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sábado, outubro 21, 2017

A Espada Diabólica

Dentro do subgênero de fantasia conhecido como sword and sorcery ('espada e feitiçaria'), o britânico Michael Moorcock (1939-) é um dos autores que mereceriam ter bem mais fama do que têm. Seu personagem mais conhecido, Elric de Melniboné, é, de várias maneiras, o oposto do típico herói desse subgênero – e, como o "típico" herói de sword and sorcery tem em Conan seu mais clássico exemplo, é interessante lembrar que o cimério e o melniboneano já se encontraram nos quadrinhos da Marvel: o épico crossover começa com uma luta, é claro (os fãs não dispensariam isso!), mas o breve duelo não chega a ter um desfecho, e os dois acabam por se tornar aliados – temporários e relutantes aliados, e de forma alguma amigos.

E por que seria Elric o oposto de Conan? Bem… Enquanto o herói cimério de Robert E. Howard desconfia da magia (embora, ao longo da carreira, por vezes tenha aceito a ajuda de magos e feiticeiros) e faz muita questão de só confiar em sua própria força, coragem e em sua espada, Elric é tanto um feiticeiro quanto um guerreiro – talvez mais feiticeiro que guerreiro. Albino e de constituição física frágil, ele ganha força e resistência por meio da magia e de uma misteriosa ligação com sua espada, Stormbringer (algo como 'a que traz a tempestade'), uma enorme lâmina feita de algum metal negro desconhecido, que, sem o auxílio da magia, ele não seria capaz sequer de levantar, quanto mais de manejar. Entre outros poderes, ela tem a capacidade de absorver a força vital daqueles que mata e transferi-la para seu detentor. Elric não gosta disso, dando por vezes a impressão de sentir que seu vínculo com a espada perverte sua própria humanidade, mas o considera, no fim das contas, um mal necessário.

Mais diferenças: Conan, um bárbaro do norte sem quaisquer traços de nobreza em suas origens, alimentou desde a juventude o sonho de tornar-se rei, o que eventualmente conseguiria; Elric, por outro lado, é um imperador, embora seu império, Melniboné, esteja em decadência, depois de ter dominado o mundo por dez mil anos. O mundo em questão, por falar nisso, parece ser a Terra, talvez num passado há muito esquecido, talvez num futuro distante: o prólogo da primeira parte, intitulada O Advento do Caos, diz que a saga de Elric tem lugar "dez mil anos antes de a História ser registrada ou dez mil anos depois que deixaram de ser compostas as crônicas, como se preferir", mas, ao longo do livro, novas informações que vão aparecendo revelam que a primeira possibilidade deve ser a verdadeira. A rigor, o uso da palavra "humanidade" no parágrafo anterior é impróprio: os melniboneanos não se consideram humanos e veem com preocupação a ascensão dos "Jovens Reinos", estes sim povoados por homens no sentido estrito do termo, que parecem estar ganhando poder e influência à medida que Melniboné enfraquece.

Fazer esse paralelo entre os dois heróis deixa óbvio que Moorcock cresceu lendo as histórias de Howard, assim como as de Edgar Rice Burroughs e, possivelmente, também as de Lord Dunsany, mas quis que suas aventuras fantásticas tivessem uma cara própria, e conseguiu isso com Elric. A exemplo dos contos de Howard sobre Conan, e também dos de Fafhrd, escritos por Fritz Leiber, as histórias sobre o imperador albino foram publicadas soltas, sem seguirem uma ordem, e organizá-las numa cronologia é tarefa complexa. Sei que isso já foi feito nos Estados Unidos, onde a saga de Elric foi publicada em vários volumes; provavelmente no Reino Unido também. No Brasil, por outro lado, até onde sei, só temos este volume, publicado pela editora Francisco Alves em 1975, dentro de sua coleção Mundo Fantástico, paralela à Mundos da Ficção Científica – ambas trazem gratas recordações para os fãs brasileiros de literatura de imaginação das décadas de 70 e 80 (pessoalmente, estou nessa desde os anos 80). O título original era Stormbringer.


A aventura começa quando, tarde da noite, uma tempestade sobrenatural desaba sobre Karlaak, a capital de Melniboné, e um grupo de assassinos inumanos – criaturas brutais enviadas pelos misteriosos Senhores do Caos – penetra na cidade, aproveitando-se de os portões estarem abertos, e as sentinelas, adormecidas, tudo efeitos da mesma magia que conjurou a tempestade para facilitar-lhes a missão. E sua missão parece ser a de matar Elric, que dorme em sua alcova no palácio, ao lado de sua esposa, a bela Zarozínia, sem de nada suspeitar. Parece, mas não é. Elric enfrenta os invasores, mas está sem sua espada, da qual prefere manter-se longe sempre que ela não é indispensável, e acaba subjugado, desacordado com um golpe na cabeça. Ao recuperar a consciência, fica surpreso por ainda estar vivo, mas a coisa seguinte que percebe é que a imperatriz foi raptada. Durante a luta, Elric conseguiu matar um dos sequestradores, e agora, por meio de magia, faz com que o cadáver se levante e fale. O efeito só dura alguns minutos, tempo suficiente para a criatura "desmorta" enunciar um enigma, que fala sobre uma guerra prestes a ser travada, e sobre um parente de Elric que deverá lutar ao seu lado empunhando a "cópia fiel" de Stormbringer. O imperador espera que, se for capaz de desvendar a charada e de sobreviver aos perigos aos quais ela conduzirá, talvez consiga recuperar sua esposa.

