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quinta-feira, novembro 17, 2022

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro

Guillermo del Toro já foi assunto aqui no blog por várias vezes, por conta de Hellboy, da Trilogia da Escuridão e da série de TV derivada, The Strain, de seu envolvimento com a trilogia cinematográfica O Hobbit… Que eu me lembre, é isso. Existem vários outros de seus trabalhos que admiro pacas, filmes como Cronos (1993), A Espinha do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006), entre outros, que também poderiam virar assunto, e talvez ainda virem. E o cara sempre volta: desta vez, com a série antológica O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro, cuja primeira temporada, com oito episódios, ficou disponível na Netflix agora em outubro.

Os primeiros comentários que ouvi e li, antes de ter contato direto com o material, foram no sentido de que se tratava de uma série bastante macabra e pesada, feita sem aliviar a mão, fosse nos conceitos perturbadores ou nas cenas aflitivas – e esse é um lado que Del Toro, como muitos autores ou realizadores do gênero fantasia, sabidamente possui: basta lembrar de O Labirinto do Fauno, que tem cenas delicadas de magia e encantamento, mas tem também um punhado de criaturas horripilantes e uma cena de um homem sendo assassinado a sangue frio a golpes de garrafa. É fato que, aqui, os episódios são dirigidos por outras pessoas, mas, na qualidade de produtor executivo e criador do conceito da série, coube a Del Toro a escolha dos diretores e, presumivelmente, a supervisão geral, de modo que podemos dizer que seu estilo pessoal perpassa tudo. Ele aparece no início de cada episódio, fazendo um breve comentário enigmático sobre o que veremos a seguir, e apresentando o diretor ou diretora. Por sinal, a julgar pelo rápido levantamento que fiz na internet, são, em sua maioria (mas nem todos), diretores pouco conhecidos, com relativamente pouca coisa em seus currículos, pelo menos enquanto diretores – a australiana Jennifer Kent, por exemplo, que dirigiu O Murmúrio, último episódio desta primeira temporada, teve uma extensa carreira como atriz, mas assina a direção de apenas três filmes até o momento (é verdade que um deles é o muito comentado e elogiado O Babadook, que ainda preciso ver). O importante é notar que Del Toro parece estar apostando em diretores que ainda estão em ascensão, sejam os que ainda não acumularam um grande currículo por serem relativamente jovens, ou os que sempre trabalharam em outras funções no cinema ou TV e estão agora se acostumando com a cadeira da direção.

Assisti a essa primeira temporada num espaço de alguns dias e, por tratar-se de uma série antológica, quer dizer, com cada episódio contando uma história fechada e independente, aplica-se, também aqui, o que sempre digo a respeito de livros de contos: existem altos e baixos e isso é natural – mais que natural, é inevitável. A impressão geral foi muito favorável, e torço para que venham mais temporadas num futuro relativamente próximo. Também à semelhança do que tenho feito com livros de contos, não pretendo comentar cada episódio em detalhes; falarei daqueles que, como espectador, eu tiver achado notáveis e/ou que apresentem alguma… hã… curiosidade.

Muitos fãs de Guillermo del Toro devem ter pensado o mesmo que eu pensei sobre esta série: que faltou ter ao menos um episódio dirigido por ele. Como se fosse para compensar em parte isso, há dois episódios baseados em contos de sua autoria. O primeiro, Lote 36, é dirigido por outro Guillermo, o Navarro, também mexicano e seu colaborador antigo, que trabalhou como diretor de fotografia em vários de seus filmes. Foi inevitável pensar em Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, mas só os títulos é que são parecidos. A história se ambienta em janeiro de 1991 – uma datação tão precisa é possível porque o episódio começa com um personagem vendo na TV o pronunciamento do presidente George Bush (pai) logo após o primeiro ataque aéreo americano contra Bagdá, que deu início à fase "quente" da Guerra do Golfo, que já se arrastava desde meados do ano anterior. O protagonista (que não é o personagem da primeira cena) é Nick Appleton, um veterano do Vietnã que está devendo a um agiota, o qual lhe tem feito ameaças regularmente. Para tentar conseguir o dinheiro que pode ser a diferença entre a vida e a morte, Nick recorre a diversos expedientes, e um deles requer uma breve explicação… Nos Estados Unidos são comuns os self storages, lugares onde as pessoas podem alugar depósitos individuais, numerados, para pôr a tralha que não têm mais onde guardar em casa; se o locatário de um depósito morre sem herdeiros, desaparece ou deixa de pagar o aluguel durante um determinado número de meses, a administração do storage procede a uma espécie de "despejo": o conteúdo do depósito é levado a leilão, e o comprador tem um prazo para retirar tudo, a fim de que o espaço possa ser alugado novamente. Um "lote", então, é a totalidade do conteúdo de um desses depósitos abandonados. O detalhe interessante, por assim dizer, é que esses leilões são uma loteria: os participantes fazem seus lances sem saber o que vão encontrar quando abrirem o lugar. Pode estar cheio de objetos raros que renderão uma pequena fortuna num antiquário, ou conter apenas pilhas de jornais velhos, mobília quebrada, roupas roídas por traças, e todo tipo de quinquilharia sem valor que pessoas idosas (geralmente) guardaram ali porque seus familiares estavam ameaçando jogá-las fora. Nick, então, arrisca o dinheiro que tem comprando alguns desses lotes, na esperança de encontrar algo que dê lucro. O mais recente é o de número 36, que pertenceu ao mesmo "velhote esquisito" desde que o storage começou a funcionar, logo após o fim da Segunda Guerra, e agora o velhote acaba de morrer. Em meio à costumeira montanha de inutilidades empoeiradas, Nick descobre um móvel valioso e curioso, uma mesa feita especialmente para a invocação de espíritos, e, dentro de suas gavetas, três livros muito raros e sinistros. O ex-soldado é do tipo cético – e mais que isso, um cético chato: quando um especialista em ocultismo, que ele procura em busca de uma avaliação dos itens, tenta lhe explicar sobre os mistérios e histórias sombrias envolvendo aqueles livros, ele interrompe impaciente, pois a única coisa que lhe interessa é saber quantos dólares pode conseguir pelo conjunto. Tudo o que posso dizer sem revelar mais do que devo é que ele vai ver-se numa situação na qual seu ceticismo não lhe servirá de nada. Nick é o tipo de protagonista do qual é importante que o espectador não goste, e o roteiro se encarrega disso: além de sua rabugice, ele é preconceituoso, mostrando uma evidente má vontade para com negros, latinos e, provavelmente, para com qualquer estrangeiro – embora eu lhe dê razão num ponto, o de não gostar do fato de que aparentemente só determinados tipos de pessoa é que têm o direito de exigir respeito e de se indignar caso não o recebam: negros são protegidos pela lei e pelo senso comum contra ofensas de cunho racial, mas, por outro lado, eles próprios são livres para dirigir ofensas (inclusive de cunho racial) contra brancos, à vontade, sem que nada aconteça; já era assim em 1991, e hoje muito mais. O mesmo se aplica aos gays em relação aos héteros, às mulheres em relação aos homens e por aí afora: basta apresentar o seu crachá de membro de qualquer "minoria oprimida", que você tem carta branca para fazer e dizer o que quiser, incluindo as coisas mais escrotas e absurdas, e ninguém pode protestar, sob pena de ser rotulado de ista e fóbico. Desculpem-me os politicamente corretos, mas isso não é certo; a verdade não deixa de ser verdade só porque quem está dizendo-a é um sujeito desagradável como Nick Appleton. Mas esse não é o ponto aqui: Lote 36 é um episódio forte e envolvente, um excelente pontapé inicial para a série, além de nos deixar com vontade de ler mais dos trabalhos de Del Toro no campo da literatura.

O segundo episódio, Ratos de Cemitério, é baseado num conto de alguém chamado Henry Kuttner, nome que não me é estranho e que pretendo pesquisar. O episódio é várias coisas, mas, antes de mais nada, é claustrofóbico, motivo pelo qual minha namorada, Cintia, achou-o uma experiência bastante desagradável – e, pelo que ela me contou depois, foi ainda pior para uma amiga, que ficou tão incomodada que nem foi até o final: "dropou" o episódio e a série. E eu entendo: há muitas maneiras de abordar o terror, muitas "pontas por onde pegá-lo" (acho que a expressão é de Stephen King, mas não tenho certeza), e a claustrofobia é uma delas, usada ao longo da história do gênero por muitos autores e diretores. Aqui especificamente, a maior parte da ação transcorre debaixo da terra, dentro de túmulos ou em túneis tão apertados que mal dá para uma pessoa rastejar por eles, e, para algumas pessoas, ambientes apertados, mesmo vistos numa simples tela, podem ser desesperadores. O ano é 1919 (assim consta na lápide de uma jovem sepultada poucos dias antes) e o local é a cidade de Salém, Massachusetts, palco dos famosos julgamentos de bruxaria no século XVII. O protagonista é um homem de nome Masson, que, assim como Nick Appleton, está gravemente endividado. Masson vive de perambular pelos cemitérios saqueando sepulturas, "aliviando" os mortos de quaisquer objetos de valor com os quais eles tenham sido enterrados, mas sua atividade não lhe tem rendido muito ultimamente, e seu credor está pressionando. É então que ele fica sabendo da morte de um figurão da sociedade, um comerciante muito rico e influente, cuja viúva faz questão de enterrar com ele uma de suas posses mais valiosas: um sabre cerimonial que o falecido ganhou de presente do próprio rei da Inglaterra. É claro que Masson imediatamente coloca o túmulo do comerciante no topo de sua lista de prioridades, mas, embora ele esteja acostumado a brigar com ratos em suas andanças noturnas em cemitérios, nem imagina o que vai encontrar desta vez. O episódio é mesmo aflitivo, mas também tem toques irresistíveis de humor (geralmente negro). O ator David Hewlett está magistral no papel de Masson. Vincenzo Natali (de Cubo e Monstro do Pântano) dirige.

