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quinta-feira, fevereiro 21, 2019

O Futuro Começou

Existem títulos que funcionam bem numa tradução direta do original, e outros, definitivamente, não. Isso pode acontecer por diferentes motivos, e às vezes não é fácil explicar o porquê. Cada língua parece possuir uma "alquimia" que é só dela, o que faz com que um mesmo título, dizendo precisamente a mesma coisa, perca (ou ganhe) muita força, pelo simples fato de ser transposto de uma língua para outra. O melhor exemplo que me vem à cabeça agora é o conto Sometimes They Come Back, de Stephen King, que pode ser encontrado na coletânea Sombras da Noite. O título original já é OK, mas alguém aí consegue explicar por que é que Às Vezes Eles Voltam soa tão mais forte, mais sinistro, mais cheio de sugestões sombrias? Eu também não: é a tal alquimia da língua.

Porém, a sonoridade muitas vezes não é o único critério que uma editora brasileira precisa levar em consideração na hora de definir o título de um livro traduzido. É o caso deste aqui. Quando, em 1972, Isaac Asimov e seu editor da época na Doubleday decidiram que seria uma boa ideia reunir num livro os primeiros contos do escritor (cujas publicações originais ocorreram durante a chamada era de ouro da ficção científica, entre o fim dos anos 30 e o fim dos 40), eles não precisaram pensar muito a respeito do título. O livro destinava-se a uma base já formada de leitores fiéis, e eles, que há tanto tempo pediam por uma edição assim, saberiam reconhecê-la só de bater o olho nela nas livrarias. Assim, o óbvio título The Early Asimov (algo como 'o Asimov do início') já servia. Aqui no Brasil, onde o livro foi publicado seis anos depois, a situação era bem diferente. Esta edição da Hemus precisava vender-se num país onde o mercado editorial em geral, e principalmente o de ficção científica, era muito mais tímido que nos Estados Unidos. Muitos leitores estariam tendo seu primeiro contato com Asimov, outros poderiam já ter lido um ou alguns de seus livros, mas poucos teriam tanta intimidade com a carreira e a obra do autor a ponto de compreenderem a importância de conhecer seus trabalhos iniciais. Por isso, a versão nacional acabou chamando-se O Futuro Começou. Levando em conta toda essa situação, não culpo a Hemus por esse título absolutamente genérico e que não informa realmente nada sobre o conteúdo do volume. Era apenas para chamar a atenção de leitores que já tivessem algum interesse em ficção científica, e deve ter funcionado.

O livro é, portanto, uma coletânea de contos dos primeiros anos da carreira de Asimov como escritor, mas não é só isso. Os contos estão inseridos entre trechos mais ou menos autobiográficos, tão interessantes quanto eles – e ocasionalmente, até mais. Vocês devem estar se perguntando como é que algo pode ser "mais ou menos autobiográfico", e a resposta é que o livro oferece vislumbres do dia a dia do adolescente e depois jovem adulto Isaac, mas sempre através do prisma da atividade de escritor. Talvez o fato de já estar acostumado a raramente obter alguma coisa com facilidade tenha enrijecido o couro do rapaz, levando-o a persistir a despeito de ter colecionado várias recusas de diferentes revistas até finalmente conseguir de fato vender sua primeira história para publicação. Seus pais, imigrantes judeus russos, tinham uma loja de doces de onde vinha todo o sustento da família, um sustento pelo qual eles e os filhos precisavam trabalhar constantemente. Isaac, o mais velho, revelou cedo tanto o interesse pela ciência quanto a paixão por ler e escrever. A combinação das duas coisas levou-o naturalmente à ficção científica, e ele gostava de contar que seu primeiro contato com o gênero foi aos nove anos de idade, na loja de doces mesmo, pois ela também incluía uma banca de jornais e revistas, e foi ali que ele travou conhecimento com algumas das várias revistas dedicadas à ficção científica que circulavam naquelas primeiras décadas do século XX. Aquela que viria a ser sua favorita e também a mais influente delas (em grande parte, graças a sua participação) intitulava-se Astounding Stories, mais tarde Astounding Science-fiction, e foi fundada em 1930, pouco depois de Isaac ter sido apresentado à ficção científica, então é provável que ele a tenha lido desde o primeiro número, mas seria somente uns oito anos depois, aos 18 anos de idade, que ele pela primeira vez apresentaria um de seus trabalhos ao editor da revista, John W. Campbell Jr. O trecho em que ele conta como se sentia logo antes dessa ousada empreitada é hilário:

Eu estava convencido de que, por ousar pedir para ver o editor de Astounding Science-fiction, eu seria atirado fora do edifício, e meu manuscrito seria picotado e jogado atrás de mim como confete. Meu pai, porém (que tinha ideais nobres) estava convencido de que um escritor – com o que ele significava qualquer um com um manuscrito – seria tratado com o respeito devido a um intelectual. Não tinha receios nenhuns – mas era eu quem ia entrar naquele edifício.

Mas esse temor não se concretizou: Campbell o recebeu muito bem. Asimov descobriu nessa ocasião que era costume do legendário editor (certo, ele ainda não era legendário na época) tratar todo escritor com o mesmo grau de deferência, fosse ele um veterano com o nome já firmado, aclamado pelos leitores, ou um jovem iniciante tímido. Pode ter ajudado o fato de que Asimov mandava cartas à revista com tanta regularidade, que Campbell lembrava dele, e talvez tenha achado curioso ter a oportunidade de conhecer pessoalmente aquele leitor tão entusiasta. Campbell era um excelente editor ainda por outros motivos, segundo Asimov: quando rejeitava uma história, ele tomava o tempo de escrever ao autor uma carta de considerável extensão, na qual discutia o texto em pormenores, apontando seus defeitos e qualidades e oferecendo dicas para que o escritor, ou aspirante a tal, pudesse aprimorar seu trabalho. Como diz Asimov: "A agradável carta de rejeição – duas páginas inteiras – em que discutia minha história seriamente e sem traços de paternalismo ou desprezo, reforçou minha alegria. (…) Realmente, a melhor coisa depois de [a história] ser aceita."

Atuando dessa forma, Campbell (que também era escritor) foi uma espécie de mentor para um punhado de jovens escritores que estavam em ascensão durante aqueles anos, e hoje é apontado por muitos como o principal responsável por tornar possível a era de ouro. A grande tríade de jovens autores da época, que, com o tempo, viriam a ser considerados titãs da ficção científica, era composta por A. E. Van Vogt, Robert A. Heinlein e pelo próprio Asimov, o mais jovem dos três e, segundo ele mesmo, o que mais demorou a construir reputação. Heinlein, autor de Estranho Numa Terra Estranha e Tropas Estelares, é razoavelmente conhecido entre nós; já quanto a Van Vogt, parece que chegou a ser publicado no Brasil, mas deve fazer muito tempo, pois os únicos livros dele em que consegui pôr as mãos até hoje eram edições portuguesas, das coleções Argonauta e FC Europa-América.

Para quem, como eu (e acredito que a vasta maioria dos fãs), conheceu Asimov já com seu status de monstro sagrado e por meio de uma de suas obras mais aclamadas, como Eu, Robô ou Fundação, será uma experiência bem estranha ler as histórias aqui apresentadas e constatar que: 01) sim, elas são, em tudo e por tudo, histórias "asimovianas"; 02) não, várias delas não são grande coisa. Mas a estranheza diminui ao lembrarmos que foram escritas por um jovem de seus 18 a 20 e poucos anos, talentoso, sem dúvida, mas ainda com muita coisa por lapidar. É preciso também não esquecer que as histórias que estão aqui são somente as que foram publicadas; houve várias, inclusive a primeira de todas, que, depois de terem sido rejeitadas mais de uma vez, o jovem Asimov deixou de lado e acabou, como ele diz, "perdendo de vista" ao longo dos anos, o que significa que os originais foram perdidos e essas histórias não existem mais. Asimov relata que certos leitores parecem contrariados com o fato, e acham que, por piores que fossem, essas histórias deveriam ter sido preservadas por seu valor histórico – afinal, foram as primeiras tentativas de Isaac Asimov, não menos que isso! Sobre esse ponto, o autor comenta com seu sutil e infalível senso de humor: "Tudo o que posso dizer, amigos, é que sinto muito, mas não havia modo de saber, em 1938, que minha primeira tentativa pudesse ter interesse histórico algum dia. Posso ser um monstro de vaidade e arrogância, mas não sou tão monstruosamente vaidoso e arrogante." Sim, ele tinha um ego e tanto (e sabia disso), mas o fato era frequentemente suavizado por um saudável humor autogozador.