E é, a princípio, sozinho que Elric se aventura; não se faz acompanhar sequer por uma guarda pessoal, como um soberano normalmente faria, talvez na esperança de conseguir viajar incógnito – por mais que, no caso dele, isso seja quase impossível. É verdade que, numa sociedade de características medievais como o Império de Melniboné e terras vizinhas – sem imprensa, TV, internet e coisas que tais –, a maior parte da população que vive longe da capital nunca viu seu monarca e não o reconhecerá se por acaso o encontrar… A menos que o monarca em questão tenha uma aparência tão incomum a ponto de chamar atenção e causar comentários: vocês também não se lembrariam se, numa ruela enlameada de alguma aldeia, cruzassem com um sujeito magrelo, com pele e cabelo brancos feito marfim e olhos vermelhos ardentes, portando uma gigantesca espada negra de aparência tão exótica quanto a dele?

Seguindo as pistas enigmáticas obtidas do assassino morto-vivo, o herói albino viaja para o oeste, onde os reinos de Dharijor e Pan Tang formaram uma aliança e estão se preparando para invadir outros reinos vizinhos. Os exércitos dos defensores são comandados pela rainha Yishana de Jharkor, aliada e outrora amante de Elric, e sob sua bandeira, entre outros, lutam os mercenários de Imrryr, liderados por um homem de nome Dyvim Slorm, primo de Elric e seu único parente vivo. Quanto à cópia fiel da espada, é fato que Stormbringer possuía uma "gêmea", Mournblade (a "lâmina lamentosa", mais ou menos; o verbo to mourn quer dizer lamentar ou prantear, geralmente por alguém que morreu, podendo significar também, por extensão, 'estar de luto'); ocorre que essa segunda espada era empunhada por Yyrkon, outro primo, que Elric matou durante uma disputa dinástica anos antes, e a arma, ao que se acredita, foi perdida, de modo que parece impossível o pleno cumprimento da profecia. Em todo caso, Elric e Dyvim Slorm juntam-se ao exército de Yishana para a batalha que decidirá o destino do oeste.

E que batalha é essa! Saber narrar bem um combate em massa é tão importante para o escritor de fantasias épicas quanto para o de ficção histórica, e Moorcock demonstra ter o dom, mas não se trata de uma batalha "comum", entre tropas de homens protegidos por armaduras e usando lanças, espadas e arcos; há tropas assim, é claro, mas há também tigres treinados para o combate, cavaleiros montando répteis de seis patas em vez de cavalos, esquadrões de homens alados… Sim, eu também fiquei imaginando como seria isso tudo num filme, e é pena ser tão improvável que algo assim se concretize. De qualquer forma, a batalha, na qual Elric arrisca a vida, é apenas um passo em sua busca por Zarozínia. O narrador diz explicitamente que o albino se considera um realista, mas, em seus atos, pelo menos nesta história, ele demonstra um pendor para o fatalismo: seu inimigo morto fez uma profecia, e os mortos, se, por um lado, não podem dar respostas diretas, tampouco podem mentir. Sendo assim, Elric está disposto a cumprir seu papel nessa profecia, mesmo sem compreendê-la totalmente, na esperança de que, em seu desenlace, sua esposa lhe seja devolvida, como também foi profetizado. Porém, há mais em jogo que apenas sua vida. As forças do Caos que tramaram o rapto da imperatriz querem algo em troca de sua libertação: exigem a entrega tanto de Stormbringer quanto de Mournblade, as únicas armas que podem, nas mãos certas, representar um entrave a seus planos de dominar o mundo.

Elric odeia Stormbringer (a espada possui vontade própria e até um certo tipo de inteligência maligna, mais ou menos como o Um Anel de Tolkien) e ficaria feliz de nunca mais empunhá-la; portanto, em nível pessoal, aceitaria a troca com a maior das alegrias. Acontece que, se o fizer, estará, com esse ato, condenando o mundo a uma era de trevas e terror, e, embora preocupar-se com a sorte de povos ou reinos não seja nele uma reação natural, o imperador albino possui, sim, uma consciência. Talvez seu heroísmo tenha ainda mais valor por não ser instintivo como o de um Hércules ou um Super-Homem: ao contrário, escolher seu curso de ação numa situação como essa custa-lhe angústia e indecisão. Elric carrega o fardo de ser o último imperador de Melniboné, e de lhe haver cabido ocupar o trono exatamente durante esses dias, que equivalem ao apocalipse para esse mundo antediluviano. Os servos do Caos desprezam a Ordem porque, segundo eles, ela limita a matéria, enquanto o Caos representa possibilidades infinitas; para o mundo, porém, essas possibilidades acarretam catástrofes: ao mesmo tempo em que eclodem guerras terríveis, o próprio planeta parece estar em convulsão, assolado por terremotos, erupções vulcânicas e tempestades sobrenaturais. Além disso, a influência do Caos puro causa espantosas transformações nos seres vivos que estiverem nas proximidades, deformando seus corpos em paródias obscenas de suas aparências originais, ora mudando-os em figuras tortas e desproporcionais, ora fazendo com que desenvolvam aleatoriamente vários membros e cabeças em qualquer lugar do corpo. Enfim, os piores pesadelos ganham existência material.