Guillermo del Toro sempre foi um grande fã de H. P. Lovecraft. Um de seus sonhos já de muitos anos, e bem conhecido por quem acompanha sua carreira, é dirigir um grandioso filme adaptando um dos contos mais ambiciosos do escritor, Nas Montanhas da Loucura, mas, pelo que li tempos atrás, ele teria brigado feio com os produtores em potencial porque eles queriam meter uma trama romântica na história (!). De vez em quando circulam rumores de que o projeto está em vias de finalmente engrenar, mas, até o momento em que escrevo, nenhum boato sobre o qual eu tenha lido me pareceu ser mais que isso – boato. Enquanto Nas Montanhas da Loucura não acontece, Del Toro nos traz em seu Gabinete as adaptações de duas outras histórias de Lovecraft, estas de porte mais modesto, mas nem por isso menos cultuadas, e muito merecidamente, pelos fãs do autor: O Modelo de Pickman e Os Sonhos na Casa da Bruxa.

O primeiro, dirigido por Keith Thomas e estrelado por Ben Barnes (de O Retrato de Dorian Gray e Westworld), é apenas frouxamente inspirado no texto original, e eu entendo o motivo: o conto é muito discursivo, o que não funcionaria bem na tela. Barnes interpreta o protagonista Thurber, que no conto era também o narrador, e que no episódio ganhou um primeiro nome, William. Nesta versão, Thurber, ainda rapazote, é um dos mais destacados estudantes de arte na Universidade Miskatonic (fundada em 1690 e cuja simples menção deixa qualquer fã de Lovecraft de orelha em pé) quando sua turma recebe um novo aluno, um tal Richard Upton Pickman, um sujeito mais velho, já nos seus 30 ou quase isso, e de passado misterioso. Thurber imediatamente sente uma curiosidade intensa a respeito do novo colega, que demonstra já ser um artista de grandes capacidades, dotado de um talento natural aperfeiçoado por um número muito maior de anos de prática do que qualquer um de seus colegas pós-adolescentes pode ter tido – mas com um detalhe: seja qual for o motivo artístico proposto, Pickman transforma-o em imagens assustadoras, repletas de sugestões de elementos do oculto, da feitiçaria e do além-túmulo, e sempre com uma habilidade prodigiosa. No início é Thurber quem repetidamente procura a companhia de Pickman (que claramente preferiria ser deixado só), fascinado que está tanto por sua arte macabra quanto por sua personalidade misteriosa – mas então a narrativa dá um salto de vários anos, e encontramos um William Thurber já maduro, casado e com um filho, além de membro conceituado da comunidade dos artistas em Massachussetts; nesse ínterim Richard Pickman reaparece, depois de uma longa ausência. Agora é Pickman quem parece ansioso por reatar a antiga amizade, declarando que o julgamento crítico de Thurber é valioso para ele, enquanto Thurber, tomado de desagradáveis suspeitas a respeito de qual pode ser a verdadeira origem da arte de Pickman, prefere não ter ligações com o pintor, e, principalmente, não gosta da ideia de vê-lo rondando sua família… Não irei mais adiante para evitar spoilers, o que é ainda mais importante aqui porque, como a adaptação é muito livre, o episódio reserva surpresas inclusive para quem leu a história, e longe de mim querer estragá-las. Pode-se discutir (e seria uma discussão deveras interessante) se a versão de O Modelo de Pickman trazida por Del Toro e Keith Thomas ainda é Lovecraft, mas, mesmo que não seja, é inegável que o roteirista Lee Patterson soube apropriar-se do legendarium do autor e com ele produzir uma história digna de respeito, que consegue manter-nos durante uma hora inteira com os olhos pregados na tela. Barnes não surpreende – considero-o um ator correto, mas talhado para papéis de galã e que dificilmente nos apresentará algo muito diferente disso; por outro lado, Crispin Glover, no papel de Richard Pickman, é um pesadelo à parte (no sentido elogioso!), com uma atuação ao mesmo tempo feroz e irônica e um olhar que é simultaneamente o de um visionário que enxerga outros mundos e o de um maníaco.

Acho necessário fazer um parágrafo separado apenas para comentar o magnífico trabalho de arte que vemos em O Modelo de Pickman. É atordoante pensar na quantidade de horas de trabalho investidas por um artista (aliás, provavelmente vários) para criar pinturas que a câmera iria mostrar apenas de relance (e confesso que apertei o pause várias vezes para tentar analisar mais detidamente as imagens). Seria interessante saber se todas essas pinturas foram feitas especialmente para o episódio ou se algumas delas eram trabalhos preexistentes, usados com permissão dos autores – pois, como já comentei em outro lugar, muitos artistas plásticos fãs de Lovecraft já fizeram suas tentativas de materializar os terríveis quadros de Pickman a partir das descrições fornecidas no texto. As pinturas de Pickman em si eram a parte que mais me intrigava nesse conto, e continuam a sê-lo nesta adaptação. Assumindo todos os riscos (tal como o de enlouquecer), eu bem que gostaria de fazer uma visitinha ao atelier dele.

A outra adaptação de um conto de Lovecraft presente nesta temporada é Os Sonhos na Casa da Bruxa, com direção de Catherine Hardwicke (Crepúsculo) e tendo como ator principal Rupert Grint (o Rony Weasley dos filmes de Harry Potter). Numa comparação com O Modelo de Pickman, Os Sonhos na Casa da Bruxa até tem um pouquinho mais de correlação com o conto que lhe deu origem – e, apesar disso, entrega um resultado menos bom. No conto, o protagonista Walter Gilman é um estudante de graduação da Universidade Miskatonic que, curiosamente, mistura sua exaustiva dedicação a alguns dos campos mais complexos da alta matemática com um interesse por folclore e pelas histórias dos julgamentos de bruxaria – e acaba fundindo os dois campos de conhecimento. Gilman acredita, ou, melhor dizendo, tem certeza, com base nas conclusões teóricas da matemática, de que a existência de outras dimensões é um fato, ao qual só falta a prova material. Ele acredita também (e isso sim é uma crença) que as antigas bruxas conheciam o segredo de como viajar entre as dimensões; as velhas histórias de voos noturnos em vassouras ou no dorso de animais mágicos poderiam não ser mais que uma representação simbólica disso. Dos registros que leu sobre a época dos julgamentos, chamou-lhe especial atenção a história de uma tal Keziah Mason, que teria fugido da Cadeia de Salém em 1692. A casa onde morou essa célebre bruxa ainda existe, e Gilman consegue alugar o exato quarto onde ela viveu e, presumivelmente, praticou seus feitiços. As paredes da decrépita habitação estão rabiscadas com símbolos e diagramas que todos sempre supuseram tratar-se de algum tipo de escrita demoníaca, mas que o estudante reconhece como sendo matemática avançadíssima, um tipo de conhecimento que deveria ser impossível para uma velha comum e provavelmente analfabeta do século XVII. E, ao dormir naquele quarto, Gilman passa a ter sonhos cada vez mais perturbadores envolvendo Keziah e seu suposto "familiar", uma criatura semelhante a um grande rato com cara humana (um "familiar", ao que se acreditava, era um pequeno demônio em forma animal, ou semi-animal, que o diabo dava de presente a cada bruxa por ocasião de sua iniciação, e que prestava serviços a ela). Para Lovecraft, a obsessão intelectual de Gilman, sua determinação de provar perante a ciência que outras dimensões existem e que viajar entre elas é possível, era motivação válida e plenamente suficiente para seu protagonista; nesta adaptação, o roteirista deve ter achado que um objetivo tão abstrato e impessoal quanto esse não atrairia a empatia do público para o personagem, e assim, inventou para ele uma história trágica: Gilman, na infância, tinha uma irmã gêmea a quem era muito ligado, e que morreu em tenra idade, com o detalhe de que o pequeno Walter a viu ser arrastada, em sua forma espiritual (ou fantasmal, se quiserem) para uma espécie de limbo que ficaria em outra dimensão, enquanto seu corpo físico ficava para trás. Daí em diante, o rapaz ficou obcecado por parapsicologia, por fenômenos mediúnicos e pela possibilidade da comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, vindo inclusive a fazer parte de uma sociedade espiritualista. É por esse caminho que ele acaba indo parar no velho quarto de Keziah Mason. Na minha opinião, essa "humanização" da trama pode funcionar para os espectadores que nunca leram Lovecraft, mas os que conhecem o conto vão achar o novo enredo uma coisa prosaica e novelesca, que apaga muito da sensação de estranheza extraterrena que conferia à história original a maior parte de seu interesse; além disso, a novidade de fazer com que as viagens de Gilman entre as dimensões sejam possibilitadas por uma espécie de poção foi, a meu ver, um recurso bastante ordinário. Visualmente, achei a representação de Keziah exagerada: poderia ficar mais assustadora se a apresentassem simplesmente como uma velha de olhar maligno em trajes de época, em vez de um espectro hollywoodiano padrão, totalmente criado em CG, que poderia ter saído de algum filme da franquia Invocação do Mal ou de qualquer outro "terrorzão de shopping". Por outro lado, Brown Jenkin, o familiar da bruxa, ficou perfeito – adequadamente macabro.

A Autópsia, dirigido por David Prior, aposta no já tantas vezes bem-sucedido crossover entre ficção científica e terror, propondo uma versão ainda mais assustadora para o clássico Invasores de Corpos (1978). O veterano ator F. Murray Abraham (de quem eu sempre me lembro como o compositor Antonio Salieri, o rival de Mozart em Amadeus) interpreta o Dr. Carl Winters, um igualmente veterano médico legista que atende ao chamado de um velho amigo, o xerife Nate Craven, delegado de uma outrora tranquila cidadezinha mineradora que, há algum tempo, vem sendo assolada por uma onda de desaparecimentos; agora aconteceu um acidente inexplicável na mina que emprega a maior parte da população e que é a base da economia da cidade, tirando a vida de vários trabalhadores. Winters confidencia ao amigo que está sofrendo de um câncer terminal e tem poucos meses de vida – e faz isso pouco antes de entrar na gelada e tétrica sala onde realizará sozinho a autópsia dos mineiros mortos e fará descobertas horrendas. O episódio é muito bom, tenso do início ao fim e com um conceito de arrepiar os cabelos. Só estejam avisados de que, como ele trata em grande parte de autópsias, vocês poderão achar algumas cenas um tanto difíceis de assistir. Eu achei.