Quanto às histórias em si, parece que nos primeiros tempos Asimov cobria um espectro bastante amplo dentro da ficção científica – talvez uma questão de necessidade prática: quanto mais versátil ele fosse ao escrever, melhores suas chances de conseguir vender histórias para diferentes revistas, já que cada uma tinha um perfil próprio. A Astounding queria histórias mais sérias e com alguma base científica factual, já a Planet Stories privilegiava ação e aventura, enquanto a Amazing era, digamos, mais eclética, e ainda havia outras menores, que tiveram vida mais curta. Como sempre acontece em qualquer assunto, quem não entende nada de ficção científica tende a pensar que é tudo a mesma coisa – um grande erro, o que não quer dizer que não houvesse gente que lia todas essas revistas, assim como não há nada de errado em gostar de Shakespeare e também de Harry Potter. De qualquer modo, quando se firmou o suficiente como escritor para poder, ao menos na maioria das vezes, escrever da forma que melhor lhe parecesse, Asimov passou a dedicar-se quase exclusivamente ao que hoje chamamos de hard science-fiction, histórias solidamente ancoradas na ciência, que lidam com ideias complexas e são voltadas para um público maduro.

A primeira história que encontramos em O Futuro Começou é uma que Asimov havia batizado de Clandestino, mas teve o título trocado para A Ameaça de Calisto por seu editor, Frederik Pohl, que também viria a tornar-se um grande nome da ficção científica, embora menos famoso. Pohl era amigo de Asimov e tinha praticamente a mesma idade, mas já tinha obtido mais sucesso como escritor, e acabava de fundar sua própria revista, a Astonishing Stories. Lendo essa história, dá para entender porque ela havia sido recusada tanto pela Astounding quanto pela Amazing, e só pôde ser publicada graças ao nível de exigência mais modesto da Astonishing, o que não quer dizer que seja de todo má. Como outras histórias presentes neste livro, é uma aventura espacial, feita para entreter e que, durante a maior parte do tempo, consegue, mas nota-se que já aí Asimov gostava de dar ao que escrevia um fundamento científico rigoroso, ou, ao menos, tão rigoroso quanto possível; aqui, a ciência que mais se destaca é a física, para ser mais exato o magnetismo. Uma nave de exploração, com uma tripulação de veteranos, está rumando para Calisto, uma lua de Júpiter onde várias outras naves já desapareceram, sem que ninguém saiba o que lhes aconteceu. Durante a viagem, descobre-se que Stanley, um garoto de cerca de 13 anos, embarcou clandestinamente, ansioso por aventuras – ele declara que "fugiu para o espaço, como fazem nos livros", o que é um claro paralelo com todos aqueles maravilhosos livros de aventuras nos quais os garotos "fugiam para o mar". Como voltar é impossível, a missão prossegue com o pequeno intruso a bordo, e ninguém imagina como sua presença acabará sendo providencial.

(De fato, ser um jovem escritor de ficção científica naqueles tempos exigia muita garra. Pagava-se pouco, o que não afetava as exigências de qualidade para que uma história fosse aceita; por vezes o editor até se interessava por determinada história, mas pedia ao autor que a remodelasse – o que, fora o volume extra de trabalho, envolvia a frustração de ter que mexer num texto do qual o autor provavelmente gostava e se orgulhava; e, quando tudo isso era superado e chegava-se à publicação, não raras vezes o título era trocado e o escritor só ficava sabendo ao ver a revista na banca. A respeito do pagamento escasso, uma curiosidade: o valor de uma história era calculado não com base no número de páginas, mas de palavras. A Astounding, sendo a revista de maior gabarito, era também a que pagava melhor: um centavo [de dólar, naturalmente] por palavra, enquanto o valor praticado pelas outras era, em geral, de meio centavo. Hoje em dia, em tempos de Microsoft Word e assemelhados, é fácil saber quantas palavras tem um texto, mas me pergunto como isso era feito naquela época de máquinas de escrever manuais.)

A segunda história, Anel em Torno do Sol, também é uma aventura no espaço e também tem a física como pano de fundo, com duas curiosidades: apresenta uma forte veia humorística e tem como protagonistas Jimmy Turner e Roy Snead, dois pilotos da United Space Mail, que é exatamente o que o nome sugere: uma companhia de serviços postais espaciais. Asimov nos conta que pretendia usar a dupla em outras histórias, criando sua própria série, como alguns escritores da época faziam, mas, por motivos diversos, nunca o fez; conseguiria isso mais tarde com Gregory Powell e Michael Donovan, cujas aventuras podem ser lidas em Eu, Robô. Ainda não foi aqui que Asimov conseguiu criar sua primeira história realmente notável, mas a verdade é que a trama de aventura funciona e o humor também, o que é mais do que dá para dizer da terceira história, A Posse Magnífica, que é calcada na química e não consegue nem empolgar, nem causar um sorriso amarelo que seja. Para compensar, segue-se Tendências, que foi a primeira que Asimov conseguiu vender para a Astounding (as três primeiras foram publicadas em revistas menores), realizando seu sonho de anos e arrecadando alguns dólares a mais do que conseguira até então. A história trata da primeira tentativa humana de voo espacial e, mais especificamente, da resistência social que o pioneiro da cosmonáutica John Harman precisa enfrentar. A história se passa em 1973-74, durante um período de revivescência religiosa que teria se seguido aos horrores da Segunda Guerra Mundial – é bom lembrar que a história foi escrita entre o fim de 1938 e o início de 1939. Como toda pessoa bem informada da época, o jovem Asimov via que as crescentes tensões políticas na Europa levariam inevitavelmente a uma guerra que acabaria envolvendo também os Estados Unidos e outros países, mas ele arriscou o palpite de que ela começaria em 1940; começou em '39 mesmo, meses depois de a história ter sido publicada. Um dos resultados da guerra (na ficção de Asimov) foi que a população em geral pegou um trauma da ciência e da tecnologia, considerando-as responsáveis pelas catástrofes da guerra, e, por consequência, voltou-se para a fé e o misticismo, enquanto a pesquisa científica era de todas as formas desencorajada. A maneira como pessoas religiosas são retratadas na história sugere que, apesar de vir de uma família judia ortodoxa, Asimov nunca teve grande simpatia pela religião de modo geral (na maturidade, ele parece ter sido um agnóstico), talvez porque, como muita gente, enxergasse fé e ciência como adversárias irreconciliáveis – uma noção, no mínimo, altamente discutível, como comento num outro post. Seja como for, Tendências é, sem dúvida, superior às histórias anteriores. Nos comentários temos a confirmação de algo que eu já imaginava enquanto lia a história: o fato de o personagem-narrador, um ajudante direto de Harman, chamar-se Clifford, não é coincidência, e sim uma homenagem ao escritor Clifford D. Simak, um dos ídolos de Asimov desde seus tempos de simples leitor.

A Arma Terrível Demais Para Ser Usada (título comprido, deselegante e inexato, já que a tal arma é usada) é provavelmente inferior a Tendências, mas, pessoalmente, me agradou mais. Nela, a mesma história que aconteceu tantas vezes na Terra repete-se durante a exploração do sistema solar: os terráqueos invadem e colonizam Vênus, transformando os nativos em cidadãos de segunda categoria em seu próprio mundo. Os venusianos já foram uma raça poderosa, mas, na época retratada, estão reduzidos em número, e muito da herança cultural e científica de seus antepassados se perdeu, de modo que não possuem a mínima condição de oferecer qualquer resistência à tirania da Terra. Naturalmente, muitos terráqueos são contra o modo como os venusianos têm sido tratados, mas, até aquele momento, foram voto vencido. Até que dois amigos – um venusiano e um terráqueo –, explorando as ruínas de uma cidade sagrada em Vênus, descobrem um artefato dos antigos venusianos que pode mudar tudo. Concordo que a resolução da trama é extremamente ingênua, como observa Asimov depois que a história termina, mas não faz mal: ainda assim é boa ficção científica, e muito agradável de ler.

Mais curiosidades vão pipocando: O Futuro Começou inclui O Frei Negro da Chama, que Asimov havia intitulado originalmente Cruzada Galática, mas também esse título foi trocado à sua revelia. É uma história ambiciosa (talvez um tanto ambiciosa demais para o escritor naquela altura da carreira) sobre uma rebelião da espécie humana contra os lhasinu, uma raça reptiliana originária de Vega, que a havia dominado. Essa rebelião é guiada pelos "loaras", sacerdotes de uma religião influente naqueles dias. Além da inspiração óbvia, e que estava explícita no título original, outras passagens da História antiga e medieval parecem ter servido como referências. Embora a ideia seja boa, a história é bastante confusa e tem problemas de ritmo; na parte autobiográfica Asimov conta que foi a campeã de revisões em toda a sua carreira, tendo sido reescrita cinco ou seis vezes, e o leitor fica inclinado a concordar com sua conclusão de que submeter uma história a muitas revisões tem maiores probabilidades de piorá-la que de melhorá-la. Vale mais pela curiosidade de que é nela que são citados pela primeira vez os planetas Trantor e Santanni, que teriam papéis importantes na saga Fundação.