Embora seja um feiticeiro erudito, iniciado em muitos mistérios, o monarca albino ainda é um mortal, e, por isso, há muitas coisas que não pode vislumbrar ou compreender. Uma delas lhe é revelada por um ser misterioso, imortal, de nome Sepiriz, que lhe oferece ajuda e aconselhamento para sua missão, e o teor da revelação é que, não importa o que Elric faça, ele não pode verdadeiramente salvar o mundo que conhece: esse mundo deve e vai desaparecer, abrindo espaço para o que Sepiriz chama de "os verdadeiros primórdios da história da humanidade", o que parece significar o início da História que conhecemos. Tudo o que Elric pode influenciar é que espécie de mundo vai se erguer dos escombros do seu milênios depois: se as forças do Caos vencerem, elas terão absoluto domínio nos tempos futuros; se Elric as derrotar, isso não significa que o Caos será erradicado, mas fará com que, no novo mundo, a Ordem, ou a Lei, como os personagens a chamam, tenha ao menos uma chance de luta. Nenhuma das duas forças deve alcançar uma vitória definitiva sobre a outra, pois é no embate interminável entre elas, e no precário e incerto equilíbrio que daí nasce, que o universo encontra condições de existir e de se desenvolver: o Caos puro o levaria ao colapso, a Ordem pura resultaria em estagnação.

Eu não iria ao ponto de dizer que Elric defende a Ordem, e sim que procura favorecer esse equilíbrio, mas mesmo isso já representa uma opção radical para ele, filho de uma raça gerada pelo Caos, se é que pode-se falar em opção quando existe um destino que somente ele pode cumprir. É nesse destino, e no modo como se posiciona diante dele, que reside aquilo que faz de Elric um personagem tão interessante, pelo menos no meu modo de ver. Ele não é bondoso nem altruísta por natureza, embora ainda seja mais afável que a média de seu povo – os melniboneanos são essencialmente caóticos e cruéis –, mas, mesmo assim, aceita os riscos e os sofrimentos que sabe que estão à sua espera, somente pelo bem de um mundo onde nem ele, nem nenhum descendente seu viverá, e no qual ninguém saberá que ele existiu.

Até agora, eu só tinha conhecimento indireto sobre a obra de Michael Moorcock, e Elric era para mim apenas um personagem que tinha aparecido numa aventura de Conan; sabia que ele tinha uma vida própria na literatura, e que suas histórias haviam inspirado pelo menos três músicas do Blind Guardian: Fast to Madness, do álbum Follow the Blind (1989), The Quest for Tanelorn, do Somewhere far Beyond (1992) e Tanelorn (Into the Void), do At the Edge of Time (2010), mas é a primeira vez que tenho a oportunidade de realmente lê-lo, e agora posso atestar que Moorcock é, sem sombra de dúvida, um dos maiores nomes da história do subgênero sword and sorcery e, ouso dizer, até mesmo da literatura de fantasia em geral, e deveria ser considerado leitura obrigatória para a geração que hoje "viaja" nas páginas das Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin e de outros expoentes atuais desse segmento. É complicado ficar contando com traduções – este volume já é muito antigo (e, cronologicamente falando, deve ser o último da saga, por motivos que vocês terão que ler para saber), e nunca ouvi falar em outras edições nacionais desta ou de outras aventuras de Elric –, mas, se você lê em inglês e gosta desse tipo de literatura, eis aqui um mundo cujo fim será um privilégio testemunhar.

Em tempo: se eventualmente for feito um filme baseado em A Espada Diabólica, as partes a respeito dos dragões, e, mais especificamente, a respeito de seu uso como armas de guerra, na certa farão muitos quadrúpedes da internet soltarem comentários como "pô, véi, copiaram Game of Thrones na cara dura!" (As maiúsculas, a pontuação e os acentos são generosidade minha, é claro.) Espero que haja alguém com paciência para explicar que Michael Moorcock escreveu as histórias de Elric entre as décadas de 60 e 90, sendo que A Espada Diabólica foi originalmente publicada em 1965, quando George R. R. Martin, aos 17 anos, ensaiava os primeiros passos em sua carreira de escritor – e, muito provavelmente, era um ávido leitor de Moorcock.

domingo, julho 17, 2016

A Flor de Vidro

Volta e meia eu cito alguma obra em conexão com a que estou comentando no momento e digo algo como "terei que falar sobre essa em outra ocasião". Claro: por mais que eu fosse gostar de me estender escrevendo sobre o livro, filme ou o que for, fazer isso naquele momento me desviaria do assunto. O ruim é que, na maioria das vezes, essas "outras ocasiões" acabam não acontecendo.

Mas desta vez sim. Mencionei o conto A Flor de Vidro no meu post sobre A Guerra dos Tronos, primeiro volume das Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin, e o fiz porque foi o primeiro trabalho dele que li, isso há vinte e muitos anos, muito, mas muito tempo antes de o autor ou sua obra ficarem famosos no Brasil – e, mesmo nos Estados Unidos, Martin tinha no máximo uma fama discreta em 1986, ano da publicação original da história. No Brasil, ela apareceu alguns anos depois, na edição número quatro da versão nacional da Isaac Asimov Magazine, que a editora Record teve a corajosa iniciativa de lançar a partir de 1990, conseguindo mantê-la nas bancas por pouco mais de dois anos. O mercado literário nacional, porém, não estava maduro para uma revista assim, o que acabou determinando seu cancelamento depois de apenas 25 edições. Enquanto circulou, a IAM brasileira permitiu a seus leitores ter contato com autores jovens, então em ascensão no meio editorial dos países de língua inglesa, o que era uma novidade empolgante, pois, embora a quantidade de títulos de ficção científica disponíveis em português fosse até razoável, a quase totalidade dos livros que tínhamos eram dos monstros sagrados do gênero: o próprio Asimov, Arthur C. Clarke, Ray Bradbury, Poul Anderson, Robert A. Heinlein e outros desse quilate – todos eles autores excepcionais e de enorme importância na história da ficção científica, mas, puxa!, esses livros datavam, em sua maioria, das décadas de 30, 40 e 50! Todos sabíamos que cada década desde então havia revelado um punhado de novos autores, inspirados e influenciados por esses, e não parecia (não era) justo que não tivéssemos acesso a nada do que haviam produzido.