Como tantas vezes, o melhor de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro ficou para o final: é justamente O Murmúrio (The Murmuring), dirigido pela já citada Jennifer Kent e tendo como principais atores Essie Davis (também australiana e que atuou em O Babadook) e Andrew Lincoln (da série The Walking Dead). E, assim como o primeiro, este último episódio da temporada é baseado num conto de Del Toro. O primeiro comentário que me veio à cabeça ao terminar de assisti-lo foi que nunca devemos achar que determinado tema já está batido demais para render uma boa história de terror, seja na literatura, cinema ou TV: parece-me que o velho tema da casa assombrada, contanto que seja explorado com competência, nunca deixará de causar calafrios. A história se passa nos anos 50 e os protagonistas são Nancy e Edgar Bradley, um casal de ornitólogos que recentemente passou por uma tragédia pessoal, a perda da filha ainda bebê. Fazendo da dedicação ao trabalho sua terapia, os dois partem para uma pesquisa de campo a fim de estudar os hábitos dos pilritos (pássaros semiaquáticos e migratórios, espécie comum na Europa), o que exigirá que passem um longo tempo numa desabitada região de charcos – o local não é nomeado, mas parece ficar em alguma parte das Ilhas Britânicas. Lá, o casal se aloja numa grande e antiga casa, completamente isolada, parecendo ser a única na pequena ilha onde fica. Está desabitada há 30 anos, mas os retratos nas paredes sugerem que já foi a moradia de uma família perfeitamente normal e feliz – um casal e seu filho pequeno. Nancy se intriga imaginando por que eles teriam partido deixando para trás seus móveis e todos os objetos pessoais, incluindo até mesmo um grande número de cartas, mas seu trabalho com os pilritos ocupa demais seu tempo e energia para que ela possa pensar muito a respeito… Até começar a ouvir e ver certas coisas na casa. Coloquei nessa ordem de propósito: primeiro ela ouve, em meio às horas e horas de gravações dos sons dos pássaros, uma voz infantil sussurrando que está com frio. É indispensável observar que, de acordo com as explicações da própria Nancy, murmuring, em inglês, pode ter dois sentidos: um, bem conhecido e de uso comum, é o de falar baixo, sussurrar; o outro se refere às formações que bandos de pássaros em voo podem assumir, às vezes sugerindo certas figuras (eu nunca tinha ouvido falar nessa segunda acepção). Mais tarde, ela passa a ver o menino andando pela casa às escuras durante a madrugada, às vezes encharcado, com a roupa escorrendo água… É apavorante de verdade, e nisso há muito mérito da diretora, cuja condução é ora sensível, ora implacável. Outra coisa que o espectador nota é que o fato de apenas Nancy ter consciência dessa presença não pode ser mero acaso; Edgar declara repetidamente que nunca viu nem ouviu nada. Isso pode significar, de modo implícito, que, embora tenha sofrido (e ainda sofra) tanto quanto a esposa com a morte da filhinha, ele já conseguiu "ir em frente"; Nancy ainda não. A incapacidade dela de falar sobre sua perda, e o fato – observado pelo marido – de que não verte nenhuma lágrima, indicam que toda a sua dor está trancada dentro dela, atormentando-a dia a dia. Talvez seja essa dor recolhida o que a coloca em sintonia com a dor daqueles que moraram (e aparentemente ainda moram) naquela casa. O Murmúrio chega muito perto da perfeição, conseguindo em uma hora o que muitos longas-metragens de terror não conseguem no dobro desse tempo, e reforça minha vontade de conhecer os filmes anteriores de Jennifer Kent, bem como minha expectativa do que mais ela poderá nos trazer no futuro.

Seguindo minha resolução de só entrar em detalhes sobre um episódio no caso de ele ter chamado muito a minha atenção, percebo que acabei falando (mais longamente ou menos) sobre seis dos oito; houve dois episódios dos quais eu não gostei, e por esses passarei muito rapidamente. Um deles foi o terceiro, Por Fora, que, embora abordando temas importantes (até que ponto uma pessoa é capaz de ir em busca de aceitação social e o poder da TV para influenciar comportamentos e criar necessidades), simplesmente não me "pegou"; não consegui construir uma ligação com a protagonista e achei o desenrolar tedioso, de modo que, mesmo que o episódio tenha a mesma duração que a maioria dos outros, com cerca de uma hora, me pareceu muito mais longo que isso. O outro foi o penúltimo, A Inspeção, cujo maior mérito, a meu ver, é o de conseguir imergir com perfeição o espectador na atmosfera dos anos 70 (o ano citado é 1979), por meio do visual dos personagens e da trilha e efeitos sonoros, evocando aquele mundo psicodélico e com tendência ao exagero estético; a fotografia também parece ter sido planejada para remeter a filmes daquela década ou do comecinho da seguinte, como Alien e O Enigma de Outro Mundo – e vamos descobrir que todo o trabalho investido em criar essa semelhança foi com bons motivos, motivos que têm a ver com o roteiro. Infelizmente, esse roteiro nunca chega a dizer a que veio: a maior parte do episódio é preenchida por longas e tediosas conversas entre os personagens, e, quando o componente fantástico é finalmente apresentado, mostra-se genérico, gratuito e jogado de qualquer maneira. Valeu a curiosidade de rever o agora idoso Peter Weller, ator que protagonizou Robocop, um dos melhores filmes de ficção científica de ação da década de 80.

Enfim, Guillermo del Toro fez um belo trabalho criando e produzindo esta série, que, embora irregular, certamente recompensa bem o tempo investido para assisti-la, para os amantes do terror em geral e para os fãs de Del Toro em particular. Pelo que vi na internet, a receptividade do público tem sido boa, o que nos permite cultivar a esperança de que essa primeira temporada não seja a última. Seria excelente se, nas próximas, fossem trazidos contos de outros autores notáveis de terror, fossem antigos ou contemporâneos – Arthur Machen, Edgar Allan Poe, Stephen King, Clive Barker… Mas torço para que, se isso acontecer, as adaptações sejam mais fiéis que as de Lovecraft que vimos. Seria bom, ainda, que Del Toro assumisse a direção em alguns episódios. É esperar para ver.

sexta-feira, abril 27, 2018

Os Melhores Contos de H. P. Lovecraft

Este livraço (741 páginas) publicado pela editora Hedra e (pelo menos de acordo com o selo em sua capa) vendido com exclusividade pela Livraria Cultura, é uma boa opção para quem já sabe um pouco sobre H. P. Lovecraft, mas ainda não pegou muita familiaridade com a obra do autor, já que reúne uma quantidade bem generosa de material que, além disso, é bastante variado, permitindo-nos o contato com diferentes facetas do recluso escritor de Providence. Eu já conhecia algumas das histórias: O Chamado de Cthulhu e A Cor que Caiu do Espaço estavam num pequeno livro da Campanário que comentei há alguns anos (na verdade, as duas histórias eram o livro todo), e Nas Montanhas da Loucura era a história-título de um volume da Iluminuras que também li, mas que não chegou a ser tema de um post no blog. Além disso, também inclui Ar Frio, que li em algum canto da internet. Creio que isso é tudo. Ou seja, a maior parte do livro (e é uma "maior parte" realmente grande) consistia de material por mim desconhecido. Oba!

E, como um viajante explorando território incógnito (imagem que tem tudo a ver com pelo menos uma história), tive várias surpresas, uma delas o fato de que, lá pelas tantas, percebi, consultando o sumário, que já tinha lido mais de metade das histórias – mas, ao ver por onde andava o meu marcador de página, constatei que ainda não tinha percorrido sequer uma terça parte do livro. Isso significa que as histórias mais curtas estão no início, e, à medida que vamos progredindo, encontramos outras que seriam praticamente romances, se o número de palavras fosse um critério absoluto para distinguir conto de romance ou novela (não é, mas não vou entrar na seara da teoria literária agora). A seleção dos textos foi extraordinariamente feliz em deixar evidente para o leitor que as histórias de Lovecraft são soltas, pero no mucho: há lugares, personagens e criaturas que são recorrentes, e tudo está interligado, ora de maneira mais nítida, ora mais tênue. O primeiro conto, Dagon, já é inequivocamente uma história de terror, tendo como elemento central uma monstruosidade que emerge das profundezas do oceano, e por isso o nome, que faz referência ao deus-peixe dos filisteus e cananeus. Essa história demonstra uma capacidade misteriosa que Lovecraft tinha e que lhe foi muito útil, considerando do que trata boa parte de sua obra: a descrição da aparência da criatura é mínima, permitindo-nos imaginá-la da maneira que quisermos, desde que seja com as características de um ser aquático – e, mesmo assim, o impacto é poderoso.

Um detalhe importante: a ordem em que as histórias aparecem nesta coletânea não é aleatória, e sim cronológica. Dagon é de 1917 e, como vimos, já inaugura o livro metendo os dois pés na porta no quesito terror, o que torna ainda mais surpreendente a experiência do leitor ao passar para a história seguinte, O Navio Branco, de 1919, uma narrativa de puro sonho encantado na qual o protagonista faz uma viagem maravilhosa por um mundo onírico (palavra essa muito importante dentro da obra de Lovecraft) cheio de paisagens deslumbrantes – mas também é nesse conto que lemos pela primeira vez vários nomes que voltarão a aparecer em histórias posteriores, estas dotadas de uma vibe bem diferente. O mundo de sonhos por onde perambulam os personagens de Lovecraft guarda infinitas maravilhas e infinitos horrores, e o detalhe mais inusitado e interessante é que ele não é caótico nem (aparentemente) sem sentido como os sonhos comuns de sonhadores comuns: é um mundo com sua própria História, geografia, nações e lendas. Somos conduzidos a maiores explorações desse mundo em contos como Os Gatos de Ulthar, Celephaïs (ambas de 1920), Os Outros Deuses (1921), e a coisa chega ao auge com a longa e épica A Busca Onírica por Kadath (1927), cujo herói é Randolph Carter, o mesmo de O Depoimento de Randolph Carter, história de 1919 que não está neste livro e que ainda não conheço (a curiosidade está grande!), empenhado numa odisseia pelo mundo dos sonhos em busca da legendária Kadath, a cidade dos deuses, onde espera obter um conhecimento que é inacessível aos mortais comuns. Carter é um sonhador experiente, capaz de deliberadamente reter a memória de seus sonhos e (pelo menos eu entendi assim) de retornar a lugares já visitados desse universo paralelo, o que permite que dê continuidade a suas explorações sem precisar recomeçar do zero a cada vez, embora, em pelo menos um momento, ele relute em acordar por medo de esquecer o que já havia aprendido e alcançado. É difícil acreditar que essa longa narrativa corresponda a um único sonho ininterrupto, mas é verdade que o tempo do universo onírico pode ser diferente do tempo do mundo desperto. O conceito e o enredo são fascinantes, mas, não vou mentir, por vezes a narrativa se torna maçante devido à repetitividade e ao excesso de detalhes. Fiquei com a sensação de que sua extensão (mais de cem páginas nesta edição) é excessiva, e de que seria possível narrar bem a história em pouco mais da metade disso.