Conforme vamos lendo, percebemos que Campbell, por mais acessível e colaborativo que se mostrasse para com jovens escritores, tinha um nível de exigência que ele não afrouxava: em 1940, com dois anos de atividade e quase 20 histórias produzidas, Asimov só podia gabar-se de ter publicado uma única em Astounding. Em geral ele apresentava seus trabalhos primeiro a Campbell, e, quando eram rejeitados, tentava outras revistas, eventualmente com sucesso, mas também houve contos que ele já previa que Campbell rejeitaria e por isso nem submeteu a ele. Há histórias que dá para entender por que o editor recusou publicar – histórias agradáveis e interessantes, mas um tanto ingênuas para o padrão da Astounding, como Mestiço, que fala sobre os tweenies, nome dado aos mestiços de terráqueo e marciano, marginalizados e perseguidos (Asimov estava bem ciente da sorte que ele, sendo judeu, tinha de viver nos Estados Unidos, e não na Europa, naqueles dias), mas foi um choque para mim descobrir que Campbell também recusou Robbie, a primeira história daquilo que viria a ser conhecido como o ciclo dos robôs positrônicos, e a primeira que encontramos em Eu, Robô, talvez o livro mais famoso de Asimov. Uma coisa, aliás, não dá para deixar passar em branco: na mesma visita em que comunicou a Asimov a rejeição de Robbie, Campbell também lhe apresentou L. Sprague de Camp, então com pouco mais de 30 anos e já com uma carreira consolidada como escritor – o tipo de sujeito que, naqueles dias, o jovem Isaac encarava com um misto de admiração e inveja. Eventualmente, os dois se tornariam grandes amigos. Asimov relata o encontro de forma um pouco mais detalhada em sua introdução ao livro Construtores de Continentes, de De Camp, embora, nessa introdução, não explicite que a história que Campbell rejeitou na ocasião era Robbie. Essa história, por sinal, seria publicada por Frederik Pohl em sua Astonishing, sendo que, para manter-se fiel ao seu hábito, ele trocou o título, chamando-a de Strange Playfellow (algo como 'Estranho Companheiro de Brincadeiras'), título que Asimov, compreensivelmente, detestou. Em Eu, Robô, e em todas as demais coletâneas em que apareceu ao longo dos anos, o conto saiu sob o título original.

(Espero que haja alguns fãs hardcore de ficção científica me lendo, pois creio que seja o único tipo de leitor capaz de se divertir com essa espécie de curiosidade! – risos. Todos os outros já devem ter desistido deste post.)

Como um jovem autor que ainda estava afiando seus instrumentos, Asimov por vezes errava a mão ao superestimar o conhecimento científico médio de seus leitores em potencial, como nas histórias Homo Sol e Imaginário, que, juntas, são como que um esboço de série, já que o ambiente e alguns personagens são os mesmos em ambas. Campbell aceitou a primeira e rejeitou a outra (que seria, mais tarde, publicada em outra revista), a despeito da justificável crença de Asimov de que um conto com "antecedentes" seria olhado com mais interesse pelo editor. Nessas histórias se delineia, de forma ainda nebulosa (e, para falar sem rodeios, tosca) um universo que lembra o de Fundação: há muitas civilizações, mas são todas humanoides, e já desponta a ideia de que seria possível prever as reações de grupos humanos a determinadas situações por meio de cálculos matemáticos. Curiosamente, nesse universo os humanos da Terra são exceção num ponto-chave: são a única raça humanoide conhecida que, quando em grandes grupos, fica mais suscetível a emoções como raiva ou pânico; todas as outras raças tendem a ter um comportamento tanto mais estável quanto mais numerosa for a multidão. Essa e outras características peculiares fazem dos terráqueos um povo imprevisível, com o qual é preciso tomar cuidado. O mesmo universo descrito em Homo Sol e Imaginário aparece, ainda, na divertida O Trote, que se passa numa universidade frequentada por estudantes de vários planetas e raças. Nessa, entretanto, só a ambientação é a mesma, pois os personagens das outras duas não aparecem.

Mais uma curiosidade se junta a tantas outras que descobrimos neste livro: em seus primeiros tempos como escritor, Asimov teve a constante ambição de colocar histórias suas na revista Unknown, uma espécie de irmã da Astounding, publicada pela mesma editora e também coordenada por Campbell, só que voltada para a fantasia. Fez várias tentativas ao longo de anos, sendo sempre rejeitado; parece que Campbell mantinha a mesma linha dura ao selecionar o material que iria publicar, fosse qual fosse a revista ou o gênero. Quando, já em 1943, Asimov finalmente conseguiu ter uma história aceita para a Unknown, a revista acabou sendo cancelada antes que ela fosse publicada: estava-se em plena Segunda Guerra Mundial e os recursos andavam escassos, até mesmo o papel, o que forçou Campbell a escolher entre extinguir a Unknown ou reduzir a periodicidade da Astounding para bimestral. E a decisão que ele tomou, ainda que dolorosa, foi correta: Astounding ganharia mais e mais relevância durante os anos seguintes, e existe até hoje, embora seu nome tenha mudado para Analog Science-fiction and Fact, geralmente chamada apenas de Analog. A história vendida e não publicada apareceu, anos depois, como bônus numa coletânea dedicada às melhores histórias da Unknown, e também está incluída em O Futuro Começou; trata-se de Autor! Autor!, na qual, sinceramente, não vi nada de mais. Se Campbell a considerou uma evolução em relação às tentativas anteriores de Asimov no campo da fantasia, respeito sua expertise de editor, mas a história realmente não me empolgou.

Um dos raros exemplos que sobreviveram dentre as histórias de Asimov rejeitadas pela Unknown é O Homenzinho no Metrô, também presente em O Futuro Começou, e que não depõe muito a favor da qualidade geral desses trabalhos; é uma história com pouquíssimo pé ou cabeça, cujo principal objetivo parece ser o de satirizar a religião, e séria candidata a pior conto do livro. Para deixar tudo ainda mais curioso, é produto de uma parceria entre Asimov e Frederik Pohl, e só foi preservada porque, depois que Campbell a recusou, Asimov devolveu o original a Pohl, que, vários anos mais tarde, conseguiu vendê-la para uma revista obscura, provavelmente graças ao renome que tanto ele quanto Asimov haviam ganho durante esse intervalo. Pohl e Asimov ainda voltariam a escrever em dupla, e O Futuro Começou nos oferece outro exemplo, Ritos Legais, uma história de fantasma (as surpresas parecem não ter fim: Isaac Asimov escrevendo sobre fantasmas??), também destinada à Unknown e também rejeitada e mais tarde vendida para outra revista – e não uma revista qualquer: simplesmente a Weird Tales! (ver aqui e aqui) Foi a única vez que um trabalho de Asimov foi impresso na WT – e ganhou a capa. Pohl assinou com um de seus vários pseudônimos, "James McCreigh", que acabou sendo grafado errado. Essa história é melhorzinha que a outra, mas não criem muita expectativa.

(Muito mais tarde, já nos anos 80, Asimov viria a dedicar-se à fantasia com regularidade e certo sucesso, com as histórias de Azazel, um minúsculo demônio [ou talvez extraterrestre, não se sabe ao certo] que faz amizade com um sujeito chamado George, e, a partir daí, os dois, utilizando os poderes de Azazel, tentam ajudar diversas pessoas a resolver variados tipos de problemas – o que sempre dá errado da maneira mais engraçada possível. Nessa altura, já maduro e experiente, Asimov havia aumentado muito sua versatilidade enquanto escritor, mas também é bom levar em consideração que não mais precisava preocupar-se se suas histórias seriam aceitas ou rejeitadas, primeiro porque já era um autor consagrado, cujo nome na capa de uma revista era garantia de boas vendas, e, segundo, porque a maior parte das histórias de Azazel foi publicada na revista que levava seu nome e que ele próprio editava [e que teve versão brasileira, embora com vida curta]. Na minha opinião de leitor, essas histórias são divertidas, mas não estão nem de longe entre as melhores do autor. O grande combustível das aventuras de George e Azazel é o humor, e, falando francamente, as habilidades de Asimov para a comédia não eram tão notáveis quanto ele parecia acreditar que fossem. Suas piadas às vezes funcionam, às vezes nem tanto.)

O Futuro Começou não inclui a história Nightfall ('O Cair da Noite'), porque isso fugiria ao seu objetivo, que era disponibilizar aos leitores os contos menos conhecidos do começo da carreira de Asimov, que não estivessem presentes em coletâneas anteriores. Ainda assim, o autor não pôde furtar-se a um breve comentário sobre essa história, que foi um marco em sua carreira – afinal, como ele diz com palavras ligeiramente diferentes, qual era a probabilidade de que um rapazote de 21 anos, escrevendo profissionalmente há menos de três e tendo produzido apenas umas 30 histórias (várias delas rejeitadas pelos editores), de repente, não mais que de repente, escrevesse o que viria a ser um dos contos mais aclamados da história da ficção científica? Nightfall colocou Asimov, pela primeira vez, na capa da Astounding, e é sem dúvida uma história extraordinária de diversas maneiras. Eu a li pela primeira vez na adolescência e, desde então, creio que reli mais uma vez. Como estou passando por uma fase de reencontro com as obras de Asimov, é provável que acabe lendo de novo, e, nesse caso, vai figurar aqui no blog de forma mais detalhada.