A IAM brasileira tinha a nobre intenção de resolver esse problema, e provavelmente teria conseguido, caso tivesse existido por mais tempo. De qualquer forma, ofereceu um bem-vindo paliativo, trazendo, a cada edição, sete, oito histórias de escritores que ainda não conhecíamos, e, eventualmente, alguma de um autor de grande estatura, sendo Asimov, é claro, o mais assíduo. Naturalmente, nem tudo era excelente: a revista publicou muita coisa boa, mas também a sua quota de bobagem. No caso da maioria dos autores novos ali publicados, foi essa a primeira e a última vez que ouvi falar deles, e, embora George R. R. Martin fosse, sem dúvida, um dos melhores, tudo indicava que com ele não seria diferente. Bem, eu estava enganado nesse ponto. Que bom!

A Flor de Vidro não contém qualquer enunciação de data, pelo menos nenhuma que possamos identificar, porém os personagens falam sobre certos eventos que, para eles, fazem parte de um passado longínquo, mas que, para nós, ainda são um futuro distante, o que ajuda a dar uma ideia, mesmo que vaga, da vastidão do intervalo de tempo que nos separa dos dias em que a história se desenrola. A protagonista-narradora é Cyrain de Ash, "mestra da mente", "senhora da dor", entre outros títulos que o vulgo lhe atribui e para os quais ela pouco liga. O importante é que Cyrain controla o que ela chama de o "jogo da mente": usando um misterioso "Artefato" de origem desconhecida, descoberto séculos antes em meio aos pântanos do planeta Croan'dhenni, ela conduz pessoas que procuram renascimento a uma espécie de campo de batalha mental, onde o mais forte (mentalmente falando, é claro) pode tomar o corpo do mais fraco e, ao final do jogo, despertar nesse corpo "roubado" – algo muito cobiçado pelos que sofrem de alguma doença incurável, ou os que simplesmente não aceitam o curso natural da vida em direção à morte. A palavra "pessoas", aí, não deve ser entendida como significando necessariamente "seres humanos": o jogo da mente aceita jogadores de qualquer das centenas, talvez milhares de raças inteligentes que povoam o universo conhecido. Os participantes são chamados de "jogadores", no caso dos que procuraram o jogo voluntariamente, pagando alto por isso, e "prêmios", que são os que não escolheram estar ali: foram comprados em mercados de escravos de qualquer um dentre milhares de planetas habitados, e trazidos para que os jogadores tenham a chance de tomar seus corpos.

E é essencial notar isso: é meramente pela chance que os jogadores pagam, pois não há, nem pode haver, garantia alguma. Cyrain é taxativa ao preveni-los de que, uma vez iniciado o jogo, deixa de haver distinção entre jogadores e prêmios. Se o prêmio derrotar o jogador, este último geralmente morre, e, nesse caso, a mestra da mente promete ao prêmio sua libertação no mundo de origem, com dinheiro suficiente para recomeçar a vida. Ainda não é tudo: quando se diz que não há nenhuma garantia, isso significa nenhuma mesmo, nem sequer a de que, no decorrer do jogo, um jogador não vá tentar tomar o corpo de outro, ainda  que isso, na maioria das vezes, não seja um bom negócio, pois, se alguém se dá ao trabalho de viajar até o distante Croan'dhenni e aceita pagar o alto preço pedido pela mestra, é provavelmente porque seu corpo atual deve estar bem acabado. Provavelmente, eu disse.

O jogo da mente em Croan'dhenni começou a ser jogado quando um misterioso alienígena conhecido apenas como "o Branco" chegou ao planeta, parecendo saber o que procurava, pois foi ele quem descobriu, escondido naqueles intermináveis pântanos, o Artefato (assim chamado desde então) que torna o jogo possível. Os próprios croan'dhiques, primitivos, sem conhecimento sobre viagens espaciais ou alta tecnologia, nada sabiam, tampouco, sobre o Artefato; ignoravam sua existência, até que o Branco o encontrou e desenterrou. Seria o Artefato uma criação de sua desconhecida raça, construído em eras antigas e escondido ali por motivos que nunca saberemos? Ou teria outra origem, tendo chegado ao conhecimento do Branco de maneiras que também não saberemos? Mistérios. Seja como for, o Branco tornou-se o primeiro senhor da mente. Teve vários sucessores durante os 600 anos seguintes, até chegar a vez de Cyrain, que já está no cargo há quase um século quando a história começa, e, ao longo desse tempo, ocupou ("vestiu", como ela diz) diversos corpos. O atual é o de uma pré-adolescente de grande beleza, com cabelos loiro-prateados e olhos cor-de-violeta (alguém mais se lembrou de Daenerys Targaryen?).

E é esse rosto jovem que a quase bicentenária Cyrain de Ash apresenta a um novo jogador em potencial, cuja chegada dá início à ação da história. O forasteiro se apresenta como Joachim Kleronomas – um nome lendário, pois, séculos antes, existiu um Joachim Kleronomas que construiu para si uma fama imperecível, primeiro como soldado, combatendo nas cruéis guerras espaciais de sua época, e depois como explorador e intelectual, comandando uma missão de pesquisa que durou décadas e descobriu e catalogou centenas de planetas. Além de tudo isso, esse homem foi o fundador da prestigiosa Academia do Conhecimento Humano, no planeta Avalon. O melhor vem agora: quando a mestra da mente lhe pergunta se aquele Kleronomas era ancestral seu, o visitante responde que não – era ele mesmo.