A Busca Onírica por Kadath, como vim a saber mediante uma rápida pesquisa, integra um ciclo à parte dentro da obra de Lovecraft, o Ciclo dos Sonhos, que também inclui as outras histórias que citei acima (exceto Dagon) e tende mais para a fantasia que para o terror propriamente dito como o dos Mitos de Cthulhu – mas, quando digo que é "um ciclo à parte", isso não significa que os dois ciclos não se interpenetrem, nem tampouco que A Busca Onírica… não tenha lá os seus momentos de causar calafrios: é nela que encontramos a descrição de alguns seres medonhos, talvez menos terríveis que os dos Mitos, mas que, mesmo assim, o leitor não esquecerá facilmente. São dignos de nota os gigantes conhecidos como gugs, que, pela participação que têm na história, me fizeram pensar nos ciclopes da mitologia grega – o que faz sentido, já que a aventura de Randolph Carter lembra tanto a Odisseia. Porém, como seria de se esperar em se tratando de Lovecraft, os gugs são bem mais assustadores que os ciclopes: têm sete metros de altura, dois antebraços em cada braço, o que lhes dá um total de quatro mãos, e uma horrenda bocarra vertical que se abre ao longo de toda a altura da cabeça. Há também os ghasts, venenosos, dotados de cascos, e cujas caras são uma paródia grotesca da figura humana, e, com destaque, os ghouls – que, diferentemente das duas espécies anteriores, não são invenção de Lovecraft, e sim criaturas conhecidas no folclore anglo-saxão, um tipo de morto-vivo, por vezes com uma aparência vagamente canina, que frequenta cemitérios para se alimentar dos corpos. Enfim, mesmo com seus defeitos, A Busca Onírica… é uma história notável, e, ao menos na minha avaliação, a "joia da coroa" do Ciclo dos Sonhos, assim como O Chamado de Cthulhu é a dos Mitos.

Falar nos ghouls me leva de volta a um conto anterior, O Modelo de Pickman (1926), que é praticamente perfeito como história de terror! O personagem-narrador, um certo Thurber, está contando a um amigo de nome Eliot o pouco que sabe a respeito do misterioso desaparecimento do pintor Richard Upton Pickman, e a conversa vai enveredando para as excentricidades do sujeito. Thurber mostra-se um admirador extremado do gênio de Pickman, um artista de enorme talento cujo interesse voltava-se quase exclusivamente para o campo do oculto e do macabro. O pintor mantinha um estúdio secreto num imóvel que alugava sob nome falso num dos bairros mais sórdidos de Boston, e o narrador, certa vez, teve acesso a esse lugar, onde viu obras tão pavorosas que teriam feito os trabalhos que Pickman chegou a expor (e que já chocavam a muitos) parecerem desenhos de uma criança talentosa. O quadro mais famoso do artista chama-se justamente Ghoul se Alimentando, e mais de um pintor do mundo real, fã de Lovecraft, já tentou materializá-lo com base nas vagas informações fornecidas no conto – escolhi uma das versões para ilustrar este post, mas existem várias (façam uma busca por imagens no Google usando as palavras-chave Lovecraft ghoul feeding, ou Pickman ghoul feeding, e respirem fundo antes de olhar os resultados). Duas questões servem de motor à história, a primeira delas óbvia: que fim levou Pickman? E a segunda é ainda mais inquietante: por mais genial, ou perturbado, ou as duas coisas, que aquele homem fosse, seria possível que a inspiração para pintar tantos e tamanhos horrores viesse unicamente de sua própria imaginação? O final é magistral, mas respostas completas para essas perguntas, o leitor só encontrará em A Busca Onírica por Kadath.

E o que dizer do pavor sufocante e envolvente que preenche praticamente cada linha de O Horror de Dunwich? Muitos dos contos de Lovecraft têm partes que exigem paciência, geralmente por causa de seu costume de inserir verdadeiras palestras nas histórias; pelo pouco que já li de outros escritores do mesmo gênero e da mesma época, isso parecia ser de praxe entre esses autores, e, no caso de Lovecraft, a paciência investida é quase sempre muito bem recompensada com trechos arrepiantes… Só que, em O Horror de Dunwich, esse investimento é desnecessário, pois a história nos captura desde as primeiras linhas, e não porque não haja "palestra": há um longo trecho introdutório que descreve a região rural da Nova Inglaterra onde o caso a ser narrado teria acontecido, mas é tudo tão "orgânico" que já vamos entrando no clima desde o início. O vilarejo conhecido como Dunwich e seus arredores já tinham uma fama tenebrosa antes desse caso ocorrer; isso vinha desde o tempo dos primeiros colonizadores, talvez desde o tempo dos índios, e os terríveis eventos que Lovecraft vai contar demonstram que essa fama tinha lá suas razões. Uma das pequenas propriedades ao redor de Dunwich pertence a um sujeito idoso conhecido apenas como o "Velho Whateley", que, na juventude, pelo que se comentava na região, andou metido com feitiçaria; como a gente do interior tem uma memória sabidamente longa para esse tipo de coisa, o velho homem ainda tem uma reputação sinistra, tanto mais que agora parece estar meio louco, provavelmente menos em razão da senilidade que das coisas que viu e fez ao longo da vida. Como muitas pessoas do meio rural, Whateley teve pouca instrução, mas o suficiente para que seja capaz de ler, e sua casa está cheia de estranhos livros, que sua única filha, Lavinia, parece ter estudado também. Como se não bastasse ser filha do Velho Whateley, ela tem a pouca sorte de ser albina e possuir certas deformidades não especificadas; tudo isso junto faz com que a maior parte da população ao redor a veja com desconfiança e até com certa repulsa. Inesperadamente, já aos 35 anos de idade, Lavinia, que nunca se casou ou teve qualquer companheiro conhecido, tem um filho, que recebe o nome de Wilbur, e sobre cuja paternidade nada se sabe. O garoto se desenvolve com uma rapidez espantosa, ao ponto de, aos dez anos, já parecer um homem feito, invulgarmente grande e robusto, apresentando, inclusive, barba. Bem diferente da mãe albina, tem a pele trigueira, cabelo negro e uma fisionomia que "lembra a de um bode". Sua inteligência progride com a mesma rapidez que seu crescimento físico, e, instruído pelo avô usando sua estranha coleção de livros, ele se inicia nos estudos ocultos, chegando a uma desconcertante combinação de semianalfabetismo e erudição. Wilbur faz contatos com bibliotecas e colecionadores particulares de diferentes lugares em busca de outros livros; pouco antes de morrer, o Velho Whateley orienta o neto a obter uma cópia completa do funesto Necronomicon (ei-lo de novo), do qual ele só possui fragmentos… Direi, por último, que, durante os últimos anos de vida do velho, ele e Wilbur trabalharam ativamente reformando uma parte da enorme e velha casa de fazenda onde moravam, transformando-a, ao que parece, numa espécie de viveiro, e que continuamente compravam cabeças de gado, sem que seu pequeno rebanho jamais parecesse aumentar em número… Isso já faz o leitor começar a ligar os pontos, e a sequência da história revela o horrendo significado de todas essas coisas, além da verdadeira natureza e filiação do jovem Wilbur. Aqui Lovecraft empregou no mais alto grau sua estupenda capacidade de criar uma atmosfera de medo – medo do desconhecido, que, como ele mesmo dizia com tanta frequência e tanto acerto, é o tipo mais forte e mais antigo de medo. E, diferente do que acontece em Dagon e outras histórias, aqui os horrores são descritos em pormenores, contribuindo bastante para a capacidade do texto de amedrontar, ainda que a história não dependa disso para conseguir esse efeito. A meu ver, o único senão de O Horror de Dunwich é a conclusão um tanto rápida e "fácil", que fica aquém das expectativas que o restante do conto nos leva a ter.