Há ainda várias outras histórias, boas e nem tanto, e não acho necessário falar sobre uma por uma; algumas eu já havia lido em outros livros, como Não é Definitivo!, que aparece na antologia A Sonda do Tempo, editada por Arthur C. Clarke, só que com o título Não é a Última Palavra!, ou Natal em Ganimedes (outra das tentativas de Asimov de fazer humor; esta, em minha opinião, com sucesso mediano), que sei que também já havia lido antes, mas não consigo lembrar onde. Só há mais um conto que quero destacar, e esse por razões absolutamente pessoais. Refiro-me a Nenhuma Ligação! (No Connection!), publicada originalmente na Astounding em junho de 1948. No começo temos a impressão de que os personagens que aparecem em ação são humanos, mas depois nos damos conta de que isso é mera suposição e, por um indício encontrado aqui e outro ali, começamos a desconfiar que não é bem assim, até a coisa ser explicitada: a civilização que ali vemos retratada pertence a seres que se autodenominam gurrows (o nome científico é Gurrow sapiens), fisicamente semelhantes a ursos, e provavelmente descendentes deles – ou seja, tudo leva a crer que estejamos vendo a Terra num futuro extremamente distante, quando o homem já não existe há muito tempo, o que abriu espaço para a ascensão de outra espécie inteligente, e os ursos, ao que podemos supor, evoluíram nessa direção. A sociedade deles é muito pacífica e verdadeiramente igualitária, sem as mazelas que sempre apareceram ao longo da História humana quando se tentou estabelecer uma "igualdade". Cada gurrow ocupa-se do tipo de trabalho que mais lhe agrade, desde que este seja útil à sociedade, e, se há uma tarefa da qual ninguém gosta, mas que é necessária, equipes são formadas para realizá-la por turnos, em sistema de revezamento. Por exemplo, um deles pode gostar de cultivar jardins e ter isso como profissão, mas, uma ou duas vezes por mês, tem que juntar-se a um grupo que vai fazer a limpeza das fossas sépticas, e dedicar-se a essa tarefa durante algumas horas. E, se aparecer alguém que goste de limpar as fossas sépticas, bem, esse gurrow irá trabalhar com isso, liberando outros de uma ocupação que, para eles, não é agradável. E o mais interessante: para os gurrows, a noção de profissões prestigiosas ou desprezadas é completamente desconhecida. Um limpador de fossas sépticas e um reitor de universidade, por exemplo, ganham a mesma coisa e estão em completa igualdade social, tendo, aos olhos de todos os outros, o mesmo status. A história dá a entender que esse estado de coisas não é resultado de nenhum tipo de política: são apenas os "gurrows sendo gurrows". O conceito é fascinante, não só a descrição de uma sociedade assim, mas a própria ideia de outra espécie inteligente evoluindo na Terra; porém, se eu fosse escrever essa história, acho que escolheria como base algum outro tipo de animal (não sei ao certo qual), já que os ursos são seres essencialmente solitários, que praticamente só convivem com outros de sua espécie para fins reprodutivos e durante curtos períodos, de modo que dificilmente desenvolveriam inteligência (a vida em grupo parece ser requisito para isso), e, ainda que a desenvolvessem, não acho provável que criassem uma sociedade complexa. Mas isso ainda não é tudo: parece que o impulso exploratório não é uma característica dos gurrows, pois faz poucos anos que eles descobriram que existem outros continentes além daquele em que habitam – e, surpresa, num deles existe outra espécie inteligente, essa derivada dos chimpanzés. Um grupo desses estranhos acaba de chegar à terra dos gurrows numa aeronave, e eles se dizem "refugiados políticos" – outra noção que a mente dos "ursos" não é capaz de conceber, mas que parece familiar aos recém-chegados, que chamam a si mesmos de ikas. Pelo visto, mesmo com a humanidade extinta, primatas serão sempre primatas.

Creio que é chegada a hora do apanhado geral, então vamos a ele. No que se refere às histórias, O Futuro Começou é irregular como noventa e nove por cento das coletâneas, com momentos excelentes e outros que testam nossa paciência, e, como já observei antes, isso não causa surpresa, já que, até aproximadamente a metade do volume, o que estamos lendo são os trabalhos de um autor inexperiente, ainda em busca de sua verdadeira "cara" como escritor; já os trechos autobiográficos ampliaram bastante o meu conhecimento a respeito da trajetória desse que foi um dos mais importantes autores de ficção científica, esclarecendo, inclusive, os motivos de algumas características conhecidas de certas obras suas. Portanto, em resumo, é um livro que deve ser recomendado a todos os que gostam de Asimov. Quanto à qualidade desta edição em particular, bem… Todo leitor brasileiro de ficção científica tem uma relação de carinho e gratidão com a editora Hemus, que durante muitos anos colocou ao nosso alcance muito do melhor que existe no gênero mundo afora; esse design inconfundível de seus volumes de capa branca, com o nome do autor em vermelho e preto no alto, sempre nos trará recordações agradáveis. Porém, nem mesmo tudo isso foi suficiente para me fazer fechar os olhos a todas as falhas que encontrei aqui. São creditados os nomes de três tradutores diferentes, sem que haja indicação de quais histórias cada um traduziu, e, em muitas delas, qualquer leitor que conheça a língua inglesa detectará erros ingênuos, que, a meu ver, seriam admissíveis se cometidos por um estudante de nível básico a intermediário, nunca por um tradutor habilitado. E, igualmente incrível, o revisor também os deixou passar… Talvez a editora Aleph, que anda relançando muitos livros de Asimov que há muito tempo estavam fora de ca-tálogo no Brasil, se anime a fazer uma nova edição de The Early Asimov, mais bem cuidada desta vez.

sábado, janeiro 06, 2018

Nave Escrava

Frederik George Pohl Jr., ou apenas Frederik Pohl (1919-2013) foi um dos maiores escritores de ficção científica de todos os tempos, mesmo que não seja tão famoso quanto um Isaac Asimov ou um Arthur C. Clarke (que são provavelmente os dois únicos escritores de ficção científica cujos nomes um não-fã do gênero talvez conheça). Além de ter sido um autor prolífico e ganho uma série de prêmios, incluindo os cobiçados Hugo e Nebula, sua atuação como editor contribuiu de modo importante para o crescimento e a popularização da ficção científica. Começou a editar praticamente ao mesmo tempo em que começou a escrever, em sua adolescência, durante a década de 1930, criando fanzines nos quais publicava, além de suas próprias histórias, as de outros autores iniciantes que depois ganhariam renome. Em 1937, Pohl esteve entre os membros fundadores dos Futurians, um misto de clube e sindicato informal de jovens escritores e fãs de ficção científica. Mais tarde, já atuando de forma profissional, fundou duas revistas, Astonishing Stories e Super Science Stories, que apresentaram ao público vários dos primeiros trabalhos de sujeitos como Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, Ray Bradbury, entre outros. Nada mau, não é? Além disso, durante cerca de dez anos foi editor da prestigiosa Galaxy Science Fiction. Pohl e Asimov eram amigos próximos, e o segundo costumava contar que, depois do lendário editor John W. Campbell Jr., Pohl foi provavelmente quem lhe deu mais dicas e direções úteis durante os primeiros anos de sua carreira, pois, embora os dois tivessem praticamente a mesma idade (Pohl nasceu em novembro de 1919, Asimov em janeiro de 1920), era bem mais desenvolto que ele, possuía muitos contatos e tino para os negócios – e isso apesar de Asimov ser o judeu da dupla. Os dois chegaram a escrever algumas histórias em parceria, e, durante um curto período, Pohl atuou como agente literário para Asimov, o único agente que ele teve em toda a carreira. Como muitos escritores que também atuavam como editores, Pohl muitas vezes usava pseudônimos – no caso dele, vários, o que torna meio complexa a tarefa de catalogar suas histórias publicadas. Por fim, o autor tinha muitos outros interesses além da ficção científica, um deles a História, tendo o Império Romano como um de seus períodos favoritos: mesmo não possuindo titulação formal em História, ele chegou a ser a autoridade oficial sobre o imperador Tibério para a Encyclopædia Britannica. Essa intimidade de Pohl com os assuntos da Roma antiga terá relevância para um futuro post que já estou planejando.