Qualquer pessoa que tenha vivido o tempo que Cyrain viveu, necessariamente já aprendeu a não julgar as criaturas pela aparência – e em seu ramo de trabalho, muito mais. Porém, o homem (?) que se diz Kleronomas (o Kleronomas) é um ser inteiramente feito de metal e plástico, cujo corpo ostenta os resultados dos incríveis avanços que a engenharia robótica atingiu nesses tempos. Segundo ele, entretanto, sua mente, que agora habita num computador embutido em seu tórax metálico, é a mesma que pulsava no cérebro orgânico de Joachim Kleronomas sete séculos antes. "O que é uma mente humana?", indaga ele, para logo em seguida responder à própria pergunta: "Memórias. Memórias são dados. Caráter, personalidade, vontade individual. Isso tudo é programável. É possível imprimir a totalidade de uma mente humana num computador de cristal-matriz". Seu corpo original, terrivelmente mutilado durante a guerra, foi parcialmente reconstruído com partes biônicas, e, progressivamente, o que ainda restava de orgânico foi sendo substituído também, até convertê-lo nesse ser cibernético, mas dotado de mente humana… Pelo menos, essa é a história que ele conta. E sendo, de certa forma, uma máquina, ele pode manter-se funcionando por tempo indeterminado, bastando para isso substituir as peças à medida em que elas se desgastam, não estando sujeito à inevitabilidade da morte que assombra todos os seres orgânicos. Imortal. Sendo assim, Cyrain faz a pergunta óbvia: o que faz um imortal naquele lugar habitualmente procurado por moribundos? E a resposta dele, com outras palavras, é que não deseja mais essa condição paradoxal que é a de ser imortal sem estar verdadeiramente vivo. Quer voltar a ter um corpo de carne e osso, e está pronto a aceitar tudo o que virá com isso – começando pela certeza da morte, a única certeza que qualquer ser vivo pode ter.

A Flor de Vidro é uma história magnífica, verdadeira aula de como escrever boa ficção científica em pouco mais de 35 páginas. Reúne quase tudo o que poderíamos pedir de uma obra do gênero: uma ambientação imaginária riquíssima e detalhada, personagens com personalidade (eita, redundância… Mas o sentido que eu queria era esse, então fica assim mesmo), ritmo e narrativa perfeitos. De quebra, tem profundidade psicológica, diálogos enigmáticos, e convida a uma reflexão sobre a dualidade vida/morte, que é e foi desde sempre o tema mais abordado por todas as formas de arte, e, mesmo assim, permanece instigante, inquietante, perturbador, com possibilidades inesgotáveis. O conto dá a impressão de fazer parte de um todo muito maior, pois nos apresenta um universo imaginário de enorme complexidade, com raças, mundos e uma história própria, e, de todo esse universo, o que ele efetivamente mostra são apenas alguns pequenos pedaços – pequenos em vista da vastidão do todo, mas suficientes para nos proporcionar uma trama densa e poderosa. Realmente torço para que Martin tenha voltado a esse universo em outras histórias, pois criar algo tão grandioso para usar uma vez só parece um desperdício sem tamanho! E, se essas histórias existirem, torço também para ter a oportunidade de lê-las.

quinta-feira, agosto 20, 2015

Crônicas de Gelo e Fogo - A Guerra dos Tronos

– (...) O desertor sabe que sua vida está perdida se for capturado, e por isso não vacilará perante nenhum crime, por mais vil que seja. Mas você não me compreendeu bem. A pergunta não era sobre o motivo por que o homem tinha de morrer, mas sim por que eu tive de fazê-lo.
Bran não tinha resposta para aquilo.
– O rei Robert tem um carrasco – respondeu, em tom incerto.
– Tem – admitiu o pai. – E os reis Targaryen também tiveram antes dele. Mas o nosso costume é o mais antigo. O sangue dos Primeiros Homens ainda corre nas veias dos Stark, e mantemos a crença de que o homem que dita a sentença deve manejar a espada. Se tirar a vida de um homem, deve olhá-lo nos olhos e ouvir suas últimas palavras. E se não conseguir suportar fazê-lo, então talvez o homem não mereça morrer. Um dia, Bran, você será vassalo de Robb, mantendo um domínio seu para o seu irmão e o seu rei, e a justiça caberá a você. Quando esse dia chegar, não deve ter nenhum prazer na tarefa, mas tampouco deverá desviar os olhos. Um governante que se esconde atrás de executores pagos, depressa se esquece do que é a morte.

*       *       *

Quando as Crônicas de Gelo e Fogo e a série de TV baseada nelas, Game of Thrones, tornaram-se populares no Brasil, e, consequentemente, o nome de George R. R. Martin passou a ser citado com frequência, eu bem que tive a sensação de que já tinha ouvido (ou, bem mais provavelmente, lido) esse nome em algum lugar. Depois de quebrar a cabeça durante um bom tempo, tive um eureka, aparentemente por nenhum motivo em especial, e fui desencavar a minha velha coleção da saudosa Isaac Asimov Magazine, lá do início da década de 90, tempo de minha não menos saudosa adolescência. Bingo: lá estava, na edição número quatro da revista, a história A Flor de Vidro, de autoria de Martin. E, se o nome do autor demorou a "tocar um sino" na minha memória, da história em si eu lembrava bem, pois sempre a considerei uma das melhores publicadas pela IAM brasileira ao longo de todas as suas 25 edições. Era um estupendo conto de ficção científica sobre o qual eu adoraria me estender escrevendo, mas isso fugiria ao escopo deste post; fica para uma próxima vez. Basta dizer que a grandiosidade e a complexidade que caracterizam as Crônicas de Gelo e Fogo já estavam lá, assim como alguns detalhes menores, mas que ajudam a marcar o estilo inconfundível do autor: a sonoridade dos nomes exóticos inventados é semelhante, e, quando ele quer descrever uma figura feminina de beleza etérea, parece ter uma tendência a dar-lhe olhos cor-de-violeta. Porém, é necessário observar que uma obra é de ficção científica, e a outra, de fantasia – dois gêneros muito diferentes. É fato que o público das duas tende a ser o mesmo, e que muitos autores transitam livremente entre uma e outra, mas fantasia e ficção científica têm entre si muito mais diferenças que semelhanças… E, mesmo assim, Martin mostra-se igualmente bom em ambas.