Outro clássico lovecraftiano a marcar presença nesta coletânea é O Caso de Charles Dexter Ward. A história começa no meio, quando o rapaz cujo nome é citado no título foge (na verdade, desaparece) de um sanatório de maneira inexplicável; depois de nos contar isso, o narrador fornece informações sobre o paciente e seus antecedentes. Ward, um jovem de boa família da cidade de Providence, no estado de Rhode Island (não por acaso, a cidade onde Lovecraft nasceu e viveu a maior parte da vida) era, desde a infância, fascinado por coisas antigas tais como objetos de arte e arquitetura, e, como seria de se esperar de alguém com tais gostos, também tinha um forte interesse por estudos relacionados ao passado, como História e genealogia. Não parece haver nada de anormal, até que, numa de suas pesquisas, ele descobre ser tetraneto de um misterioso personagem do século XVIII, um tal Joseph Curwen, um rico comerciante – mas cujos verdadeiros interesses na vida eram a alquimia e o ocultismo. Consta que Curwen teria se estabelecido em Providence ainda em fins do século XVII, tendo saído de Salem, Massachusetts, onde pouco antes tivera lugar o famoso episódio dos julgamentos de bruxaria (estaria ele fugindo disso?), e já então era um homem maduro, mas consta também que continuava vivo, atuante e aparentando uma saudável meia-idade em plena década de 1760, quando já deveria ter mais de cem anos. Suas atividades misteriosas e sinistras foram alimentando um sentimento cada vez maior de medo e repulsa entre a população de Providence, até a coisa chegar ao ponto de um grupo de cidadãos decidirem se armar e, por conta própria, invadir a propriedade do "feiticeiro", onde descobriram tais horrores, que nenhum deles jamais pôde ser persuadido a falar a respeito, nem mesmo anos mais tarde. O nome de Curwen passou a inspirar tal ojeriza, que tentou-se por todas as formas apagá-lo da existência, destruindo todos os registros a respeito dele – o que cria enormes dificuldades para o jovem Ward, que fica obcecado por esse ancestral maldito e passa a dedicar todos os seus esforços a descobrir tudo o que puder sobre ele. É claro que, como sempre acontece em casos semelhantes, alguns registros escaparam da destruição, e Charles, um fuçador incansável, acaba encontrando o que procura. Quando isso acontece, ele retoma os estudos ocultistas do antepassado, e, a partir daí (num desenrolar tipicamente lovecraftiano), entra numa espiral descendente de loucura e terror, que acaba por levá-lo ao manicômio de onde mais tarde desapareceria. Creio que isso já é suficiente para atiçar a curiosidade de um possível leitor sem dar grandes spoilers.

Há um detalhe que eu já havia estranhado em outros contos de Lovecraft e que aqui aparece de forma mais evidente: a tentativa de atribuir uma aura de exagerada antiguidade a determinadas coisas. Há um longo trecho contando sobre o hábito que tinha Charles Ward, ainda garoto, de fazer longas caminhadas pela cidade de Providence para admirar a arquitetura das casas antigas, e, nele, o narrador fala de uma mansarda "pré-histórica" e de ruelas "de antiguidade inconcebível", entre outros exemplos. Acho tudo isso estranho, já que, como sabemos (e como Lovecraft certamente estava cansado de saber), com exceção das poucas e raras construções indígenas capazes de durar tanto tempo, nenhuma edificação nos Estados Unidos na época do autor podia reivindicar antiguidade maior que uns quatro séculos, sendo que Providence, especificamente, foi fundada em 1636 e portanto tinha então menos de 300 anos – a meu ver, um intervalo de tempo ridiculamente curto para a mente que concebeu os Grandes Antigos. Mas pode ser que o narrador, nesse trecho, esteja apenas tentando passar ao leitor as impressões do jovem protagonista, que, nesses dias, ainda estava naquela idade em que dez anos parecem uma vida, de modo que talvez superestimasse a antiguidade do que via.

Um Sussurro nas Trevas (1931) lida com a ideia sempre inquietante de uma raça oculta de seres desconhecidos vivendo muito próximos dos humanos, mas passando geralmente despercebidos, exceto por rumores, histórias contadas aqui e ali, um ou outro avistamento considerado como mero engano ou alucinação… Lovecraft recorreu a esse conceito outras vezes, e, muito provavelmente por influência dele, Robert E. Howard também o fez, embora a exata natureza e a aparência das raças ocultas de cada um fosse completamente diferente. Howard, 16 anos mais jovem, era leitor de Lovecraft desde a adolescência, muito antes de os dois se tornarem amigos, e nunca escondeu sua admiração por ele. Neste conto, a raça desconhecida em questão é de origem extraterrestre, mas parece ter estabelecido uma base de operações nas cavernas do estado de Vermont. Tem uma aparência vagamente crustácea, mas com uma cabeça cheia de tentáculos que mudam de cor, e asas membranosas que lembram um morcego. Não é spoiler: essa descrição está logo no início do conto, que prossegue tratando do mistério em torno de sua existência, e, de qualquer forma, eu precisava dela para abordar um ponto que me ocorreu agora. Lovecraft, um autor de terror por excelência, parece ter compreendido uma coisa a respeito de "alienígenas" que muitos escritores de ficção científica não compreenderam: que uma forma de vida que evoluiu em outro mundo, de modo totalmente independente de tudo o que a nossa biologia conhece, deveria, por qualquer expectativa razoável, ser absoluta e radicalmente diferente de tudo o que já vimos ou imaginamos. OK, as criaturas de Um Sussurro nas Trevas até tiveram alguma inspiração em crustáceos no que se refere a sua aparência, mas nem sequer são animais no verdadeiro sentido do termo (em outras obras são referidos como "Fungos de Yuggoth" – é isso aí: fungos). Outras raças criadas por Lovecraft, como os Antigos (não Grandes Antigos, só Antigos, de Nas Montanhas da Loucura) representam uma ruptura tão ou mais radical que essa com qualquer noção que pudéssemos ter a respeito do que seria uma raça inteligente e civilizada, ao ponto de atordoarem quem se considera um expert em ficção científica só porque já assistiu muito Star Wars e Star Trek. Não estou criticando essas franquias, pois gosto muito da primeira e amo a segunda, mas é fato que, nelas, as espécies alienígenas que aparecem (pelo menos as inteligentes), por mais estranhas fisionomias que possuam, quase sempre apresentam uma configuração física basicamente antropomórfica, com cabeça, tronco e membros dispostos da mesma forma que os nossos. Já os alienígenas de Lovecraft são coisas coriáceas ou gelatinosas, bulbosas, disformes, por vezes nem mesmo se encaixando ao certo em qualquer definição que tenhamos (os Antigos não são exatamente nem animais, nem vegetais), ou subvertendo noções que nunca pensamos em questionar (fungos inteligentes??). E olhem que só abordei os aspectos biológicos da coisa: que criatura humana seria capaz de imaginar a mentalidade de um ser cujos próprios sentidos não têm nada a ver com os nossos? Em tempo: o sussurro que dá título à história de que eu estava falando são sons que as criaturas produzem, aparentemente, só para poderem se comunicar com os humanos quando precisam, pois sua própria forma de "falar" não é sonora – elas conversam entre si por meio de sinais, consistindo em movimentos e mudanças de cores em seus tentáculos!…

(Como estava falando de Robert E. Howard em conexão com Lovecraft, ocorreu-me comentar uma curiosidade. Lovecraft imaginou diferentes tipos de seres como sendo dotados de tamanho poder, que seriam capazes de viajar entre as estrelas voando com as próprias asas, sem precisar de nada tão desajeitado e pouco prático quanto uma espaçonave – os Grandes Antigos fizeram isso, e os Fungos de Yuggoth também. A mesma ideia aparece no conto de Howard, A Torre do Elefante [1933], no qual Conan conversa com uma criatura extraterrestre inconcebivelmente antiga, embora mais benévola que os alienígenas de Lovecraft.)

A Sombra de Innsmouth (1931), também encontrado com o título A Sombra Sobre Innsmouth em outras traduções, descreve um vilarejo pesqueiro no litoral de Massachusetts, que já viveu dias prósperos, mas encontra-se agora decadente e parcialmente abandonado. O jovem protagonista, à semelhança de Charles Dexter Ward, é um curioso sobre História, arquitetura e genealogia, e são esses interesses que o levam a decidir visitar Innsmouth durante uma viagem que está fazendo pela Nova Inglaterra – e apesar da reputação tenebrosa que o lugar tem entre as populações das cidades próximas. Lovecraft demonstra toda a sua capacidade de criar ambientação ao descrever o vilarejo, com seus casarões dilapidados lembrando tristemente a opulência passada, sua atmosfera úmida, um odor nauseabundo de peixe que parece impregnar tudo, e seus habitantes de aparência estranha e desagradável, que o viajante não consegue determinar se teria origem em alguma degeneração hereditária ou na miscigenação (para Lovecraft, indivíduo profundamente racista, as duas coisas eram mais ou menos equivalentes: como muitos intelectuais de sua época, influenciados pela teoria racial do século XIX, ele acreditava que a mistura de diferentes raças tendesse a produzir "aberrações"). Em adição a isso, em Innsmouth as tradicionais igrejas protestantes tão prezadas pela população da Nova Inglaterra foram substituídas por uma tal Ordem Esotérica de Dagon (does it ring a bell?), sobre cujos cultos correm boatos macabros. Tendo explorado tantas fontes possíveis de medo em suas outras obras, aqui o autor volta-se para o oceano, que ao mesmo tempo nos fascina e intimida por sua imensidão e mistério, pois ainda não estamos nem perto de conhecer tudo o que existe nele – nem mesmo hoje, que dirá na época de Lovecraft. A título de curiosidade, A Sombra de Innsmouth foi a única história do autor publicada em forma de livro enquanto ele era vivo – numa edição desastrosa, repleta de erros tipográficos, o que o deixou fulo da vida. Tirando isso, ele só conseguiu publicar seus trabalhos (quando o conseguia) em revistas, tais como a famosa Weird Tales, que também projetou o já citado Robert E. Howard, entre muitos outros.