Nave Escrava foi publicado pela primeira vez de forma serializada na Galaxy, em 1956 (isso foi antes de Pohl tornar-se editor da revista), ganhando a primeira edição em livro no ano seguinte. É uma aventura militar ambientada numa guerra fictícia que reúne, de um lado, uma coalizão de nações principalmente do ocidente (mas incluindo a Rússia), lideradas pelos Estados Unidos (é claro!), e, do outro, uma aliança oriental que tem como fator de união uma tal religião Caodai (que, para minha surpresa, descobri ser uma religião real, de origem vietnamita – ou, pelo menos, existe uma religião real com esse nome). Os Caodais não têm nacionalidades definidas, mas parecem ser predominantemente asiáticos. Segundo o protagonista-narrador Logan Miller, um tenente da marinha americana, trata-se, tecnicamente, de uma guerra fria (expressão que era novidade nos anos 50), mas uma "guerra fria" notavelmente quente. Explicando melhor: até aquele momento, nenhum dos lados atacou alvos ou desembarcou tropas em territórios continentais que estejam sob o domínio ou a proteção do outro lado, mas a mesma regra não se aplica a ilhas, e confrontos navais em mar aberto são frequentes. De maneira geral, todos concordam que a eclosão de uma guerra de verdade é inevitável e apenas questão do tempo.

As coisas estão nesse pé quando Miller é transferido de seu posto a bordo de um submarino para uma base de pesquisa no litoral da Flórida, onde está em andamento o Projeto Mako, que consiste numa série de estudos bem curiosos: a marinha tem um vivo interesse em ampliar o conhecimento sobre as linguagens das diferentes espécies animais. Nesse futuro imaginado, progressos consideráveis já foram obtidos nessa área – por exemplo, fazendeiros já podem instruir vacas ou ovelhas para que comam o capim nos campos de cultivo sem comer a plantação –, mas agora o objetivo é ir muito além disso, tornar possível efetivamente conversar com cães, porcos, macacos etc. Qual a intenção da marinha com isso, nem mesmo os pesquisadores sabem ainda.

Pohl chega a citar o trabalho de um cientista real, Konrad Lorenz (1903-1989), zoólogo e etólogo austríaco – etologia é o ramo da biologia que estuda o comportamento animal. Lorenz trabalhou durante muito tempo com aves, em especial gansos e gralhas. Foi ele quem descreveu o fenômeno do imprinting, que consiste na formação de um vínculo instantâneo: aves recém-nascidas passam a acompanhar o primeiro objeto animado que avistarem ao sair do ovo. Normalmente esse "objeto" é a mãe (ou o pai, que, em muitas espécies de aves, é o principal responsável pelos cuidados com a prole), mas, se por azar eles não estiverem no ninho no momento em que o ovo eclodir, e qualquer outro animal estiver passando… Bem, digamos que é provável que as coisas não terminem bem para esse filhote.

Para os fins de Nave Escrava, porém, têm maior interesse outros resultados obtidos por Lorenz: ele chegou a construir um vocabulário, ainda que limitado, do "idioma gralhês", associando significantes e significados, tal como no estudo de um idioma humano, e graças a isso, conseguiu de fato se comunicar com as gralhas, que, junto com seus primos, os corvos (sabemos hoje), estão entre os animais mais inteligentes. Enfim, Lorenz era praticamente um Dr. Dolittle da vida real; não causa surpresa que fosse o cientista mais admirado pelos integrantes do Projeto Mako, e que seu trabalho seja de extrema importância para eles.

No Projeto Mako, a tarefa de Logan Miller é operar o computador – tenham em mente que o livro foi escrito nos anos 50, e, mesmo que Pohl estivesse tentando imaginar um futuro dali a algumas décadas, a noção que ele tinha a respeito de computadores é a dos que existiam naquele tempo: eles ocupavam salas inteiras (em casos extremos, todo um prédio) e precisavam ser manejados por técnicos especializados. Os dados que o computador do Projeto está processando são os diferentes sons e gestos dos animais – cães, macacos, porcos, vacas e até focas – para, por meio da análise de padrões de repetição e combinação, tornar mais rápida a tarefa dos pesquisadores de descobrir o significado de cada um desses gestos e sons. Na base, o colega de quarto de Miller é o tenente russo Semyon Timiyazev, cuja mãe foi aluna e assistente de Ivan Pavlov (1849-1936), médico e fisiologista que se celebrizou por ter descrito o fenômeno do reflexo condicionado em animais. Seu experimento mais clássico nos parece hoje simples e até meio óbvio, mas Pavlov teve o mérito de ser o primeiro a demonstrar a coisa de maneira científica: se você sempre tocar uma sineta ao alimentar um cão, depois de algum tempo bastará tocar a sineta para que ele comece a salivar, mesmo que não haja comida alguma à vista. Timiyazev aplica muito do que aprendeu com a mãe em prol do Projeto, e é graças a sua amizade com ele que Miller acaba tendo envolvimento direto com os animais, o que, em princípio, não estaria previsto na descrição de suas funções.

A sociedade descrita no livro é semelhante em linhas gerais àquilo que um norte-americano típico dos anos 50 conhecia, mas com algumas diferenças importantes, uma delas uma acentuada militarização, decorrente do estado de "guerra fria", que, por sua vez, veio depois de outras guerras, como a Guerra Curta, mencionada só de passagem, na qual os Estados Unidos teriam batido a União Soviética, o que parece não ter gerado ressentimentos, nem no nível diplomático (os dois países agora são aliados) nem no nível individual (Logan e Semyon são bons amigos). Os dois jovens oficiais frequentam um lugar na cidade próxima que apresenta regularmente shows de strip-tease, sendo que as performers são todas militares, algumas delas oficiais. Era a esse tipo de coisa que eu me referia ao falar na militarização da sociedade!…

Outra diferença entre ficção e realidade é que, em Nave Escrava, o conhecimento a respeito dos fenômenos de ESP (percepção extrassensorial, na sigla em inglês) está muito desenvolvido, ao ponto de existirem profissionais que oferecem ao público, de forma comercial, serviços que permitem que a pessoa se comunique telepaticamente com entes queridos distantes, tal como nos anos 50 havia empresas de telefonia que faziam o mesmo. O problema é que pessoas com essa habilidade, ou as que utilizaram seus serviços recentemente, ficam mais vulneráveis ao que se acredita ser uma arma secreta dos Caodais, o Glotch, que produz queimaduras sem causa aparente, podendo ferir gravemente ou matar. Tirando o fato de que atinge com mais frequência os extrassensoriais, nada se sabe sobre essa arma ou seu funcionamento, e as coisas ficam mais complicadas quando se descobre que há Caodais sendo atingidos também… O clímax da história chega quando Logan e Semyon são destacados para uma missão no Oceano Índico, integrando a tripulação de um gigantesco porta-aviões submarino que se dirige à ilha de Madagáscar, onde existe uma base Caodai que até há pouco era secreta. Os dois tenentes são encarregados de um pequeno submarino, transportado pelo porta-aviões e que pode ser ejetado para missões de curta distância – e nessa subnave, mais que apenas comandantes, eles são os únicos membros humanos da tripulação. Não posso ir mais adiante sem dar spoiler; digo apenas que o final claramente procura surpreender, e de certa forma consegue, mas, pessoalmente, achei-o muito repentino.

Nave Escrava é um livro curto e simples, baseado numa ideia inovadora para a época (e que, pelo menos até onde sei, tampouco foi muito explorada depois), e tem o mérito de recorrer pouquíssimo aos clichês mais batidos da ficção científica, sem com isso deixar de ser ficção científica na completa acepção do termo, o que faz dele um bom exemplo da versatilidade que, na minha opinião e na de muitos outros leitores, constitui uma das qualidades mais atraentes desse gênero literário. Não é, com certeza, uma das obras essenciais de Frederik Pohl, mas é uma leitura que entretém, e pode servir como uma boa introdução para quem ainda não conhece o autor.

quarta-feira, maio 22, 2013

Encantamentos

Certa vez, no editorial da revista de ficção científica que levava seu nome (e que chegou a ser publicada no Brasil, onde sobreviveu por 25 edições), Isaac Asimov propôs uma teoria classificando seus leitores (e os de publicações do gênero de modo geral) entre "exclusivistas" e "inclusivistas". Exclusivistas seriam aqueles que têm noções muito precisas a respeito do que esperam encontrar nas páginas de uma revista de ficção científica, e tendem a ficar contrariados com qualquer desvio da "norma": esse é o tipo de leitor que escreve ao editor para reclamar que tal ou qual conto é de fantasia, e, portanto, não deveria ter sido publicado numa revista que se pretende de ficção científica. Inclusivistas, em contrapartida, seriam os que, ou não têm uma definição muito rígida do que distingue seu gênero favorito, ou até têm uma definição, mas não a levam muito a sério: em princípio, não se opõem à publicação eventual de histórias que não sejam necessariamente de ficção científica, desde que tenham qualidade. Asimov concluía, se não me falha a memória, dizendo-se, ele próprio, um exclusivista enquanto escritor e, até certo ponto, também enquanto leitor, confessando, porém, que, por vezes, a única resposta que podia dar às reclamações veementes dos exclusivistas mais radicais que liam a revista, era que concordava que o conto em questão não se tratava de ficção científica - só que havia gostado tanto da história, que, como editor, sentira que não podia deixar de publicá-la, independentemente do gênero.