Poderíamos dizer que as Crônicas de Gelo e Fogo têm uma ambientação medieval, mas não se trata da "nossa" Idade Média; a trama se desenrola num mundo fictício. O mundo, em si, não é nomeado (pelo menos, não até onde já li), mas o continente onde se passa a maior parte dos acontecimentos da saga chama-se Westeros, um nome que traz sugestões de "ocidente", e, de fato, ele está localizado a oeste no mapa, com o Mar Estreito a separá-lo do continente vizinho, Essos (nome que sugere "oriente", em inglês East). Essos é muito maior, mas os westerosi pouco conhecem a respeito dele ― ou seja, Essos está para Westeros assim como a Ásia estava para a Europa medieval. Westeros abriga os assim chamados Sete Reinos, que, em tempos idos, eram mesmo reinos independentes, mas, na época em que se passa a história, são meras províncias de um único e vasto reino, de modo que quem usar a coroa governa, na prática, todo o continente, com exceção apenas do que está ao norte da Muralha… E da Muralha, falaremos daqui a pouco, pois poucas palavras não bastam. Ainda a respeito do mundo da saga, há uma peculiaridade importante: nele, a duração das estações é imprevisível. Os verões podem durar anos, e os invernos, o equivalente a uma vida inteira.

Catorze anos antes do início da narrativa, houve uma rebelião na qual diversas casas nobres, aliadas, derrubaram Aerys Targaryen, o Rei Louco. Um jovem cavaleiro de nome Jaime Lannister, que servia na guarda do rei, traiu e assassinou seu senhor, ao mesmo tempo em que se desenrolava a Batalha do Tridente, na qual Robert Baratheon, lorde de Ponta Tempestade, venceu em combate singular o filho mais velho de Aerys, Rhaegar, vindo então a sentar-se no legendário Trono de Ferro como o novo senhor dos Sete Reinos. Robert casou-se com Cersei Lannister, irmã gêmea de Jaime; seu sogro, Lorde Tywin, é o atual chefe da casa Lannister, a família mais rica de Westeros. Jaime e Cersei têm um irmão mais novo, Tyrion — um anão. Desde a infância alvo de desprezo geral por causa de sua condição física, Tyrion procura compensar o fato por meio da inteligência: é o membro estudioso da família, embora seja também um grande apreciador de vinho, farra, jogo e meretrizes.

Até serem depostos, os Targaryen parecem ter reinado durante muito tempo em Westeros; são um clã antigo e orgulhoso, que possui uma misteriosa afinidade com dragões ― em mais de um lugar do livro insinua-se que talvez tenham sangue de dragão nas veias, o que não é de todo absurdo: de acordo com muitas lendas (e também histórias de fantasia), os dragões são conhecedores de magia antiga, e pelo menos alguns deles possuem o poder de tomar a forma humana, podendo, nesse estado, relacionar-se com seres humanos e, possivelmente, até gerar descendência. Em Westeros, os dragões estão extintos, mas sua existência ainda não foi relegada ao status de lenda: os últimos morreram há apenas 150 anos. Poucas gerações antes dos dias em que transcorre a saga, reis da dinastia Targaryen os utilizaram como armas devastadoras em suas guerras. E, não por acaso, o emblema dos Targaryen é um dragão. Os únicos sobreviventes da dinastia são os dois filhos mais jovens do rei Aerys – Viserys, um rapaz, e Daenerys, uma donzela agora com 13 anos. Estão refugiados em Essos, sobrevivendo graças ao auxílio de antigos vassalos dos Targaryen, o que valeu a Viserys a incômoda alcunha de Rei Pedinte; mesmo assim, ele ainda alimenta a ambição de retornar a Westeros, derrubar Robert e ocupar o Trono de Ferro, o espantoso assento real que um de seus ancestrais mandou forjar com mais de mil espadas de inimigos derrotados. Para tentar concretizar essa ambição, Viserys arranja o casamento da irmã com Khal Drogo, um poderoso chefe tribal do povo Dothraki, uma nação de cavaleiros nômades das vastas pradarias de Essos. Em troca, Viserys espera que Drogo lhe dê um exército…