Eu tinha lido Nas Montanhas da Loucura anos atrás, ela era a história-título de uma daquelas coletâneas de Lovecraft publicadas pela editora Iluminuras no final dos anos 90 e início dos 2000; reli neste volume numa tradução diferente, e, não sei se porque de lá para cá adquiri mais familiaridade com a escrita do autor, mas desta vez a experiência foi mais fluida, agradável e sinistra. Na primeira leitura, pela lembrança que eu tinha, achei que a história era prejudicada por uma abordagem excessivamente científica: informações técnicas ocupavam uma parte demasiado grande dela, e mesmo a parte "boa" valia mais pela curiosidade que pelo terror mesmo, já que nela éramos apresentados aos seres que, naquela tradução, eram chamados simplesmente de "os Antigos", e recebíamos uma aula fascinante sobre a complexa sociedade que eles criaram na Terra em eras inimaginavelmente antigas. A propósito, os Antigos não devem ser confundidos com os Grandes Antigos (ou, nesta edição, Grandes Anciões), a raça de deuses-monstros governada pelo Grande Cthulhu. Nesta edição, os seres descritos em Nas Montanhas da Loucura são chamados de "Coisas Ancestrais", a tradução direta de seu nome no original, "the Elder Things". O personagem-narrador, o Prof. Dyer, do departamento de geologia da Universidade Miskatonic, em Arkham (universidade e cidade fictícias, ambas recorrentes nas histórias de Lovecraft), lidera uma expedição de pesquisa à Antártica, que descobre muito mais do que esperava: os cientistas encontram o que parecem ser pegadas de algum organismo grande e complexo em rochas com quase um bilhão de anos de idade – época em que, por tudo o que se sabe, a vida apenas começava a aparecer na Terra e ainda não ia além do estágio unicelular. Mais tarde, acabam encontrando o que acreditam serem os corpos dos seres que deixaram tais pegadas, miraculosamente preservados. São criaturas que lembram certo tipo de invertebrados, os radiários, mas com quase três metros de altura e características animais e vegetais ao mesmo tempo, e cuja existência na época em que foram deixadas as pegadas sugere que a Terra tenha conhecido outros ciclos de evolução da vida, muito anteriores ao que resultou na nossa existência (descobre-se depois que não é bem assim, já que as Coisas Ancestrais têm origem extraterrestre). Mais ainda: tais seres eram altamente inteligentes, civilizados, e tinham uma vasta cidade, boa parte da qual ainda está de pé; nas ruínas, Dyer e um companheiro descobrem muitas coisas sobre a vida, costumes e história dessa raça. A descrição de tudo isso é de longe a melhor parte do conto, um dos trechos mais curiosos de toda a obra de Lovecraft, mas, desta vez, eu achei a coisa toda bem mais tenebrosa além de curiosa, já que a sociedade das Coisas Ancestrais possui conexões com os Mitos de Cthulhu, de modo que a sombra do retorno dos Grandes Antigos está sempre presente. Nas Montanhas… também traz outro exemplo de como as histórias de Lovecraft são quase todas encadeadas entre si: Dyer, embora tenha a geologia como área de especialização, parece ser um curioso sobre mitologia e ocultismo, pois, além de já ter examinado o exemplar do Necronomicon guardado na seção reservada da biblioteca da universidade, teve longas conversas com um colega do departamento de língua inglesa que se dedica a esse tipo de estudo – ninguém menos que Wilmarth, o protagonista de Um Sussurro nas Trevas. Por fim, não dá para concluir este parágrafo sem apontar para o fato de que a história deixa evidentes os consideráveis conhecimentos de Lovecraft sobre geologia e biologia.

As duas últimas histórias são O Assombro das Trevas (1935), que eu achei apenas mediana, apesar de alguns momentos brilhantes, e optei por não aprofundar aqui, e A Sombra Vinda do Tempo (1935), que inevitavelmente nos traz à cabeça a expressão "fechar com chave de ouro", ainda que isso possa ser fruto do acaso, já que, como vimos, as histórias são apresentadas em ordem cronológica. Assim como Nas Montanhas da Loucura, trata-se de um mergulho num passado pré-humano fictício, e sob certos aspectos, inclusive, lembra bastante aquela história, só que envolvendo uma forma de deslocamento entre diferentes eras – de uma maneira radicalmente diferente da noção tradicional da viagem no tempo que, mesmo naquela época, já estava tão batida. O narrador, Nathaniel Peaslee, é um pacato pai de família, professor de economia na Universidade Miskatonic, que, inexplicavelmente, tem um blackout que dura quase cinco anos – e, ao "voltar", descobre que sua vida virou de ponta-cabeça; aparentemente, alguma outra consciência ocupou seu corpo durante esse período. Peaslee declara nunca ter tido qualquer interesse em ocultismo ou parapsicologia, mas a entidade que havia assumido seu lugar, como ele vem a saber, dedicou-se a extensas pesquisas em alguns dos volumes mais raros e mais mal-afamados mantidos na biblioteca da universidade, livros esses aos quais somente sua condição de professor (bem, a condição de professor de Peaslee) lhe franqueou o acesso – e nem é preciso dizer que entre esses livros está o velho Necronomicon. Movido pelo desejo de entender o que lhe aconteceu, Peaslee começa, por sua vez, a pesquisar, e descobre que existem registros de casos semelhantes ao seu ao longo de toda a História. Ao mesmo tempo, ele tem lampejos de lembrança (que vão gradualmente se tornando mais duradouros, claros e precisos) de ter vivido num mundo bizarro, mas que tudo indica ter sido a própria Terra numa era desconhecida. Aos poucos, a combinação dessas recordações com o que vai descobrindo em suas pesquisas revela-lhe a inacreditável verdade: existiu outrora uma civilização que chamava a si própria de "a Grande Raça de Yith", não tão antiga quanto as Coisas Ancestrais de Nas Montanhas da Loucura, mas, ainda assim, anterior em eras a qualquer coisa que a humanidade conheça, e que dominou a capacidade de projetar a mente rumo ao passado ou ao futuro, ocupando o corpo de qualquer forma de vida inteligente que exista na época que o viajante deseja explorar. Enquanto isso, a mente original do corpo "emprestado" ocupa o corpo do Yith em questão. Combinando essa habilidade com sua fome insaciável por conhecimento, não é difícil imaginar que os Yith acumularam o maior tesouro de ciência, arte e informações de todo tipo já visto em qualquer era deste mundo – e tudo isso estava ao alcance da mente inquisitiva de Peaslee durante os anos que a troca durou, embora agora ele só recorde pequenos fragmentos. O conceito que baseia a história chega a dar vertigens pela amplitude das esferas de tempo que envolve, fazendo a humanidade e todas as suas realizações parecerem ainda menores do que já pareciam enquanto líamos as histórias anteriores, isso para não falar na ideia indescritivelmente fascinante de não apenas ter acesso ao vasto conhecimento dos Yith, como ainda poder trocar ideias com homens (e outras criaturas) cujas mentes foram "sequestradas" da mesma forma, e vindas de todas as épocas, incluindo representantes de espécies já extintas há milhões ou bilhões de anos, e de outras que só irão evoluir em formas inteligentes daqui a outro tanto. É muita coisa!…

Uma observação: mencionei há pouco as Coisas Ancestrais de Nas Montanhas da Loucura, que são citadas em A Sombra Vinda do Tempo sem o uso de nenhum nome, sendo chamadas apenas de "a raça semivegetal dotada de asas e cabeça em forma de estrela-do-mar oriunda da Antártida paleogênea", e, mais adiante no conto, o nome "Coisas Ancestrais" é usado para se referir a outra raça que, pela descrição, não tem nada a ver com essa. Não sei ao certo ao que atribuir isso; confesso que meu primeiro impulso foi culpar o tradutor, mas provavelmente estaria sendo injusto: talvez Lovecraft tenha feito de caso pensado. Considerando suas histórias em conjunto, percebemos que ele estava construindo uma mitologia, sabia disso – e o que é uma mitologia sem redundâncias, versões discrepantes, nomes diferentes atribuídos à mesma coisa ou um mesmo nome designando coisas diferentes etc.? Quem já se dedicou a estudar os mitos gregos, nórdicos, egípcios ou outros, sabe bem do que estou falando.

(Quando Peaslee enumera alguns dos livros que o "outro" que ocupava seu corpo andou pesquisando – e que ele próprio acaba depois lendo em busca de respostas –, dois títulos sobressaem na lista: um é o Unaussprechlichen Kulten [algo como 'Cultos Inomináveis' ou 'Cultos Indescritíveis' em alemão], atribuído a um certo Von Junzt, e o outro, o De Vermis Mysteriis ['Mistérios do Verme' em latim], cujo autor seria Ludwig Prinn. Ambos são livros fictícios, assim como o Necronomicon de Lovecraft; o primeiro foi inventado por Robert E. Howard e citado pela primeira vez no conto Os Filhos da Noite, que eu já tive a oportunidade de comentar; o outro é criação de Robert Bloch, hoje uma lenda da literatura fantástica, na época pouco mais que um garoto dando seus primeiros passos como escritor [já mostrando promessa], e que deve ter chorado de emoção quando Lovecraft, seu ídolo, não apenas dedicou nominalmente O Assombro das Trevas a ele, como ainda citou o De Vermis Mysteriis tanto nessa história quanto em A Sombra Vinda do Tempo. Stephen King também o cita no conto Jerusalem's Lot. E, ainda no assunto das conexões entre a obra de Lovecraft e as de seus amigos escritores, A Sombra Vinda do Tempo traz breves mas instigantes menções não só ao antigo império da Valúsia, como até mesmo à raça dos homens-serpente que o controlava antes da ascensão dos humanos – elementos esses que os leitores das aventuras do rei Kull escritas por Howard na certa reconhecerão. Eu nunca tinha visto a Valúsia ser citada em nenhum outro lugar sem ser a obra de Howard, então, quando li essa referência a ela na história de Lovecraft, fui pesquisar na internet para ver se o nome tinha origem em algum mito do mundo real, como no caso da Atlântida… Na verdade, essa era uma pesquisa que eu já deveria ter feito há muitos anos, não sei por que isso nunca me ocorreu antes. Se algo assim existisse, poderíamos pensar que ambos os autores tivessem simplesmente bebido nas mesmas fontes – mas não encontrei nada do tipo; portanto, salvo alguma evidência em contrário que ainda apareça, tudo indica que a Valúsia saiu mesmo da imaginação de Howard, e que Lovecraft, ao utilizá-la, estava deliberadamente criando mais um link entre sua obra e a de seu amigo.)