Felizmente, as reservas de Asimov em relação à literatura de fantasia, quaisquer que fossem, não o impediram de unir forças com Charles G. Waugh e Martin H. Greenberg para organizar a série de coletâneas Os Mundos Mágicos da Fantasia, da qual Encantamentos é o primeiro volume. Bem, "série" talvez seja exagero: pelo que me consta, existe apenas mais um volume, Magos. Um terceiro livro, Mutantes, embora com a capa seguindo o mesmo projeto gráfico, e coordenado (se não me engano) pelo mesmo trio, é voltado para a ficção científica.

O maior mérito de compilações como esta é o de tornarem novamente disponíveis histórias que talvez só tivessem sido publicadas antes em antologias há muito esgotadas, ou mesmo em revistas que são hoje itens de colecionador ("novamente" para os norte-americanos, é claro, pois, para nós, esta é a primeiríssima oportunidade de ler a grande maioria desses contos). E são histórias que vale a pena conhecer, pois representam um pouco do melhor que se pode encontrar em matéria de ficção curta ou média no gênero de fantasia. As três únicas que lembro de já ter visto publicadas em outro lugar são as dos autores mais conhecidos do público em geral: O Menino Invisível, do gigante Ray Bradbury, que (mais uma vez confiando na memória) está na antologia de autor único Os Frutos Dourados do Sol; Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, presente anteriormente numa velha edição dedicada a seus contos não-Sherlock Holmes e, recentemente, também em Góticos; e Eu Sei do que Você Precisa, de Stephen King, encontrável em Sombras da Noite. Ao lado destas, Encantamentos apresenta-nos um punhado de pérolas de imaginação e de escrita. Um (para mim) ilustre desconhecido que atende por Robert Arthur comparece com Satã e Sam Shay, conto que, com sua combinação magistral de humor e elementos sinistros, chega muito perto da perfeição como história cujo objetivo é divertir e entreter. Trata das atribulações de Sam Shay, um malandro de marca maior, que jamais na vida considerou seriamente a possibilidade de trabalhar, acostumado que está a viver à custa de apostas, e acaba por granjear tamanha reputação nesse métier, que seus conhecidos, divididos entre a admiração e o despeito, começam a dizer que "Sam Shay é capaz de fazer três apostas com o diabo, e ganhar todas elas". Até que Satã em pessoa ouve os comentários, e, sendo ele próprio um notório apreciador de jogatinas, decide aparecer para tirar a prova…

Andre Norton leva-nos, em Os Sapos de Grimmerdale, a visitar um mundo medieval imaginário, mais exatamente um país que acaba de emergir de uma guerra cruel, tendo conseguido, com muito sacrifício, repelir uma invasão bárbara. Agora a terra vive os tempos de escassez e confusão que sempre se seguem às guerras, e, em muitos lugares, sofre com a falta de lideranças, já que grande parte de seus homens adultos e capazes (incluindo muitos de seus lordes) tombou no campo de batalha. Esse é o cenário por onde perambula Hertha, uma jovem de estirpe nobre que caiu em desgraça ao ser estuprada - seu irmão expulsou-a do feudo da família, como se ela fosse culpada do acontecido. Ainda pior: o responsável pela violação não foi um dos invasores, mas um homem de seu próprio povo. Agora, grávida e desamparada, ela está em busca de vingança, e, para conseguir seu objetivo, está disposta a tudo, até mesmo a barganhar com os seres misteriosos que habitavam a região antes da chegada dos humanos, e que agora vivem escondidos e, segundo se diz, conhecem magia antiga e poderosa.

Outro mergulho empolgante em um mundo de guerreiros, magos e criaturas fantásticas é proporcionado por Gerald W. Page, que, em O Herói que Voltou, nos conta sobre o dilema de Dunsan (o nome do personagem é uma discreta, porém clara homenagem a Lord Dunsany, escritor pioneiro do gênero sword & sorcery do início do século XX), um homem já de certa idade que, depois de ter ganho a vida como agricultor e como ferreiro, acabou tornando-se balseiro, e agora faz travessias num rio. Detalhe: tudo o que existe na outra margem, por uma grande extensão, é uma região selvagem e uma velha e arruinada fortaleza que todos acreditam ser assombrada… Por causa disso, só um tipo de passageiro vem pedir transporte a Dunsan: heróis rumando para a tal fortaleza para enfrentar o que quer que exista lá, e tentar pôr fim à maldição. Esses audazes aventureiros vão, mas jamais voltam, de modo que o balseiro tem que conviver com o fato de que a comida que ele coloca na mesa para si próprio e para sua esposa vem de levar homens para a morte certa. Para completar, ele teme que a esposa, Maelwyd, bem mais jovem que ele e sonhadora por natureza, esteja insatisfeita com a vida rotineira que levam, e a presença, ainda que ocasional e breve, de todos aqueles guerreiros cheios de histórias fascinantes para contar não contribui para tranquilizá-lo. Até que, numa viagem que em nada parece diferente de inúmeras outras, Dunsan descobre que também é capaz de atos heroicos.

É claro que nem todos os contos são tão legais assim. A Feiticeira Está Morta, de Edward D. Hoch, até começa bem, com algumas estudantes de um colégio interno adoecendo misteriosamente depois que uma velha charlatã conhecida como Mãe Sorte (que, na juventude, fora expulsa do mesmo colégio) lhes roga uma maldição, e quem aparece para investigar é um tal Simon Ark, "detetive especializado em casos de ocultismo e feitiçaria", um homem que, a julgar por diversos indícios, parece ter séculos de idade. O enredo poderia render uma boa história, mas Hoch faz questão de estragar tudo trazendo uma "explicação lógica e racional" para o que parecia ser um fato sobrenatural - no melhor estilo Scooby-Doo -, e é difícil pensar em coisa mais frustrante e irritante que isso para qualquer verdadeiro apreciador da literatura do insólito, que começa a ler uma história de boa-fé, só para descobrir-se ludibriado dessa forma.

Mas não se assustem: não é essa bobagem que irá fazer com que deixe de valer a pena ler Encantamentos, pois o livro tem muito mais coisas a oferecer, e muitíssimo melhores. Particularmente empolgante é encontrar em suas páginas uma história que integra uma das mais monumentais séries de espada e magia já escritas, a das aventuras de Fafhrd, o bárbaro, criadas pelo norte-americano de ascendência alemã Fritz Leiber (1910-1992), que as escreveu durante quase 50 anos: a primeira é de 1939, e a última, de 1988. As Mulheres da Neve, presente em Encantamentos, não foi uma das primeiras a serem escritas (a publicação original é de 1970), mas, pela cronologia interna, talvez seja mesmo a primeira de todas, pois nela Fafhrd é adolescente e ainda vive em sua terra natal, no Canto Frio - uma região inóspita e gelada do norte do mundo de Nehwon -, começando a insurgir-se contra a tirania da mãe, Mor, que, por falar nisso, é uma líder entre sua gente e uma feiticeira temida, não necessariamente nessa ordem. E Fafhrd não é de modo algum o único homem do Povo da Neve a viver na rédea curta sob o controle de uma mulher, seja mãe, esposa ou outra: trata-se de uma sociedade fortemente matriarcal, e na qual as mulheres não dependem apenas da força dos costumes para manter seus homens dominados - na verdade sua magia, toda baseada no frio, no gelo e na neve, é um "argumento" bem mais eficaz que qualquer costume. E, embora não tenha como provar, Fafhrd nutre grandes suspeitas de que a morte de seu pai tenha sido obra dos poderes de Mor, enraivecida por não conseguir dobrar o espírito independente do marido. Há mais: o rapaz sente-se entediado e oprimido com a vida no Canto Frio, e seu interesse pelo sul civilizado e de clima mais ameno só tem aumentado durante os meses que passaram desde que participou de sua primeira expedição pirata para aqueles lados (essas expedições parecem ser mais ou menos uma tradição - um toque viking na caracterização do Povo da Neve). E o acúmulo do descontentamento provocado por todos esses fatores vai fazendo com que Fafhrd - um jovem de sentimentos intensos, embora seus atos sejam frios e calculados - fique cada vez mais inclinado a tomar uma atitude drástica.