Um dos principais aliados de Robert Baratheon na guerra contra os Targaryen foi Eddard "Ned" Stark, da casa Stark, que controla a vasta e fria região conhecida apenas como o Norte, a parte mais extensa, mas menos povoada dos Sete Reinos. Os dois são amigos desde a juventude, e quase se tornaram cunhados: Robert era apaixonado pela irmã de Eddard, Lyanna. A jovem foi raptada durante a guerra pelo príncipe Rhaegar, e morreu no cativeiro – mais um motivo para o grande ódio de Robert por Rhaegar em particular e pelos Targaryen em geral. E é em torno de Eddard Stark que gira a narrativa neste primeiro volume das Crônicas. Casado com Lady Catelyn, ele tem cinco filhos legítimos. O mais velho, Robb, é um rapaz destemido de 14 anos, que está sendo educado para suceder ao pai como lorde de sua casa; Sansa, de onze, é uma dama por natureza: linda, educada, sonhadora, frágil, e não especialmente esperta; Arya, de nove, é o oposto da irmã, pois se aborrece com costura, mexericos palacianos e bailes, ama o ar livre e sonha em tornar-se uma guerreira; Bran, de sete, é irrequieto e curioso, e tem o perigoso hobby de escalar os velhos muros e torres de Winterfell, a fortaleza dos Stark, indo e vindo pelos telhados e ameias como se fosse um esquilo; e Rickon, o caçula, tem apenas três anos, de modo que é muito cedo para saber o que ele será e o que não será. Além desses filhos legítimos, Eddard tem mais um, ilegítimo ("bastardo", palavra que, embora com conotações ofensivas, é sem dúvida bem mais usada), quase da mesma idade de Robb. Esse chama-se Jon Snow ― não Stark, mas Snow ('Neve'), sobrenome tradicional de filhos bastardos no Norte. Em Westeros, como em toda parte onde existem nobres, é comum que eles tenham filhos fora do casamento, mas, de modo geral, contentam-se em enviar algum dinheiro para suprir o sustento da criança – isso quando não a deixam à própria sorte. Eddard Stark fez diferente. Jon foi criado em Winterfell, junto com seus filhos legítimos e quase em pé de igualdade com eles. O pai, provavelmente, teria desejado que a igualdade fosse completa, mas não poderia fazer isso sem afrontar gravemente Lady Catelyn, que apenas tolera o bastardo, sem esconder que o prefere fora de sua vista. Jon convive com um dilema que envolve sua própria existência: ele admira profundamente o pai, a quem considera o homem mais honrado que conhece – mas, se Eddard não tivesse, ao menos uma vez, faltado para com sua honra, ele, Jon, não existiria. A identidade da mãe de Jon Snow é um dos segredos que mais intrigam os fãs das Crônicas.

Tudo isso são antecedentes. A história que vai ser narrada em A Guerra dos Tronos começa com a morte de Lorde Jon Arryn, senhor do castelo de Ninho da Águia, um homem já de certa idade que foi uma figura importante da rebelião e uma espécie de segundo pai para os jovens Ned Stark e Robert Baratheon, além de ter-se tornado concunhado de Ned ao casar-se com Lysa, irmã de Catelyn. Durante os últimos 14 anos, Jon Arryn ocupou o cargo de Mão do Rei – seu homem de maior confiança, conselheiro mais próximo e, quando necessário, substituto. Agora, Lorde Arryn morreu de forma repentina, supostamente vitimado por uma doença fulminante, mas há quem acredite que ele foi envenenado por ter descoberto algum grave segredo envolvendo pessoas importantes, algo que tais pessoas não iriam querer que chegasse ao conhecimento do rei Robert. O rei, então, vai de visita a Winterfell, com praticamente toda a sua corte (um deslocamento e tanto), a fim de pedir a Ned Stark que assuma o cargo que Arryn deixou vago, o que ele aceita relutantemente, movido apenas pelo senso do dever, pois não deseja o poder e preferiria ficar na terra que ama, em sua casa, com sua família. Robert, que Ned não via há anos, mudou muito; o formidável guerreiro de outrora amoleceu, engordou, e o hábito de abusar do vinho, que antes era ocasional, tornou-se quase diário. Nem mesmo seus amigos mais chegados podem nutrir a ilusão de que ele seja um excelente rei, mas Ned sabe que seu velho amigo é, na essência, um homem decente, e tem esperança de poder ajudá-lo a governar bem. Infelizmente para ele e para muitos outros, a política na capital Porto Real revela-se uma coisa tortuosa e traiçoeira, que a própria natureza honesta de Ned torna-o pouco hábil para enfrentar.

Entre os que comparecem a Winterfell durante a visita do rei está Benjen Stark, irmão de Eddard e membro graduado da Patrulha da Noite. Essa corporação tem uma tradição de séculos defendendo a Muralha, que separa os Sete Reinos das regiões geladas do extremo norte do continente, habitadas por ferozes tribos selvagens – e, segundo alguns, também por gigantes e outras coisas estranhas e perigosas. Quando li sobre a Muralha, imediatamente tive quase certeza de que tinha sido inspirada na Muralha de Adriano (detalhes aqui); mais tarde tive a confirmação, ao ler, em algum lugar da internet, uma pequena matéria na qual George R. R. Martin contava que essa ideia lhe veio quando, durante uma viagem pela região da fronteira Inglaterra/Escócia, visitou as partes da Muralha que ainda estão em pé e ficou imaginando como era a vida dos homens que ali montavam guarda, responsáveis por deter investidas de povos bárbaros e por resguardar a segurança das populações civis atrás deles. Porém, há uma diferença importante: os que guarneciam a Muralha de Adriano eram legionários romanos, soldados de um exército profissional; eram voluntários, altamente treinados e disciplinados, e, além disso, gozavam de um certo status. Já em Westeros, a força que cuida da Muralha é a tal Patrulha da Noite, que até tem em suas fileiras alguns nobres, cavaleiros e voluntários idealistas – mas o grosso das tropas é composto de criminosos condenados, a quem foi oferecida a escolha entre passar o resto de seus dias na Muralha e enfrentar a execução sumária ou coisa pior. Ao Lorde Comandante Jeor Mormont e seus oficiais – entre os quais Benjen Stark – cabe a dura tarefa de transformar esses celerados em soldados comprometidos com uma causa. Então, para a surpresa de todos, o jovem Jon Snow comunica ao tio Benjen que deseja "vestir o negro" – expressão tradicional que significa juntar-se à Patrulha da Noite, aludindo à cor de seus trajes, que, aliás, a meu ver, é bem estranha: uma força que atua numa região gelada e quase sempre coberta de neve deveria vestir branco, a fim de ficar menos visível para seus inimigos. No caso de Jon, só mesmo o idealismo, o desejo de aventura ou as duas coisas podem explicar essa aspiração. Em Winterfell, a despeito da má vontade da madrasta, ele tem uma vida confortável, a companhia do pai e dos meio-irmãos (parece dar-se bem com todos), aprende com os melhores mestres e, mesmo que não possa esperar chegar tão alto quanto os filhos legítimos de lorde Stark, poderá, quem sabe, ser senescal de Robb quando este for lorde – um futuro bem mais promissor que o da maioria dos bastardos. Na Muralha, tudo o que o espera é frio, perigo, desconforto, e a companhia menos recomendável possível. Porém, uma vez tendo tomado sua decisão, ele parte para o norte com Benjen, enquanto seu pai toma o rumo contrário, em direção a Porto Real, acompanhado por homens escolhidos, e levando consigo Arya e Sansa – esta, prometida ao príncipe Joffrey, filho mais velho do rei. Robb e Catelyn ficam responsáveis por Winterfell, e, quanto a Bran, ele sofre um grave acidente (não vou dar spoiler entrando em detalhes) e fica entre a vida e a morte. O que Eddard encontrará na capital, e Jon na Muralha, irá definir duas das principais linhas narrativas do romance. A terceira linha principal trata da vida da jovem Daenerys Targaryen em Essos… E há ainda outras linhas, menos importantes, mas tão fascinantes quanto.