A leitura deste livro vale por um mergulho e tanto no universo bizarro e tenebroso de Lovecraft, e pode ser indicada sem erro a leitores que se encontrem na mesma situação em que eu estava antes de lê-lo – a de já ter tido contato com o autor e gostado, mas ainda estar num nível bem básico de conhecimento sobre sua obra. Aqui há muito material, grande parte dele representando o melhor da produção de Lovecraft, e com um tratamento editorial do qual, na minha opinião, há bem pouco do que reclamar (o tradutor parece ter um fetiche com a palavra "coruchéu", e a repetição frequente de termo tão exótico acaba por ter um efeito engraçado, mas isso não passa de uma curiosidade). Até pensei em fazer a ressalva de que o livro é extremamente grande e desajeitado, pouco prático para uma pessoa levar consigo para ler em lugares como cafés, trens e salas de espera, e que talvez fosse uma boa ideia dividi-lo em dois volumes, mas não vou fazer isso, porque, na verdade, dá no mesmo: eu definitivamente não recomendo esse tipo de leitura errática em se tratando de Lovecraft. Seus temas são complexos, sua escrita é recheada de frases longas e de construção rebuscada, que exigem bastante atenção e concentração, e cuja compreensão correta é essencial para que o leitor consiga entrar no espírito da história. Aconselho reservar algumas horas para lê-lo em casa ou em algum lugar sossegado, livre de distrações e interrupções, o que garantirá que estas histórias sejam lidas como devem ser, e apreciadas de verdade.

quinta-feira, junho 30, 2016

O Grande Deus Pã

É fato: apesar de o autor ter chegado às minhas mãos com as melhores recomendações, minha primeira experiência com a literatura de Arthur Machen não foi empolgante (detalhes aqui). Tudo parecia indicar que ele tivesse sido grandemente superestimado por H. P. Lovecraft, que, como vimos antes, tece rasgados elogios a suas obras no legendário ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, e até mesmo um mestre do terror como Lovecraft – que, ao que se espera, devia entender muito do gênero – pode, eventualmente, emitir uma avaliação não tão confiável, baseada em fatores subjetivos, pois a literatura tem dessas coisas. Ou isso, ou eu é que estava (ainda mais) míope, ao ponto de não enxergar as muitas e extraordinárias qualidades que Lovecraft apontava em Machen. Acabei decidindo tentar não me prender à primeira impressão: levado tanto pelas descrições fascinantes de outras obras de Machen fornecidas por Lovecraft, quanto pelo alto apreço que caras como Robert E. Howard, Stephen King e T. E. D. Klein também demonstravam, adiei o meu julgamento a respeito de Machen até que tivesse tido a oportunidade de ler mais de suas histórias. E, para grande satisfação minha, posso dizer agora que tomei a decisão correta: as quatro histórias presentes neste volume da editora portuguesa Saída de Emergência explicam, finalmente, o que todas essas figuras notáveis da literatura de terror e fantasia viam de tão admirável nos trabalhos do escritor galês, a ponto de não hesitarem em colocá-lo entre os melhores desses gêneros em todos os tempos, ou em citá-lo como um de seus favoritos e principais influências. Não dá para dizer que as características que me deixaram impaciente em O Terror estejam totalmente ausentes aqui, mas, quando elas despontam, é de forma muito mais branda, sem empanar o brilho das histórias… Para não falar do fato de que, neste livro, Machen trabalha com ideias e enredos muito melhores e mais interessantes. Custa-me entender por que, ao planejar aquele volume (que, como observei no outro texto, foi, sem dúvida, o primeiro contato que muitos leitores tiveram com Arthur Machen em suas vidas), a editora Iluminuras escolheu a história O Terror como texto principal, preterindo outras que são anos-luz superiores, como O Grande Deus Pã, O Povo Branco e as outras que integram o livro que agora me preparo para comentar.

O conto que dá título ao livro foi publicado pela primeira vez em 1894, e parece compartilhar o ponto de vista do romance Frankenstein, de Mary Shelley: a ideia de que há coisas com as quais o homem não deve mexer, e de que o simples fato de a ciência moderna ser capaz de fazer algo não significa necessariamente que tal coisa deva ser feita – um pensamento que marca fortemente o Romantismo e os movimentos artísticos derivados ou influenciados por ele. O Dr. Raymond, um médico-cientista, pretende realizar uma experiência ousada e um tanto sinistra: por meio de uma sutil intervenção cirúrgica no cérebro, ele acredita ser possível fazer com que um ser humano passe a ver o mundo espiritual e as "coisas invisíveis", toda aquela realidade de cuja existência temos uma percepção intuitiva, mas que não pode ser apreendida pelos nossos sentidos físicos normais. Como cobaia, ele vai utilizar uma jovem de nome Mary, que, segundo conta, ele resgatou de uma vida miserável nas ruas quando era pequena – e, por esse motivo, acredita ter o direito de dispor dela como bem entender (!). Para servir de testemunha da experiência, Raymond chama seu amigo Clarke, que não é cientista, mas possui uma aguçada curiosidade sobre as ciências, bem como sobre ocultismo e todo tipo de conhecimento não convencional. Finalizado o procedimento, Raymond é da opinião de que a cirurgia foi um sucesso, mas Clarke nada mais fica sabendo sobre Mary durante muitos anos. Decorrido esse lapso de tempo, uma estranha mulher aparece na alta sociedade londrina; belíssima, ela apresenta uma perturbadora semelhança com a pobre jovem Mary, como se fosse sua filha – e, nesse caso, a identidade do pai é assunto que dá margem às mais macabras conjecturas, pois, a julgar por sua conduta e pela aura tenebrosa que a cerca, a tal mulher não deve ser de todo humana. Naturalmente que, com semelhante conjunto de atributos, ela desperta fascínio entre os jovens aristocratas ingleses, sempre sedentos de novas emoções, que passam, muitos deles, a frequentar-lhe a casa… E a cometer suicídio logo depois. Um personagem que investiga o que acontece na casa da Sra. Beaumont (esse o nome com que a mulher se apresenta, embora, enquanto solteira, tenha-se chamado Helen Vaughan) mostra a outro as descrições escritas de alguns dos entretenimentos que ela costuma oferecer a seus convidados, descrições essas que, por si sós, são capazes de deixar qualquer pessoa decente sem dormir durante dias. Participar de tais entretenimentos, então, deve ser mais que o suficiente para levar um homem a tirar a própria vida. É claro que não vou contar o final da história; direi apenas que ele é chocante.

(Para os fãs do cinema torture porn e curiosos por detalhes sórdidos em geral – e quem não o é, pelo menos um pouco? – cabe um aviso: se estiverem esperando ler essas descrições, vão decepcionar-se. Machen, filho de um ministro religioso, prezava um certo recato ao escrever, e preferiu deixar a exata natureza dessas diversões horripilantes para a imaginação sombria de seus leitores.)

Vocês devem estar se perguntando o que o deus Pã tem a ver com tudo isso; bem, o Dr. Raymond emprega uma metáfora ao descrever a visão que, espera ele, Mary terá depois da experiência: diz que ela poderá "ver o deus Pã". Quem conhece um pouco de mitologia sabe que Pã, para os antigos gregos, era o deus dos pastores, dos campos, dos bosques, e, por extensão, da natureza – e "natureza", ao contrário do que hoje estamos acostumados a pensar, não tem só conotações positivas. Pã tinha uma face alegre, que remetia à vida bucólica das regiões rurais, mas era também o deus dos terrores noturnos (a palavra pânico derivou de seu nome) e ligado à bruxaria. Não foi por acaso que, com o advento do cristianismo, ele passou a ser associado ao diabo, tendo sido, provavelmente, um dos principais responsáveis por conferir a este último sua aparência "clássica", com chifres e pés de bode, semelhança essa que o pintor espanhol Francisco de Goya fez questão de realçar em seu famoso quadro El Aquelarre, de 1798 – aquelarre é uma palavra espanhola para sabá de bruxas; o quadro também é conhecido como El Gran Cabrón ('O Grande Bode'), para distingui-lo de outro El Aquelarre, que Goya pintou 25 anos mais tarde. Confesso, aprecio a obra de Goya pelas qualidades artísticas (é claro), mas não menos por sua temática, essa inclinação natural que ele parecia ter para o fantástico e o macabro. Embora não haja conexão conhecida entre os dois, acho que suas imagens combinam muito com o clima das histórias de Arthur Machen – e parece que outros já pensaram o mesmo, pois El Gran Cabrón já serviu de ilustração de capa para mais de uma edição de O Grande Deus Pã. Voltando ao deus, é importante saber, por fim, que seu nome, em grego, significa tudo (é o mesmo radical que integra palavras como panamericano, pangermânico, panteísmo e tantas outras), e que, portanto, Pã personifica a natureza em sua totalidade, tanto seus aspectos belos e pacíficos quanto os mais assustadores, bem como aqueles mistérios que, se conhecidos, poderiam destruir a sanidade de uma pessoa. Para quem já conhece Lovecraft e está conhecendo Machen, não demoram a ficar claros os motivos da devotada admiração do primeiro pelo segundo.

Só para constar, nem tudo em O Grande Deus Pã é excelente. Tive um desagradável déjà vu da característica mais irritante de O Terror ao ler esta passagem:

– Mas será que ainda se lembra do que me escreveu? Pensei que fosse imprescindível que ela…
Murmurou então o resto da frase ao ouvido do médico.

Em resumo: manter certas informações ocultas ao leitor até que chegue o momento certo de revelá-las é uma arte; fazer isso de formas artificiais e ineptas, é de matar! Felizmente, aqui esse defeito é uma coisa menor, que podemos relevar, bem diferente do que acontecia em O Terror.