Encantamentos termina em grande estilo, com Os Milagreiros, do sempre magnífico Jack Vance, uma história de fantasia com background de ficção científica. Num passado distante (que para nós é futuro), 1600 anos antes dos fatos que vão ser narrados, aconteceram as agora legendárias guerras interestelares, e, no caos que veio depois delas, alguns planetas que a Terra havia colonizado foram esquecidos, ficando sem contato com o resto do universo humano. Pangborn foi um deles. Ao longo dos séculos, seu povo foi-se esquecendo da tecnologia, e agora os descendentes dos antigos viajantes espaciais vivem de maneira praticamente medieval. Com um detalhe curioso: na opinião dos pangbornianos de hoje em dia, o que houve foi progresso. Eles consideram os antigos uma gente primitiva e supersticiosa, que depositava sua confiança em "milagres" (é assim que os personagens se referem à tecnologia e a tudo o que dela derive, mas sem que o uso dessa palavra traga qualquer conotação de admiração; pelo contrário, ela é pronunciada com desprezo), e orgulham-se de atualmente utilizarem-se de meios mais lógicos e racionais para alcançar seus objetivos: feitiços, maldições, invocação de demônios… Apesar disso, algumas heranças dos dias antigos ainda são usadas, seja porque podem trazer vantagens práticas ou como meras insígnias de tradição e status: nobres de ilustres famílias antigas levam na cintura pistolas laser que não funcionam e que, de todo jeito, eles não saberiam manejar, e Lorde Faide, um dos protagonistas, locomove-se num carro que flutua acima do solo, mas que dá claros sinais de estar nas últimas. No topo da fortaleza que leva o nome de sua família, Faide mantém o temido "Boca do Inferno", um canhão energético outrora removido de uma nave de combate arruinada, e que constitui agora sua principal arma defensiva. Há um atendente cuja única tarefa é cuidar do Boca do Inferno - mas tudo o que ele faz é polir e azeitar a superfície metálica da arma, sem que lhe ocorra a possibilidade de algo como uma manutenção interna, pela simples razão de que nem ele, nem ninguém no planeta tem a mínima ideia de como uma coisa daquelas funciona. A não ser quando o Boca do Inferno ou seus congêneres de outras fortalezas entram em ação, a maior parte do combate praticado em Pangborn - onde, por sinal, os conflitos de poder entre os diferentes feudos parecem ser comuns -, é realizada usando cavalos, espadas, arco e flecha e assim por diante, à moda medieval mesmo. Porém, todo lorde sagaz sabe que tão importante quanto ter um exército aguerrido é dispor de uma boa equipe de azarentos, que são uma categoria de feiticeiros profissionais, encarregados de fazer mandingas contra o exército oponente, podendo também invocar demônios, mas somente em situações de extrema necessidade, pois o esforço e o dispêndio de energia envolvidos nisso são enormes, muitas vezes deixando o azarento à beira da morte; por isso mesmo, apenas os mestres da azaração se atrevem a fazê-lo. Os demônios, a propósito, podem servir a dois objetivos: espalhar o terror entre os inimigos ou inspirar um estado semelhante à fúria berserker nos soldados de seu próprio exército. Lorde Faide tem a seu serviço Hein Huss, tido por muitos como o maior azarento vivo, e Huss, por sua vez, tem um aprendiz, Sam Salazar, amiúde ridicularizado tanto por seu medíocre talento na arte de azarar, quanto por cultivar um interesse sem cabimento pelos "milagres" dos antigos. Mas talvez chegue o dia em que nem a espada nem o azar poderão salvar o Forte Faide, e então todos tenham que depositar suas esperanças nas ideias tresloucadas do adolescente que até aí consideravam um pateta. Enfim, Os Milagreiros é tudo aquilo que um leitor de Jack Vance está acostumado a esperar dele, e dizer isso é suficiente para chegar à conclusão de que vale, e muito a pena lê-lo.

Com os altos e baixos inevitáveis (e os baixos são realmente poucos), o mesmo pode ser dito de Encantamentos como um todo: temos aqui um livro que constitui companhia perfeita para muitas horas de viagens de imaginação, para quem quer dar-se um tempo para ler por prazer, deixando de lado todas as demais preocupações e tirando uma folga da dura realidade. E que bem isso faz…

quarta-feira, novembro 12, 2008

Construtores de Continentes

“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Nossa tragédia é que não temos um mínimo de auto-estima.” (Nelson Rodrigues)

Em primeiro lugar, não, eu não sou fã de Nelson Rodrigues. Concordo que todo escritor que tenha a pretensão de dar alguma profundidade ao que escreve não pode furtar-se, por vezes, a ter de retratar as torpezas e o mal inerente aos seres humanos, mas tenho para mim que isso deve ser feito quando necessário. No meu entender, um escritor que escolhe sempre e deliberadamente como tema o que existe de pior na humanidade, não está contribuindo para criar nada de bom, e não terá a minha admiração. Excesso de idealismo? Talvez; podem chamar do que quiserem.

Mas, mesmo não simpatizando com o dramaturgo carioca, não vou tirar os méritos que ele tenha, e um deles é o de ter forjado um punhado de frases certeiras e perfeitas sobre vários assuntos. A que escolhi para abrir este artigo é minha preferida, e tem a ver com meu tema.

Dias atrás, visitando a Feira do Livro de Porto Alegre, tive a grata surpresa de encontrar numa caixa de saldos o livro Construtores de Continentes, do autor norte-americano L. Sprague de Camp, que já havia lido nos meus saudosos 14 ou 15 anos, época do meu maior furor no que se referia à ficção científica. Batido pela nostalgia, comprei o livro por um valor simbólico qualquer e, no trem mesmo, durante a viagem de volta para São Leopoldo, comecei a relê-lo, experimentando uma sensação muito semelhante à de reencontrar um velho amigo.

Dá um certo desespero perceber que, não bastasse o fato de que não viverei o suficiente para ler todos os livros que gostaria (e ver todos os filmes, estudar todos os assuntos, visitar todos os lugares...), ainda há esse outro fato: o de que muitos livros, dentre os que já li, mereceriam, se fosse possível, uma segunda leitura, à luz de tudo o que aprendi e vivi desde meu primeiro contato com eles. É o caso de Construtores de Continentes, pois a nova leitura me levou a pensar coisas que não ocorreram ao garoto que eu era 20 anos atrás.

Lyon Sprague de Camp (1907-2000) foi o que poderíamos chamar de escritor polivalente, pois, além de ficção científica, escreveu fantasia, romance histórico, mistérios, poesia e sabe Deus o que mais. Foi um nome importante durante a Era de Ouro da ficção científica, e amigo pessoal de vários outros autores famosos, entre eles Isaac Asimov, que, aliás, prefaciou este livro. Construtores de Continentes não é um romance - inclui duas novelas independentes entre si, embora ambientadas no mesmo futuro imaginário. A primeira passa-se em 2137, chama-se Moto-contínuo, e narra as aventuras de Felix Borel, um trambiqueiro profissional que decide tentar a sorte em Krishna, um planeta de descoberta relativamente recente, habitado por uma raça espantosamente semelhante aos terráqueos, só que com algumas características insectóides, e com um nível tecnológico pouco mais que medieval. Justamente por terem, até então, convivido pouco com os terráqueos, os krishnianos ainda são passíveis de serem enganados por golpes em que, na Terra, ninguém mais cai há muito tempo - ou seja, o planeta é um paraíso para trapaceiros como Borel, que, no entanto, vai descobrir, às suas próprias custas, que nada é tão fácil quanto parece.

A segunda novela, que dá título ao livro, começa em 2153 e fala sobre um projeto que está sendo implementado para criar um novo continente no Atlântico, entre a América do Sul e a África. Por meio de engenharia tectônica, os cientistas e técnicos do século XXII esperam aumentar o espaço vital disponível para a humanidade na Terra, independentemente da eventual migração para outros planetas.

Agora é que chegamos ao ponto verdadeiramente importante... Por mais interessantes que sejam os enredos dessas duas histórias, não são elas que mais chamam a atenção dos leitores brasileiros, e sim um "detalhe" do pano-de-fundo: no futuro imaginado por De Camp, os Estados Unidos decaíram de sua posição de liderança mundial, que passou a ser exercida por uma nova superpotência... Imaginam qual? Sim, meus amigos, o Brasil.

Ao contrário de muitos outros escritores (e dos norte-americanos em geral), De Camp realmente conhecia alguma coisa sobre o Brasil - no texto original em inglês apareciam diversas palavras em português, que o tradutor teve a boa idéia de assinalar para nossa referência. O departamento de abrangência mundial que cuida das idas e vindas dos viajantes espaciais chama-se Viagens Interplanetárias - assim mesmo, em português, porque a coisa toda é controlada e administrada por brasileiros. De Camp não teria incluído isso em seus livros se não acreditasse pelo menos na possibilidade de tais coisas - e ele era norte-americano... E nós, que somos brasileiros? Nós acreditamos que possamos chegar lá??