Dizer que um autor ou obra é "o maior acontecimento na literatura de fantasia desde Tolkien" é algo que já foi tão usado e abusado, que há muito já perdeu qualquer capacidade que alguma vez tenha tido de impressionar alguém; é como dizer que este ou aquele jovem jogador de futebol tem as qualidades de um "novo Pelé". E é claro que isso já foi dito também de George R. R. Martin e suas Crônicas de Gelo e Fogo. Comparar é desnecessário, perigoso e injusto – afinal, Martin é o primeiro a reconhecer que Tolkien é uma de suas mais fortes influências, de modo que, se não fosse pela Terra-média, é provável que Westeros e Essos nunca tivessem nascido, ou que, pelo menos, não fossem tão grandiosos. Entretanto, mantendo uma distância segura das malfadadas comparações, e ciente de que fazer previsões é sempre arriscado, eu ouso apostar que as Crônicas vieram para ficar, e que, daqui a cinquenta anos, os novos autores de fantasia de então poderão muito bem estar mencionando tanto Tolkien quanto Martin com gratidão e reverência, e confessando-se, por sua vez, influenciados por ambos. A Guerra dos Tronos (e acredito que também os volumes seguintes, que espero ler em breve) tem aquele "algo mais", nem sempre fácil de definir, que distingue um bom livro de um grande livro. Temos aqui todo o necessário para dar nascimento a uma nova "mitologia": um mundo vasto e fascinante, com história, geografia e cultura próprias; uma trama complexa, cheia de reviravoltas e surpresas; e, talvez o mais apaixonante, personagens incríveis, cada um com seu perfil e jeito de ser, suas forças e fraquezas, e suas contradições. Os exemplos que me vêm à cabeça agora são dois. Primeiro, Lady Catelyn, uma mulher admirável, verdadeira heroína – corajosa, sábia, cheia de fibra, capaz de tudo pela família… e, não obstante, capaz também de ser incrivelmente mesquinha em sua implicância para com Jon Snow, simplesmente porque o rapaz, sem ter culpa alguma disso, é para ela um lembrete constante de que seu marido um dia lhe foi infiel. Segundo, Jaime Lannister, essencialmente um homem vaidoso, prepotente e sem escrúpulos, mas também devotado à família (embora haja um segredo chocante envolvendo essa parte); para Tyrion, aliás, Jaime é o único membro da família que já lhe demonstrou bondade ou amizade. Mesmo a traição cometida por Jaime contra Aerys Targaryen – o rei cuja vida jurara defender com a sua – tem dois lados, embora só bem mais tarde venhamos a conhecer sua versão da história. De todo modo, o que eu pretendia com esses dois exemplos (apenas dois dentre os muitos que poderia citar) era demonstrar o que quero dizer quando afirmo que os personagens de Martin são mais que rostos e nomes: são pessoas. Não totalmente bons, nem totalmente maus: pessoas. Bem… Nem todos, é verdade. Uma boa história também precisa de seus personagens previsíveis.

Quem ler a mesma edição que eu, notará que o texto como um todo tem um sabor inconfundível do português europeu, com um uso frequente de palavras, expressões e estruturas frasais típicas dessa variante do idioma, juntamente com muitos erros de concordância, verbos conjugados em pessoas diferentes dentro da mesma frase… A impressão que dá é a de que a edição brasileira foi feita aproveitando uma tradução portuguesa preexistente, que passou por uma canhestra tentativa de adaptação. Pessoalmente, sempre li livros editados em Portugal sem qualquer adaptação, e nunca tive problemas com isso; seria muito melhor ler na tradução original que nessa versão que tenta transformar o texto em português brasileiro, mas consegue apenas continuar a ser português europeu – só que agora cheio de erros.

Ainda há muito que eu gostaria de dizer sobre este livro (que, não esqueçam, é apenas o primeiro da saga!) e também sobre a estupenda série de TV Game of Thrones, mas é melhor não deixar o texto longo demais, e, além disso, oportunidades não hão de faltar, pois tenho certeza de que este não será de forma alguma meu único post sobre o universo de George R. R. Martin. Em textos futuros, pretendo dar um jeito de inserir uma porrada de coisas que pensei em escrever aqui, e só não o fiz para não me alongar ainda mais.