si os crimes do Estripador de Chesapeake. Isso serve de estopim a uma bizarra batalha de egos entre assassinos, que é um, mas nem de longe o único conflito psicológico insólito que encontramos na série. Alguns desses conflitos são criações originais de Fuller, enquanto outros serão reconhecidos por quem leu os livros de Thomas Harris. Personagens conhecidos aparecem, embora tanto eles quanto suas histórias tenham sofrido transformações para se encaixar no universo recriado para a tela da TV.

Um desses personagens é Mason Verger, apresentado aos leito­res no último livro sobre Hannibal, intitulado apenas com o nome do personagem. Verger é um jovem milionário e inveterado abusador de crianças, que, graças ao poder e influência de sua família, escapou de qualquer pena mais severa, sendo "condenado" apenas a serviços sociais e a fazer terapia – com o Dr. Lecter. Logo fica claro para Hannibal que seu paciente não tem intenção alguma de se corrigir; Mason não apenas não leva a terapia a sério como tenta suborná-lo e, possivelmente, também seduzi-lo (há in­sinuações nesse sentido tanto no livro quanto no filme). Movido por seu já mencionado senso de justiça, Hannibal "cuida" de Mason à sua maneira; não fica cla­ro se o deixa com vida de propósito, mas o riqui­nho fica desfigurado e inválido, o que, para ele, é prova­velmente um casti­go muito pior que acabar no fogão de Lecter. Daí em diante, sua vida só tem um obje­tivo: vingar-se de Hannibal da maneira mais pa­vorosa imaginável. Não vou falar mais de Mason aqui, tanto para não dar spoiler para quem for ver a série, quanto pelo fato de que ainda tenho planos de falar do livro Hannibal, mas podem estar certos de que ele é um dos vilões mais diferentes e terríveis que já vi na literatura de suspense. No filme, Verger era interpretado pelo excelente Gary Oldman, embora fos­se impossível reco­nhecê-lo sob a maquiagem grotesca da cara desfigurada do personagem; na série, o papel é de Michael Pitt, que, a meu ver, captu­rou bem a combinação de maldade e frivolidade que carac­teriza o persona­gem antes do incidente. Já sua irmã e vítima, Margot, que existe no livro e na série, mas não no filme, é interpretada por Katharine Isabelle – e, também ela, enormemente diferente do que era na origem. Fuller chegou a dizer que tinha planos de que a agente Clarice Starling, tornada famosa pela interpretação de Jodie Foster em O Silên­cio dos Inocentes, também aparecesse, mas isso não havia se concretizado até o fim da terceira e última temporada. Também há boatos de uma possível retomada da série, mas, até o momento em que escrevo, não encontrei nenhuma informação concreta a respeito.

Acima de todas as subtramas, está sempre a relação entre Hannibal e Will Graham, uma relação cuja exata natureza nunca conseguimos descobrir. Os dois não apenas se compreendem: na ver­dade, cada um é a única pessoa ca­paz de compreender o outro, o que poderia fazer deles melhores ami­gos, quase almas gêmeas – mas nada tão simples assim acontece. Will ora se apoia totalmente em Han­nibal e pre­cisa desesperadamente dele, ora o odeia ao ponto de desejar sua morte, mesmo sem ter a confirmação das terríveis (e corretas) suspeitas que nutre. Já Hannibal é incapaz tanto de amor quanto de ódio; para ele, Will é uma pessoa digna de sua atenção, o que, pela sua cartilha, é um enorme elogio; o fato de que essa atenção, não raro, assume a forma con­creta de ciladas e tortura psicológica é para ele uma mera consideração secundária. Aqui e ali ao longo da série, e mais intensamente perto do final, há insinuações de que a relação dos dois poderia (caso as circunstâncias não o tornassem impossível) tomar um rumo homossexual; insinuações essas, a meu ver, que não contribuem em nada para a história, que poderia passar muito bem sem elas.

Sei que já fiz alertas demais para um post só, mas há mais um sem o qual não posso terminar: Hannibal não é uma série fácil de assistir, e não só por causa das ima­gens grotescas que volta e meia ocupam a tela. Muitos episódios são "psicológicos", o que significa que envolvem pouca ação de fato e, frequentemente, exibem cenas que não sabemos se são reais ou apenas as alucinações de alguém – em geral, Will Graham. Bem, pelo menos até que imagens claramente aluci­natórias se intro­metam no que até aí tinha aparência de realidade. Em seu mundo psicodélico, no qual vai se embre­nhando cada vez mais à medida em que sua sanidade vai ficando comprometida, Will vê Hannibal sim­bolizado ora por um enorme cervo negro, ora por um ser semelhante ao Deus Chifrudo da mitologia pri­mitiva – meio homem, meio cervo. O porquê da escolha do cervo, um herbívoro inofensivo, para repre­sentar um matador como Hannibal, é questão aberta à interpretação, mas tenho para mim que foi para fugir da obviedade de simbolizá-lo em um lobo ou outro animal predador. Esses episódios mais "men­tais" requerem muita atenção e paciência, e por vezes se tornam, numa palavra, cansativos. Aí vocês po­dem me perguntar: vale a pena? E a respos­ta só pode ser uma: é claro que vale. Entretanto, só recomen­do a série para cabeças fortes e tranquilas, que não achem que narrativa boa é a que aconte­ce em veloci­dade de videoclip e que, por amor a um excelen­te enredo geral, estejam dispostas a encarar alguns mo­mentos indigestos. E principalmente, desenca­nem de ficar ligando o que verão nesta série com o que já conheci­am dos livros e filmes. Aceitem que é uma recriação e mergulhem na história sem outras preocu­pações.

Um comentário prático à guisa de encerramento: cá pra nós, o jeito como Hannibal foi lançado em DVD no Brasil foi uma grande sacana­gem! Primeira temporada, volume 1, e Primeira temporada, volume 2? Pra quê? Quero dizer, pra que, além de obrigar o fã a pagar praticamente o do­bro, já que cada "volume" custa pouco menos do que cus­taria a temporada inteira, se lançada de uma vez só, numa única embalagem? O pior é que isso parece estar se tornando uma prática comum: já vi outras séries que estão sendo lançadas do mesmo jeito. De­pois, com que moral essas com­panhias vão poder reclamar se o público preferir recorrer à pirataria?

Por fim, isto agora os fãs de Arquivo X vão achar interessante: Gillian "Scully" Anderson aparece no pa­pel da Dra. Bedelia Du Mau­rier, a psiquiatra de Hannibal – que, como todo bom psiquia­tra, também tem sua própria psiquiatra. Gillian aparece primeiro de forma esporádica, para, lá pelo iní­cio da tercei­ra tempo­rada, assumir uma importância central na trama.