A segunda história é A Novela da Chancela Negra – a palavra "chancela" é uma daquelas de uso comum em Portugal, mas pouco conhecidas entre nós; em textos de referência que encontramos por aí, quando essa história é mencionada, fala-se em "Sinete Negro", ou mesmo "Selo Negro". Enfim, chancela, sinete ou selo, aí, referem-se todos a um instrumento que pode ser considerado um ancestral dos atuais carimbos: pressionado sobre cera quente, argila úmida ou outro material de plasticidade semelhante, ele imprimia imagens ou caracteres (geralmente um timbre, brasão ou símbolo equivalente), após o que esperava-se o material endurecer. Seu uso mais conhecido era para lacrar cartas ou documentos. A chancela da história é um pequeno artefato de pedra negra, encontrado pelo Prof. Gregg, uma autoridade eminente no campo da etnologia, e que ele acredita ter pelo menos quatro mil anos de idade. Para manter o mistério, o autor vale-se do recurso de não usar o próprio professor como narrador, nem contar a história a partir do ponto de vista dele; em vez disso, a narradora é Miss Lally, contratada, a princípio, como governanta, responsável por supervisionar os cuidados e a educação dos dois filhos de Gregg – mas, por tratar-se de uma jovem de bastante cultura, acaba por assumir as funções de secretária dele, ajudando-o com seus trabalhos acadêmicos. Depois de ter-se dedicado durante décadas a estudos "sérios", que lhe granjearam uma sólida reputação, o professor decide aventurar-se investigando a possível realidade por trás de certos relatos do folclore das Ilhas Britânicas – em especial do País de Gales e do oeste da Inglaterra –, que sempre foram considerados por todos os pesquisadores "respeitáveis" como mero produto da fantasia popular. O pequeno sinete de pedra é a mais importante dentre um conjunto de pistas que ele reuniu ao longo de anos, e agora, finalmente, considera-se em condições de descobrir a possível verdade concreta que poderia ter dado origem às histórias milenares sobre o "povo pequeno" – fadas, duendes e outros seres misteriosos, sempre mencionados pela gente das ilhas com um misto de fascínio e temor. Há sugestões de que essas criaturas talvez não sejam tão brincalhonas e benévolas quanto as histórias infantis levam a crer… Para dar prosseguimento a sua pesquisa, Gregg aluga uma velha mansão rural perto da fronteira anglo-galesa, para onde se transfere com os filhos, Miss Lally e alguns criados. Lá, mesmo sem necessidade alguma de mais mão de obra, ele faz absoluta questão de contratar um adolescente local, um rapaz com leve retardo mental e uma propensão a sofrer ataques – e, quando isso acontece, seus aparentes gemidos desconexos começam a soar como palavras de alguma língua desconhecida, de pronúncia sibilante… A possibilidade de existir alguma ligação entre esse estranho garoto e o objeto dos estudos obscuros do professor é estabelecida de uma forma sutil – e, na minha opinião, brilhante –, contribuindo para a atmosfera cada vez mais sinistra da história. As descrições de Miss Lally da sensação aflitiva de ter medo sem saber do que, estão entre as passagens literárias mais sufocantes que meus olhos já percorreram.

A Luz Mais Interior (no original, The Innermost Light) é a história mais curta e mais fraquinha, mas de forma alguma é ruim. Sua organização inicial lembra um pouco a de The Great God Pan: também aqui há dois amigos, um mais visionário e dado a especulações fantásticas, Dyson, e outro mais cético (pero no mucho), Salisbury. Encontrando-se por acaso nas ruas de Londres, os dois decidem jantar juntos – e os pormenores a respeito da refeição, que Machen poderia ter deixado subentendidos, mas fez questão de incluir, sugerem que o autor também era, entre outras coisas, um apreciador da boa mesa. Durante esse jantar, Dyson conta ao amigo um estranho caso que chegou ao seu conhecimento, o do Dr. Black, um conceituado médico que morava e clinicava num bairro afastado e que, aparentemente, assassinou sua jovem e bela esposa. Poderia não ser mais que um crime passional de algum tipo, não fosse o parecer do legista que fez autópsia da Sra. Black e manifesta a opinião de que o cérebro da mulher não era humano. Dyson, levado por sua curiosidade por assuntos insólitos, decide investigar. Usando mais uma vez um recurso do qual Machen parecia gostar muito (e, na verdade, muito popular entre autores de ficção gótica do século XIX e início do XX), a resposta do mistério é encontrada num manuscrito, um caderno de anotações deixado pelo Dr. Black – e trata-se de uma resposta horripilante. Ao terminar de ler a história, tive a sensação de que o horror central dela pode ter sido sugerido por um sonho (foi a mesma sensação causada pelo conto A Máscara, de Robert W. Chambers) e de que, ao redor disso, o autor pode ter construído todo o resto.

O livro termina com O Povo Branco, história que Lovecraft considerava, no balanço final, superior a O Grande Deus Pã. Não tenho certeza se concordo, mas posso assegurar que não vou me esquecer de O Povo Branco. Sua mistura atordoante do terno com o terrível, do ingênuo com o monstruoso, confere-lhe um sabor pungente que poucas outras histórias já tiveram – e, para ser franco, no momento não lembro de nenhuma. Também aqui a parte mais importante da narrativa é encontrada num manuscrito; na prática, é uma história dentro de outra história. O conto começa com um diálogo entre Cotgrave, um jovem cavalheiro curioso, e Ambrose (homenagem a Ambrose Bierce? Hum…), um homem recluso e excêntrico, dado a filosofias não convencionais. Nesse diálogo inicial, Ambrose está expondo a Cotgrave sua teoria de que o bem e o mal não são realidades tão claras e distintas como geralmente acreditamos; segundo ele, um homem pode tornar-se um pecador de primeira grandeza sem jamais praticar qualquer crime, ou, de forma inversa, fazer-se santo sem realizar boa ação alguma que a sociedade reconheça como tal. Para ilustrar o que está dizendo, Ambrose empresta a Cotgrave um caderno manuscrito, recomendando-lhe que o leia cuidadosamente – e o trate mais cuidadosamente ainda, pois o eremita faz absoluta questão de que seja devolvido intacto. O caderno está preenchido com aquele tipo de letra redonda e caprichada que poderia pertencer a uma menina… E é esse o caso, como descobrimos a seguir, ao termos acesso à totalidade do texto do manuscrito através dos olhos de Cotgrave. São 25 páginas (na edição impressa; no manuscrito seriam bem mais) de texto praticamente corrido, isto é, quase sem mudança de parágrafos; para ser exato, ao longo de todas essas páginas são feitos apenas cinco novos parágrafos, sem considerar os trechos em que a autora reproduz versos. E a autora em questão é uma garota órfã de mãe, com um pai rico e ocupado que ela pouco via. Criada em outra dessas mansões rurais em algum lugar do interior do Reino Unido, que são uma constante na obra de Arthur Machen, ela tinha como principal companhia uma jovem ama, que, em meio a brincadeiras e passeios pelos bosques, iniciou-a nos segredos da feitiçaria.

Há hoje uma tendência politicamente correta a apresentar a feitiçaria de forma simpática, como sendo tão somente os inofensivos remanescentes de benévolas (sempre benévolas) crenças pré-cristãs, nada mais que a veneração da natureza e a transmissão de saberes práticos como o da medicina herbal; afirma-se frequentemente que o famigerado sabá das bruxas medievais nunca existiu, seria apenas uma ficção inventada pela "maligna" Igreja Católica para assustar o povo e instigar o ódio contra os que praticavam essa religião ancestral… E, como todas as ideias politicamente corretas, também essa teve origem em escusas intenções ideológicas, e ganhou livre curso graças à ingenuidade de inúmeras pessoas que, é claro, julgam-se as mais inteligentes e "críticas". Para começar, não havia uma única religião pré-cristã, mas muitas, sendo que a maioria delas estava longe de ser inofensiva ou inocente. Em segundo lugar, podia haver, e havia, grupos de feiticeiros que efetivamente não faziam mal a ninguém e só queriam continuar com seus ritos em paz – mas é tolice achar que todos eram assim. O culto deliberado aos poderes do mal e a prática de malefícios existiam na Idade Média, existiam no século XIX, e existem hoje. Arthur Machen, detentor que era de consideráveis conhecimentos no campo do ocultismo, sabia disso, e soube explorar o assunto com extrema competência. A ama, iniciada nesses mistérios tenebrosos por sua bisavó bruxa, ensina a sua pequena senhora diferentes rituais para conseguir diversos objetivos, nem todos muito louváveis; leva-a a reuniões secretas em lugares ermos; e revela-lhe a existência de povos misteriosos, dotados de poderes sobrenaturais e que vivem escondidos, como o "Povo Branco" do título. Compreende-se que, quando a jovem escreveu seu relato, já era quase adolescente (a ama já não trabalhava mais em sua casa), mas o relato em si cobre um período de vários anos – ou seja, a menina foi iniciada nesses conhecimentos quando ainda era muito pequena. É aí que reside a maior parte do encanto e, ao mesmo tempo, do horror da história: em sua inocente tagarelice infantil, ela descreve aquilo que viu sem realmente compreender muitas coisas, o que confere ao texto esse contraste desconcertante entre a pureza e o horror. Nada é muito explícito, mas, mesmo assim, talvez a história choque mais hoje que na época em que foi escrita, se considerarmos o quanto o nosso jeito de encarar a infância mudou ao longo deste último século.

Não há como finalizar estes comentários sobre O Povo Branco sem lembrar novamente de T. E. D. Klein e seu Cerimônias Satânicas. Várias histórias de Arthur Machen (e ouso dizer que sua obra como um todo) foram uma forte influência para Klein, como estou percebendo agora, mas foi, sem dúvida, a partir das menções casuais a "cerimônias brancas, verdes e vermelhas", encontradas em O Povo Branco, que ele veio a desenvolver a ideia central de seu livro. Por sinal, deve ter sido uma boa coisa, para ele, que tais menções sejam tão breves e reticentes, pois isso lhe permitiu exercer sua liberdade criativa sem romper os vínculos com a fonte original de sua inspiração. Por fim, como não surpreenderá a quem já conhece o perfil de Machen, O Povo Branco, assim como O Grande Deus Pã e A Novela da Chancela Negra, entrega a paixão do autor pela beleza melancólica e repleta de História dos rincões solitários do interior do País de Gales, com sua natureza rústica e vestígios de seu passado celta e romano. Somente A Luz Mais Interior, por causa de sua ambientação toda urbana, não oferece espaço para tanto.

Demorou, mas por fim posso dizer que compreendo por que Arthur Machen é considerado um mestre da narrativa de terror e fantasia, e uma influência para os que vieram depois dele, inclusive aqueles que, por sua vez, também chegariam a ser considerados mestres, e isso foi possível graças a uma seleção inteligente das histórias incluídas neste livro (desculpe, pessoal da Iluminuras…). A propósito, encomendei o livro direto de Portugal, através da Fnac de lá, e aproveitei para comprar junto o único outro título de Machen que estava em catálogo, um pequeno volume chamado A Pirâmide de Fogo. Quando o ler, ele certamente também será objeto de comentários aqui.