É difícil dizer até que ponto o nosso povo criou o autoconceito que tem, e até que ponto simplesmente comprou a imagem de si mesmo que é vendida pelos "gringos", mas o que se observa é que o brasileiro, quase sempre, acredita que sua função no mundo é simplesmente a de ser o cara alegre, hospitaleiro e "caloroso", e que a vocação do Brasil é a de um "país-colônia de férias", para onde americanos, europeus, japoneses e demais habitantes do "Primeiro Mundo" vêm quando querem praia, sol e festa - porque, tanto na visão desses estrangeiros quanto, infelizmente, na dos próprios brasileiros, tudo o que o nosso país tem para oferecer são praia, sol e festa! Tem sido assim por tanto tempo, que é difícil para a maioria dos brasileiros encarar a possibilidade de fazerem parte de algo sério e importante, ou de que seu país possa um dia ocupar uma posição de destaque no cenário mundial. Pois isso exigiria um esforço sério e comprometido, cujos resultados só seriam visíveis a longo prazo, e, ainda mais importante, exigiria que acreditássemos ser capazes. Seria necessário que víssemos em nós mesmos força de vontade e inteligência (qualidades que, infelizmente, não estamos acostumados a associar ao nosso próprio povo como um todo), e capacidade latente para fazer mais do que apenas organizar o maior carnaval do mundo. Quero muito acreditar que, se não a nossa geração, a de nossos filhos ou netos há de acordar desse torpor de séculos e se dar conta de que tudo o que qualquer outro povo foi (ou será) capaz de realizar, também está ao nosso alcance, desde que queiramos e acreditemos.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Eu, Robô

Isaac Asimov nasceu em Petrovich, na então União Soviética, em 02 de janeiro de 1920, e faleceu em Nova York, onde morava, em 06 de abril de 1992. Entre uma coisa e outra, teve tempo de ser um dos mais prolíficos e admirados escritores norte-americanos do século XX (pois, apesar de nascido na Rússia, mudou-se com a família para os Estados Unidos aos três anos de idade, e sempre se considerou um cidadão americano). Desde pequeno foi um leitor voraz, e, graças à leitura das revistas de ficção científica mais populares da época, desenvolveu também o entusiasmo pela ciência. Formou-se em Bioquímica na Universidade de Columbia, onde mais tarde também lecionou. Porém, fizesse o que fizesse, nunca deixou de escrever.

Tenho uma longa história com o livro Eu, Robô. Li pela primeira vez aos 12 anos, e ele foi um dos grandes responsáveis por me tornar um fã de ficção científica, o que fui durante muitos anos - e ainda sou, embora hoje em dia tenha tantos outros interesses no campo da leitura, que tornou-se um tanto raro pegar um livro do gênero. O livro reúne nove contos - nove exemplos do que de melhor se produziu em matéria de ficção robótica durante a assim chamada "era de ouro da ficção científica", que foi do fim dos anos 30 ao fim dos 40, aproximadamente - escritos quando Asimov tinha de 19 a 30 anos, e publicados ao longo desse período em diversas revistas. Em 1950, o autor selecionou exatamente esses nove (dentre a enormidade de coisas que havia escrito desde 1939) para integrarem este livro, que viria a ser uma das "bíblias" do gênero.

O livro começa em 2057, quando a famosa robopsicóloga (sim, isso mesmo: psicóloga de robôs) Susan Calvin, uma das figuras mais importantes da gigante US Robôs e Homens Mecânicos S.A., está para se aposentar, e um repórter é incumbido de entrevistá-la. Essa conversa acaba não sendo apenas sobre a vida da Dra. Calvin, mas sobre a história da US Robôs e, por conseqüência, também sobre a evolução dos robôs positrônicos, sem os quais já não é possível imaginar a sociedade naqueles tempos. Os nove contos originais são inseridos na conversa entre a cientista e o repórter, como sendo lembranças de histórias de que ela participou, que testemunhou ou ouviu contar durante mais de 50 anos de vida dedicados ao trabalho com os robôs.

Para nove histórias que foram escritas independentemente umas das outras, é impressionante como os contos ilustram bem a crescente importância que os robôs assumem ao longo da primeira metade do século XXI (não esqueçam, essas histórias foram escritas quando o século XXI era um futuro relativamente distante). O primeiro conto, Robbie, passa-se ainda no século XX, para ser mais exato em 1998, e trata da amizade entre Gloria, uma menina de oito anos, e um robô programado para ser sua ama-seca (!). Detalhe: Robbie é mudo, pois foi construído antes da invenção dos sintetizadores de voz que depois equipariam robôs mais avançados, mas isso não o impede de comunicar-se com sua pequena dona. Mas talvez o ponto mais importante do conto seja a abordagem da tecnofobia, que iria se manifestando com cada vez mais força à medida em que os robôs se tornassem mais sofisticados. Embora Robbie seja um modelo relativamente rudimentar, causa desconfiança à mãe de Gloria, que não gosta da ideia de sua filha ser "criada por uma máquina" e empenha-se ferozmente em separar os dois amigos.

A tecnofobia, aliás, tem a ver com uma das principais razões que fizeram as histórias de robôs de Asimov serem consideradas revolucionárias, apesar de tantos autores de ficção científica antes dele já terem escrito sobre o assunto. Ele foi o grande responsável por eliminar (ou, ao menos, suavizar) o "complexo de Frankenstein", que era o ponto de vista predominante até então: a idéia de que, se o homem criasse uma máquina tão ou mais inteligente que ele próprio, essa máquina fatalmente destruiria seu criador. Vale lembrar que Frankenstein, de Mary Shelley, escrito em 1818, é considerado uma das primeiras obras de ficção científica, apesar de seu ponto de vista ainda ser típico do Romantismo (refiro-me ao movimento artístico) vigente na época: "Há coisas que o homem não deve descobrir!"

Asimov mudou isso ao criar as Três Leis da Robótica, que são enunciadas pela primeira vez no segundo conto de Eu, Robô (que, por falar nisso, é também onde foi inventada a palavra "robótica"). O conto é Brincadeira de Pegar, e, nele, os engenheiros da US Robôs Gregory Powell e Michael Donovan estão em sérios apuros, em pleno planeta Mercúrio, com sua sobrevivência dependendo de um robô que aparentemente enlouquece de uma hora para outra. Para descobrir o porquê do estranho comportamento da máquina, os dois homens precisam raciocinar tendo como base as Três Leis, que são:

1. Um robô não pode fazer mal a um ser humano, ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer tipo de mal.
2. Um robô deve obedecer às ordens recebidas de seres humanos, exceto quando tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.
3. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que, fazendo isso, não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Leis.

A idéia é que tais leis fossem o "princípio zero" no cérebro dos robôs, de tal forma que nenhum "bug" (como diríamos hoje) seja capaz de interferir nelas: qualquer robô simplesmente pararia de funcionar muito antes de se tornar capaz de desobedecer a essas leis.

Ao longo dos contos seguintes, somos confrontados com uma série de situações desafiadoras envolvendo robôs de diversos tipos, sempre tendo como eixo as Três Leis e as possíveis implicações e problemas do seu cumprimento. O que a inflexível lógica binária dos robôs interpretaria como "fazer mal"?... Mesmo que um robô se julgue superior aos seres humanos (e, sob muitos aspectos, sem dúvida ele o é), continua a ter a obrigação de obedecer a tais criaturas patéticas?...

Os dois últimos contos são os de maior alcance e implicações mais profundas. Em Prova, um certo Stephen Byerley, candidato a prefeito de Nova York, é suspeito de ser na verdade um robô de aparência humanóide. A Dra. Susan Calvin, que nesse conto participa diretamente da ação, declara que o teste para saber a verdade é um só, mas não é conclusivo: se Byerley transgredir as Três Leis, então ele é humano - mas, se ele as respeitar, isso não prova coisa alguma! No último conto, O Conflito Evitável, Byerley já é Coordenador Mundial, numa época em que a maior parte das funções de governo são desempenhadas por supercomputadores, que, por também serem robôs de certo tipo, operam subordinados às Três Leis, o que faz deles governantes muito mais confiáveis que a maioria dos políticos que conhecemos. Quantos líderes, ao longo da História, se lembraram que seu verdadeiro papel devia ser o de servir àqueles a quem governavam?... Nesse conto, escrito às vésperas da década de 50 - o período mais tenso da Guerra Fria -, Asimov aposta em que os robôs, com sua inteligência artificial, poderiam um dia evitar que nós, seres humanos, nos autodestruíssemos com nossa burrice natural.

Deixo a conclusão para a própria Dra. Calvin: "E isto é tudo. Vi tudo desde o começo, quando os pobres robôs não podiam falar, até o fim, quando servem como baluartes, postados entre a humanidade e a destruição. Nada mais tenho a ver. Minha vida terminou. Cabe a vocês ver o que virá no futuro."

Uma nota final: por muito tempo me neguei a ver o filme Eu, Robô, de 2004, estrelado por aquela mistura de cantor de rap, comediante e ator de ação que atende pelo nome de Will Smith, por receio de ficar excessivamente enfurecido no caso de os enredos profundamente cerebrais bolados por Asimov terem sido transformados num pastiche propício para Smith protagonizar cenas de ação ensandecida e soltar suas piadinhas sem graça, mas, recentemente, quando o filme passou na TV, resolvi encarar, e, para minha surpresa, ele não é um desastre total. Certo, Susan Calvin aparece totalmente descaracterizada, e Asimov JAMAIS criaria um herói como o interpretado por Smith, mas o enredo geral, baseado no conto Pobre Robô Perdido, que também está em Eu, Robô, manteve o elemento de mistério do original - Asimov também escreveu histórias policiais, e, dentro de sua produção de ficção científica, esse é provavelmente o conto mais "policial". Não terá sido por outro motivo que foi escolhido para basear o filme.